O Silêncio do Delator.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

COLETÂNEA EDITADA PARA LIVRO ELETRÔNICO

DISCURSOS, ARTIGOS, ENSAIO, ENTREVISTA E FRAGMENTO DA OBRA PUBLICADOS NO SITE OFICIAL DE JOSÉ NÊUMANNE PINTO SOBRE O LIVRO O SILÊNCIO DO DELATOR

www.neumanne.com

2012 ESTAÇÃO NÊUMANNE ANO VI

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Especial Fortuna Crítica / Fragmento 2004/2005/2008/2009

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DISCURSOS DISCURSO DE MARCOS VINÍCIOS VILAÇA PROFERIDO DURANTE A ENTREGA DO PRÊMIO SENADOR JOSÉ ERMÍRIO DE MORAES, A JOSÉ NÊUMANNE, PELO ROMANCE DO ANO, O SILÊNCIO DO DELATOR, EM SOLENIDADE DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS 8 DISCURSO DE JOSÉ NÊUMANNE PINTO POR OCASIÃO DA ENTREGA DO PRÊMIO SENADOR JOSÉ ERMÍRIO DE MORAES, DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, AO ROMANCE DO ANO, O SILÊNCIO DO DELATOR, EM 25 DE AGOSTO DE 2005 14 ARTIGOS E CRÔNICAS O SILÊNCIO DO DELATOR, por Affonso Romando de Sant’Anna 19 UMA TROVA DE AJALMAR (*) 20 INVENTÁRIO DE PERDAS, Aleilton Fonseca 22 O SILÊNCIO DO DELATOR, Álvaro Alves de Faria 24 A VERDADE DA FICÇÃO, Antonio Olinto 26 O SILÊNCIO DO DELATOR, DE JOSÉ NÊUMANNE PINTO, RECEBE O PRÊMIO SENADOR JOSÉ ERMÍRIO DE MORAIS DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, Betty Vidigal 28 O SILÊNCIO DO DELATOR, Bráulio Tavares 31 UM VENDAVAL LITERÁRIO, Caio Porfírio 33 UM BRÁS CUBAS MAIS MALANDRO, Carol Almeida 35 O CORPO DO SILÊNCIO DELATOR, Cláudia Cordeiro 37 LIVROS NECESSÁRIOS, Deonísio da Silva 42 O SILÊNCIO DO DELATOR, Escobar Franelas 45 UM MESTRE DO ROMANCE, Eustáquio Gomes entrevista José Nêumanne Pinto 47 O SILÊNCIO DO DELATOR. O ROMANCE DE UMA GERAÇÃO, Henrique Veltman 53

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LITERATURA, Hugo Pontes 54 O FRACASSO DE UMA GERAÇÃO. Meio Século de Política, Sexo e Rock and Roll, Ipojuca Pontes 56 O SILÊNCIO DO DELATOR, José Alcides Pinto 58 O SILÊNCIO ENSURDECEDOR DE JOSÉ NÊUMANNE, Júlio Daio Borges 62 SILÊNCIO REVELADOR, Luiz Augusto Crispim 65 ZÉ VEM AÍ, Martinho Moreira Franco 67 ANOTAÇÕES DE LEITURA, Nei Leandro de Castro 68 O RUÍDO DA IRONIA, Roberto Romano 70 TESTEMUNHO DE UMA ÉPOCA, ESPELHO DE UMA GERAÇÃO, Ronaldo Cagiano 73 OS DOIS JOSÉS E A SEARA DE REFERÊNCIAS, Rosiane de Almeida Silva 75 O TESTAMENTO DE UMA GERAÇÃO, Ruy Fabiano 119 O SILÊNCIO DO DELATOR. Livro de uma geração. Sérgio de Castro Pinto

122 OBRA LEMBRA SÉCULO 20 POR MEIO DE MORTO FALANTE, Walter Fontoura 124 O SILÊNCIO DO DELATOR, W. J. Solha 126 FRAGMENTO O SILÊNCIO DO DELATOR (Capítulo 6, p 129-150) 6 – Ela Me Pertence

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SOBRE JOSÉ NÊUMANNE PINTO149 LANÇAMENTO 2011 162

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Especial Fortuna Crítica / Fragmento 2004/2005/2008/2009

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Discurso de Marcos Vinicios Vilaça proferido durante a entrega do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes, a José Nêumanne, pelo romance do ano, O Silêncio do Delator, em solenidade da Academia Brasileira de Letra, em 25 de agosto de 2005 Marcos Vinicios Vilaça

“Para os que não sabem o que custa a doçura do açúcar a quem o lavra, o conheçam”

Esta observação, de Antonil, datada do comecinho do século XVIII, José Ermírio de Moraes com ela ainda se defrontou no século XX. É o contraponto à euforia de Gandavo, no século XVI, ou ao entusiasmo de Brandônio que, no Diálogo das Grandezas do Brasil, reporta-se aos infinitos engenhos de fazer açúcares no Pernambuco do século XVII. Tem sido senóide a visão daquela agroindústria em nossa terra, terra minha e de José Ermírio de Moraes, nós próprios nascidos na mesma Nazaré da Mata, cidade envolvida por canaviais. No entanto, uma coisa é certa. Em cada pé de cana há um pé de gente. Por isso, sempre se encontrará um toque de dramaticidade, na expansão e no declínio do setor econômico-social da cana de açúcar. Curiosamente, uma atividade íntima ao açúcar, que é produzido muito próximo do litoral, se constituiu no fator expansionista da colonização na linha interiorana: a pecuária. O boi puxando o homem mais do que o homem puxando o boi. O gado foi o dinamizador do povoamento, da ocupação de espaços menos férteis. O gado estimulou a expansão territorial, criou uma sociedade agropecuária, contraponto da açucareira. E aí estão dois Nordestes, um é o Nordeste do doce, do massapê, de chuva grossa, dos barões, do sobrado gordo, do maracatu, da prataria, dos santos barrocos; outro, é o dos homens encoletados em couro, de rios secos, de chuva magra, de árvores-graveto exemplos da xerofilia hostil, do xaxado, dos coronéis de boiadas de boi e de boiadas de voto, um mundo onde não há luxo, que o luxo não é sertanejo. Um é o Nordeste de Fogo Morto, o outro, é o de Vidas Secas. 8


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Um é o Nordeste de José Ermírio de Moraes, o outro é o Nordeste de José Nêumanne. Então, não há o que esconder. Esta é uma festa nordestina. E não seria eu quem o negaria. As raízes do patrono do prêmio lembram Ascenso Ferreira falando que os engenhos da terra só pelos nomes fazem sonhar: Esperança, Flor do Bosque, Estrela D´Alva, Bom Mirar. As do premiado tem em comum a toponímia nordestina de Currais Novos, Bezerros, Lagoa Seca, Areia, Sertãozinho, Carne de vaca, Seridó, Algodões, Cariri, Serra Talhada, Ingazeira, Umbuzeiro. O Prêmio que hoje se outorga a José Nêumanne, está na sua 11ª edição. Por ele passaram, entre outros, Roberto Campos, Wilson Martins, Evaldo Cabral de Melo, Cícero e Laura Sandroni, Manif Zacharias. O patronato foi além do Prêmio e ajudou a Academia, como lembra muito bem esse excepcional acadêmico que é Alberto Venâncio Filho, na aquisição da biblioteca de Marcos Carneiro de Mendonça e na aventura ainda não de todo encerrada do Solar da Baronesa.

Escritor José Nêumanne: A nordestinidade é, de nossa parte, um ato de convicção e constância, uma forma de vitalidade histórica. Com esse sentimento exalto a sua Paraíba, “pequenina e heróica”, de todos os tempos, de todas as realidades. Louvados sejam o botânico Manoel de Arruda Câmara e o poeta “Caixa d´Água”, o Ponto de Cem Réis e a festa das Neves, o Treze de Campina e o bar do Onaldo, Vidal de Negreiros e o “Velho Capitão”, as bagaceiras dos engenhos – tema para um dos maiores clássicos da língua portuguesa escrito por um saudoso confrade – e Dom Vital, Zelins e Ariano, Celso Furtado e Piragibe, a Borborema e o Cabo Branco, Linduarte Noronha e Augusto dos Anjos, Bodopitá e as inscrições rupestres dos Cariris Velhos, Elba Ramalho e Vladimir Carvalho, o teatro Santa Rosa – onde Gilberto Freyre proferiu a primeira conferência de sua vida – e Castro Pinto, Solon Lucena e Inácio da Catingueira. E mais, e mais. Também seja louvado o gesto de Pedro Monteiro de Macedo a determinar, em 1744, que seu epitáfio fosse fixado no batente principal da porta da igreja de Santo Antonio, com estes dizeres: “Aqui jaz Pedro Monteiro de Macedo, que por ter governado mal esta Capitania quer que todos o pisem e todos rezem um Padre Nosso e uma Ave Maria, pelo amor de Deus”

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Louvo-o, escritor José Nêumanne, por não ter faltado com o seu esforço para que nada disso se apergaminhasse na memória dos homens. Nunca lhe tocou aquele medo que o poeta seu conterrâneo, Sergio de Castro Pinto, descrevia como capaz de se instalar nas palavras, enregelando-as, obrigando a pô-las como em um frigorífico. Senhoras, Senhores: Quando José Ermírio de Moraes, filho de viúva, deixou as comodidades de menino de engenho, a tradição do bacharelado em Direito, largou-se para os Estados Unidos estudar engenharia, traçou a sua história de valoroso tycoon da indústria brasileira. Não desatendeu aos deveres da cidadania. Fez-se político, Senador e Ministro de Estado. Declarou-se compromissado com o desenvolvimento social e não só com o crescimento econômico. Deu à família essas responsabilidades e refiro, ainda que sejam desnecessários, três exemplos da boa sanguinidade do Velho Senador: a Beneficência Portuguesa, a AACD e este Prêmio. A democracia somente prospera no pluralismo. Nada lhe é tão essencial quanto a ampla repartição do poder; do poder político, também do poder econômico, do poder social. Não se diga dela que é uma ideologia. Muito menos elaborada construção teórica de um iluminado. As sociedades ideocráticas favorecem o autoritarismo. Democracia é poder compartido, que não é sinônimo de igualitarismo mas que não subsiste nas grandes iniqüidades. Montesquieu dizia: “A democracia deve evitar dois excessos: o espírito de desigualdade, que conduz ao governo de um só; e o espírito de igualdade extrema, que conduz ao despotismo de um só. Impor a igualdade equivale a privar a liberdade. Garantir a liberdade equivale a reconhecer a desigualdade. A sabedoria política do lema da Revolução Francesa está em buscar diluir a contradição latente entre liberdade e igualdade pelo sentimento da fraternidade. Em conjugá-las pela solidariedade. Cuido em azeitar uma permanente reflexão sobre isto no que me cabe como exercício do meu cargo público, pois o controle social do Estado, próprio das democracias, é complexo e multiforme mecanismo de autoregulação das ações políticas. A informação, principal matéria prima da Corte em que trabalho, tem que ser ponderada, pesada, processada para ser julgada com precisão. Por isso, nunca deixo de lado os versos de T.S. Eliot:

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra “O ciclo sem fim da idéia e da ação, Interminável invenção, interminável experimento, Conhece o movimento, não o repouso; O conhecimento das palavras, não o do silêncio: Conhecimento do verbo mas ignorância do mundo” ............................................................................... “Onde está a vida perdida no viver? Onde está a sabedoria perdida no conhecimento? Onde está o conhecimento que se perdeu na informação?” Quando vejo, José Nêumanne, seus cuidados com a análise e a pregação democráticas, tudo isto me vem à mente e eu desejei declarar aqui. Senhoras, Senhores: Nesta edição do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes, foi difícil escolher um ganhador. De um lado, havia o culto à Democracia como face ostensiva do conjunto de obras de José Nêumanne. Do outro, o espetáculo de preservação da História, em livro admirável de Arno Wehling, Direito e Justiça no Brasil Colonial. Do meu canto, eu creio, pois não tenho delegação de ninguém para dizer isso, posto que não há nada mais difícil aqui do que falar pelo colegiado, acredito que não fomos pelo caminho rigoroso do mérito, pois daria empate entre a Democracia e a Memória. Fizemos uma opção de circunstância, diante de tantos merecimentos de parte a parte. Registremos aspectos relevantes em José Nêumanne. Enfileiro alguns: - o senso de visão ampla, na antologia dos melhores poetas brasileiros do século; - a astúcia de unir Bob Dylan, os Beatles e Caetano Veloso, como embrulhara num mesmo saco, Barcelona e Borborema, Gaudi e o forró. Wilson Martins diz de O silêncio do delator, seu livro que consagramos, ter inovado o romance contemporâneo tanto na temática quanto nas técnicas narrativas. E eu acrescento: com o extremo bom gosto de se arrimar num poema excepcional. Por isso, repitamos com Nêumanne: “Vá-se entender os mistérios da criação!”. Antônio Olinto, com a sua alta expressão de crítico literário, louvando o livro, observa que para entender qualquer realidade é preciso atentar para a sua correspondente ficção. A ficção é uma verdade, e dela vem. José Nêumanne produziu o silêncio sonoro do seu protagonista. Diz, fingindo que está calado. Quase lembra a sentença perfeita de Eduardo Portella: o silêncio é o mais dizer, é o que se diz naquilo que se cala. Acredito que o jornalismo facilitou-lhe conhecer o homem e isto facilitou-lhe a arte no romance. Nêumanne transferiu o datado para o transtemporal. Seu livro também é de acento feminista, como confessa, e enquadra-se no tempo tríbio de que fala 11


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Gilberto Freyre. Sua intolerância à tirania, tem simetria com o que falou Roberto Romano sobre O silêncio do delator, ao alegar que os tiranos odeiam o riso pois o riso é subversão intolerável. Por isso, José Nêumanne, você pode continuar, como é do seu jeito de ser, transgredindo tudo aquilo que lhe parecer “direitinho”. Sempre encontrará um cânone em sua rota, pois sem o cânone só haverá o caos. E do caos você não gostaria. Espero um ensaio seu e isto é um afetuoso desafio. Escreva de como a música eletrônica, se música é, interfere na cultura contemporânea e na sociabilidade das pessoas, tema que somente agora começa a ser cuidado no Brasil. Em Música Eletrônica - a textura da máquina, Rodrigo Fonseca propõe uma visão renovada do encontro entre a tradição musical ocidental e os perigos e possibilidades dos novos recursos utilizados na criação musical eletrônica, como observou argutamente o crítico Schneider Carpeggiani. Na mesma linha, há de se analisar o fenômeno do “coronelismo” eletrônico, dominador da mídia televisiva dos nossos dias, acolitado pelo uso desabrido de supostas convicções religiosas a serviço da política. Todo esse gosto pela novidade, existe para desafiar intelectuais. Exótico ou não, como o do blog literário. Uma hora dessas há de se inserir nesta Casa, com a mesma atenção que demos ao folhetim eletrônico, trazendo gente de dentro dele para dentro da Academia. Quando nos aliarmos ao blog, o faremos muito bem. É inevitável e um seu tanto inadiável. O passado nos autoriza a recusar anemias no fazimento do presente e na formatação do futuro. O novo nos interessa. A tradição desta Casa não é feita de ancoragem de horas, mas da libertação da palavra. Sem pressa e sem descanso. Não somos nem esféricos, nem monolíticos. Temos as assimetrias da existência mas sem falhar na missão histórica. Haveremos de conciliar o apolíneo com o dionisíaco. A imortalidade que existe aqui é a da palavra. Hoje premiamos a palavra de José Nêumanne e cuidamos em honrar a memória de José Ermírio de Moraes, um homem de palavra. Esta é a casa das palavras e cada um de nós vive a repetir os versos de Drummond: “Lutar com palavras É a luta mais vã Entanto lutamos Mal rompe a manhã São muitas, eu, pouco”. © Academia Brasileira de Letras, 25.08.2005 12


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Discurso proferido por ocasião da entrega do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes, da Academia Brasileira de Letras, ao romance do ano, O Silêncio do Delator, em 25 de agosto de 2005 José Nêumanne Pinto

A primeira coisa que me ocorre lhes dizer, amigas e amigos meus, cuja presença aqui me prestigia e desvanece, é o primeiro verso de um soneto o único poema que sei de cor. E nem meu é! Mas, se querem saber, é como se fosse, tantos anos o tenho repetido, tantas vezes dele me tenho lembrado e tantas noites são aquelas em que ele tem percutido dentro de minha cabeça como um mantra, a oração escandida por um anjo. “Meu coração tem catedrais imensas.” É isso mesmo: a abertura de “Vandalismo”, de Augusto dos Anjos, nascido na Paraíba como eu e morto em Minas, como tantos ancestrais de muitos dos que aqui pacientemente me escutam. Este verso me encanta pelo ritmo das sílabas, pela música da linguagem, pela força da imagem. É grandioso e é singelo, ao mesmo tempo, como devem ser as obras-primas: sólido e delicado, másculo e meigo, etéreo e prático. (...)

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Muitos podem ser os motivos para que com ele abra este agradecimento feito na condição que ainda me espanta de autor do romance O silêncio do delator, laureado pelos membros desta Casa, que Machado de Assis, do Cosme Velho, e Joaquim Nabuco, de Massangana, fundaram e cujo espírito todos os acadêmicos presentes e ausentes têm renovado, em benefício da cultura nacional, em seu ameno e profícuo convívio em torno da mesa de chá. Mas gostaria de destacar uma só, a mais simples, a mais direta, a mais prosaica de todas: a correspondência com o sentimento de humildade e reconhecimento, de gratidão e despojamento com que aqui venho me investir desta honraria, a maior que poderia ser dada a um imodesto operário da língua, seu súdito vaidoso, embora nem por isso infiel. Pois reivindico minha condição de fiel para lhes garantir que me dirijo a cada um dos acadêmicos e convidados aqui presentes com a humildade de um peregrino em Meca, o ânimo caridoso do soldado romano que umedeceu os lábios secos de Jesus na cruz e o estoicismo de Gandhi e Martin Luther King acolhendo as balas que lhes ceifaram a vida. Entro nesta sala tirando os sapatos para me sentar à mesa, à moda japonesa. Como um romeiro sobe as escadas de pedra de Monte Santo, perto de Canudos, no sertão da Bahia, lacerando as rótulas. Sou um cruzado da palavra, um guerreiro do vernáculo e venho aqui para convocá-los à luta, luta renhida, heterônimo da vida no canto do guerreiro indígena do poema de Gonçalves Dias. O brilho dos lustres deste salão nobre lembra o dos pirilampos que, na noite escura do sertão de minha infância, se embriagavam com o ritmo marinho dos versos do poeta baiano Antônio Frederico de Castro Alves, ditos de cor por minha mãe, Mundica Ferreira Pinto, que aqui se encontra - e para cá veio para que nunca me esqueça de que o vernáculo em que se lavra a poesia não é o dialeto pátrio, mas, sim, a língua materna. Lembro-me também de que chorei por minha profana ignorância e pelo tropeço inesperado no óbvio quando ouvi os versos do português Joaquim Maria Du Bocage (...) num filme do brasileiro Djalma Limonge Batista, encontrando neles o mesmo ritmo do mar da Bahia e de Goa, onde o caolho Luiz Vaz se banhava. E me recordo ainda da fé religiosa no verbo original que me foi incutida no colégio pelas professoras Maria Argentina Brasileiro e Francisca Neuma Fechine Borges. Encantei-me com a amargura do seleiro José Amaro, inventado por José Lins do Rego, e me apaixonei pelos olhos claros da sertaneja Soledade, criada por José Américo de Almeida, de cuja amizade privei. Li-os à chama da lamparina queimando querosene e à custa de uma miopia galopante que me acompanha desde a tenra infância, de cujas noites vultos e letras surgiam mais nítidos do que quando era dia e, então, o sol do semi-árido lhes torrava os contornos, ofuscando-me a retina. 14


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Venho de muito longe e da aldeia onde nasci trago notícia da preciosidade desta língua cuja sobrevivência em liberdade decente nos cabe a todos assegurar. E é este o requerimento que aqui subscrevo. Valho-me desta ocasião única para fazer um apelo: não deixemos esta nossa língua portuguesa morrer! Jamais permitamos que o idioma que as minas de Itabira forjaram no gauche Carlos e que as mocinhas de Évora usavam para encantar o “foca” Eça de Queiroz se dissolva na lama pútrida das sarjetas da mentira e da corrupção impunes. Que mais lhes poderia pedir eu, devedor de sua graça e escravo de sua mercê, que não fosse isso, minhas senhoras, meus senhores, amigas e amigos? Peço-lhes nada mais que isto, pois: que usem ainda mais e sempre que lhes for possível a ingente relevância da instituição que são. E, assim, munidos da força da credibilidade desta organização, que se impõe acima dos poderes da República e além dos caprichos do mercado, possam evitar que uns e outros desavisados roubem do povo o que ainda lhe resta de dignidade e nobreza: a possibilidade de serem os cidadãos brasileiros justos e solidários, comunicandose em frases simples, diretas e verdadeiras. A Academia Brasileira de Letras paira sobre a areia movediça moral em que afunda o País oficial com a autoridade moral da obra real de cada um dos acadêmicos, vivos e mortos. E somente a autoridade moral de uma associação como esta, que honra seus membros e por estes é honrada, poderá restaurar a confiança dos tempos em que à palavra dada correspondia fiança de alta valia e um fio de bigode bastava como aval. Muito esta Casa, que ora acolhe este trabalhador da notícia e garimpeiro da verdade na mentira da ficção, ainda pode - e deve - fazer para impedir que o massacre cotidiano na boa-fé da palavra empenhada, seja pelas mentiras deslavadas pregadas nas comissões parlamentares de inquérito ou pela mistificação desembestada da ilusão publicitária, seja pelo emprego desregrado do gerúndio ou pela adoção de barbarismos em nome de um falso populismo, no fundo elitista, possa instalar no lugar de uma civilização que um dia foi letrada uma estúpida algaravia de bárbaros. Quem sabe, alguns dos nobres guardiães dos tesouros espirituais amealhados nas pensões de Porto Alegre ou nos bas fonds do Recife Velho poderão me recriminar pela ousadia deste pedido. Peço-lhes vênia, e mais um tempinho de atenção, antes de logo, prometo, concluir. (...)

O silêncio do delator, que mereceu a honra desta premiação, é um projeto literário no qual reuni todos os valores que aqui venho defender. Relato dos malogros e êxitos de minha geração , este romance não faz nenhuma concessão a modismos ideológicos ou mercadológicos. Ao contrário: elaborado

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra ao longo de vinte anos, seu texto aborda com franqueza, mas também com verve e leveza, a experiência de vida e reflete a visão do autor, sem autocomiseração nem leniência com as facilidades exibidas na feira de vaidades de nossa sociedade de massas e consumo. Este prêmio, que meu livro ganhou, leva o nome de um José como eu, também nordestino - o Senador José Ermírio de Moraes nasceu em Nazaré da Mata , Pernambuco. Ele dá um exemplo fecundo, porque provém de uma empresa produtiva, que acumula a fortuna na persistência do trabalho, e não no perfume enganoso da usura aventureira. (...) Que sirva agora também de pretexto e ponto de partida para que esta Casa seja cada vez mais e sempre a trincheira de uma luta sem tréguas contra a mentira oportunista, a falsificação comercial e o vilipêndio da língua materna pelos mercadores do óbvio nas facilidades do consumismo comodista. Bastará esta luz, emanada dos becos imortalizados por Manuel Bandeira e das conversas de tropeiros reproduzidas no registro inovador do doutor Joca, lá de Cordisburgo, norte de Minas (portanto, também Nordeste, pois não?), para que as trevas da barbárie que nos ameaçam se dissipem no brilho do legado ético de Celso Furtado e Rachel de Queiroz, Euclydes da Cunha e Graciliano Ramos. Legado ético de que me orgulho ter recebido de meu pai, José de Anchieta Pinto, honrado servidor público, no total e verdadeiro significado destes vocábulos. Eu sei, e vocês sabem, que não será nada fácil resgatar o dialeto em que se comunicavam os “bambas” da sinuca de João Antônio. Este idioma em que Maneco Antônio de Almeida narrou as malandragens de Leonardo Pataca nas ruas já então sujas e ruidosas da Corte Imperial do Rio de Janeiro. E o bruxo do Cosme Velho bordou as sutilezas do ciúme de Bentinho. Esta língua que sibila como vento na palha dos canaviais e entre as cruzes dos cemitérios pernambucanos de João Cabral de Melo Neto e requebra nas ancas da Nega Fulô, de Jorge de Lima. E que o embolador Dedé da Mulatinha entortava e enriquecia em seus improvisos, feitos ao ritmo do ganzá, na feiralivre de Campina Grande, na época em que este beneficiário da generosa hospitalidade de vocês se iniciava no jornalismo, na literatura e no amor. (...) Hoje, nossa democracia representativa verga sob o peso da esperteza, que quando é demais, como gostava de afirmar Tancredo Neves, engole o esperto – e é só isso que ora está ocorrendo no Brasil, ilustres e pacientes ouvintes. Infelizmente entre nós são muito poucas, raríssimas mesmo, as entidades que dispõem de autoridade, competência e sensibilidade para comandar esta cruzada contra a vulgaridade do lenocínio político, a transformar o Estado brasileiro num prostíbulo público e esta última flor do 16


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Lácio, muito bela e nada inculta, do poeta Olavo Bilac em biombo de solecismos desqualificantes e valhacouto da falsidade e da mistificação rasteiras. Cabe a esta Casa sediar a resistência dos homens e mulheres de valor já nela abrigados e obter a adesão das brasileiras e brasileiros de boa vontade que ainda não sucumbiram ao populismo brega e ao deslumbramento pela cloaca chique do capitalismo selvagem das butiques pretensamente elegantes. Cabelhes organizar a luta para tentar pôr fim a este exílio que amargamos em território nosso - esta pátria de Fernando Pessoa, Lobo Antunes, Mia Couto, da virgem Iracema, de José de Alencar , e na qual Riobaldo amou Diadorim. Vamos salvar a língua portuguesa antes que esta vulgarização criminosa arraste para o oblívio o opróbrio dos que dela escarnecem e, juntamente com estes, esmigalhe também as joias de rara beleza, nela lapidadas – orgulho de nossos patrícios e patrimônio de nossos descendentes.

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Affonso Romano de Sant'Anna

Quem viveu os míticos anos 60 vai ler com prazer “O silêncio do delator”, de José Nêumanne. Usando a técnica de fragmentos e fazendo falar um narrador já morto, de maneira leve e irônica refaz uma época que outros trataram apenas pateticamente. No meio dessa ficção que se faz hoje cheia de balas, assassinatos, perversões e morbidez, chega a ser um alívio ler esse livro. É como ouvir uma lépida canção de bossa nova depois de um tango pesado. Lembram-se do filme “Invasões bárbaras”, de Denys Arcand, aliás mencionado no livro? É o que há de mais próximo para lhes passar a ideia do livro de Nêumanne que realizou, de modo original, aquilo que tantos tentaram — “o romance de minha geração”.

© O Globo - Prosa e Verso - Sugestões de Leitura 6.nov.2004 (sábado) http://oglobo.globo.com/jornal/colunas/affonso.asp

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Uma trova de Ajalmar (*)

Dizer que "cala", tu ousas Num "silêncio" barulhento Nessa verve que repousa No topo da eloquência Precisa ter paciência Bicho, como tu falas!!!!

"A primeira coisa que me ocorre lhes dizer, amigas e amigos meus, cuja presença aqui me prestigia e desvanece, é o primeiro verso de um soneto - o único poema que sei de cor. E nem meu é! Mas, se querem saber, é como se fosse, tantos anos o tenho repetido, tantas vezes dele me tenho lembrado e tantas noites são aquelas em que ele tem percutido dentro de minha cabeça como um mantra, a oração escandida por um anjo. “Meu coração tem catedrais imensas.” É isso mesmo: a abertura de “Vandalismo”, de Augusto dos Anjos, nascido na Paraíba como eu e morto em Minas, como tantos ancestrais de muitos dos que aqui pacientemente me escutam. Este verso me encanta pelo ritmo das sílabas, pela música da linguagem, pela força da imagem. É grandioso e é singelo, ao mesmo tempo, como devem ser as obras-primas: sólido e delicado, másculo e meigo, etéreo e prático. (...) Muitos podem ser os motivos para que com ele abra este agradecimento feito na condição que ainda me espanta de autor do romance O silêncio do delator, laureado pelos membros desta Casa, que Machado de Assis, do Cosme Velho, e Joaquim Nabuco, de Massangana, fundaram e cujo espírito todos os acadêmicos presentes e ausentes têm renovado, em benefício da cultura nacional, em seu ameno e profícuo convívio em torno da mesa de chá. Mas gostaria de destacar uma só, a mais simples, a mais direta, a mais prosaica de todas: a correspondência com o sentimento de humildade e reconhecimento, de gratidão e despojamento com que aqui venho me investir desta honraria, a maior que poderia ser dada a um imodesto operário da língua, seu súdito vaidoso, embora nem por isso infiel. Pois reivindico minha condição de fiel para lhes garantir que me dirijo a cada um dos acadêmicos e convidados aqui presentes com a humildade de um peregrino em Meca, o ânimo caridoso do soldado romano que umedeceu os lábios secos de Jesus na cruz e o estoicismo de Gandhi e Martin Luther King acolhendo as balas que lhes ceifaram a vida.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Entro nesta sala tirando os sapatos para me sentar à mesa, à moda japonesa. Como um romeiro sobe as escadas de pedra de Monte Santo, perto de Canudos, no sertão da Bahia, lacerando as rótulas. Sou um cruzado da palavra, um guerreiro do vernáculo e venho aqui para convocá-los à luta, luta renhida, heterônimo da vida no canto do guerreiro indígena do poema de Gonçalves Dias. ................................................................................................................................. O silêncio do delator, que mereceu a honra desta premiação, é um projeto literário no qual reuni todos os valores que aqui venho defender. Relato dos malogros e êxitos de minha geração , este romance não faz nenhuma concessão a modismos ideológicos ou mercadológicos. Ao contrário: elaborado ao longo de vinte anos, seu texto aborda com franqueza, mas também com verve e leveza, a experiência de vida e reflete a visão do autor, sem autocomiseração nem leniência com as facilidades exibidas na feira de vaidades de nossa sociedade de massas e consumo. "

Fragmento do discurso de José Nêumanne Pinto, durante a solenidade de entrega do Prêmio José Ermírio de Moraes, pelo romance O silêncio do delator.

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INVENTÁRIO DE PERDAS Romance denuncia o silêncio de uma geração

Aleilton Fonseca

O silêncio do delator, romance de José Nêumanne Pinto, retoma a linha ficcional do inventário político-ideológico da geração 60, no Brasil, que enfrentou a ditadura militar (1964-1985), respirou a arte pop e o cinema, embalou-se no rock-and-roll e na MPB, aplaudiu as barricadas estudantis parisienses e adotou os comportamentos da contracultura. Coube à turma mais intelectualizada dessa geração - jornalistas, escritores, artistas, professores, militantes políticos - escrever, discutir e viver a memória daquela época ao mesmo tempo rica, confusa e conturbada. Na década de 80, com a abertura política, as livrarias foram inundadas por dezenas de livros de depoimentos, poesia e ficção, escritos por autores oriundos dos grupos que sofreram as agruras dos anos de chumbo da ditadura. Mas nenhum deles tornou-se o livro definitivo daquela geração. O silêncio do delator conta a trajetória de João Miguel, um morto que fala sem peias durante todo o seu velório. Só o narrador tem acesso à consciência do defunto e inscreve sua fala no tecido ficcional. Nesta condição, João Miguel promete esclarecer a sua história e revelar os segredos de seus companheiros: ''Agora, sim, posso falar de nosso malogro''. Nêumanne diferencia-se da maioria dos autores dessa temática. Ele adota uma estratégia francamente ficcional, ao dar o poder de fala a um morto, em pleno velório, fazendo-o dialogar com o narrador principal, espécie de moderador dos diversos discursos que contracenam ao longo do enredo. Ora, essa aplicação contemporânea do célebre procedimento machadiano, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), surte um excelente efeito operatório, abrindo espaço para discursos desabusados, versões e contradições, reflexões político-sociológicas e, sobretudo, observações metanarrativas. São divertidas e pertinentes as intromissões do morto na escrita do romance, ao

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra fazer reparos e comentários jocosos e analisar detalhes, criticando a técnica do narrador principal. A ironia e a auto-ironia dão tempero ao relato, pois permitem a relativização das verdades, dos ideais, das crenças e das ações individuais e coletivas. Os pretensos heróis da resistência político-cultural dos anos 60-70 riem de si e de suas fraquezas e limitações. Um riso angustiado, com uma ironia tragicômica, mas que compõe um quadro realista, sem idealizações anacrônicas. Em certo sentido, João Miguel simboliza o alter-ego coletivo. Nele e com ele, estão mortos os ideais de sua geração. Já o narrador principal é a outra face desse alter-ego. Se o narrador-vivo ainda contemporiza com algumas idéias e situações, ao morto, despido de qualquer chance de ação, cabe as avaliações mais ferinas. Sua fala é o antídoto da má-consciência que, inadvertidamente, pode persistir nos discursos e atitudes dos demais, ainda comprometidos com as etiquetas e os interesses da vida. Em O silêncio do delator, a alternância do foco narrativo é fundamental, pois cadencia a trama e equilibra o pêndulo entre a realidade e a ficção. O diálogo tenso, irônico e arrevesado dos narradores, o vivo e o morto, proporciona um debate duro e esclarecedor, traça o perfil ideológico e existencial das personagens, entremostra seus acertos e equívocos, perdas e ganhos, inconsequências, veleidades e contradições. Este romance é, sobretudo, um inventário de perdas: da inocência, da crença, do ideal, da certeza. As personagens persignam-se sobre o morto - símbolo do malogro. A morte expõe sua trajetória ao lado dos companheiros - e o seu silêncio delata o grande teatro vivido coletivamente por uma geração paradoxalmente vitoriosa na derrota. José Nêumanne Pinto conduz bem a sua escrita, pois adota, com acerto, os procedimentos ficcionais que dão relevo aos fatos da realidade, elevando-os a um nível de complexidade e de significação para além dos registros documentais e jornalísticos. Trata-se de uma narrativa amarga e pessimista, mas escrita com ironia e humor desabusado, para desnudar a alma de uma geração que viveu intensamente seus ideais e suas frustrações, deixando marcas na história social e na cultura do século 20.

© Caderno Ideias do Jornal do Brasil, sábado, 18.06.2005, p. 4

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

O SILÊNCIO DO DELATOR

Álvaro Alves de Faria

Ao concluir seu romance “O Silêncio do Delator” (Editora Girafa) José Nêumanne foi “aconselhado” por um amigo a diminuir pelo menos duzentas páginas do texto, como se um livro fosse medido em seu valor pelo número de páginas que contém. Felizmente Nêumanne não atendeu. E o romance ficou com suas 540 páginas, como devia ser. E devia ser assim porque nesse volume coube apenas uma fotografia, mas o retrato de um tempo que soa como documento de época, assim como o fizeram vários tantos outros romances em épocas diferentes. O projeto de José Nêumanne foi iniciado em 1984, uma espécie de rascunho que não foi adiante há 20 anos por uma razão simples: todo o material a ser utilizado por ele ainda estava por vir. Nélida Pinõn costuma dizer que o romance é um ato de viver a fábula e a realidade. Ela diz também que a missão da arte é prolongar a vida. E assinala que o romance, particularmente, é um ato de inspiração, mas não sobre a inspiração. Em que estas afirmações da grande escritora brasileira situam o belo romance de Nêumanne ? Em tudo. Primeiro porque discorrem sobre a criação solitária de um escritor que se tranca por dentro e se abre ao mundo; segundo porque revelam o trabalho, esse exercício do dia-a-dia de quem tem um projeto a tocar em frente, fazendo dele o cajado para caminhar abismos. Zélia Gattai, certa vez, discutiu com Jorge Amado, amado escritor brasileiro do povo. Estavam em Paris. Zélia escrevia um novo livro e andava inquieta e pensativa. Jorge então perguntou o que estava ocorrendo. Zélia disse-lhe a verdade, informando que ela não tinha mais controle sobre seus personagens, que faziam o que bem entendiam sem seu consentimento. A preocupação de Zélia era que um dos personagens ia “fazer mal” a uma moça e ela não queria que isso ocorresse. Jorge Amado afirmou apenas: “Zélia, não se meta na vida dos outros!”. É assim. José Nêumanne passou por esse processo. O livro tomou rumos inesperados enquanto ele, operário de si mesmo, deixava correr os dedos no teclado do computador ao narrar cenas que tiveram vida própria e se desenvolveram sem interferência de seu autor. Isso dá ao “O Silêncio do

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Delator” uma narrativa exuberante que começa coma voz de um morto e passa pelo tempo a colher palavras e sentenças. Ao abrir seu livro, Nêumanne abre também a própria história que vem a seguir, ao informar o leitor: Romance e inventário de amor e desamor, aventura e desventura, ilusões e desilusões, encantos e desencantos sobre sexo, política, drogas, moda, arte pop e rock and roll, em sete vozes que ressoam canções dos Beatles, Bob Dylan, Caetano Veloso, Belchior e mais um poema de Pedro Paulo de Sena Madureira. A informação seria desnecessária, o próprio romance se encarregaria disso, envolvendo o leitor como envolve numa narrativa que apaixona e na qual o autor se deixa também falar na voz de seus personagens, confessando, ele mesmo, sua condição até mesmo de observador, como ocorre, por exemplo, na página 325: “Tudo o que procurei foi não ver a verdade de relance, mas encarála, mesmo que ela me ofuscasse”. Ou ainda o rigor do escritor consigo mesmo, ao observar na página 195, na voz do personagem: “Você precisa melhorar a qualidade do texto, sob pena de perder o leitor para sempre...”. E a triste constatação de nossos dias infames: Não há prazer como o poder (página 434). Nêumanne confessa que sua narrativa veio como um jorro. O texto nasceu dentro de uma sala trancada em períodos que ele mesmo se impôs de trabalho diário. Quando decidiu escrever o romance, estava lendo “Faz-me falta”, da escritora portuguesa Inês Pedrosa, em que uma morta fala com seu amante no próprio velório. Fora isso, tinha no inconsciente as “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Outros livros e personagens povoavam o autor, como Esmé, do conto “Para Esmé, com amor e sordidez”, de J.D.Salinger. Não pára por aí. Há muitas outras passagens utilizadas pela emoção de Nêumanne, já que o romance se impôs a ele. Um confesso mais admirador de Joyce que de Borges - o que é de se lamentar - Nêumanne construiu um romance com a marca de seu tempo. “Tudo que estiver ao meu alcance será revelado neste velório”, diz o morto na primeira página. Assim ocorreu. O morto é morto, mas não onisciente. A palavra que às vezes adula também fere. E fere muito, especialmente quando retrata o caos interior, desses que são fotografias vivas na memória dos sobreviventes.

Álvaro Alves de Faria é jornalista, poeta e escritor. Autor de, entre outros, “Vinte poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra” e “Poemas portugueses”, livros lançados em Portugal.

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A VERDADE DA FICÇÃO Antonio Olinto Poucas vezes pôde a declaração do título acima ser tão bem aplicado como no julgamento do romance de José Nêumanne, "O silêncio do delator". Lendo-o, somos obrigados a reconhecer que a força da ficção é capaz de fixar para sempre uma realidade veemente do tempo. Quem leu "A cartucha de Parma" e acompanhou o personagem Fabrício, criado por Stendhal, em sua caminhada pelo território mesmo em que acontecia/acontecera a batalha de Waterloo, compreenderá de que maneira consegue a ficção ir além da verdade e iluminar o registro puro da pesquisa histórica. Nenhum levantamento do que fora realmente Waterloo ultrapassara a simplicidade com que o personagem fictício depara de repente com Napoleão derrotado na talvez surpresa de ver que seu império chegava ao fim. Assim aparecem os acontecimentos brasileiros das últimas décadas no romance de José Nêumanne. Romance? A palavra se aplica no caso porque existe uma relação entre a história de um povo e a ficção desse mesmo povo. Sob este aspecto, mostra-se o romancista como autor de uma reafirmação, uma confirmação (até ao sentido litúrgico do termo) de um tempo vivido. É assim que percebo, na mais íntima e científica acepção do verbo "perceber", os enredos que os melhores romancistas brasileiros de hoje arrancam do tempo real para com eles retratar o país e sua gente. Como compreender a Inglaterra do século XVIII sem a leitura de "Tom Jones"? Ou a Rússia do século XIX sem a obra de Dostoievsky? Ou a França de Louis Philippe sem a "Comédia humana" de Balzac? Ou a Terceira República sem Proust? Como entender qualquer realidade sem a sua correspondente ficção? R. S. Crane, Richard McKreon e outros defensores do "criticismo" angloamericano costumavam dividir o exame de um romance - ou de qualquer obra "imitada", isto é, qualquer produto de arte que procure representar uma realidade, imitá-la, transformá-la - em três partes fases: em primeiro, que vem a ser a coisa "imitada"; em segundo, a linguagem em que a "imitação" aparece; em terceiro, a técnica da "imitação" e a técnica da linguagem. Em "O silêncio do delator" tudo acontece num velório. É um morto quem fala, numa análise de estilo contundente, sobre os anos 60 do século passado, quando surgiam ímpetos de mudança na poesia, no romance, na moral de cada um, na música e no sexo (baseado na frase: "Desde o Gênesis, qualquer texto tem de ter um casal"), nos desencontros ("João Miguel que amava Helena que amava Marlon que amava Lia que não amava ninguém"). 25


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra O "tempo" da narrativa de "O silêncio do delator" (tempo-duração) aparece no romance de forma renovada. Nele o contraponto literário chega um nível de excelência ao recolher os acontecimentos e as figuras que, ao longo dos últimos 40 anos, abriram caminhos e tentaram impor ordem a uma desordem. As palavras, as frases, os elementos de ligação - usa-os José Nêumanne como propriedades particulares. O velório se estende, largamente livre, erguendo retratos de um tempo real de um tempo lateral e possível, exibindo o País em seus mistérios, unindo Jorge Amado e Cuíca de Santo Amaro a Bob Dylan e Vinícius de Morais, os Beatles e Nelson Rodrigues a W.B. Yeats. A todos eles, personagens e gente de verdade, o romancista imagina como dizendo: "Gastamos o mar." Para José Nêumanne, a ficção é uma verdade, e dela vem. Uma verdade oposta ao convencionalismo das verdades estabelecidas, ao proteger o homem contra a nudez das novidades e a solidão dos avanços, pode nele matar a inteligência da realidade, a alegria da experiência e o sentido da dignidade essencial do ser humano. Essa verdade, íntima e jovem, que a ficção contém, é a matéria, a um tempo dura e maleável (e durável), sobre o foco narrativo de Nêumanne dirige sua atenção. Como forma de expressão de nossa modernidade, apresenta-se o romance "O silêncio do delator" como um criador de símbolos que passam a ser os nossos, de ser os nossos, de vez em quando ingressando no terreno do poema e oscilando entre a lógica e um místico exame de consciência. A simples idéia de um velório, colocado em palavras ao longo de 541 páginas, revela a força de um narrador que vem alargar a dimensão do romance brasileiro neste novo milênio. José Nêumanne pode ajudar numa reação à literatura ligada a um excesso de tecnicismo, ao artífice vazio, à desconversa e à literatice; em favor do conteúdo inconsútil com a boa técnica, do significativo posto em linguagem nova e da palavra usada como instrumento de busca da verdade de um tempo.

"O silêncio do delator", de José Nêumanne, lançamento da editora "A Girafa". diagramação de Alessandro Mussato, capa de Newton César, acaba de conquistar o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes da Academia Brasileira de Letras.

© Tribuna de Imprensa, RJ, (quarta-feira) 20.07.2005

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

O SILÊNCIO DO DELATOR, DE JOSÉ NÊUMANNE PINTO, RECEBE O PRÊMIO SENADOR JOSÉ ERMÍRIO DE MORAIS DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Betty Vidigal

Quando éramos crianças, queríamos ouvir a mesma estória dezenas de vezes. O Silêncio do Delator, de José Nêumanne Pinto, traz de volta ao leitor adulto aquele delicioso impulso de iniciar a releitura assim que chega ao surpreendente final. Inclusive porque, durante aquelas 541 páginas, tornamo-nos tão íntimos dos personagens que é preciso, mesmo, ler tudo de novo – agora sabendo desde o começo quem é quem. Ora, poderia alguém argumentar, todo livro é assim: os personagens são apresentados aos poucos. O.k., mas aqui é diferente. Aqui eles não nos chegam à medida que o enredo se desenvolve, cronologicamente. Não: João Miguel, o protagonista, está morto desde a abertura da estória, e o criador desse enredo conhece tão bem os que comparecem ao velório que não se preocupa em explicá-los ao leitor: deixa que vivam, simplesmente. É devagar que tomamos contato com os integrantes da “patota dos sovacões solidários do recruta Pepé”, título do primeiro capítulo do livro. Rings a bell? Claro: o nome do grupo de amigos de João Miguel foi criado après o título do álbum mais marcante dos Beatles, Sargent Pepper’s Lonely Heart’s Club Band. Penélope e Helena, respectivamente esposa e paixão de adolescência de João Miguel, contracenam, no velório e durante a vida do protagonista, com seus amigos e parentes. Se os nomes dessas duas mulheres soam arquetípicos e familiares, não é, evidentemente, por acaso. Referências de toda espécie cruzam-se ao longo do relato, com tanta naturalidade que de vez em quando o leitor perde o fôlego. De verdade. Com encantadora desfaçatez, Nêumanne permite-se o luxo de não ceder à tentação de uma única nota de rodapé, uma única explicação inserida no texto. Foge a qualquer didatismo. Ousando uma metáfora, eu diria que ele nos atira referências como um folião que, no Carnaval, jogasse confetes sem se preocupar com quantos deles vão cair dentro do decote da Colombina. Sabe que logo depois virá alguém que reunirá do chão os que se perderam, para jogá-los outra vez para a multidão.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Ainda metaforando, penso que o leitor sente-se como quem, deitado no alto de uma montanha em noite sem nuvens, vê milhares de estrelas, mas sabe que por trás delas há milhões de outras que ele não consegue ver. Quem terá identificado todas as referências do Zé Nêumanne? Tão sutilmente tecidas no texto, tão parte dele. Tão despreocupado o autor em parecer erudito ou ilustrado. Nem quando cita clássicos consagrados, nem quando brinca com a cultura popular. Não resisto a um exemplo: logo no início, na página 19, ao descrever a brincadeira erótica de um casal de adolescentes no cinema – o “fluxo de consciência” do personagem Marlon – Zé Nêumanne salpica pelo texto, intercaladas, as frases: “Que maravilha estar aqui...”, “É, na certa, uma aventura...”, “Que bela platéia formam vocês...” “Nós gostaríamos de levá-los para casa...”, “Eu não gostaria de parar o espetáculo...”,“Mas eu pensei que vocês gostariam de saber que o cantor vai cantar uma canção e ele quer que vocês todos a cantem com ele...”, “Então deixem eu lhes apresentar o único e singular Billy Shears e a Banda dos corações solitários do sargento Pimenta...”. Estas frases, no romance, não aparecem entre aspas, como estão aqui. Será pretensão minha acreditar que só quem foi jovem na década de 1965 a 1975 identificará, oculta (ou explícita?) no texto, a letra da música de abertura do álbum Sargent Pepper’s, dos Beatles? It's wonderful to be here / It's certainly a thrill / You're such a lovely audience / We'd like to take you home with us / We'd love to take you home/ I don't really want to stop the show / But I thought you might like to know / that the singer’s gonna sing a song / And he wants you all the sing along / So may I introduce to you / The one and only Billy Shears / Sgt. Pepper's Lonely Heart's Club Band. Mas, no romance, tudo isso vem entretecido com os fios da descrição das sensações de Marlon e Carmem, enquanto, poucas fileiras à frente, João Miguel assiste embevecido a “Morangos Silvestres”, talvez o filme mais cultuado pelos jovens, naqueles anos. E tudo se ajusta, no texto, perfeitamente; o ritmo flui sem que as citações pareçam interromper a narrativa. O cinema continua a se fazer presente, passando por “Retratos da Vida”, de Lelouch, na década de 1980, que perpetuou o inacreditável bailado de Jorge Donn para o Bolero de Ravel e chegando aos dias de hoje, às “Invasões Bárbaras”. Os títulos dos capítulos de O Silêncio do Delator alternam traduções de títulos das canções do álbum dos Beatles com as de Bringing it All Back Home, de Bob Dylan. Assim, o segundo capítulo chama-se “Trazendo tudo de volta para casa”. Outros têm nomes como “Com uma mãozinha dos meus amigos”, “Lúcia no céu com diamantes”, “A fazenda de Maggie” ou ainda “Em benefício do seu Quites”. Não há como não se divertir com essas traduções. O capítulo “Ela está saindo de casa” conta a juventude dos pais de Penélope usando, de ponta a ponta, a letra de She’s Leaving Home. Uns poucos capítulos fogem ao 28


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra padrão, como “Para Esmé, com prazer e picardia” – que remete a Salinger, To Esmé – with Love and Squalor. Esmé, na estória, é filha de Elsa, o grande amor de João Miguel. Pergunto-me quanta coragem terá sido necessária para retratar com músicas e livros em inglês essa geração de brasileiros que enfrentou a ditadura militar. Será que Nêumanne não teve medo dos resquícios do “patrulhamento ideológico” que atazanava os jovens naqueles anos, ostracizando quem declarasse amar os Beatles e os Rolling Stones e impondo que fossem amados somente Vandré e Caetano, Chico e Gil? Mas Caetano não ficou fora da estrutura do romance: se os capítulos têm nomes de canções de Dylan e dos Beatles, as vozes que se alternam narrando a história foram retiradas de uma canção dele, “A Voz do Morro”. Assim, os versos da estrofe “A voz do morto/ Os pés do torto/ O cais do porto/ A vez do louco/ A paz do mundo/ Na Glória!” identificam as falas do protagonista, os relatos de suas transgressões e das dos amigos, as histórias paralelas, as passagens do personagem Coelho pela trajetória da patota, iniciando-os no pop rock, nas drogas e na política. E “Na Glória” conta o que se passa durante o velório, a sucessão de amigos chegando, cada um com a vida que desenvolveu durante as últimas décadas: o cantor de rock, o político, o publicitário, o mendigo. E o duelo silencioso entre a mãe e a esposa do morto. O título do livro foi retirado de dois versos de um poema de Pedro Paulo de Sena Madureira, Inventário, dedicado a José Nêumanne e que está, na íntegra, no final do volume: “O silêncio é privilégio / de quem delata.”. Cada capítulo se encerra com uma estrofe desse poema. O Silêncio do Delator recebeu o prêmio Senador José Ermírio de Moraes, concedido pela Academia Brasileira de Letras para o livro mais importante entre os publicados no ano anterior ao da outorga. Merece uma nova edição comentada, com notas de rodapé, índice remissivo e analítico. É um livro para que as próximas gerações saibam quem somos e como éramos. O final traz duas surpresas, inquietantes e divertidas. Só lendo.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

O SILÊNCIO DO DELATOR Bráulio Tavares

José Nêumanne acaba de lançar seu segundo romance, "O Silêncio do Delator", pela editora A Girafa (São Paulo). É um livro caudaloso (540 páginas), mas que se lê num só fluxo: no começo o leitor custa a pegar o tom e o ritmo, mas depois que consegue passar terceira, vai em terceira até o fim. Nêumanne comenta a certa altura do livro que fez uma opção por um "texto zero", ou "grau zero do texto": uma prosa sem enfeites (ou com poucos enfeites), seu complexidades linguísticas, aquilo que Isaac Asimov chamava de "prosa vidraça", transparente, discreta, servindo de veículo submisso e silencioso para a passagem das ideias com um mínimo de refração. Sou meio suspeito para falar do livro porque é a história da minha geração, que é a mesma do autor, ele mesmo ligeiramente mais jovem que eu. O livro é uma autópsia impiedosa (como aliás tudo que se faça a um cadáver) dos ideais cultivados pela chamada "geração anos 60", a geração que foi adolescente nessa turbulenta década e que foi a única, até hoje, que acreditou serem possíveis os sonhos sonhados então. A técnica utilizada é um coral entrecruzado de vozes (amigos da adolescência se reencontram na meia-idade, no velório de um deles) e de temas (sexo, drogas, rock-and-roll, revolução política, misticismo oriental, o Brasil). São monólogos interiores entre os quais se incluem o do defunto e o do autor, e ao pularmos de um para outro vamos percebendo as contradições, os desmentidos, os equívocos, os mal-entendidos entre aquelas pessoas que perderam a virgindade, experimentaram drogas e tiveram a idéia de derrubar o governo numa época em que se ia à loja da esquina para comprar o disco mais recente dos Beatles ou de Bob Dylan. As canções dos dois servem como roteiro, cada uma intitulando um capítulo do livro, e definindo o tema que os monólogos silenciosos se encarregarão de retomar e improvisar em cima. A necessidade destes improvisos temáticos já é uma notável "constraint" (restrição auto-imposta), mas o autor se obriga a outra, ainda mais acrobática: evitar qualquer menção geográfica que possa situar a história num lugar específico. Somente um leitor campinense, e daquela geração, será capaz de reconhecer a precisão com que o espírito-do-tempo é captado, porque o livro prescinde totalmente dos adereços externos do realismo: nomes de ruas, lojas, 30


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra bares, colégios... Sabemos que se trata do Brasil, e mais nada. O que talvez desaponte alguns leitores que, sabendo tratar-se de um "romance de geração", irão procurar em vão a cor local, a "tranche de vie", a "horta da Luzia", as miudezas memorialistas a que a gente se apega tanto após certa idade. O romance de Nêumanne não ocorre num vácuo, pelo contrário, ocorre no turbilhão de catástrofes políticas que lembramos tão bem. Mas seu passado é tão estilizado e impessoal quanto certos futuros da ficção científica, como o de Godard em "Alphaville". É Campina Grande, mas poderia ser qualquer lugar.

© Jornal da Paraíba, 23 de dezembro de 2004 http://jornaldaparaiba.globo.com/sabado/index.html

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

UM VENDAVAL LITERÁRIO Caio Porfírio

Quando se termina a leitura de um livro como este O Silêncio do Delator, de José Nêumane (A Girafa Editora, SP, 2004), pode se fazer muitas conjecturas. Pode-se emitir inúmeras opiniões elogiosas. E se pode apenas redigir uma síntese originalíssima: é um livro maravilhoso! Tudo o que outros já disseram sobre ele é verdade. E muitas outras verdades exaltando as qualidades da obra surgirão. Os elogios se acumularão, merecidamente. Tudo bem. Aplausos aos dois: autor e livro. Para nós, para além dos espelhos e contra-espelhos que vêm ao vivo, que se unem e se afastam, em feições fotográficas, psicológicas, anedóticas, doídas, cáusticas, egoístas, dadivosas, em amostragens elípticas da vida – exsurge, com a última despedida ao morto, um certo desconforto ou perplexidade que nos vem com esta interrogação enorme: por que tudo é fugaz e passageiro e se eterniza numa obra assim? Eterniza-se porque tudo aqui é vivo e pulsante. Pouco vimos, na arte escrita, por mais fantástica que ela seja, um morto tão vivo, em qualquer sentido que se lhe dê ao adjetivo. Fazer qualquer apreciação mais objetiva desta obra monumental é cair no pontual. É que ela é uma roldana, um vendaval literário com muitas nuances, em bafejos de meios-tons, em lúdico jogo de dentro para fora e de fora para dentro, que transmuda notavelmente o vendaval em cadeia ou corrente de um elo só, cada segmento uma surpresa e um achado criador. Logo às primeiras páginas vimos no morto um Brás Cubas moderno, o que levaria a obra ladeira abaixo. O morto pode ser o fulcro, dentro do “emaranhado” formal, mas há de ser a grande metáfora ou sinal sensível maior de uma época e de uma geração, com todas as suas crenças românticas e tanta fé generosa perdida. Há sinalizações vívidas delas em Bob Dylan , nos Beatles etc., que até demarcam esse tempo histórico, mas não chegam a ser suportes fundamentais dele. Não chegam porque os suportes estão em todas as palafitas que nascem da variação narrativa, que chamamos de espelhos e contra32


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra espelhos. Eis porque tudo aqui é inovação. Mas, dando força à inovação técnica (há tantas inovações técnicas que deram com os burros n’água...), o que arrebata, da primeira frase do livro à última, é o como dizer literário do autor. Não há, neste livro, nenhum andamento narrativo, do mais “esculachado” ao de belo polimento e lavor expressivo, que lese a beleza estilística do autor. Tudo muito objetivo e subjacentemente instigante. Bordeja o descritivo, o psicológico intimista, o teatro, a poesia, o mais que seja, e não cai em nenhum deles. O autor narra, narra como ninguém. Nos pequenos dramas e intrigas entre as personagens parece até que estamos presentes. Tudo se move na roldana: o morto, as personagens, a sociedade e sua época. E com esse como dizer, até meio irônico e crítico, o autor vai “arrastando” tudo, o tempo e a história dentro dela, em pandas velas. Um estilo só dele, culto, de fino trato, e com aquela simplicidade – que nada tem de facilidade, muito pelo contrário – que encanta e seduz. E mais: aquele toque de brasilidade que cala fundo na alma de qualquer leitor. Uma obra como esta, assim concebida, assim realizada, merece uma palavra apenas, por sinal novíssima: ficará. Como pôde José Nêumanne sacudir tudo isto, se tudo estava meio apagado sob as cinzas do esquecimento?

Caio Porfírio Carneiro é escritor, crítico literário e secretário-administrativo da União Brasileira de Escritores. (para o jornal literário Linguagem Viva)

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

UM BRÁS CUBAS MAIS MALANDRO Carol Almeida

Um dos vários produtos do pop citados no livro O Silêncio do Delator, do escritor paraibano José Nêumanne, é o filme Invasões Bárbaras, do canadense Denys Arcand. A citação é rápida, quase sem importância dentro da trama, mas é necessário que se perceba como a estrutura narrativa do filme e do livro são semelhantes em sua premissa. Ambos têm na morte um elemento unificador. É pela morte que as pessoas terminam se encontrando, criando novas experiências em nome de um saudosismo de gerações. No filme, a reunião de amigos e parentes ocorre na eminência da morte. Já no livro recémlançado de Nêumanne, a morte é em si tão concreta que termina ganhando um papel exclusivo, representado pelo narrador, durante seu próprio velório. O delator do título é um tipo de Brás Cubas 'amalandrado', com a licença do neologismo. João Miguel, o morto em questão, se divide em pensamentos durante o próprio evento do enterro e em textos que ele elabora como que em um transe de lembranças separadas metodologicamente. Os trechos escritos, por exemplo, sob o subtítulo de Atrás do muro dizem respeito a "tudo relativo à alcova, ainda que dela ausente". Quando a narração surge após os trechos chamados de A Paz no mundo, fala-se das memórias políticas, da turma que viveu o fim dos anos 60, já sob a égide da ditadura militar. O livro é todo dividido segundo esses cenários montados pelo autor. Em alguns momentos, a estrutura chega mesmo a lembrar uma peça de teatro, em que os personagens são recolocados em cena de acordo com o fundo em que eles contracenam. Aliás, uma possível adaptação de O Silêncio do Delator para o espaço cênico não seria tarefa difícil. Nêumanne, que na ficção é mais conhecido pelo verso do que pela prosa (organizou a antologia Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século), assume neste livro o lado mais ensaísta, atividade já bastante familiar ao escritor, que escreve semanalmente artigos para O Estado de S. Paulo. Além do filme supracitado, vários outros momentos da história do cinema, da política e principalmente da música co-estrelam entre as linhas. A capa é uma referência à um dos discos mais lembrados no livro: Sgt. Peppper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Como se estivesse fazendo um sampler de sua memória cultural, Nêumanne abre uma caixa de discos, filmes e heróis da geração para escrever um enredo bem-humorado e despretensioso sobre a comédia da vida privada. Tudo sob a perspectiva de um defunto que soube entender a cultura pop como o grande privilégio da humanidade moderna. E as citações não se resumem à uma faixa de tempo saudosista, algumas das referências são bem contemporâneas, como é o caso do filme Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola. Esposa, amante, uma mulher misteriosa e amigos que haviam desaparecido tecem a biografia não-autorizada do narrador, enquanto o próprio tenta a todo instante consertar as 'falhas' narrativas dos interlocutores. São 528 páginas (número que certamente poderia ser mais enxuto) de diálogo entre as várias memórias, vivas, mortas, porém raramente silenciosas.

© Jornal do Commercio - Recife, 24 de outubro de 2004

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

O CORPO DO SILÊNCIO DELATOR Cláudia Cordeiro

[...] Nós somos filhos da Guerra ou do imediato pós-guerra. Fomos educados na Guerra Fria. Fomos rebelados contra a autoridade, libertados dos confessionários e escravizados pelas psicoterapias. Indignados com as injustiças sociais e vacilantes entre o capital, o fascínio de Che Guevara e as Encíclicas de João XXIII. Apaixonados pelo romantismo dos Beatles e atraídos pela Chinesa de Godard ou, mais ainda, pela Chinesa de Mao Tse Tung. Éramos pluralistas, embora quase que ortodoxos na nossa crença de democracia. (Roberto Aguiar) Crimes e política. Eu não disse que você está mais escravizado à estética do filme de Godard do que à dos romances de Camus e Salinger, [...]. A chinesa, com suas longas citações, seus debates intermináveis, contribui mais para esta obra que outra ora, ora! (José Nêumanne, p. 497)

Iniciamos, propositalmente, estas notas sobre O Silêncio do Delator, o nono livro, segundo romance, de José Nêumanne, com a epígrafe de Roberto Aguiar – fragmento de seu depoimento sobre a Geração 65, no livro de mesmo nome organizado por Jaci Bezerra – não só pela pertinência com o tema da obra aqui abordada e pela lucidez da análise desse grande sociólogo pernambucano, que já não está entre nós, mas também para registrar que a senda memorialista traçada por Nêumanne, sem geografias definidas, instiganos, mais insistentemente que em outras experiências de leitura do gênero, a acender inúmeros flashs recorrentes, uma espécie de filme paralelo, de nossas vivências, embora esfacelado, uma vez que destituído dos recursos que magistralmente Nêumanne utiliza, para a colagem dos fotogramas do ruidoso silêncio do seu romance. É necessário registrar a pontualidade histórica com que esse Inventário (nome do poema de Pedro Paulo de Sena Madureira, cujas estrofes encerram cada capítulo) da geração 60 chega às livrarias, bastando para isso ter em mente o número considerável de matérias e documentários que a mídia vem publicando, inclusive a pernambucana Continente Multicultural (2004), com O carpinteiro do traço, sobre o genial Quino, de outubro, além matéria de capa Rock. O som da fúria, de setembro, que vêm permitindo uma avaliação parcial 36


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra e fragmentária dessa geração singularmente inquieta, extremamente crítica, causticantemente irreverente. O romance O Silêncio do Delator, no entanto, parece fazer convergir esses fragmentos avaliativos, fazendo um “Inventário moral, estético, político-ideológico, espiritual”, como registra Ruy Fabiano, no artigo Testamento de uma geração, publicado no Estadão. E Affonso Romano de Sant’Anna, no jornal O Globo, do dia seis de novembro, conclui que o livro de Nêumanne “realizou, de modo original, aquilo que tantos tentaram — ‘o romance de minha geração’”. Nessa tarefa, José Nêumanne enveredou refratário a técnicas narrativas consagradas, imprimindo à obra uma coerência singular com a sua temática, uma rebelada inovação. Sobre esse aspecto, ressalta-se o ritmo imposto à narrativa. Deonísio da Silva, em matéria do Jornal do Brasil, refere-se coerentemente a um “Romance com Trilha Sonora”, mas, acreditamos, não só porque os títulos dos capítulos se referem às faixas dos discos Sergeant Pepper’s lonely hearts club band, dos Beatles, e Bringing it all back home, de Bob Dylan, mas também por incorporar à linguagem ágil e avessa a malabarismos verbais o som da guitarra de um Hendrix, ou o ganir de Joplin, numa articulação vigorosa entre ritmo e melodia predominando sobre a harmonia, definição do rock que Daniel Piza descreve na matéria de capa da Continente de setembro, mas já com as características do encantar agredindo ou agredir encantando, expressão também dele, referindo-se à ascensão da guitarra enquanto instrumento mais que adequado a esse contexto históricomusical. Nêumanne encanta e prende o leitor dando à narrativa esse vigor e quando nela o folk americano à Bob Dylan parece esvair-se paralisando as letras, especialmente no romance de tese paralelo incrustado pertinentemente na obra, pondo freios aos precipícios da metamorfose da verdadeira protagonista do romance, a Patota dos Socavões Solitários — , “uma tradução meio gozativa de Sergeant Pepper´s Lonely Hearts Club Band”, como informa José Nêumanne em entrevista a Astier Basílio — um pseudo-narradordefundo, espécie de versão rascante e alucinada de Brás Cubas, tira-nos da letargia das letras esfriando na página para expressões como: “Peidaram no velório”. É assim, com um humor sarcástico, impiedoso, e uma irreverência agressiva levada às últimas conseqüências, até à morte, que João Miguel consegue arrebatar-nos de qualquer possibilidade de tédio durante a leitura das 541 páginas. Aético, mulherengo, escritor frustrado, o professor universitário João Miguel, em sua condição de morto, testemunha do seu próprio velório, é apenas um simulacro do narrador-autor Brás Cubas: “agora que sou pó, que voltei à cinza [...] me disponho a abrir o jogo, a mostrar as cartas, a peruar o baralho

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra alheio. [...] Nada nem ninguém me calará, nem você que fui eu quando corpo. [...] A este velório comparecerão muitos amigos. Na certa, também muitos inimigos. E não adianta você, seu escribazinho de merda, ficar tolhendo minha linguagem...”. Percebe-se então, ao contrário das Memórias Póstumas de Brás Cubas, que o narrador-autor não cede as rédeas da fabulação ao defunto. Há momentos esclarecedores, como na página 34: ele “apenas age como se narrador fosse”. Embora impiedosamente retire o narrador-autor do conforto da terceira pessoa e das suas onisciência e onipresença para inseri-lo numa trama paralela de avaliação constante da própria construção da obra. É possível entender a personagem João Miguel como uma espécie de corifeu das sete “vozes” que se revezam nos capítulos conforme o samba de Caetano Veloso: A Voz do Morto, Pés do Torto (as transgressões, como drogas) , Cais do Porto (parentes, ancestrais e descendentes do grupo), Vez do Louco (as iniciações promovidas pelo personagem Coelho), A Paz do Mundo (política), Atrás do Muro (as cenas de sexo) e Na Glória (cenas do próprio velório). Essas vozes, assim nomeadas, podem, inclusive, configurar as rubricas de um texto teatral conotando as anotações do narrador-autor para uma espécie de prévia da encenação, portanto é questionável atribuir ao “morto” essa regência das vozes. Assim, João Miguel se nos apresenta mais adequadamente como uma espécie de sujeito da enunciação, ou seja, uma espécie de locutor particular que atualiza as frases de um enunciado e ainda o elemento impiedoso da avaliação, entendida aqui como parte essencial da narrativa de acordo com Labov Waletzky. E se configura um delator delatado, mais do que os que se propunha delatar. Toda a sua ousadia, toda a sua irreverência, que lhe permite o mito do “morto” é inútil, porque a voz do morto é o silêncio. Quando apontamos como protagonista do romance a Patota dos Sovações Solitários esperávamos apenas a oportunidade de ousar dizer que ela o é apenas por tratar-se de uma célula mãe onde cabem personagens a princípio estereotipados, se tomarmos o contexto revolucionário da época, e que, posteriormente são avaliados, em sua maioria, como fracassados em suas intenções primevas. Em síntese: “O publicitário de sucesso que não consegue se afirmar como escritor; o guerrilheiro que enriqueceu especulando na bolsa; o militante comunista que chegou a ministro; o astro de rock; o artista plástico tornado mendigo; a esposa historiadora; a amante que nunca abandonou o marido e a adorável filha; a ex-paixão da adolescência com quem viveu um caso fugaz; o filho espiritualista; a filha pragmática; e a mãe possessiva giram em torno do morto com suas convicções, incertezas, falhas e virtudes”, tão bem 38


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra resumidos na orelha do livro. E mais o Coelho, que, na definição iluminada de Ruy Fabiano, é a personificação do espírito da época: “um ser misterioso e intrigante, cujo enigma é decifrado apenas no final do livro”. Este personagem e o defunto pseudo-narrador, acentuam a fusão do humorismo filosófico e fantástico, e traduzem o gênero cômico-fantástico, que, conforme José Guilherme Merquior, “tomou corpo na literatura ocidental, no fim da Antiguidade; sua realização mais perfeita são as sátiras em prosa de Luciano de Samósata (séc. II), autor dos Diálogos dos mortos.” A personagem João Miguel resume perfeitamente um dos atributos desse gênero narrativo, também chamado de literatura menipéia, pois desprovido de qualquer enobrecimento em suas ações. No entanto é ele que nos permite ousar dizer que a verdadeira protagonista dessa obra é a própria geração 60, que tem como esteio a célulamãe da Patota dos Sovacões Solitários: “[...] Este não é o velório de um homem só. Mas o velório de uma geração inteira, o sepultamento do sonho desta turma de gente bem-intencionada, mas que não soube cuidar direito das próprias intenções, por melhores que elas fossem” (p. 335). Essa geração é avaliada nesse “Inventário” audacioso, e reflete a vontade cega, obscura e irracional de viver, num conflituoso querer, fatalmente doloroso, porque necessariamente insatisfeito, à medida da filosofia schopenhaueriana. Mas não consegue deprimir, pois redunda em uma “comovida homenagem àquela década, na evocação de seus poetas, líderes, idéias e ideais” (Ruy Fabiano). Conforme o próprio autor: “No fundo, o leit motiv do romance é o conflito entre João Miguel e Penélope. Ele acha que a geração deles é a maior, trouxe uma imensa contribuição para a humanidade, citando Heráclito de Éfeso, para quem nunca ninguém se banha nas mesmas águas quando vai a um rio. Ela cita Hegel, segundo quem a história sempre se repete, é cíclica. Ou seja, o que a geração dos 60 fez foi repetir o que vem sendo feito desde Adão e Eva. O livro trata do fracasso da revolução política, que deu nas ditaduras comunistas; do fiasco da revolução dos costumes, que pregou o amor livre e terminou na ‘galinhagem’; do malogro das drogas que prometiam o céu químico e trouxeram o inferno da doença e da competitividade exacerbada; e, também, do sucesso da mulher, que liberou o corpo e dá uma aula de ética aos homens.” Diante de tal esclarecimento, mais importante que tentar fundar uma teoria sobre essa obra, o que inclusive não caberia neste artigo, é lê-la, e tentar percebê-la como uma grande hipérbole de uma alma barroca em linguagem moderna, a descascar a aura de todo o romantismo e de todo idealismo da pretensa revolução social e de costumes promulgada pela geração dos anos 60. O desmonte do mito dentro do rito – o velório –: a impiedade até a morte, e a 39


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra ousadia, a única aventura que tenta pateticamente sobreviver até a última cena, tão surpreendente quanto tola, como assim parece ser todo o exposto submetido à avaliação da impiedade e da insubmissão. “Caía aquele último dia, virando noite, mas todos os presentes puderam ver muito bem o fulgor boreal da pele branca da moça, que se despiu rapidamente, jogando a blusa, a saia, os sapatos e as meias na grama. Quando ela tirou a calcinha preta e a atirou sobre o caixão já meio coberto de terra, seus pêlos púbicos refletiram os últimos raios do sol, o fulgor rubro do dia extinto. Fazia-se tarde. Era apenas o fim.” Ousar expor e expor o que ousa, ousando. Eis a fórmula que José Nêumanne utilizou para escalpelar a euforia dos anos 60, numa exasperante e paradoxalmente comovente narrativa, desesperada e terna. A obra convida a um velório que ressuscita carinhosamente, mesmo com todo ceticismo, o sonho, neste dia de finados em que concluímos este artigo e as personagens de papel parecem encarnar em nós, em tudo e todos a nossa volta. É corpo de um silêncio acordado que parece não tão cedo parar de ganir, de gritar, até que se decida: Valeu a pena? Quem ou o quê decidirá?

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LIVROS NECESSÁRIOS Indicações para uma retrospectiva

Deonísio da Silva

Não se pode concordar com quem, como fez Daniel Piza no Estado de S.Paulo de domingo (19/12), não achou prosa de ficção relevante para registrar no ano de 2004. Pontificando com coluna semanal num dos maiores jornais brasileiros, que, aliás, tem prestígio internacional, não viu um dos grandes romances do ano bem pertinho dele, pois é de autoria de um colega de redação. É O silêncio do delator, de José Nêumanne Pinto, editorialista e colunista da Casa. Se não se lê nem o colega de jornal, que podem esperar os outros? A imprensa ficou parecida com a universidade, onde os cubículos dos intelectuais, semelhando as mônadas de Leibniz, não têm comunicação umas com as outras? Intelectuais de prestígio, como Wilson Martins e Affonso Romano de Sant'Anna, estão entre os que destacaram esse livro. Dieta de leitura Sem a pretensão de elaborar lista completa, destaco alguns pontos altos da safra de 2004 na prosa de ficção, só para não dizer que estou de bronca com os editores que se "esquecem" de livros importantes. Esses ficcionistas são craques titulares em qualquer time de prosadores. O Brasil tem cerca de 3 mil editoras e 900 pontos de vendas (ninguém sabe ao certo quantas livrarias temos, nem mesmo a Câmara Brasileira do Livro), de modo que talvez seja impossível sequer examinar a produção literária nacional para fixarmos as contribuições mais relevantes. Eis 14 prosadores da mais alta qualidade, craques da narrativa que lançaram livros inéditos em 2004. Um responsável pela seleção brasileira de literatura não poderia deixar de convocá-los. 1. O silêncio do delator, de José Nêumanne Pinto (Editora A Girafa); 2. A ira das águas, de Edla Van Steen (Editora Global); 41


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3. Mare nostrum, de Salim Miguel (Editora Record); 4. O opositor, de Luis Fernando Verissimo. (Objetiva); 5. Trevas no paraíso, de Luiz Fernando Emediato (Geração Editorial); 6. Concerto para paixão e desatino, de Moacir Japiassu. (Editora Francis); 7. O vôo da madrugada, de Sérgio Sant'Anna (Companhia das Letras). 8. Tróia, o romance de uma guerra, de Cláudio Moreno (Editora LPM); 9. Um homem chamado Noel, de Mário Pontes (Editora Funcet - Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza; lançado em fins de 2003); 10. Sujeito oculto, de Manoel Carlos Karam (Editora Barcarolla); 11. O homem que colecionava manhãs, de Liberato Vieira da Cunha (Editora Objetiva); 12. Contos de São Paulo, de Filippo Garozzo (Editora de Cultura); 13. Na teia do sol, de Menalton Braff; (Editora Planeta); 14. Getúlio, de Juremir Machado da Silva (Editora Record). Para que a dieta de leitura seja ainda mais caprichada, registre-se o relançamento de Histórias das quebradas do mundaréu, Plínio Marcos (Editora de Cultura); Morte no paraíso, de Alberto Dines (Editora Rocco), edição revista, consideravelmente ampliada e reescrita; Hora aberta, poemas reunidos de Gilberto Mendonça Teles (Editora Vozes); Todas as horas e antes, poesia reunida de Neide Archanjo (Editora A Girafa); Portinari, de Antonio Bento (Léo Christiano Editorial Ltda); Poemas reunidos (2 volumes), de Affonso Romano de Sant'Anna (LPM); Pequeno dicionário de percevejos, de Nelson de Oliveira (Editora Lamparina). E, por fim, Francisco Félix de Souza: mercador de escravos, de Alberto da Costa e Silva (Editora da UERJ e Nova Fronteira). Tempos terríveis

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra E o melhor inventário da literatura brasileira, de Pero Vaz de Caminha os nossos dias, veio de um pesquisador italiano, Giovanni Ricciardi, que ensina literatura brasileira na Universidade de Nápoles. É simplesmente referencial a sua obra Scrittori brasiliani (Tullio Pironti Editore, com apoio do Ministério da Cultura do Brasil, da Biblioteca Nacional e do Departamento Nacional do Livro). Em 1998, a APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) já premiara seu trabalho de divulgação da literatura brasileira no exterior. E ele, comovido, veio ao Brasil para receber o prêmio e subiu ao palco do Teatro Municipal, em São Paulo. Em resumo, houve muito o que destacar em 2004. Mas para que o inventário seja possível, primeiramente é preciso calçar as sandálias da humildade e dizer: a lista é pequena, não foi possível ler tudo, editoras continuam escondendo os livros, livrarias continuam organizando vitrines que são verdadeiros atentados ao livro e aos leitores que sustentam o mercado editorial, e as bibliotecas passaram mais um ano sem comprar livros. E os leitores? Bem, esses, se dependeram da imprensa para tomar conhecimento de lançamentos e relançamentos de livros, entraram numa fria! Não há mais resenhas, não há mais editores, não há mais discernimento, vivemos um tempo de terríveis liquidações nesse particular.

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O Silêncio do Delator Escobar Franelas(*)

Em "O Silêncio do Delator", o escritor e jornalista José Nêumanne utiliza como fio-condutor da história as músicas "Sergeant Pepper´s Lonely Hearts Club Band", dos Beatles, e "Bringing It All Back Home", de Bob Dylan. Como epígrafe de cada capítulo, o poema "Inventário" de Pedro Paulo de Sena Madureira. O enredo nos diz o seguinte: a partir amigos e familiares que estão no velório de João Miguel, professor morto em decorrência de um câncer, o autor propõe um jogo sutil para testamentar as perdas e ganhos da geração da década de 1960. Para tanto, usa um emaranhado de tempos diferentes para situar o florescimento e crescimento da turma de amigos do morto, a Patota dos Sovacões Solidários do Recruta Pepé – como eles autodenominavam na adolescência, e, óbvio, uma paródica decupagem à brasileira do título do disco dos Beatles – e o que essa época legou para o próprio grupo e às gerações futuras. Essa “confusão” temporal estabelece num átimo um conflito quanto àquilo que estava sendo discutido e/ou vivido no período da pré-juventude da turma, com o tempo presente dos mesmos personagens, numa análise aguda e fria, mas não isenta de paixões e interpretações controversas. O defunto apresenta uma das versões da história, em 1ª. pessoa, dialogando com outros narradores em 3ª., num recurso intertextual quase anedótico. O texto constrói-se em camadas diferentes e até divergentes num vai-e-vem que não cansa, mas cria uma tensão metaestilística. Neste repuxo entre fluxo e contrafluxo, acompanhamos fatos que se sucedem no momento do velório, com seus arrazoados críticos; interseccionados com histórias das experiências da turma no final da adolescência, e sua iniciação musical e filosófica, os primeiros contatos com diversas drogas, a descoberta do sexo e o absurdo à Camus, descortinado a partir das opções feitas no calor de momentos únicos da vida de cada um. José Nêumanne recupera na sua prosa, toda uma gama de tipos prosaicos frutos de uma época que abalou todo um sistema social mofado em cinismo e hipocrisia. Depois de acompanharmos as aventuras, desventuras, jogos 44


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra amorosos e caminhos trilhados pelo publicitário afamado e rico que quer se tornar escritor reconhecido, a historiadora culta e mal amada, o roqueiro gay famoso, o socialista que virou um burocrata a serviço da democracia capitalista, do guerrilheiro que virou trapo humano bem sucedido em suas especulações na bolsa de valores, e tantos outros tipos cotidianos; constatamos que a tal hipocrisia e o cinismo continuam muito bem casados, apenas mudaram de roupa, discurso e época. Verdade soberana, irrefutável e irreversível: renascem como erva daninha, sempre em outro lugar, com um novo modus operandi, sempre que os imaginamos sepultados. "O Silêncio do Delator", porém, está longe de ser down, niilista ou piegas. Vencedor do Prêmio José Ermírio de Moraes, da Academia Brasileira de Letras, como melhor livro do ano de 2004, é todo permeado de humor noir, principalmente nas “tiradinhas” fabulosas do morto. Dono de um rico detalhamento do pensamento universal deixado por aqueles que construíram esses últimos 50 anos, o livro trata(e fala) com desenvoltura de Bergman, Elis, Chaplin; passa por Fellini, Elvis, Buñuel e – claro! – Beatles e Bob Dylan, e muitos, muitos outros. A vida de nossos pais se recupera em nós(como foi brilhantemente versificado por Belchior), e as velhas(e as novas) drogas, o déjà vu existencial, a incógnita de onde situar Marx e Sartre nos dias presentes, a sempre inevitável “revolução” jovem; tudo, tudo mesmo, está lá, numa história sinuosa e engraçada da "Patota dos Sovacões Solidários do Recruta Pepé", mas bem poderia ser da minha turma, ou – quem sabe? – da sua... (A Girafa Editora, 2ª ed., 2005, ISBN 85-8986-51-9)

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UM MESTRE DO ROMANCE Eustáquio Gomes

José Nêumanne é a verve mais candente do jornalismo brasileiro. Sua capacidade de construir artefatos verbais na imprensa diária não tem paralelo entre nós. Agora Nêumanne coloca essa capacidade inusual a serviço da literatura de ficção. Poderia ter falhado e se afogado no discurso normativo das redações. Não só isso não aconteceu como Nêumanne escreveu um romance que deve marcar 2004 como “o ano de O silêncio do delator”, tal como Canaã marcou 1902 e Cabeça de Papel marcou 1977. O silêncio é o melhor romance de sátira desde Paulo Francis. Romance-síntese, O silêncio consegue a proeza de juntar as pontas do último meio século lançando uma espécie de arco voltaico que se estende do fim da II Grande Guerra à queda das Torres Gêmeas. E com isso faz o inventário da estética e da política, da utopia e do desencanto desse conturbado e fascinante período, traçando um vivo retrato de uma geração que se queria iconoclasta e terminou conformista. Com a ação fixada no início do século XXI, os personagens recuam no tempo e purgam sobretudo o sonho político-cultural da década de 60, de onde muitos emergiram como “revolucionários” para se transformar nos “conservadores desenganados” de hoje; e, embora Nêumanne não o diga, alguns deles chegaram ao poder. Nada melhor que um morto para dizer as verdades que os vivos relutam em admitir. O protagonista do romance, tal como o Brás Cubas das machadianas memórias póstumas, é quem dita o andamento da narrativa. Outras seis vozes fazem contraponto a essa voz que já nada tem a esconder. Sem pretender inovar na frase, sempre fluente e rítmica, Nêumanne inova entretanto na estrutura narrativa, que é circular. Tem-se então um romance de linguagem madura, que exige do leitor participação ativa e um nível de informação cultural que ultrapassa a mediania. Nêumanne coloca-se na linha dos grandes narradores caudalosos, cujo estilo necessita de espaço e que, entretanto, nunca pecam por excesso de palavras. A isto se chama controle da linha narrativa, detalhe logo ressaltado por Wilson Martins, o principal crítico brasileiro há bem já trinta anos: “Dominando a complexidade da intriga e a estruturação cronológica, José Nêumanne assume o seu lugar entre os mestres do romance contemporâneo, tanto mais que tudo [em seu romance] resulta de rigorosa planificação”. (Eustáquio Gomes) 46


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Eustáquio: Para o crítico Ipojuca Pontes, O silêncio do delator é o primeiro grande romance brasileiro do século XXI. Você tinha essa expectativa ao escrevê-lo? Nêumanne: Não tenho essa pretensão, é claro. Só teria se fosse mais cabotino ainda do que me permito ser. A visão de Ipojuca é generosa demais. Ele é um sujeito culto, leu muito e sabe das coisas, mas é meu amigo e a amizade influiu nesse juízo de valor. Sinval Medina, autor de A faca e o mandarim, romance também lançado pela Girafa, comparou meu romance com Encontro marcado, de Fernando Sabino, e Quarup, de Antônio Callado. O primeiro é a obra-prima dos romances de geração na literatura brasileiro. O segundo, um texto marcante em minha formação. É muita areia para meu caminhãozinho. Só com o tempo se saberá se houve exagero nessas avaliações. Mas não estou preocupado com comparações. Só quero que as pessoas gostem dele. Eustáquio: O romance faz o inventário de uma geração que, no último meio século, acreditou poder fazer a transformação social do Brasil. O tom pícaro dos personagens dá a entender que eles não chegaram lá, embora alguns deles tenham chegado ao poder. Essa geração fracassou ou apenas corre o risco de fracassar? Nêumanne: Desde 1984, quando escrevi a primeira versão malograda do texto, minha proposta era escrever sobre o fiasco de minha geração na revolução política, que terminou nos Gulags da esquerda e nos porões da direita. E do amor livre, que terminou na “galinhagem” generalizada. Ao escrever, me apareceu um raio de luz nos porões: a mulher. Ao escrever o livro, saquei que o saldo ético favorável da luta de minha geração foi a conquista da posse do corpo e do ofício pelo gênero: esperança e ética são substantivos femininos. Eustáquio: Seus personagens, ao abandonar as “mitologias revolucionárias”, no dizer de Ipojuca Pontes, também desistem da ética igualitária e até adotam um certo cinismo pragmático. Ou seja, a utopia morre e seus crentes terminam acanalhados pela dinâmica da história. Isto é ficção ou faz parte da vida real observada pelo autor ao longo dos anos? Trata-se de um roman à clef? Nêumanne: Não, não se trata de um roman à clef. Não contém tipos retirados da realidade nem é autobiográfico. Só se eu fosse mais maluco do que já sou se me achasse parecido com um canalha como o protagonista João Miguel. Mas é 47


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra claro que o texto resulta de observações e vivências do autor. E há coincidências engraçadíssimas: só lendo o simpaticíssimo texto de Walter Fontoura na Folha de S. Paulo sobre o livro reparei que Marco Antônio, o Coelho, remete a Marco Antônio Coelho, militante comunista e meu amigo dileto. E que Ricardo Azevedo, o militante comunista negro que vira ministro, é homônimo de um militante petista, filho de outro querido amigo, Clóvis Azevedo. Mistérios da criação! Eustáquio: Você tem sido um crítico feroz do governo Lula em seus artigos no Estadão. Suas críticas estão centradas sobretudo em questões éticas, refletindo um desapontamento parecido com o rastro de desencanto deixado pelos personagens de O silêncio do delator. Há relação entre o romance e o jornalismo de opinião praticado por José Nêumanne? Nêumanne: Deus queira que não. Ernest Hemingway dizia que o bom escritor deve passar por uma redação de jornal, mas tem de sair. Eu continuo numa redação, mas espero deixar nela os vícios de jornalista. Ruy Fabiano, que foi colunista de política em Brasília e saiu da imprensa para ser escritor, acha que os vícios de jornalista deslustraram meu romance anterior, Veneno na veia. Concordo com ele. Mas tenho fé de que eles não destruam este. Espero ter me livrado deles, ao escrevê-lo. Eustáquio: Entre editoriais para o Jornal da Tarde, artigos para o Estadão e outras ocupações em rádio, TV, como lhe sobrou tempo para escrever um romance de mais de 500 páginas? Qual foi a sua rotina durante a redação desse livro? Nêumanne: Em 1984, escrevi o primeiro rascunho do romance. Chamava-se O enigma do vôo 160 e o texto era tão ruim como o título, como atestou o poeta Álvaro Mendes, a quem submeti o sacrifício de lê-lo. Álvaro era meu subordinado no Jornal do Brasil e constatou o malogro de minha tentativa de ser o “James Joyce de Bodocongó” (bairro de Campina Grande, onde estudei no começo dos anos 60). Pouco depois, tive a idéia de incluir as letras de Sergeant Pepper’s lonely hearts club band para comemorar os 20 anos do lançamento desse álbum clássico dos Beatles. Só que a idéia continuou confusa e foi arquivada. No ano passado, ao ver As invasões bárbaras, o filme do canadense Denys Arcand, tive a impressão de que ele havia filmado o romance que eu não escrevera. Aí, parti para a luta: de segunda a sexta, das 8 ao meio dia, no computador da Girafa Editora, um capítulo por semana. Cumpri o pacto que firmei com meu analista, Humberto Mariotti, que me estimulou a escrever o livro como se fosse um “dever de casa” da terapia, e com meu amigo e editor 48


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Pedro Paulo de Sena Madureira, que ainda me presenteou com o belíssimo poema Inventário, que serviu de esqueleto ao texto. Eu sei que esta resposta está se alongando, mas para ser completa ela precisa conter ainda a constatação de que o pior de tudo não era a questão tempo. O problema é que a narrativa veio como um jorro e eu tinha de cuidar do meu dia. Como interromper a emoção no meio do dia, tratar do cotidiano e no dia seguinte voltar a domá-la – eis o busilis. Aconselhei-me com o cineasta Ipojuca Pontes, que lida com atores e sabe que truques eles usam para retomar a emoção de uma cena interrompida. Ele me sugeriu adotar técnicas proustianas (usar um perfume, comer um doce, etc.). Mas não deu certo, até porque já estou gordo demais. No fim, valeu a rotina. Acordava de madrugada, saía de casa cedíssimo, vinha para a editora, me trancava na sala e deixava o texto sair. Dava a hora, ia embora para o jornal cuidar de editoriais e comentários. Difícil era segurar a barra emocinal no trânsito. Ainda bem que o trânsito é sempre ruim em São Paulo e eu tive tempo para me sintonizar ora na emoção do livro, ora na lógica do cotidiano. Mas estive a pique de enlouquecer. Não foram poucos os dias em que chorei feito um bezerro desmamado ao volante. Já pensou que cena incrível?! Eustáquio: Houve um certo burburinho sobre um incidente com a Rede Globo logo após a publicação do livro. Você gravou uma entrevista para o programa da Ana Maria Braga que acabou não indo ao ar. O que aconteceu de fato? Nêumanne: Sou amigo de Ana há mais de 30 anos e ela é uma pessoa muito generosa. Ela ficou entusiasmada com a idéia de me entrevistar no dia do lançamento ao vivo, mas tinha de viajar para Natal e gravou a entrevista dois dias antes. Ao ver a gravação, Alice Maria, responsável pelo jornalismo nos programas de show da Globo, proibiu sua veiculação, alegando que eu trabalho no SBT. Não acredito que o Jornal do SBT ameace o monopólio de audiência da Vênus Platinada. Portanto, atribuo a decisão estúpida à inimizade pessoal gratuita dessa senhora, que tomou as dores de seu protetor, Armando Nogueira. Quando eu era crítico de TV do Jornal do Brasil, lembrei que o general Médici usava o Jornal Nacional que ela e ele produziam como prova de que, enquanto o resto do mundo era conturbado, vivíamos aqui em plena ditadura militar num lugar paradisíaco. Mas isso não tem importância nenhuma, a não ser pela saia justa com minha amiga, que, aliás, num gesto de simpatia incrível, mostrou a capa do livro e noticiou o lançamento, me elogiando muito.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Eustáquio: Ao colocar um defunto testemunhando o próprio velório e narrando sua vida pregressa, você estabelece um vínculo narrativo com o Brás Cubas de Machado de Assis. Quais são seus paredros na história da literatura? Nêumanne: Na verdade, quando resolvi escrever o romance, estava lendo Fazes-me falta, da portuguesa Inês Pedrosa, que narra um diálogo entre uma morta e seu amante no velório dela. Mas Machado estava no meu inconsciente, porque, para mim, fica o topo do pódio. É claro que adoro as Memórias póstumas..., mas tenho mesmo uma queda especial é por Esaú e Jacó e Memorial de Aires, seus romances da senectude. Considero O estrangeiro , de Albert Camus, e O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, os textos de ficção fundamentais do século XX. Mas acho que, em matéria de prosa, o texto que aponta para o século XXI, embora escrito no passado, é História universal da infâmia, de Jorge Luís Borges. Eustáquio: Numa entrevista, você disse que a única esperança da humanidade está no gênero feminino, e que O silêncio é um romance feminista. Pode explicar melhor isso? Nêumanne: Quando eu estava escrevendo o livro, meu analista reclamou do fato de que todos os seus personagens eram calhordas. Lembrei-me, então, de uma figurinha deslumbrante, a Esmé do conto Para Esmé, com amor e sordidez, uma das Nove estórias, de J. D. Salinger. Ela aparecia num capítulo de meu projeto original, o tal do Enigma do vôo 160, mas não estava escalada na nova composição. Resolvi incluí-la. E à medida que ela foi evoluindo no livro, me foi revelando a obviedade de que as conquistas da mulher foram os dados mais positivos da minha geração: a pílula que lhe permitiu a posse do próprio corpo e os avanços sociais que lhe definiram um papel mais justo e digno na política e nos negócios. Sou um devoto admirador do gênero feminino, apesar de estar apaixonado agora por um homem, meu neto, Pedro, de 2 anjos, a quem o livro é dedicado. Eustáquio: O futuro do romance pertence a Borges, não a Joyce. É uma afirmação sua. Por que acredita que será assim? Nêumanne: Acho que Joyce aposta no impasse e Borges abre portas. Na verdade, como escritor sou mais joyciano que borgista. Quando comecei o livro, pensei adotar o “texto zero”, mas a complicação formal terminou se impondo, me fazendo constatar na prática que o português Lobo Antunes tem razão ao afirmar que o bom livro se impõe ao autor (tomara que o meu seja bom, mas isso quem vai saber é você). Como leitor, contudo, percebo que a literatura do 50


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra futuro vai na direção daquela mistura bem-humorada de erudição e mentira que Borges fazia, muito mais do que a complexa erudição lingüística joyciana.

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O SILÊNCIO DO DELATOR O romance de uma geração Henrique Veltman

Nêumanne vive me surpreendendo. Quanto mais não fosse, pela sua extraordinária capacidade de escrever, e escrever bem, produzindo todos os dias artigos, editoriais, comentários. Muita coisa que, orgulhosamente, publicamos nas páginas do Imprensa Livre. Demorei para ler o seu “O silêncio do delator”. Estava com a leitura atrasada, uma montanha de livros na fila e ele acabou ficando para o feriado de Corpus Christi. Valeu a pena. Quem é da geração dos anos 60 vai se encontrar nas 544 páginas de “O silêncio do delator”. Nêumanne usa, se posso falar assim, a técnica de fragmentos. Quem narra é um morto muito simpático, mas muito crítico. Como diria uma moça que trabalhou aqui em casa, “tem de um tudo” no livro do Zé. Sobretudo, tem “Invasões bárbaras”, de Denys Arcand, um bocado de Bob Dylan, Beatles, filosofia política e análise sociológica. No velório, Nêumanne reúne os "remanescentes dos anos 60". E ali, ele conta a história de uma geração, a sua geração. "Vista aqui do caixão", diz "a voz do morto", narrador complementar e crítico do autor, "posta em contraste com os círculos espalhados pela sala [...] de viúvas de Elvis Presley e nostálgicos de John Lennon, de fãs de carteirinha de Mick Jagger e saudosos de Jim Morrison, ela tem um viço que salta aos olhos e atinge o plexo solar como um soco de Mike Tyson - nós, da geração de Cassius Marcellus Clay, ou melhor Muhammad Ali; nós, que vimos com um pouco de preconceito o filme de Hollywood com o trânsfuga Mikhail Barishnikov, meu outro xará russo, pensando que aquilo era sobretudo o desperdício de um talento, nós que gostávamos das tiras de Mafalda e Charlie Brown. Pois é: esse viço evidente, esse jeitinho de flor beijada pelo orvalho, esse ar de sereno de madrugada não combinam com este ambiente, nada têm a ver com a morte". Insisto: vale a pena ler.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

LITERATURA Hugo Pontes (*)

O jornalista e poeta José Nêumane Pinto é natural da Paraíba. Antes do comentário sobre o autor, o romancista deve ser lembrado por sua participação no movimento do Poema/Processo, conduzido no final da década de 1960 e início dos anos de 1970 por Wlademir Dias-Pino. Nêumane, portanto, é parte do grupo que trabalhava a linguagem experimental no Brasil. Seu trabalho esteve ligado a Arte Postal, quando usou o envelope e convidou os leitores “fazer o seu poema utilizando o envelope” como forma de o espectador participar e interferir na criação do texto. O envelope, assim como outros produtos enviados via Correios foram e são muito utilizados, ainda hoje em todo o mundo, para enviar poemas. Situado, para mim, a origem literária de Nêumane, fica mais fácil entrar na obra “O Silêncio do Delator” e entender a sua linguagem; a sua postura como romancista-memorialista; a sua capacidade de explorar o branco do papel; a sua condição de narrador; de observador; de cronista conciso e do papel inovador que o seu livro traz para a Literatura Brasileira. Comentar O Silêncio do Delator tem sido tarefa de grandes nomes da crítica nacional e insistir com outro texto seria cometer redundância. Apenas como orientação para o leitor interessado, gostaria de enfocar que a obra mostra, em linguagem coloquial, todo o cotidiano de uma época cantada em prosa e verso por suas riquezas: social, política e econômica e também por ser um período em que - apesar de estarmos órfãos da democracia - lutávamos por uma causa justa, contra inúmeras injustas causas. A despeito desses anos, denominados “anos de chumbo”, o povo brasileiro unia-se em torno de um ideal comum: a liberdade. Todos que eram adolescentes nos anos de 1960, notadamente a geração de 1945, podem - no decorrer da leitura de “O Silêncio do Delator”- recordar momentos de uma época que jamais irá se apagar da memória e que jamais se repetirá. Isso porque foram momentos mágicos em que políticos progressistas acenavam com propostas de desenvolvimento social, político e econômico para o país. De uma hora para outra os brasileiros viram cerceadas a sua liberdade e as propostas de um futuro digno para todos. Era o início da pintura de um quadro negro, cuja imagem final estavam traduzidas em negros coturnos. E, naquilo que é possível avaliar, José Nêumane enfoca, com rara felicidade pois: “A História que sempre quis contar, e você me impediu, esta 53


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra história tem vinte anos ou mais de vinte anos, tem, Oxalá, meio século, uma vida inteira, se é que há vidas inteiras” (JNP). A par de toda a estrutura narrativa, o romance tem a estrutura de uma peça teatral, cujo tema é o teatro real que o país viveu entre os anos de 1964 a 1984. O romance, por sua estrutura e divisão em partes, pode ser lido como um livro de vinte e cinco contos e cada conto representa uma estação percorrida ao longo de toda uma era de encantamentos e decepções; de derrotas e vitórias; de música e ruídos; de esperança e indecisões; de Bossa Nova e Jovem Guarda, de Beatles e Rolling Stones; de Caetano e Chico Buarque; de Poema/Processo e Poemas Visuais; de TFP e Diretas Já; de 1964 e 1984... História, Literatura e Memória – tudo isso o livro encerra. *Professor, poeta e jornalista

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

O FRACASSO DE UMA GERAÇÃO Meio século de política, sexo e rock and roll Ipojuca Pontes

Se me perguntassem o que “O Silêncio do delator”, de José Nêumanne, tem de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, eu responderia: o fato de, postumamente, um personagem discorrer sobre o passado e o presente, além de, bem ao gosto do bruxo de Cosme Velho, e como se fora um dos alter egos do narrador, interferir na prosa deste de modo a apontar-lhe os excessos, as redundâncias, enfim, as deficiências de sua escrita. Quer dizer, se Machado de Assis estabelecia um diálogo com o leitor a respeito dos seus mecanismos de criação, o personagem João Miguel provoca o narrador, desafia-o, instiga-o, na medida em que questiona o enredo, a intriga ficcional, como também a linguagem que serve de lastro, de sustentação ao romance. Isso sem contar que, coincidentemente ou não, Nêumanne tende a abolir a paisagem no seu livro, ao mesmo tempo em que as suas personagens vivem entre quatro paredes. Ou seja, “O Silêncio do delator” é um romance urbano cujas personagens, paradoxalmente, não saem às ruas, no que também lembram os “claustrofóbicos” viventes machadianos. Mas isso não quer dizer que Nêumanne seja um epígono do autor carioca, pois, na verdade, ele imprime ao seu texto o sinete de uma individualidade já reconhecida, inclusive, por Wilson Martins, para quem esse paraibano de Uiraúna conseguiu a proeza de inovar o romance brasileiro. O certo mesmo é que “O Silêncio do delator” presta um tributo àqueles com os quais José Nêumanne possui afinidades eletivas desde sempre. Ou desde quando, adolescente míope de Campina Grande, já enxergava longe. Daí, a homenagem a Machado, a Bob Dylan, aos Beatles e a muitos filmes e textos com os quais dialoga no plano da intertextualidade, da metalinguagem e da paródia. Em suma, nesse livro convivem, harmoniosamente, o ensaio, a ficção e a poesia, embora os mais preconceituosos ainda hoje delimitem os gêneros

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra literários em compartimentos estanques, quando a diluição deles não exclui, necessariamente, a literariedade de uma obra. Literariedade, aliás, que não falta ao “Silêncio do delator”, livro no qual Nêumanne se vale do seu temperamento eclético, ubíquo, para transitar, com extrema desenvoltura e brilhantismo, do cinema para a música ou desta para as artes plásticas e ainda para a literatura. E aqui convém lembrar que Nêumanne não é benevolente com a geração a que pertenceu: a dos tumultuados anos 60. Antes pelo contrário, pois ele a inventaria sem concessões de qualquer espécie, como o fez – claro que guardadas as devidíssimas proporções – Mário de Andrade quando registrou os 25 anos da Semana de Arte Moderna. Enfim, sem jamais perder a ternura, José Nêumanne, mais do que expor, escarafuncha as feridas ainda abertas da geração 60. E o faz a partir de “Inventário”, poema de Pedro Paulo de Sena Madureira com cujos versos ele também arremata os vinte e cinco capítulos que compõem este excelente romance recém-lançado pela Girafa Editora.

© Gazeta Mercantil, sexta-feira 8 de outubro de 2004, página 3.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

O SILÊNCIO DO DELATOR José Alcides Pinto

Achamos por bem transcrever, logo de saída, o trecho que segue, como inscrição ou advertência, ou o que mais for de O Silêncio do Delator (São Paulo, a Girafa Editora, 2004). Aqui, nestas breves palavras, está expresso o sentido do romance de José Nêumanne: Jornalismo literário? Na verdade, um romance pleno de conflitos e confissões, de vivências que se inscrevem, com muita propriedade, na História e na Memorialística: “Romance e inventário de amor e desamor, aventura e desventura, ilusões e desilusões, encantos e desencantos sobre sexo, política, drogas, moda, arte pop e rock and roll, em sete vozes que ressoam canções dos Beatles, Bob Dylan, Caetano Veloso, Belchior e mais “Um poema de Pedro Paulo de Sena Madureira”. José Nêumanne se propõe (e consegue) uma ruptura na linguagem, forma, estrutura, técnica da ficção tradicional. A profusão de elementos conflitantes que se digladiam tornou a obra polissêmica e substantiva. E é um desafio até mesmo para os leitores identificados com a modernidade literária da ficção de nossos dias. Mas como classificar O silêncio do delator, levando-se em consideração o realismo da narrativa? Tempestuoso, agressivo, prosaico, irônico, onde não falta nem mesmo um toque de permissividade, ao qual se juntam ambições políticas, delírios, frustrações, terror e medo desenhados num só painel, claro e confuso, pelos instintos humanos e pela angústia existencial de que nos falava Camus em suas conferências e ensaios críticos sobre o destino do homem e os mistérios da alma. A investida mais radical e audaciosa que tivemos na ficção, foi a do “noveau roman”, com Michel Butor, Alain Robbe-Griliet e Nathalie Sarraute. Não obstante, me parece que as experiências do autor solitário é o que mais conta, deixando de lado o modismo dos movimentos literários e das escolas. Nessa vertente podemos citar, entre pouquíssimos outros, Raduan Nassar, com seu belo romance Lavoura Arcaica. Mas esse é um autor raro, com uma obra sempre rara. O silêncio do delator é um livro que contesta, advoga, questiona problemas e princípios que nos tocam de perto nosso interesse pelo drama 57


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra humano que levanta em nosso espírito. O que é a vida? O que é a morte? Serão duas coisas conjugadas? As duas faces da mesma moeda? O sim e o não, o que existe e o que não existe? Nesse sentido, seu romance deixa de ser direto, objetivo, linear, e ganha foros de profundidade, por vezes de natureza metafísica nas relembranças que ocorrem à memória. Estamos, queiramos ou não, atrelados ao caos que a todos atinge: pelo pecado, pelas circunstâncias, talvez pelo destino. São mais ou menos estes os temas, os assuntos mais dramáticos, das histórias deste romance em que há um pouco de tudo: assédio, vício, delicadeza, ironia, heroísmo e amor. É este um livro de intertextos que se aproximam da realidade vivida pela inquietude do dia-a-dia. Essa inquietude e essa avalanche nos toma de súbito como um furacão e nos atira ao nada que somos e subverte a ordem natural das coisas em seu clima quase profético. Mas nem tudo está perdido, fica em algumas passagens um saldo positivo na esperança e na alegria que apesar de tudo José Nêumanne passa virtuosamente para seus leitores. As fantasias não desertaram de todo do espectro do livro. O poeta, o bom poeta que ele é, frui e refrui na maré de bons augúrios. Assim também se apresenta sua ficção em toda a grandeza de seus lances ambíguos, desconcertantes e dramáticos. O silêncio do delator é um texto feliz, rico pela sutil plasticidade da linguagem, estilo muito pessoal do autor, de que se nutre em sua escritura em seus recursos éticos e estéticos sob os vários aspectos de sua criatividade. E por esses atributos José Nêumanne nos liberta das convenções sociais, das limitações e costumes que a tradição e a sociedade nos legou. Fica-nos, ainda, a lição de que o homem nunca é demais e que em qualquer parte é um pedaço do chão, e nunca perde sua identidade nem seu sentimento, pois a ele está confiado o destino do homem. Desse acerto e ambivalência é feita a natureza dos personagens de Nêumanne. O silêncio do delator por vezes lembra uma tese. Tem algo de profético na ordem e na desordem que regem os conflitos humanos. Não podemos dizer que ele se aproxima de Lins do Rego ou Graciliano Ramos, por exemplo, para citar apenas dois de nossos grandes escritores da atualidade. Não é um texto de natureza psicológica nem introspectiva. Podia lembrar “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (o morto contando sua história) mas está tão distante deste como Canópus da Terra. Não há a menor aproximação. Tampouco se identifica com “Primo Basílio”, que Machado quase o copia por inteiro. 58


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

A linguagem de Nêumanne é realista e direta. Um pouco de Lima Barreto, talvez de Cony, permeie sua obra. Cony é um profissional de imprensa e um grande escritor, ligado a pesquisa histórica e ao jornalismo. A experiência dos dois na literatura tira resultados os mais surpreendentes. Estamos chegando às últimas páginas do livro de Nêumanne. Atrás deixamos os movimentos de vanguarda na canção, os acontecimentos históricos mais marcantes e até mesmo os corriqueiros ditados pela voz do morto. Sua glória! Tudo e todos fazem parte do mural da vida. “Boa noite”. E foda-se. Nêumanne não tem a quem prestar contas e nem dar satisfações a ninguém. A voz do morto e sua “glória” é uma seqüência de significados significantes. A ironia aquece, neste romance agônico, o perfil do morto e sua visão onírica: “Liga não, mãe. Eu só morri.” Aqui temos a chave do livro, o disfarce, o enigma do texto. No capítulo que fecha esta obra de prêmio, o autor sai invicto e inteiro. Não resistimos a tentação de transcrever o que se segue: “Caía esse último dia, mas todos os presente viram muito bem o fulgor boreal da pele branca da moça, que se despiu rapidamente, jogando blusa, saia, sapatos e meias na grama. Quando tirou a calcinha preta e a lançou sobre o caixão meio coberto de terra, seus pêlos púbicos refletiram os últimos raios do sol, o fulgor rubro do dia extinto. Fazia-se tarde. Era o fim.” Ao longo do texto Nêumanne dialoga com os clássicos e os filósofos. E desse diálogo que é também de todos nós, fica a lembrança do tempo que elabora a vida de nosso cotidiano, nosso trabalho e nossos anseios de felicidade. A vitória é a “Escada de Jacó”, tristeza e dor de que nos fala Fagundes Varela em seu imortal poema. E a vitória não será outra senão o paroxismo das inúmeras vertentes do livro. Que caminho tomar agora? Como meditar sobre o sonho e a realidade? Tudo nesse livro se soma à inevitabilidade que nos atira ao encontro do nada. O epílogo é um pôr de sol de ouro, momento eterno e divino, que desperta o sono de Eros e a virilidade dos deuses.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

© Diário do Nordeste, Especial para o Caderno 3, Fortaleza, 19 de março de 2005

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra O SILÊNCIO ENSURDECEDOR DE JOSÉ NÊUMANNE Júlio Daio Borges (*)

Havia um tempo, no jornalismo, em que era quase uma obrigatoriedade ter ambições literárias. Ainda hoje, para muita gente, o trabalho em jornal surge como um “rito de passagem” rumo a uma vocação maior: a de escritor. Poucos jornalistas, porém, conseguem reunir condições para se dedicar – seja em tempo parcial, seja em tempo integral – à literatura. José Nêumanne, o colunista de O Estado de S. Paulo e o editorialista do Jornal da Tarde, abriu uma clareira em suas manhãs (das 8 ao meio-dia), durante nove meses, e lançou mãos à obra. O resultado: O silêncio do delator (541 págs., A Girafa Editora). Nêumanne ressuscita ainda duas outras obsessões de praticamente todos os jornalistas-escritores: o livro de 500 páginas e o romance emblemático de sua geração. A primeira promessa cumpre com folga. Seu texto fluido, o mesmo dos jornais, dá a impressão de que poderia continuar caudaloso por mais centenas de páginas. Já o registro “entre o documental e o ficcional” de sua geração atinge picos incontestáveis, como a criação da personagem Esmé (a clássica filha do amigo de tantos anos – precocemente madura, instigantemente liberada e suficientemente enigmática), mas esbarra também em alguns clichês (algo que, em se tratando dos anos 60 – o leitmotiv de Nêumanne – já era de se esperar). A tarefa de retratar a própria geração é hercúlea em si, ainda mais para um autor, digamos, bissexto como José Nêumanne. Ele, apesar de tudo, insere mais alguns fatores complicadores (ou, de repente, facilitadores, no seu ponto de vista): a estrutura, em capítulos, constrói-se a partir de faixas retiradas de dois dos álbuns mais representativos daquele então – o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), dos Beatles, e o Bring It All Back Home (1965), de Bob Dylan. Como se não bastasse, Nêumanne se pauta, ainda, por um poema de Pedro Paulo de Sena Madureira, dedicado a ele (Nêumanne) – sacando, do mesmo, versos que encerram cada uma das 25 partes. Para terminar, alterna vozes literárias independentes – que, ao mesmo tempo em que “escrevem” o romance, comentam sua escritura, dialogando ora com o leitor, ora com o próprio narrador.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra As exigências impostas por esse verdadeiro quebra-cabeça, que é O silêncio do delator, dificilmente poderiam fazer do livro uma obra-prima. Nêumanne se lança num salto mortal e, se não morre durante a queda, não se consagra como “gênio da raça” – mas, milagrosamente, realiza a tarefa a que se propõe e, ciente de suas limitações, chega muito perto (como no Brasil quase ninguém chegou) de escrever o tal “romance de sua geração”. Toda a ação se desenvolve em torno do velório do protagonista que, à maneira de Brás Cubas, emite opiniões sobre os circunstantes, ao mesmo tempo em que embarca em flashbacks cinematográficos, recordando cenas dos formadores anos 60. Nêumanne, talvez por inspiração glauberiana ou felliniana ou até mesmo de Denys Arcand, prefere trabalhar com arquétipos – assim, há: o acadêmico; o publicitário (metido a poeta); o político (exrevolucionário, atual ministro); o artista (músico reconhecido e homossexual assumido); e o financista (ex-guerrilheiro, ex-torturado). Também aplica a mesma fórmula às mulheres, que estão presentes nas seguintes encarnações: a esposa conformada; a amante permanente; a revisitada paixão de juventude; a sobrinha avançada; e a sogra ranzinza. Baseando-se num leque variado de possibilidades, é pena que trabalhe mais com blocos estanques (dedicando, grosso modo, um capítulo a cada personagem) e não entrecruze mais os caminhos desses tipos tão contemporâneos. Um dos pontos altos de O silêncio do delator, até mais do que a história, é um certo ensaísmo que escapa pelas beiradas. Nêumanne tem obviamente teses sobre sua geração e, entre as falas de suas personagens, não deixa de burilá-las: “Essa visão segundo a qual nós somos os melhores, nossos pais eram uns covardões [...] e nossos filhos, uns pragmáticos pueris, não está com nada” (pág. 77). Ou então: “A redenção do gênero humano não está no amor, mas na amizade” (pág. 86). Ou ainda: “[...] o irônico da revolução da juventude dos anos 60, por mais conceitos coletivistas que quisesse instaurar, é que consagrou realmente o sonho individual” (pág. 95). Nêumanne é declaradamente feminista e, se pudesse dar ao seu romance uma conclusão, seria essa: a do feminismo como salvação. Admira, sem medida, as mulheres – e se dispõe a contrariar a conhecida frase de Balzac: “Coragem, substantivo feminino. Ou coragem, teu nome é mulher [...]” (pág. 341). Outra máxima que coroa a leitura se refere igualmente a elas, as fêmeas. Nêumanne, quase forçando uma interpretação de sua obra, tem dito em entrevistas que, apesar do “amor livre” ter redundado em “galinhagem”, as mulheres saíram fortalecidas do processo e é nelas que deposita todas as suas esperanças, de macho e de membro do gênero humano. 62


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

O silêncio do delator se apresenta, então, não apenas como uma realização meramente literária, mas principalmente como um testemunho e como um convite à reflexão sobre a década de 60 do século XX (no dizer de Nêumanne). Embora o autor, de certa forma, considere que cumpriu sua missão, poderíamos esperar dele, agora, mais e melhores blues. José Nêumanne deixou seu testamento como prosador e está livre para alçar novos vôos. Sorte dos leitores. [FIM] Julio Daio Borges é editor do DigestivoCultural.com © Rascunho, fevereiro de 2005

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra SILÊNCIO REVELADOR Luiz Augusto Crispim

Ainda não deu para encontrar José Nêumanne Pinto neste seu vôo rasante por Tambaú. No Recife, mês passado, fui à livraria Cultura para abraçar o amigo, que lançava o Silêncio do Delator. Conversa de livraria não vale. Faz lembrar os tempos em que eu – quase menino – espreitava os encontros de Cavalcante Proença e Carlos Drummond de Andrade na rua São José, por entre as estantes do mercador Carlos Ribeiro. Longa é a pauta acumulada e vai do cumprimento dos mandamentos poéticos insculpidos na Pedra do Sol à suave lembrança de Dona Mundica. Mas não exigirá nenhum esforço concentrado para vencê-la. Nas assembléias do coração as matérias são aprovadas por aclamação. Na ordem das prioridades, porém, eu tinha de lhe falar desse imenso velório nacional, dos silêncios que delatam as esperanças deste Brasil insepulto e belo, governado por um nordestino igual a nós. Precisava dizer-lhe que o melhor do Brasil não são os brasileiros, como pretende a propaganda oficial. O melhor do Brasil é o silêncio da pátria. Somos vítimas de tudo isso aí, mas não dizemos nada, fiéis ao martirológio do Sagrado Coração de Jesus em quarto de rapariga. Vou esperar pelo novo reencontro. Espero que traga os seus personagens consigo. Esse tal de Marlon eu conheço de algum lugar. Tanto quanto o excomunista Ricardo e o artista Pepé. Quanto à viúva, não direi nada – por mero dever de discrição. Na verdade, eu tinha uma certa urgência de dizer a Neumanne quanto é importante esse seu romance para a literatura brasileira. Mas aí veio Wilson Martins, valor maior alevantando-se, e disse primeiro. Arrebatou-me o gosto de proclamar. Mesmo assim, ainda há muito por estudar nesse Silêncio do Delator. Talvez seja a primeira obra da pós-modernidade brasileira. Se for verdade que a História hauriu o seu derradeiro suspiro, no sentido puramente hegeliano da expressão, o romance de Nêumanne é a vela acesa refletindo o brilho do olhar moribundo. 64


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

A estética literária banha-se nas águas da contemporaneidade. É inevitável. Quando Raskólnikov desfecha aquela machadada contra a velha usurária que o extorquia miseravelmente, todos os valores da velha Rússia czarista sangram das veias daquela mulher. Neumanne apropria-se de todas as perversões e quizilas que infestam a alma nacional para construir esse monumento que é O Silêncio do Delator. Esse espaço da pós-modernidade é seu. Um espaço povoado da magia de um poeta inveterado, “cuja linguagem obedece mais ao ritmo do que à melodia”, como disse um dia Nelly Novaes Coelho de usa poesia. [«]

© Correio da Paraíba, sexta-feira, 7 de janeiro de 2005

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

ZÉ VEM AÍ Martinho Moreira Franco

Falta acertar a data, mas José Nêumanne Pinto virá a João Pessoa lançar o seu título mais recente, O Silêncio do Delator, editado pela Girafa, de São Paulo. O livro tem 541 páginas e figura no site de busca Glooge com um número ainda maior de registros. Periga figurar no Guinness Book como obra literária de autor paraibano mais citada na internet. Bem merecido, segundo quem já devorou o volume, a exemplo de Ipojuca Pontes, que escreveu bela resenha para o suplemento de cultura do jornal Gazeta Mercantil, do qual é habitual colaborador. Como a coluna é suspeita com relação a Ipojuca, segue trecho da resenha de Affonso Romano de Sant'Anna para o Prosa & Verso de O Globo: "Quem viveu os míticos anos 60 vai ler com prazer 'O silêncio do delator', de José Nêumanne. Usando a técnica de fragmentos e fazendo falar um narrador já morto, de maneira leve e irônica refaz uma época que outros trataram apenas pateticamente. No meio dessa ficção que se faz hoje cheia de balas, assassinatos, perversões e morbidez, chega a ser um alívio ler esse livro. É como ouvir uma lépida canção de bossa nova depois de um tango pesado. "Lembram-se do filme 'Invasões bárbaras', de Denys Arcand, aliás mencionado no livro? É o que há de mais próximo para lhes passar a idéia do livro de Nêumanne que realizou, de modo original, aquilo que tantos tentaram - 'o romance de minha geração"'. Que venha logo o Zé!

© Copyright O Norte, João Pessoa, Domingo 14 de novembro de 2004

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

ANOTAÇÕES DE LEITURA Nei Leandro de Castro

No Brasil, os últimos dez anos não têm sido marcados por grandes lançamentos literários. Nossos romancistas consagrados não estiveram à altura de suas obras anteriores. Rubem Fonseca continuou escrevendo primorosos contos (primorosos até quando trata de temas escatológicos) e parece que deixou de lado seus planos de romance. Ultimamente, por onde anda Milton Hatoum, o excelente autor amazonense de “Relato de um certo Oriente” e “Dois Irmãos”? Faz tempo que não escreve. João Ubaldo Ribeiro, em “A Casa dos Budas Ditosos”, pôs na boca de uma velha senhora – epa! – uma narrativa de causar chiliques em todos os congregados marianos do mundo. O mérito principal desse romance é o seu erotismo deslavado, sem comedimento, sem meias palavras, o que não é tradição na literatura brasileira. A regra estabelecida no país tem sido condenar por pornografia, escantear, não incluir na Idade Mídia, autores de poesia ou prosa com forte traço de erotismo.

Há pouco mais de dez anos, Chico Buarque estreava como romancista. Nossa! Seja dito o óbvio: Chico é um grande compositor. Muitas vezes, ultrapassa a condição de letrista e é, mesmo, um poeta. Suas canções serão cantadas pelo tempo afora, como as de Noel Rosa. O que nunca consegui entender foram as escapulidas do compositor pelos terrenos baldios da literatura, particularmente do romance. A primeiro experiência dele, “Estorvo” (1991), não foi promissora. Nem houve autocrítica, porque depois viria “Benjamin”, com o mesmo grau de dificuldade de leitura, com as mesmas falhas de narrativa. Como aprendiz de romancista, Chico causa perdas e danos principalmente a ele mesmo, à medida que larga as suas letras, a sua música, a sua poesia, e se enfurna para escrever mais uma obra não digna de sua extraordinária criatividade. Se “Budapeste” é um bom romance, não sei nem vou procurar saber. Prefiro continuar ouvindo obras-primas da MPB, como “Roda-viva”, “Vai trabalhar, vagabundo”, “Morena de Angola”, “Partido alto”, “Sabiá” e “Retrato em preto e branco” (com Tom Jobim) e tantas outras canções que têm a marca de um dos mais férteis e talentosos compositores brasileiros de todos os tempos.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra De repente, não mais que de repente, surge um romance para sacudir a modorra, balançar o coreto, impor-se nessa entressafra como um grande acontecimento. Quem ainda não leu “O Silêncio do Delator”, de José Neumanne (editora A Girafa), largue tudo e vá comprar o seu exemplar na livraria mais próxima. Trata-se de um livro de leitura indispensável a todos aqueles que queiram conhecer os anos 60, ou voltar àquela época, e ver/rever de um ângulo privilegiado o que ocorreu de importante – na música, na literatura, na política brasileira, na política mundial – de lá até os dias atuais. É um romance ambicioso (no bom sentido), criativo, inteligente e, como se não bastasse, de uma leitura agradabilíssima. A ação do “Silêncio do Delator” gira em torno de um velório. Sete vozes, inclusive a voz do morto, conduzem a ação por evocações que levam a tramas, paixões, amores frustrados, militância política, intenso erotismo, enganos e desenganos, tudo sublinhado pelas músicas de Bob Dylan e dos Beatles. Esse livro nos dá a impressão de ser resultado de anotações diárias, desde o início dos anos 60 até hoje. A massa de informações é compacta, impressiona. Às vezes, o autor se vale da auto-ironia, quando julga que está carregando nas tintas da erudição ou se desviando para um estilo pomposo. Esse romance, que surge como um dos mais criativos e bem escritos no Brasil, nos últimos dez anos, é um grande prazer de leitura ao longo de suas 541 páginas, divididas em 26 capítulos. Resta torcer para que José Nêumanne volte a ousar, volte a nos dar outros romances como esse. © Tribuna do Norte. Rio Grande do Norte, sexta-feira, 02 de fevereiro de 2005.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra O RUÍDO DA IRONIA

O Silêncio do Delator manifesta o ideal de Luciano : brincar com as coisas sérias. Jornalista importante, o autor lanceta o hipócrita tumor ético com a sátira que ordena O Silêncio do Delator. Com escrita límpida e profunda, Nêumanne silencia os tagarelas que infestam o enorme cemitério chamado Brasil.

Roberto Romano © Cult 92 (junho 2005) páginas 44-46.

Tempos de crise são férteis em mutações éticas. Costumes, valores arraigados e preconceitos idem, desaparecem em aluviões de palavras nas cloacas da alma. O desgaste não se realiza de modo automático. Para dissolver certezas carcomidas é preciso muito humor ácido, ousadia. A sátira translúcida nasceu com Luciano de Samosata. Nela, o riso abala os arrogantes tolos e desonestos que infernizam a sociedade. Na obra prima de Luciano, o Diálogo dos Mortos, Menipo é empurrado pelos habitantes do Hades para retornar ao mundo dos vivos. A sua missão é rir dos tolos que se imaginam poderosos e importantes. A técnica do estranhamento, equivocadamente atribuída a Bertold Brecht (mesmo Hölderlin a usou, com resultados espantosos) é invenção de Luciano. Que o morto fale aos vivos e deles ria, isto produz um estranhamento nos ouvintes e leitores. Tal experiência muda o olhar das pessoas. Elas percebem que sob a “normalidade” cotidiana as coisas são esquisitas, nada é tão racional quanto imaginavam. A cultura não teria o mesmo rosto sem Erasmo, Morus, Rabelais, Voltaire, Montesquieu, Diderot, Swift, Joyce. Todos eles seguiram Luciano. No Brasil, Machado de Assis praticou o estilo lucianesco. A escrita de Luciano é aparentemente simples e se deve à arte que na Renascença será chamada sprezzatura. A simplicidade engana, como o próprio estilo satírico que fala de coisas sérias aparentando atitude hilária e vice versa. A sátira parece algo menor no mundo espiritual, mas sua força corrosiva abala todas as crenças. Ela acelera o fim das religiões e dos regimes políticos sem que os piedosos percebam. Basta rir de um dogma, líder ou massa fanatizada, para iniciar a sua queda. Os tiranos proíbem o riso. A Inquisição, os estalinistas e os nazistas, operaram nos espaços da seriedade. Rir é subversão intolerável.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Essas lembranças surgem na leitura dos biscoitos finos que José Nêumanne nos oferece com O silêncio do Delator (São Paulo, A Girafa, 2004). O romance radicaliza experimentos anteriores com a língua, os personagens, a música e o silêncio. Aliás, o próprio silêncio, segundo o Sobrinho de Rameau, “é colorido pelos sons”. A ondas sonoras que se encontram, interpenetram e seguem rumos diferentes em O Silêncio do Delator geram narrativas caóticas nas quais percebemos a voz do louco e a voz do escritor que ironiza os emburrecidos e embirrados revolucionários da política, do sexo, da escrita. A estrutura do livro recorda muito Jacques o Fatalista onde o verbo (numa caricatura blasfema do Pentecostes) sopra onde quer e mata os lugares comuns dos bem pensantes. Nêumanne, com o velório de ritos e oficiantes absurdos, dissolve ao redor de um caixão que encerra o Nada as caras hipócritas dos que se imaginam anjos de justiça. Estes pregaram ética, moral, bondade. Instalados no poder, debocharam das algaravias antes cometidas e se refestelaram na vidinha antes denunciada. Eles “chegaram lá”. Não sabem que estão mais do que mortos. Seus cadáveres, presos aos lambões da memória coletiva, exibem farrapos de sentido lógico. O riso de Nêumanne também dissolve os naturistas (os filhotes de Rousseau) que pregavam a liberdade sexual e o fim das repressões (eles mantiveram o volume de Eros e Civilização virgem de qualquer leitura) e das normas. “A senhora Swan é toda uma época”, diz um personagem de Proust. Em O silêncio do delator o choque dos tempos é mais cruel porque nenhum personagem pode ser apontado como símbolo. Sumiram os símbolos, sobraram corpos insignificantes. O núcleo do romance, no meu entender, encontra-se na fala do morto: “O que mais me perturba, meu filho amado, não é tanto ir embora deste mundo vão, que você sempre execrou. Mas a sensação de que este não é o velório de um homem só. É o velório de uma geração inteira, o sepultamento do sonho desta turma de gente bem-intencionada, mas que não soube cuidar direito das próprias intenções, por melhores que fossem”. Tal diagnose da geração “militante” é respondida na fala do louco : “Um dia, você vai ficar sabendo que nós todos somos um só. E a vida flui com você ou sem você”. Bons fundamentos tinha Michel Foucault ao dizer que a loucura é “raiz calcinada do sentido”. Na Stultifera navis somem as individualidades, todos são igualmente insignificantes. As “traduções” de marcos mundiais da cultura para os nossos tempos são notáveis no romance, todas escondidas por espantosa sprezzatura que engana leitores não habituados à literatura antiga. As formas clássicas assumidas por Nêumanne ajudaram os homens do passado a refletir sobre o teatro e as gerações que se disputam o espaço vital. “Você pode alegar”, diz o morto ao seu 70


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra filho, “que no fundo toda guerra, inclusive a Guerra Fria, tinha como objetivo principal o espaço vital. Até a guerra entre as gerações de certa forma não deixa de ser uma disputa por um lugar ao sol. Por isso, minha morte não deixa de ser uma retirada de cena para que você e os filhos que você tiver e os filhos que eles gerarem ocupem o espaço que antes eu ocupava. C´est la vie, mon fils. A morte também é a vida, amado filho meu”. Tais linhas retomam os primórdios da nossa ética. Elas recolhem as doutrinas das Leis platônicas (I, 644d,e). Mas Santo Agostinho fornece o trecho que mais se parece aos enunciados de Nêumanne: “No mundo, diríamos que os filhos dizem aos pais: ´deixem esta terra, nós também queremos desempenhar a comédia!´. Pois toda esta vida, que nos conduz de tentação a tentação, é apenas uma comédia do gênero humano”. Agostinho é citado por Ernst Curtius (A literatura européia e a Idade Média Latina) num livro que recolhe fórmulas decisivas da cultura ocidental. Nêumanne recorre a experimentos estilísticos com ironia dissolvente. Sua memória cultural é imensa e polifacetada. Ela vai da música ao teatro, deste à poesia e aos romances do século anterior, tudo informado por um domínio espantoso da história. O silêncio do Delator pode ser explicado como a Fenomenologia do Espírito impiedosa de nossos dias. Numa coluna como esta, dedicada à ética, vale indicar a sua leitura. No livro são dissecados os nossos costumes, num exorcismo contra os zumbis alojados na sociedade e nos aparelhos estatais, nas igrejas, na imprensa e nas academias. A sprezzatura de Nêumanne evidencia uma refinada bricolagem de gêneros, estilos, doutrinas, visões de mundo. Cada página continua o trabalho pictórico e sonoro da anterior mas exibe, como num caleidoscópio fascinante, novas formas e conteúdos. A graça de sua escrita encontra-se na reunião das dissonâncias e na síntese de imagens literárias que antes pertenciam a vários gêneros. Nêumanne, nas dobras de uma escrita ao mesmo tempo séria e álacre, aplica em nossa língua a lição de Horacio do conúbio entre o utile e o dulce. E mais precisamente: ele retoma as fantásticas realizações de Luciano e reatualiza para a cultura moderna os sorrisos e sofrimentos das pobres marionetes que imaginam, como Pinóquio, serem homens nas trilhas do Eterno. O Silêncio do Delator manifesta o ideal de Luciano : brincar com as coisas sérias. Jornalista importante, o autor lanceta o hipócrita tumor ético com a sátira que ordena O Silêncio do Delator. Com escrita límpida e profunda, Nêumanne silencia os tagarelas que infestam o enorme cemitério chamado Brasil.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra TESTEMUNHO DE UMA ÉPOCA, ESPELHO DE UMA GERAÇÃO Ronaldo Cagiano

Quem não tem saudade dos antológicos anos da década de 1960 em que pontificaram os Beatles e os Rollings Stones? Época em que Paris era uma festa para a resistência política às ditaduras e os movimentos sociais arrastavam multidões. Anos em que uma nova linguagem expressava o descontentamento e a indignação, em que as superpotências ensaiavam um confronto nuclear, surgia uma vanguarda no cinema, na arquitetura, na música, na literatura, no teatro e nas artes plásticas. Uma inspirada geração de criadores, pensadores, filósofos e intelectuais, desafiava os cânones e se impulsionava para abalar as estruturas estéticas, políticas, conceituais e morais. Estava em voga a Guerra Fria, motivada pelo auge do comunismo, com o Vietnã e Cuba impondo dura humilhação aos Estados Unidos. A música de protesto em marcha, os Beatles empunhando a bandeira do pacifismo, 1968 na França e no Brasil, Woodstock e a liberdade de expressão, o culto ao prazer e às drogas e as palavras de ordem do “make love, not war”. Cultuavam-se o cinema de Fellini, Truffatu, Godard, Glauber Rocha e Buñuel, o teatro de Nelson Rodrigues e Augusto Boal, os grandes festivais de música e a crença na revolução armada, em Che, Fidel e outros camaradas. O homem invade a lua, a bossa nova traz um novo alento à música brasileira; o AI-5, um balde d’água na liberdade e nas garantias individuais; a censura recrudesce, o mundo em ebulição, o existencialismo em moda, filosofias vicejando em todo o canto, o mundo acreditando numa saída. Os ingredientes desses anos de rebeldia, insubmissão e efervescência estão mapeados no livro “O silêncio do delator” (Ed. A Girafa, 2005, SP, 544 pgs.), do jornalista e escritor José Nêumane Pinto, numa obra que funde memória político-social e ficção. Romance testamentário de quem viveu os legendários últimos anos de um século em agonia e desencanto, época de veloz escalonamento de valores, mudança de comportamento, debates ideológicos e implosão das velhas estruturas de pensamento, que deram origem a uma cultura que influenciaria definitivamente as décadas seguintes. Com um texto que funde a linguagem ágil do jornalismo com a densidade de um texto ficcional, o paraibano José Nêumane Pinto, cuja bibliografia inclui livros de poesia, reportagem, romance e crônicas, faz um preci(o)so trajeto por um período que é um divisor de águas na história do Brasil e do mundo, um tempo profético, antecipador do próprio caos e dissolução por que passa o

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra mundo de hoje, globalizado e tecnológico, mas menos poético e provocativo que aquele. O livro, fiel aos acontecimentos, tem um vezo fragmentário, à luz de um ritmo e uma harmonia que perpassam todo a narrativa, com freqüentes alusões às musicas daquela época, em que os diversos tempos, lugares e acontecimentos se correlacionam, num plano simbiótico. Personagem principal da história, um certo Marco Antônio, tratado pela alcunha de Coelho, tem nos discos que fazem a cabeça da galera naquele momento o pretexto para introduzir os seus amigos no círculo das grandes novidades e discussões. Sujeito enigmático, coloca-se como um certo guru, incorporando a atmosfera instigante do período. Outro cenário se intercala: o velório de um desiludido professor universitário, João Miguel, em que ele narra as utopias e frustrações de uma geração que sonhava em mudar o mundo, pelas armas ou pelas drogas, e que se vê enterrada com ele. Um fluxo de consciência e de memória entremeia todo o romance, na cabeça do morto e na lembrança dos amigos nos momentos que antecedem ao sepultamento. Os fatos se sucedem como numa película e numa espécie de trânsito onírico entre o finado e os presentes, é aquele acaba conduzindo o fio da narrativa interferindo na elucidação dos fatos, na ordenação dos pensamentos, no encadeamento das referências e lembranças. As situações nos remetem ao ambiente nostálgico e delicado do filme “As invasões bárbaras”, em que um professor, acometido de um câncer em estágio terminal, reúne-se com os amigos dos tempos de faculdade e passa em revista aos seus anos e às suas ilusões, numa espécie de encontro de contas com a própria vida. Nêumane saiu-se bem ao fazer o balanço crítico de uma época, sem cair na clicheria ou no lugar-comum, evitando o panfletarismo, a exacerbação saudosista ou o viés sentimental muito comuns em literatura que visa resgatar a história a partir da vivência de quem as conta. É o registro sincero sobre um tempo que não se reproduzirá, um tempo em que a consciência se aliava a uma causa e se sabia por que empunhar bandeiras e lançar os gritos, algo de que carecem os que tentam levantar a batuta para comandar a orquestra da história atual. No plano da construção formal, o autor concede uma inovação ao dar aos vários personagens o nome de versos de uma canção de Caetano Veloso, tais como Voz do morto, Pés do torto, Cais do porto, Vez de louco, A paz do mundo, Atrás do muro, numa sutil referência a uma visão polifônica representada por uma época multifacética e conturbada. O silêncio do delator é um romance metafórico, formidável referencial para os que querem compreender a recente história do Brasil e do mundo. Uma obra que nos fala de uma realidade nua e crua: o enterro das utopias, a decrepitude dos sonhos, o fim das ilusões e o estabelecimento de uma nova ordem, impondo 73


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra o reinado do alheamento e da passividade, a prevalência de uma época de coisificação e etiqueta, em que o mercado é o grande deus, com seu terrorismo e seus fundamentalistas econômicos, que afastam toda a possibilidade de retorno ás utopias.

"O silêncio do delator", de José Nêumanne, lançamento da editora "A Girafa". diagramação de Alessandro Mussato, capa de Newton César, acaba de conquistar o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes da Academia Brasileira de Letras.

© Estado de Minas, MG, (sábado) 22.07.2005

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra FACULDADE GAMA E SOUZA INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO COORDENAÇÃO ACADÊMICA DO CURSO DE LETRAS (Curso de Letras com Habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas)

OS DOIS JOSÉS E A SEARA DE REFERÊNCIAS Por: Rosiane de Almeida Silva (Graduanda em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa)

Rio de Janeiro 2° semestre / 2007 SILVA, Rosiane de Almeida. Os dois Josés e a seara de referências. 2007. 55 f. Monografia (Graduação em Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa). Coordenação de Letras, Faculdade Gama e Souza. BANCA EXAMINADORA: Orientador Professor Mestre Aderaldo Luciano dos Santos (FGS) Professora Doutora Izabel Cristina Augusto de S. Faria. (FGS / SEE-RJ) Professora Mestre Cristina Alves de Brito (FGS – SEE-RJ) Professor Mestre Antonio José Niddan Pereira (FGS)

FACULDADE GAMA E SOUZA INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO COORDENAÇÃO ACADÊMICA DO CURSO DE LETRAS (Curso de Letras com Habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas)

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

OS DOIS JOSÉS E A SEARA DE REFERÊNCIAS Por: Rosiane de Almeida Silva (Graduanda em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa)

Monografia entregue ao Orientador, Professor Mestre Aderaldo Luciano dos Santos e à Coordenação Acadêmica do Curso de Letras, como pré-requisito para obtenção do Certificado de Licenciatura Plena em Letras.

Rio de Janeiro 2° semestre / 2007

Para uma alma cega e iluminada que sempre acreditou... Sim, esta é a palavra ACREDITAR: Ao longo das aulas, em cada disciplina, ao longo das aulas, ao término de cada período, de cada ano... e, acima de tudo, frutíferas nas conversas nos corredores da Gama e Souza. ... Dedico essa lapidagem a você, meu Mestre, Adercego, Aderaldo Luciano dos Santos. “O ofício de um poeta é de revolver a palavra como o lavrador revolve a terra, germiná-la como faz o semeador e vê-la brotar até se tornar uma árvore frondosa e cheia de frutos”. José Nêumanne Pinto “Quem de palavras tem experiência sabe que delas se deve tudo esperar”. José Saramago

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Quero deixar aqui registrados meus agradecimentos a minha seara. Obrigada por tudo, vocês foram essenciais para minha formação: · A minha semente: Deus, meus pais Anilton e Creusa, meus irmãos, avós e sobrinhos; · Aos guerreiros do bom combate: Amilton, Raquel, Rosana, Silvia e Suzana; · Aos patriotas: Cristina Alves de Brito (pela correção de meus erros, pelas gargalhadas e por não ter dado “mole” mesmo), Izabel Cristina Augusto de Souza Faria (por ser uma prova concreta do que o estudo pode proporcionar ao discurso), Eliana da Cunha Lopes (pelo Latim, pelo conhecimento de mundo, pelo abraço mais puro e desinteressado que já recebi) e a Gladson Octaviano Antunes (pelo grande exemplo de inteligência e simplicidade). · A minha visão, meu coração, na tortura e na paixão, a purificação...: Meu orientador de vida Aderaldo Luciano, por ter delatado o escritor José Nêumanne Pinto e a partir dele ter encontrado, no silêncio, a essência de uma verdadeira poesia.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

SUMÁRIO: APRESENTAÇÃO 1. INTRODUÇÃO 2. NASCE NÊUMANNE... CAI UM PRECONCEITUOSO PARADIGMA 13 2.1 Nêumanne é Poeta! 3. APRESENTANDO A SEARA DE SARAMAGO 3.1 O outro José 3.2 A Intertextualidade 3.3 Visão esquematizada das referências no poema 3.3.1 Relato dos traços intertextuais e citacionais na poesia 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E ELETRÔNICAS 6. ANEXOS

APRESENTAÇÃO: Nas Instituições de Ensino Superior, um dos elos fecundantes do conhecimento é a Monografia. Todo trabalho acadêmico sério e cientificamente comprometido gera novas contribuições que continuam estruturando o saber e o desenvolvimento da humanidade. Assim, a presente pesquisa monográfica vem demonstrar o grau de habilitação adquirida, desenvolvida a partir de um aprofundamento temático, construída através de inúmeras consultas bibliográficas especializadas. Após mergulhar inúmeras vezes na ignorância, na não-confiança, enfim, o sonho da realização deste trabalho resultou em um suculento fruto. Mas, devemos logo informar que esta produção científica não é fruto de um ato isolado. Sua essência se encontra na semente, ou seja, nas germinadas aulas de Teoria dos Significados, que originou o interesse pelo desenvolvimento deste assunto que trazemos para leitura e julgamento da Banca Examinadora. Essa disciplina é oferecida na grade curricular obrigatória do Curso de Licenciatura Plena em Letras da Faculdade Gama e Souza. Estuda o signo e as teorias gerais da linguagem, aprofundando o estudo dos sistemas, códigos e 78


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra convenções do signo, semiótica e semiologia, o signo no centro do mundo e das relações, o leitor perante o signo, signo e leitura. Não por coincidência, esta disciplina foi ministrada pelo mesmo orientador da elaboração deste trabalho, o Professor Aderaldo Luciano dos Santos, Mestre em Ciência da Literatura. A contribuição dessa disciplina para o desenvolvimento deste trabalho ocorreu no dia 13 de março de 2006. Neste dia, foi elaborado um breve estudo sobre o poema A Seara de Saramago, do escritor José Nêumanne Pinto, que um ano depois, virou tema para elaboração deste presente estudo. Este poema é um típico texto no qual abunda a intertextualidade. Nela se encontram referências a obras que contribuíram para o enriquecimento de nosso acervo literário e para evolução da nossa língua e do nosso povo, que a fala. Em especial, como pode ser visto no poema, há um destaque referencial ao escritor José Saramago e a sua obra Memorial do Convento. Nela se apresentam características de alguns personagens tecidos no enredo do escritor português. Embasado nesta ótica, a presente pesquisa monográfica vem “delatar” traços intertextuais e citacionais estabelecidos no poema, exaltando também, a presença de José Nêumanne Pinto na Literatura Brasileira, como escritor e poeta. voltar ao sumário 1.

INTRODUÇÃO

Esta língua é minha semente (...) Esta língua é meu berço, esta língua me conhece, esta língua é meu caixão. (NÊUMANNE, 2002:70) A Língua, acompanhando-nos do nascer até a morte, é um instrumento de comunicação e expressão dos sentimentos cuja ferramenta mais utilizada é a palavra. As palavras, é claro, têm um grande valor residindo naquele sentido guardado quando são enunciadas em um determinado contexto, assumindo assim, variadas formas de imagem e representação. E através da função poética da linguagem, elas abrem caminho para uma possibilidade muito mais plural de significações. Passam da convivência à conivência, tornando-se cúmplices e multiplicando-se. 79


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra A Arte de usar as palavras criando com elas formas sempre diferentes, chamase Literatura. Representa o conjunto de obras escritas com finalidade artística. De acordo com Afrânio Coutinho “A Literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade criada através da língua para as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e nova realidade.” [1] A Literatura é uma forma bem específica de manipular os signos lingüísticos, que somente alguns encontram, pois fogem à cristalização cotidiana das linguagens falada e escrita. Através dela se faz necessário decifrar seu universo, mecanismo, estilo, gênero, ideologia e idiossincrasias, para não criarmos conclusões equivocadas. Toda a obra literária, independente de sua forma ou conteúdo, percebe-se, do artista literário, uma ideologia, uma postura diante da realidade e de seus desejos. A exemplo disso, temos a Poesia, uma forma mais concentrada da expressão verbal, ligada diretamente à transmissão de emoção. Ao longo do tempo, os poetas e os filósofos preocuparam-se em definir a poesia[2]: para o poeta espanhol García Lorca "Todas as coisas têm seu mistério, e a poesia é o mistério que todas as coisas têm". O poeta francês Mallarmé, defendendo uma outra concepção, afirmou que "a poesia se faz com palavras, e não com idéias". E, segundo T. S. Eliot, "aprendemos o que é poesia lendo poesia". Mas o que sabemos, a poesia está intrinsecamente ligada à música. Ela é um gênero lírico cuja origem vem da “lira”, um instrumento musical que acompanhava os cantos ditirâmbicos na antiga Grécia. Este fato revela sua primeira fase na Cultura Grega, na qual ela era apenas uma enunciação oral, cujas frases curtas eram pronunciadas dentro de um ritmo e cujas palavras soavam agradavelmente aos ouvidos. Contudo, nesta fase inicial, já existia um objetivo muito claro, a necessidade de preservar a cultura. Para Nêumanne: Poesia é tentação (adjetivos, prazeres da carne), Pronomes, tempero e sabor, Verbos, alívio à dor). (NÊUMANNE, 2002:69) A poesia é realmente um alívio à dor, onde o artista sente-se desobrigado das imposições da prosa como contar história, compor personagens, reproduzir ambientes, etc. É uma história transfigurada na verdade do tempo não-datado. Contemporaneamente, a poesia, por vários motivos, se caracteriza por novos entornos. O que vale é um grau mais alto de abstração e interação lógica com o intelecto. Tudo é significado e, em cada estrofe, cada verso, cada palavra, pode-se de tudo esperar. Ela retêm, entretanto, como qualquer outro texto, três 80


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra níveis: o textual, o contextual e o intertextual. Este último reflete o lastro cultural de quem escreve e de quem lê. Ele é resultado de leituras e vivências valiosas e variadas. O poema A Seara de Saramago, de José Nêumanne Pinto apresenta um elevado nível intertextual. Os escritores citados no poema têm suas obras representativas dos valores nacionais, mas superam a dimensão de nacionalidade, assumindo valores universais do homem e de sua capacidade de criação artística, em qualquer tempo, em qualquer lugar. Isto é, basicamente, a que se propõe este presente trabalho, que sem sombra de dúvidas, servirá como apoio e desenvolvimento de outros, por se tratar de um dos poemas mais instigantes e bem-sucedidos de Nêumanne. Seguiremos orientados por Adelaide Lessa: Num dia de luz mais forte que os outros, inventou o poeta a palavra mais clara. E pôs-se a cantar, afluente de tudo, que tudo faz parte de um único verso![3] voltar ao sumário 2. NASCE NÊUMANNE... CAI UM PRECONCEITOSO PARADIGMA

A Literatura obedece às leis inflexíveis: a da herança, a do meio, e do momento. Hypolite Taine José Nêumanne Pinto é um paraibano nascido na pequenina cidade de Uiraúna, em 18 de maio de 1951, no Vale do Rio do Peixe, alto sertão paraibano, nos limites entre a Paraíba, o Rio Grande do Norte e o Ceará. Primogênito de sete filhos de José de Anchieta Pinto e Raimunda Ferreira Pinto, que muito devota do cardeal inglês Newman, quis registrar o filho com este nome, mas uma escrevente do cartório de registro civil modificou o nome para Nêumanne. Casou com Regina Coeli e com ela teve três filhos: Vladimir, Clarice e Cecília, e um neto chamado Pedro e sua primeira neta que está para nascer em março de 2008. Casou-se pela segunda vez. Iniciou a carreira como jornalista em 1968, 81


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra como crítico de cinema e repórter de polícia no Diário da Borborema em Campina Grande, Paraíba. Rompeu as fronteiras do seu Estado, tornando-se um influente jornalista e, editorialista do Jornal da Tarde, articulista de O Estado de São Paulo, comentarista de rádio na Jovem Pan e televisão no Jornal do SBT. Foi seminarista e, nessa fase, gostava de apreciar grandes obras literárias, o que lhe deu base em sua carreira profissional. Nêumanne é animado e cheio de humor. Atribui sua paixão pelas Letras e Jornalismo às histórias que ouvia nas noites de luar no sertão paraibano de Dona Mundica, sua mãe, que nunca gostou de ser chamada pelo nome próprio Raimunda. Ou também, quando ela dizia versos de Castro Alves, ou quando ele mesmo lera Augusto dos Anjos no quarto dos fundos da casa da Rua Rui Barbosa, em Campina Grande, e Manuel Bandeira, comprados na livraria Pedrosa. Herdou a miopia de seu avô, pobre camponês, porém muito intelectual e apaixonado por poesia. Conforme já foi dito, Nêumanne nasceu na Paraíba e foi educado em Campina Grande. Nos primeiros anos da década de 70, mudouse para São Paulo. Essa sua origem nordestina é refletida em seus laços de amizade, seu gosto e em sua forma de vida e sua certeza íntima. Em seus textos, aparecem sempre elementos próprios de sua terra, seja na linguagem, seja no ritmo. Esta é a sua forma pessoal de exaltar o seu amor por suas origens, fortalecendo suas raízes históricas, tornando-se assim, homem de seu tempo. Além disso, Nêumanne é um grande escritor, porém sua presença tem sido pouco notada na Literatura Brasileira. Talvez isto seja decorrente de um préconceito que permeia muitas mentes, o de um jornalista não poder ser um bom escritor. Contudo, sua literatura derruba por terra este preconceituoso paradigma. Nêumanne, como jornalista sempre foi profissional, rígido, até obsessivo na busca da verdade, e revela sua alma numa literatura classificada por muitos como seca e exuberante. Seca em relação a sua estrutura e linguagem, e exuberante em temática e referências. Além de três livros de poesia, Nêumanne tem mais sete publicados, sendo dois romances e quatro de reportagens e ensaios políticos: Mengele a Natureza do Mal Romance-reportagem 1985 As Tábuas do Sol Poemas 1986 Erundina, a mulher que veio com a chuva 82


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Perfil Biográfico 1989 Atrás do Palanque Bastidores da Eleição Presidencial de 1989 Reportagem 1989 Reféns do Passado Coletânea de Artigos e Ensaios Políticos Artigos e Ensaios 1992 República na Lama Uma tragédia Brasileira Reportagem 1992 Barcelona, Borborema Poesia 1992 Veneno na veia Romance Policial 1995 Solos do Silêncio Poesia reunida 1996 O Silêncio do Delator Romance 2004 Esse último, o Silêncio do Delator, em 2005 foi considerado pelos acadêmicos, como melhor livro de 2004, tendo por esse motivo ganhado o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes da Academia Brasileira de Letras. Segundo a observação do próprio prêmio, esse livro inovou o romance contemporâneo, tanto na temática quanto nas técnicas narrativas. Nêumanne sempre sonhou em escrever este livro e publicá-lo. Guardou por anos o delato desta geração, que se arriscou em busca de seus ideais, embora com conseqüências desastrosas. Em sua narrativa um morto, durante todo o velório conta, canta, grita, denuncia, reivindica, conclama, exorciza etc. Na narrativa Nêumanne procura reconhecer todos os nomes, resgatar todos que se destacaram, ou procuraram de alguma forma fazer isto, mostrando-se às vezes ser um homem intratável, outras cordial, outras com a doçura de um menino.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Contudo, apesar de seu caráter ficcional, o livro é também de caráter enciclopédico, pois faz um panorama totalmente coerente da década de 60, e mais do que isto, retrata a caráter do homem nesta época em busca de sua identidade. Também, é válido ressaltar, seu caráter autobiográfico, que se mostra claro durante todo o entrelace da narrativa. Quando o narradorpersonagem toma voz e apresenta seu ponto de vista apresentando grandes vestígios de contato com os pontos de vista do escritor. Assim, seus livros revelam a sua trajetória de vida, a maturidade: ...a poesia que não se faz só com palavras, como continua a supor tantos inocentes inúteis, mas, sobretudo com vivências capazes de merecer e de gerar as palavras certas. Talvez nem todas as palavras contidas neste livro tão pouco palavroso sejam as certas, mas todas tiveram tempo suficiente para amadurecer antes da colheita. (José Paulo Paes, in. Nêumanne, 2002:31) Como vimos, Nêumanne, um sertanejo humilde, de vida simples, não se acomodou, apesar de todas as adversidades. Logo ganha espaço, como um talentoso filho do sertão, que deixou para trás sua terra amada e venceu na cidade grande, mantendo firmes seus valores, demonstrando assim, o seu caráter e sua riqueza como ser humano. Cada vez mais se destaca como um conceituado jornalista, escritor e um fenomenal poeta, como outro que cantou: Cá no sertão eu infrento A fome, a dô e a misera. P’ra sê poeta divera Precisa tê sofrimento… (Cante lá que eu canto cá). Patativa do Assaré voltar ao sumário

2.1 Nêumanne é Poeta! Poética I Que é a Poesia? uma ilha cercada de palavras por todos os lados. II Quem é o Poeta? 84


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra um homem que trabalha o poema com o suor do seu rosto. Um homem Que tem fome Como qualquer outro homem. Cassiano Ricardo[4] José Nêumanne Pinto é um grande poeta. Como já foi dito, ele publicou vários livros, sendo três de poesia: As Tábuas do Sol (1986), Barcelona, Borborema (1992) e Solos do Silêncio (1996) que apresenta toda a sua poesia reunida. Grande é o seu conhecimento sobre a produção poética brasileira, isto fez com que fosse por ele organizada uma antologia, Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século. Como sabemos, um antologista, embora trabalhe com material alheio, pode tornar-se um autêntico criador. Escrevendo de modo indireto a história de uma literatura constrói uma obra nova e original. A antologia preparada por Nêumanne recebeu muitas críticas e elogios. Ela resultou em um trabalho intencionalmente eclético e, com intuito mercadológico, ofereceu um número plural de poetas e poemas, para satisfazer todos os gostos. Sua poesia resultou em um fruto midiático, lançamento de um CD de poesia – As Fugas do Sol. Este CD é uma coletânea que reúne 30 poemas de seus livros de poesias e alguns inéditos, lidos pelo próprio Nêumanne, e com trilha sonora original composta pelo maestro Marcus Vinícius de Andrade, um amigo de infância. Desta forma, podemos perceber como ele, o poeta, escolheu o ritmo de cada verso, de cada estrofe. A poesia para Nêumanne não é uma opção, na qual uns podem querer, ou não, ser poeta, mas sim uma vocação, um talento. Ao escrever poemas Nêumanne diz que espanta todos os tormentos, sustenta a sua lucidez. Já ao ler, ele também os sente e se sintoniza como ser humano. Além disso, a sua terra Paraíba, “pequenina e heróica”, como é assim conhecida, é uma raiz que penetra fundo em sua poesia, que, de acordo com seu livro Erundina, a mulher que veio com a chuva (Nêumanne, 1989:82), é um vocábulo indígena de significado controverso. Uns consideram que significa “rio mau”, outros “rio caudaloso”, outros ainda “braço de mar” ou “braço que vem do mar”. Mas o mais interessante que relata este livro é uma afirmativa consciente que o narrador faz e que ninguém poderá negar é que, “... o Nordeste sempre foi e continuará sendo um verdadeiro banco genético, fornecedor de cérebros para o Brasil”. 85


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Nêumanne é um poeta que possui características próprias. Sua linguagem é pura, porém fatal. Revela sinais de sua personalidade, fértil em imaginação e em intertextualidade. É indiscutível seu talento e domínio da linguagem. Nêumanne é um autêntico laboratorista da linguagem. Vejamos: (...) Entre o fazer e o ver, ação e contemplação, escolhi o ato de palavras: fazê-las, habitá-las, dar olhos à linguagem. A poesia não é verdade: é a ressurreição das presenças, a história transfigurada na verdade do tempo não datado. (NÊUMANNE, 2002:225) Nêumanne escolheu não somente o ato das palavras, mas também o ato de poetar sobre aquilo que vive, que sabe, pensa e sente. Prova disso, é o seu poema A Seara de Saramago – um hino que glorifica a Língua Portuguesa, reverencia Saramago e uma genealogia de escritores nela mencionados.

3. A SEARA DE SARAMAGO

(...) Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra. (...) Carlos Drummond de Andrade Os versos acima são do poema Procura da Poesia, de Carlos Drummond de Andrade. Se encaixam perfeitamente na tipologia do poema de Nêumanne A Seara de Saramago, que possui mil faces secretas de significados, sob uma única face neutra, a do significante. Na Seara podemos encontrar o emprego de palavras com significados diferentes do usual, o que é óbvio em se tratando de uma característica fundamental da linguagem poética, que usa da linguagem figurada, das metáforas, para com isso, oferecer margens interpretativas várias. 86


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Os novos significados que o poeta atribui às palavras e às expressões revelam seu modo pessoal de ver o mundo e as coisas. E os bons poetas conseguem manter uma linguagem preenchida com grande significados, surpreendendo estudiosos da língua, com as suas associações. Dessa forma, como já foi dito, o poema A Seara de Saramago é um exemplo de tudo isto. Nela podemos encontrar um Nêumanne que sabe tirar do âmago os mais plurais significados das palavras e das frases. Ele faz associações perfeitas, criando associações densas e provocativas. E as referências intertextuais se incorporam sutilmente de modo que os sentidos originais se unem às novas conotações poéticas. Estas são características marcantes de seus poemas. No dizer de Ezra Pound: A Literatura não existe no vácuo. Os escritores, como tais, têm uma função social definida, que se torna relevante ou não, dependendo de sua competência como escritores. (POUND, 1997) Concluindo, a literatura de Nêumanne comprova sua competência como poeta, e seu grande conhecimento de Língua e Literaturas de Língua Portuguesa. Nêumanne mostra o seu amor pela Língua Portuguesa, criando um poema que representa tudo aquilo que acredita serem os grandes pilares da Língua, dedicando-a ao escritor que propagou a nossa Língua Portuguesa no mundo, o escritor luso José Saramago. Sentencia Nêumanne em uma poética pessoal: (...) Boa poesia..., é aquela que leva o leitor a identificar a própria emoção que o poeta sentiu, ao criar um determinado verso ou estrofe ou poema. (...) (NÊUMANNE, 2004:388) voltar ao sumário 3.1 O OUTRO JOSÉ Assim como muitos, José Nêumanne Pinto reconhece a força da literatura saramaguiana. Tanto é seu reconhecimento que ele deixa registrado em um de seus mais fenomenais poemas A Seara de Saramago uma verdadeira reverência ao grande escritor luso. José Saramago traduz a força e a vitalidade não só da Literatura Portuguesa para além das fronteiras de seu país, mas também da Língua Portuguesa. Primeiro escritor de Língua Portuguesa a ser agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, pelo conjunto de sua obra que compreende prosa (contos e romances), poesia e teatro, além de ensaios.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Saramago nasceu no dia 16 de novembro de 1922, na pequenina cidade Azinhaga, Ribatejo, ao norte de Lisboa. Tem suas origens no campo, mas com dois anos mudou-se com a família para Lisboa. Com cinco anos, ao entrar para a escola, descobriu um erro na sua certidão de nascimento. Segundo consta a sua biografia, um funcionário acrescentou ao seu registro, Saramago, logo virou seu apelido, principalmente por sua família Meirinho Sousa. Hoje Saramago é a sua marca e a identidade de um escritor que espalhou a Língua Portuguesa pelos quatro cantos do mundo. Muitos sabem que Saramago é um escritor autodidata, pois abandonou os estudos precocemente em virtude de dificuldades econômicas da família. Fez o curso profissional para serralheiro mecânico. Na fase adulta, passou por várias experiências profissionais. Foi funcionário público, jornalista e editor. Em 1969, filiou-se ao Partido Comunista Português, mas devido aos acontecimentos políticos na época, abandonou o partido e os jornais, passando a viver como tradutor de textos. Somente a partir do lançamento do romance Memorial do Convento, em 1982, é que passou a viver exclusivamente de Literatura. A partir de 1992, passa a morar em Lanzarotte, ilha do arquipélago das Canárias. Tornou-se um escritor ganhador de diversos prêmios, inclusive o Prêmio Camões em 1995. Mas, o mais importante foi no dia 8 de outubro de 1998, quando a Academia Sueca de Letras anunciou o Prêmio Nobel de Literatura, que pela primeira vez foi atribuído a um escritor de Língua Portuguesa. Este prêmio veio quando seu mais famoso romance Memorial do Convento completava dezesseis anos de lançamento. Saramago tinha na época 76 anos, mas aos 60 já tinha alcançado a notoriedade. Saramago é mundialmente lido, admirado e homenageado. Suas obras encontram-se publicadas nos seguintes países: Espanha, França, Itália, Reino Unido, Holanda, Alemanha, Grécia, Bulgária, Polônia, Cuba, União Soviética, Checoslováquia, Dinamarca, Israel, Noruega, Romênia, Suécia, Finlândia, Estados Unidos, Japão, Hungria, Suíça, Argentina, Colômbia, México, China, Turquia, Croácia e entre outros países. E como não poderia deixar, foi publicado também, no Brasil. Logo, a Língua Portuguesa agradece! voltar ao sumário 3.2 A INTERTEXTUALIDADE O significado de um novo texto afasta, afeta e redimensiona o significado de todos os outros. Marisa Lajolo 88


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

A intertextualidade é um elemento essencial e constitutivo do processo de escrita e leitura. Abrange as diversas maneiras pelas quais um dado texto depende do conhecimento de outros textos para seu entendimento. Então, nomeia-se intertextualidade os diversos tipos de relações que um texto mantém com outros textos, e que segundo Bakhtin: Cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros significados (1992:291). Segundo Julia Kristeva, criadora do termo: ... todo o texto é um mosaico de citações, de outros dizeres que o antecederam e lhe deram origem. (apud KOCH: 2006, 86). Inferimos, então, que todo o texto, assim como a poesia: “... toda a poesia que hoje é feita ou que virá a ser feita já foi feita. Somos apenas herdeiros!”, conforme as palavras de Ivan Junqueira. Com isso, é o nosso dever perceber o efeito de sentido provocado pelo deslocamento, ou transformação de “velhos” textos e o propósito comunicacional dos novos textos construídos. Apresentaremos, dessa forma, uma visão esquematizada do poema A Seara de Saramago de José Nêumanne Pinto para uma melhor percepção da intertextualidade e em seguida um breve discorrer sobre a mesma. voltar ao sumário

3.3 VISÃO ESQUEMATIZADA DAS REFERÊNCIAS DE LÍNGUA PORTUGUESA NO POEMA Os termos grifados e sublinhados encontram correspondência nos termos e explicações entre os parênteses. Esta ferramenta visa apontar os pontos intertextuais e citacionais empregados pelo autor na confecção do poema. A SEARA DE SARAMAGO (José Saramago) Esta língua é minha semente, machado de mulato do morro, (Machado de Assis - Origem) pátria de poeta lisboeta. (Fernando Pessoa - Patriotismo) Esta língua é minha visão, o sol do soldado caolho, (André Peralta – Personagem do livro Obras do Diabinho da mão furada, de António José da Silva. Foi baseado no desenvolvimento do Soldado maneta, personagem do Romance de José Saramago)

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra a mão do soldado maneta. (Baltasar Mateus, o Sete-Sóis – Personagem do livro Memorial do Convento – Romance de José Saramago). Esta língua é minha música, na palavra do padre pregador, (Padre Antônio Vieira) no pássaro do padre voador. (Padre Bartolomeu de Gusmão- Personagem também do livro Memorial do Convento – Romance de José Saramago) Esta língua é minha mulher tem cuidados de mãe no leito da amante. Esta língua é minha rosa, (Guimarães Rosa) tem perfume dos sertões gerais, (Obra: Grande Sertão Veredas) tem sabor de vinhos do Porto. (Fernando Pessoa – Vinho ligação com a festa de Santo Antônio) Esta língua é meu cavalo para subir cidades e serras, (Eça de Queiroz, Obra: A Cidade e as Serras) que a brisa do Brasil beija e balança. (Castro Alves Poema O Navio Negreiro)

Esta língua é fel com mel, cantigas a palo seco (João Cabral de Melo Neto, Poema A Palo Seco e Música de Belchior) de ninar o futuro Esta língua é meu coração, na tortura, na paixão e no sal amargo da purificação. (José Saramago - Obras)

Esta língua é jóia africana, (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe) ela caça a onça caetana, (Ariano Suassuna – Obra Ao sol da onça caetana) ela cruza a légua tirana. (Luiz Gonzaga)

Esta língua é fruto de meu ventre, mata sede de amizade, me arma nos bons combates. (Luís Vaz Camões – Obra Os Lusíadas - Canto I , e Apóstolo Paulo)

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Esta língua não é de viver, (Fernando Pessoa – Fragmentos e Pompeu, general romano, 106-48 a.C.) língua de navegar e de lamber e de dançar o tango argentino. (Manuel Bandeira – Poema Pneumotórax)

Esta língua é meu berço, esta língua me conhece, esta língua é meu caixão. (Augusto dos Anjos – Poema O Caixão Fantástico) voltar ao sumário

3.3.1 RELATO DOS TRAÇOS INTERTEXTUAIS E CITACIONAIS NO POEMA A intertextualidade no poema inicia-se logo no título A Seara de Saramago, a palavra “Saramago” nos remete ao escritor luso, a que chamamos “o outro José”, aquele ainda há pouco citado neste trabalho, José Saramago. Assim prossegue o poema apresentando todos aqueles que junto a Saramago, para o escritor Nêumanne, fazem parte da seara de Língua Portuguesa. Na primeira estrofe, no segundo verso, “machado de mulato do morro”, faz uma referência a Joaquim Maria, mas conhecido como Machado de Assis. Escritor considerado pelos críticos em maioria, “o maior escritor brasileiro de todos os tempos”. Mas não é isto que aqui vamos enfocar. Não é a sua vasta e variada obra, que abrangem romances como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quinca Borbas, Dom Casmurro, contos, crônicas, poesia, teatro, critica literária e teatral, mas sim sua origem. Machado de Assis foi desde cedo um desafiador de seu tempo. Nascido no Morro do Livramento, localizado no Cosme Velho, Laranjeiras Rio de Janeiro, em 21 de julho de 1839, onde morreu em 1908. Seu pai era brasileiro, mulato e pintor de paredes e sua mãe era portuguesa e lavadeira. Logo, era mulato e nasceu no morro. Viveu no meio de muita gente pobre e estudou apenas os primeiros anos em uma escola pública. Contudo, apesar de sua origem humilde, foi um autoditada, com talentos excepcionais. Por uma vontade firmemente determinada, teve seus méritos reconhecidos em vida, e aos 58 anos veio a ser eleito Presidente da recém-fundada Academia Brasileira de Letras, a também conhecida como Casa de Machado de Assis. “Estás sempre aí, bruxo alusivo e zombadeiro, que revolves em mim tantos enigmas.” 91


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra (Carlos Drummond de Andrade, no poema “A um bruxo, com amor” sobre a vida e a obra de Machado.). É este aí, Machado de Assis, bruxo do Cosme Velho, autor de obrasprimas, buscou sempre valores permanentes e universais, por este motivo sua obra não se assemelha aos seus primeiros anos, pobre e “mestiço”, nem a sua pátria, pois como podemos ver em seu ensaio “Instinto de Nacionalidade” (1873): (...) O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país... (...) Machado de Assis era mesmo homem de seu tempo, por este motivo seguia a tendência do seu tempo, mas o que não devemos esquecer é que ele era um humilde “mulato” que alcançou os mais elevados degraus da consideração social e consagração artística. Quanto ao 3° verso, “pátria do poeta lisboeta”, o poeta lisboeta a qual o poema se refere é um dos maiores poetas de Língua portuguesa, com valor comparado ao de Camões. Estamos nos referindo a Fernando Pessoa. Poeta enigmático, maior autor de heteronímia, por causa de sua constante despersonificação. Assim, conseguiu, o artista genial espelhar os múltiplos traços do homem de seu tempo: espiritualista, materialista e nacionalista. Quando ele disse “A minha Pátria é a minha Língua” quis dizer que a sua pátria é a Língua Portuguesa, afirmando a importância da Língua para a identidade e a afirmação como homem social. Na década de 20/30 do século XVIII, a pátria de Língua Portuguesa estendia-se por Ultramar. O Brasil e os territórios indianos, Timor, Macau mais as colônias africanas, tudo já fazia parte da Pátria, da nossa pátria Língua Portuguesa. A 2ª estrofe traz em seu 2º verso “a mão do soldado maneta”. Este verso faz referência a um personagem do romance de Saramago Memorial do convento. Segundo Linda Hutcheon (HUTCHEON, 1991:256) é um romance contemporâneo em que a presença e as elaborações do tema histórico ocupam o centro da narrativa, que convencionou chamar de metaficção historiográfica. O Memorial mescla ficção e história, buscando não se afastar, nem negar ou construir a história, mas sim revisitá-la de maneira consciente. O soldado maneta a que o verso se refere é Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, que tem a sua marginalidade manifestada na sua condição de ex-soldado e na sua limitação física, a mão esquerda perdida na guerra. 92


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Esta limitação física, entretanto, não afetou a sua força trabalhadora e criativa. Ajudou na construção do convento e se integrou ao grupo na construção da passarola (desta, iremos falar depois), desempenhando a função que lhe fora atribuída. O que nos interessa agora é relatar que este personagem faz uma referência explícita a outro personagem, o André Peralta “o sol do soldado caolho”, do 2º verso. Este personagem é também um personagem marginal que faz parte da novela Obras do Diabinho da mão furada, do António José da Silva, o judeu. Como poderemos ver no estudo de Odil José de Oliveira Filho, a semelhança de André com Baltasar, nos fragmentos iniciais de cada uma de suas respectivas obras: Retirou-se um soldado da milícia de Flandes, em tempo de Felipe II, Chamado André Peralta, aflito e maltratado da guerra, tão pobre como soldado e tão desgraçado como pobre. Depois de entrar neste reino, onde havia nascido, e caminhava para Lisboa (...) Este que desafronta aparência, sacudir da espada e desaparelhadas vestes, ainda que descalço, parece soldado, é Baltasar Mateus, o Sete-Sóis. Foi mandado embora do exército por já não ter serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso... Por ser pouco o que pudera guardar de soldo, pedia esmola em Évora para juntar as moedas que teria de pagar ao ferreiro e ao seleiro se queria ter o gancho de ferro que lhe havia de fazer às vezes de mão... Sete-Sóis, mutilado, caminhava para Lisboa...passou Montemor, não leva por companhia e ajuda frade ou diabinho e para mão furada já lhe basta a sua. (Odil, 2003:79) Saramago atualiza o texto de António José. Podemos então inferir claramente de certa forma que Baltasar é a continuação do também soldado Peralta. Pois o caminho de ambos, novamente de acordo com Odil José foi o convento, um para habitá-lo, o outro para construí-lo. Assim, soldado caolho e soldado maneta, indivíduos marginalizados, vindos das camadas populares, servem para conferir forma e identidade à minoria registrada em nossas letras, mas em maioria desde nossos primórdios. Prosseguindo, ainda utilizando Baltasar e a obra Memorial do Convento, de acordo com Kaufman (KAUFMAN, 1991: 129), Baltasar é um personagem típico. Mas há na obra os classificados personagens autênticos da história, a exemplo disso temos o Padre Bartolomeu de Gusmão. Na 3º estrofe, no 3º verso “no pássaro do padre voador”, faz referencia a ele. Na obra de Saramago, Bartolomeu é um padre jesuíta que inventou uma máquina capaz de subir ao céu e voar sem outro combustível que não seja 93


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra a vontade humana. Tirando esta forma imaginativa de voar, tudo isto aconteceu. Gusmão foi um padre nascido em Santos que escreveu alguns sermões. Consagrou-se no estudo da Física e Matemática, mas abdicou de tudo para se dedicar inteiramente ao estudo de balões. Seu invento ficou conhecido como “passarola”, e em sua homenagem foi erguido um monumento em sua cidade. Na 3ª estrofe, no segundo verso, aparece a palavra "pregador". Logo compreendemos que pregador é todo aquele que propaga a fé, pois assim são conhecidos todos aqueles que tinham uma missão de fé desde os tempos dos jesuítas. Contudo, um grande exemplo de pregador é sem dúvidas o Padre Antônio Vieira. Nascido em Portugal, mas formou-se no Brasil como padre jesuíta, onde passou grande parte de sua vida missionária de pregação. Conforme Fidelino de Figueiredo (FIDELINO, HPL, 268): “Era constitucionalmente um pregador, dos maiores de todos os tempos.” Alinha-se entre os grandes oradores universais, que maior não se produziu em Língua Portuguesa. Grande pregador, político e escritor, Vieira foi, sobretudo, uma das grandes figuras da cultura do século XVII. Sua obra compreende 500 cartas, algumas obras de profecia e aproximadamente 200 sermões, sendo que, muitos deles são famosíssimos, confirmando sua qualidade como escritor e sua vasta cultura. Na época, os sermões possibilitavam que a palavra do pregador falasse para todas as camadas. Seus sermões abrangem não só a teologia, mas também as questões de moralidade, filosóficas e políticas. Segundo sua biografia, ele confessou modestamente não ter nada de inteligente a princípio. Foi preciso um fato extraordinário: um abalo cerebral, uma dor de cabeça muito forte que se fez julgar à beira da morte, e de repente uma grande claridade interior, que fez com que ele adquirisse uma facilidade para memorizar tudo que lesse. Fato este, lendário ou não, fez com que Vieira se tornasse um excelente padre, escritor e pregador conforme Hernani Cidade diz nas Obras Escolhidas vol. X, p. XXXV: ... a vivacidade permanente de uma inteligência ao mesmo tempo lúdico e engenhoso, de uma sensibilidade permeável a toda radiação de beleza das coisas e das palavras e capaz de captar e transmitir pelo modo mais sugestivo e aliciaste, e teremos uma imagem de qual seria a sedução deste mago da palavra. (CIDADE, 1953:4). Contudo, seus sermões não se dirigem apenas a um homem barroco de seu tempo, mas também ao homem dos nossos dias, pegando nos temas que

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra continuam a ser atuais, um fenômeno, uma figura única e genial, que exprimiu de forma simples e clara a sua época. A 5ª estrofe, o 1º e 2º versos fazem referências a um escritor e a uma obra sua considerada a mais original e inovadora da literatura brasileira de conteúdo universal. Estamos falando de Guimarães Rosa, nascido em Minas Gerais em 1908, e de sua obra Grande Sertão Veredas, romance de 1956. Desde cedo, Guimarães procurou conhecer as regiões que habitava e seus arredores. O povo e a vida do sertão mineiro o inspiraram a produzir obras inovadoras. Diz Antonio Candido: A experiência documentária de Guimarães Rosa, a observação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e o nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do rústico – tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro da matriz regional, para fazê-lo exprimir os grandes lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e, na verdade, o Sertão é o Mundo. (CANDIDO, 1968: 359) Através da leitura deste livro viajamos para muitos lugares sem sair do lugar, e como o próprio Nêumanne escreveu em um de seus textos “O Grande Sertão Veredas é um texto encantados, cheio de nuances”... Proporciona um passeio turístico pelas cidades históricas de Minas Gerais, de Belo Horizonte, vai até a Cordisburgo, cidade natal do autor (...). Guimarães Rosa foi apaixonado pela toponímia, a designação dos lugares pelos nomes. O levantamento da toponímia é uma das veredas na qual podemos nos embrenhar pelo grande sertão. Se folhearmos a esmo, podemos encontrar nas páginas iniciais do romance inúmeros nomes de localidades, rios, aldeias, pontes, fazendas, retiros, montes, como: Terras de Urucúia, Vereda-da-vaca Mansa de Santa-Rita, Cachoeira dos Bois, Campo-Redondo, Vereda do Buriti Pardo, Passo do Pubo, Fazenda O Limãozinho, Vau-Vau, Sete Lagoas, Serra Nova distrito de Rio Pardo, Ribeirão Traçadal, Serra do Cafundó, Campo Azulado, Queimadão, Angical, Extrema-de-Santa-Maria, Cabeça de Negro, Chapadão das Vertentes, Brejo Verde, Córrego das Quebra-Quináus, paragem da Aroeirinha, Piratinga, Liso do Sussuarão, Bambual do Boi, fazenda de Santa Catarina, lagoa sussuarana, Vereda do Vitorino, córrego Genipapo, Rio Pandeiros, Vereda do Alegre, rio Acari, Vila da pedra de Amolar, Barreiro Novo, rio do Borá, etc. Continuando com nosso trajeto, chegamos ao vinho que aparece na 3ª estrofe “tem sabor de vinhos do Porto”, faz também referência a Fernando Pessoa. Embora o vinho seja uma das mais velhas tradições lusitanas, especula-se que a cultura videira em Portugal tenha começado por volta de 282 a.C. O vinho está presente na obra dos mais clássicos escritores, e é natural que neste 95


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra número se inclua Fernando Pessoa, que apresenta um número bastante significativo em referência em relação ao vinho: “Boa é a vida, mas melhor é o vinho”. “Ao gozo segue a dor e o gozo a esta. ora o vinho bebemos porque é festa, ora o vinho bebemos porque há dor. Mas de um e de outro vinho nada resta”. “Afoga a alma em vinho”. Como vimos nos versos acima, Fernando Pessoa vale-se da metáfora do vinho para afogar seus dissabores e os amores da alma pessoana. A 6ª estrofe, no 2º verso, faz uma referência a um romance póstumo de José Maria Eça de Queiroz, conhecido como Eça de Queiroz, publicado em 1901, A cidade e as serras. O enredo desta narrativa gira em torno de Jacinto, principal personagem do romance, que mora há anos em Paris e acostumou-se ao conforto que uma cidade pode proporcionar. Após alguns anos volta a morar na pequenina Tormes, em Portugal. E lá vive um grande conflito entre seu modo de vida anterior e o que agora lhe é oferecido. É a tensão que vive o homem urbano, refém do conflito proporcionado pela tecnologia e pelas necessidades surgidas com a civilização que perdeu a vitalidade e o apego às coisas simples, naturais e primitivas. Nesse romance podemos ver Eça exalar um amor puro à terra da sua pátria. A libertação do lado bucólico e saudosista de um homem viajado e cosmopolita. Eça é o representante máximo do Realismo/Naturalismo em Portugal, o maior prosador português de todos os tempos. E sua bagagem cultural e de mundo fez com que desse à língua sua fluidez, a sua maleabilidade e a sua atualidade. Agora no 3º verso “que a brisa do Brasil beija e balança” faz referência a um poeta mais lido e mais admirado do Brasil, que viveu intensamente os grandes episódios históricos do seu tempo, embora tenha morrido aos 24 anos, é um poeta realizado, estamos falando de Castro Alves. Classificado como poeta romântico, social e “condoreiro”, foi no Brasil o anunciador da Abolição da Escravatura e da República. Por ter se dedicado à causa abolicionista recebeu o título de “Poeta dos Escravos”. “Que a brisa do Brasil beija e balança” é uma aliteração que veio ecoar os valores absolutos e as causas que o escritor defendeu. Sendo que estes versos fazem parte de seu poema “Navio Negreiro”, declamado pela primeira vez na sessão comemorativa do dia da Independência, no dia 7 de setembro. Este poema exalta o povo africano e presta homenagem a Os Lusíadas, de Camões. 96


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Castro Alves reconheceu os negros como heróis e principalmente como humanos, dedicando-lhes lugar de destaque em suas mais famosas poesias. É o verde e amarelo da bandeira de nossa terra fazem acordar e balançar o nosso Brasil, que após tantos anos de batalhas vencidas, como o próprio “navio” refere: por Andrada (referência a José Bonifácio de Andrada e Silva – o patriarca da Independência) e a Colombo (Cristóvão Colombo – descobridor da América). É isto que Castro Alves mais desejou, e que todos nós desejamos. A 7ª estrofe, 2º parágrafo “cantigas a palo seco” faz referência a um poema e a uma música, ambas intituladas como “A palo seco”. A primeira é um poema de João Cabral de Melo Neto, filho de senhor de engenho, por isto tendo passado a infância e a adolescência nos engenhos de cana-de-açúcar no interior pernambucano. Suas obras se caracterizam pela preocupação com a forma, na tentativa de despir o poema do supérfluo, em busca do essencial, por este motivo, sendo rotulado como poeta antilírico, seco, cerebral, como ele fez questão de ser. A partir da sua vivencia, o escritor pernambucano adota “a seca” como tema para expressão de sua poesia. Seu significado não consta nos dicionários, mas como o poeta mesmo disse: O cante a palo seco / é um cante desarmado. Em segundo, A palo seco é também título de uma música Antônio Carlos Gomes Belchior, nascido em Sobral, no Ceará mais conhecido como Belchior. Durante a infância começou a cantar em feira com versos de improviso. Logo, ligou-se a um grupo de jovens compositores e músicos, como: Fagner, Ednardo e outros e começou a apresentar-se em festivais de música no Nordeste. Suas composições são marcadas pela suavidade da interpretação o que dilui a força dramática, grande exemplo disso é a então referida A palo seco. A 8ª estrofe “e no sal amargo da purificação” faz referência novamente ao tão ilustre José Saramago que no “sal amargo” de suas letras, e de suas obras como: Os Poemas Possíveis, Provavelmente Alegria, O Ano de 1993, Deste Mundo e do Outro, A Bagagem do Viajante, As Opiniões que o DL teve, Os Apontamentos, Cadernos de Lanzarote I, Cadernos de Lanzarote II, Cadernos de Lanzarote III, Cadernos de Lanzarote IV, Viagem a Portugal, A Noite, Que Farei Com Este Livro. A Segunda Vida de Francisco de Assis, In Nomine Dei, Objecto Quase, Poética dos Cinco Sentidos - O Ouvido, Manual de Pintura e Caligrafia, Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra, História do Cerco de Lisboa, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a Cegueira, Terra do Pecado e Todos os Nomes. Lendo-as, você se tortura, se apaixona e assim purifica-se. Na 9ª estrofe, no 1º verso “Esta língua é jóia africana”, faz referência aos países africanos que falam a Língua Portuguesa: Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde, onde se fala um português bastante 97


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra puro, embora com alguns traços próprios, em geral arcaísmo e dialetalismo lusitanos semelhantes aos encontrados no Brasil. Contudo, é também uma jóia a literatura desses países, representados por: Agostinho Neto, António Jacinto, Viriato da Cruz, David Mestre, João Melo, João Maimona, Manuel Rui, Paula Tavares, Ruy Duarte de Carvalho, João Luís Mendonça, Fernando Kafukeno, Rui de Noronha, Noémia de Souza, Virgílio Lemos, Rui Knopfli, Marcelino dos Santos, Luís Carlos Patraquim, Mia Couto, Eduardo White, Nélson Saúte, Caetano da Costa Alegre, Francisco José Tenreiro, Félix Siga, Pedro Monteiro Cardoso, Eugênio Tavares, Jorge Pedro Barbosa, Amílcar Cabral, José Craveirinha, entre outros que servem de “tambor”, para fazer ecoar suas letras, considerada por muitos as, mais lindas e puras poesias em Língua Portuguesa. Continuando na 9ª estrofe, no 2º verso “ela caça a onça caetana”. Essa “onça caetana” representa, na verdade, a parte de um projeto de vida do também escritor paraibano Ariano Suassuna. Ele, um artista único e original, com uma visão muito pessoal da vida e dos acontecimentos. Em seus romances, peças de teatro e poemas desvenda o povo do sertão nordestino. Mas tudo iniciou quando Suassuna, ao participar da fundação do Teatro do Estudante do Recife, a partir da experiência, compreendeu a necessidade de ser um autor literário e não apenas um analista da vida nordestina. Contudo, só entre 1958-79, Ariano Suassuna dedicou-se também a prosa de ficção. Em 1976 publica inicialmente sob a forma de folhetim no Diário de Pernambuco Ao sol da onça caetana, mas só em 77 foi editado e integrado ao volume de a História d’o rei degolado nas caatingas do sertão. Seu romance é brasileiro. E esta obra é fundamentalmente uma epopéia, na qual os heróis não provêm apenas de famílias ilustres, mas de todo o povo do sertão. Neste livro, Ao sol da onça caetana, o autor narra fatos de sua própria vida e de sua família, fala de acontecimentos políticos que abalaram o seu Estado Natal. Mistura realidade com lendas tradicionais de seu povo, num clima épico bastante original. O próprio animal que intitula o romance e a que o poema se refere – a onça - simboliza um ser divinizado. Toma forma de Deus e do Diabo, bem ao estilo suassuniano. Contudo, esta obra manifesta o respeito do autor pelo sentimento religioso do povo sertanejo, suas crenças pelos seus santos e profetas e a transmissão de tudo isto para o nosso acervo de Língua Portuguesa. Ainda na 9ª estrofe, mas agora no 3º verso “ela cruza a légua tirana”, podemos perceber uma referência direta à música “Légua Tirana”, do compositor popular Luiz Gonzaga. Lançada no ano de 1949, esta música é um clássico na voz de Gonzaga, que segundo está em seu sítio na Internet, foi o primeiro 98


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra músico a assumir a nordestinidade, representada pela sanfona e pelo chapéu de couro. Luiz Gonzaga despertou interesse pela música ouvindo apresentações de outros músicos nordestinos. A temática de suas músicas assim como em Légua Tirana, é ecoar as dores e os amores de seu povo do sertão: Oh, que estrada mais comprida Oh, que légua tão tirana (...) Quando o sol tostou as foia E bebeu o riachão Fui inté o juazeiro Pra fazer a minha oração Tô voltando estropiado Mas alegre o coração Padim Ciço ouviu a minha prece Fez chover no meu sertão (...)

Assim, Gonzaga, nordestino de berço, de raiz, dá voz a seu povo, cantando a essência de seu sertão. Na 10ª estrofe, no 3º verso, há a referência às estrofes iniciais do poema Os Lusíadas escritos por Luís Vaz de Camões. Camões um soldado cego, pobre e português nasceu provavelmente em Lisboa, em 1524, aonde veio a falecer, em 1580. Começou a escrever Os Lusíadas por volta de 1545, que é composta por 1102 estrofes e 8816 versos. O poema, porém, só foi publicado em 1572, mas foi e continua a ser considerado uma das mais significativas epopéias da literatura universal. Os Lusíadas, palavra empregada em um poema em latim, foi empregada pela primeira vez em português por Camões. Precedida do artigo masculino no plural – os -, significa os lusitanos, os portugueses. A epopéia de Camões narrada a cunho pessoal, pois vivenciou tudo aquilo que escreveu, os feitos heróicos dos portugueses na descoberta do caminho marítimo às Índias. São os episódios mais gloriosos da história de Portugal, por mares nunca antes navegados. É um hino de louvor e glória humana, que vencera uma de suas grandes batalhas, a conquista do mar, assim combatendo “o bom combate”, pois como Fernando Pessoa mesmo disse: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. O eu do poeta foi substituído pelo Eu coletivo, pelo povo português. O poeta escolheu para cantar não os seus feitos pessoais, mas os feitos dos portugueses. As perigosas viagens por mares nunca antes navegados e a descoberta de 99


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra novas terras davam ao mundo uma nova dimensão do poder do homem, como centro do universo, capaz até mesmo de subjugar os deuses: “Que eu canto o peito ilustre lusitano, / A quem Netuno e Marte obedeceram”. O herói do poema “os barões” que “passaram além de Taprobana”, o maior deles foi Vasco da Gama, e os seus portugueses que foram dilatando a fé e o império. Logo, o sonho dos poetas Quinhentistas de escrever um poema enaltecendo as glórias lusitanas, só foi realizado por ele. A partir da combinação de palavras com significados diferentes do usual e da criação de palavras, Camões deu nova dimensão à Língua Portuguesa como expressão artística. Mas estes versos também fazem referência a uma passagem bíblica. De acordo com a bíblia, São Paulo foi exilado por motivos religiosos da época, assim prestes a sair dele escreveu uma carta a Timóteo dizendo: “Combati o bom combate”, como podemos ver na pesquisa em anexo a este trabalho. Assim Camões também, conservou a sua fé para combater todas as adversidades. Apesar do naufrágio que sua embarcação sofreu, ele não largou o manuscrito de Os Lusíadas, que não serviu para salvar o seu corpo, mas sim para eternizar a sua alma: Enfim acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha pátria, que não me contentei de morrer nela, mas com ela. Já na 11ª estrofe, o 1º e 2º versos fazem referência ao poema de Fernando Pessoa. Como o eu - lírico do poema diz “...engrandecer a pátria e construir para a evolução da humanidade”, logo navegar foi preciso, conforme também o poema Mar Português: Ó mar salgado, quanto do teu sal. São lágrimas de Portugal! Por ter cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. (PESSOA, 1950:11)

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Mas também foi uma frase dita por Pompeu, um general romano (106-48 a.C.), dita aos marinheiros amedrontados que recusavam a viajar durante a guerra, segundo Jornal da Poesia. No último verso “e de dançar o tango argentino”, pode-se notar a citação de uma parte do poema de Manuel Bandeira, o Pneumotórax. Este poema faz parte do livro Libertinagem, composto por 38 poemas e publicado inicialmente em 1930. O título do livro se refere à essência de toda a sua obra modernista – Liberdade, seja no conteúdo, seja na forma. E é a Bandeira a quem se deve a iniciação da utilização do verso livre. De acordo com a sua biografia, Manuel Bandeira aos 18 anos descobriu que tinha tuberculose, então, teve que interromper seus estudos por motivos de grave enfermidade, desde então, começou a compor versos. Então, toda a sua vida foi marcada pela perda de seus pais e irmão. Sua obra confunde-se com sua existência, levando-nos a identificar no eu - lírico de seus poemas o próprio poeta. Na esperança de uma recuperação mediante o tratamento médico só resta uma canção trágica. E como ele mesmo diz: “Não fiz versos por ser poeta. Fiz para desabafar os sentimentos físicos”. Em Pneumotórax, o poeta transforma uma situação perturbadora em algo sereno e até cômico. Por meio de uma linguagem simples, utilizou o “prosaísmo poético”, que parte dos sintomas, passa pelo diagnóstico da enfermidade e desemboca em um desfecho aquela altura natural, em que a fala do médico traduz que “a vida inteira podia ter sido e que não foi”, e continua sendo o que é. E foi, tanto que Manuel viveu até 96 anos esperando o que é os destinos de todos nós. Manuel Bandeira é o poeta da ternura humilde e ao mesmo tempo ardente, do amor à vida, das pequenas coisas de todo o dia. Sabe humanizar os objetos mais prosaicos. Sua literatura é leve, trágica, liberta: A vida Não vale a pena e a dor de ser vivida. Os corpos se entendem, mas as almas não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. (Antologia, s.d.:168) Na última estrofe, no último verso “esta língua é meu caixão”, a última palavra “caixão” faz referência a um poema de um poeta único da nossa literatura brasileira. Ele é um escritor também conhecido como poeta macabro, paraibano e escritor de apenas um livro de poesias, Eu, publicado em 1912, considerado pelos críticos em maioria uma obra-prima e é por isso que é o livro mais reeditado na Língua Portuguesa. Estamos falando de Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, conhecido como Augusto dos Anjos. Os críticos não conseguiram classificá-lo em nenhuma 101


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra escola literária pelo fato de suas obras representarem a soma de todas as tendências de sua época. O seu poema é o Caixão Fantástico, que fala da “aceleração” intrínseca dos tempos. O caixão representa a morte das tendências que se prostraram e não acompanharam a mudança de seu tempo, já que o tempo não pára, mas tudo que pára morre, e lá se vão todos no caixão. Assim, conseqüentemente pode acontecer com as tendências que não evoluem com o tempo, com os estudos que não progridem. Mas a língua não pára. Conforme foi dito na introdução deste trabalho: “a Língua é um instrumento de comunicação e expressão de sentimento que nos acompanha do nascer até a morte”. A Literatura ainda tenha este poder de nos confrontar com a nossa própria língua, de nos mostrar que, apesar de tudo o que aprendemos formalmente sobre nosso idioma, suas possibilidades continuam ilimitadas nas mãos e mentes de quem o sabem pensar. José Paulo Paes (NÊUMANNE, 2002:31). voltar ao sumário 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Língua Portuguesa Última flor do Lácio, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela... Amo-te assim, desconhecida e obscura, Tuba de alto clangor, lira singela, Que tens o trom e o silvo da procela, E o arrôlo da saudade e da ternura! Amo o teu viço agreste e o teu aroma De virgens selvas e de oceano largo! Amo-te, ó rude e doloroso idioma, Em que da voz materna ouvi: “Meu filho!” E em que Camões chorou, no exílio amargo, O gênio sem ventura e o amor sem brilho! Olavo Bilac (Antologia, s.d. 110). 102


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A Língua Portuguesa, assim é conhecida “última flor do Lácio” no soneto de Olavo Bilac. Mas também é conhecida como a Língua de Camões, por causa de Luiz Vaz de Camões, autor de Os Lusíadas. Como vimos, para Nêumanne em A Seara de Saramago, a Língua é a semente, é a visão, é a música, é a mulher, é a rosa, o cavalo, é fel com mel, é o coração, é a jóia africana, é o fruto do seu ventre, que não é de viver, e sim de navegar e de lamber e de dançar... Mas o mais significativo é que a Língua é o seu caixão, na verdade é o meu, o seu, o nosso caixão. O Português é a língua que os portugueses, os brasileiros, muitos africanos e alguns asiáticos aprenderam no berço e a reconhecem como patrimônio nacional e utilizam-na como instrumento de comunicação. Tem aproximadamente 230 milhões de falantes e, segundo um levantamento feito pela Academia Brasileira de Letras, ela tem atualmente 356 mil unidades lexicais que estão dicionarizadas no vocabulário ortográfico da Língua Portuguesa. Uma Língua nada inculta como a nossa é portadora de longa história, que ficam registrados principalmente nas obras de muitos escritores. Como vimos Saramago, Machado, Pessoa, Vieira, Gusmão, Guimarães Rosa, Eça, Castro Alves, João Cabral de Melo Neto, Suassuna, Camões, Bandeira, Augusto dos Anjos, Belchior, Luiz Gonzaga e todos aqueles que nas terras africanas se dedicam às letras, podem ser considerados porta-vozes de seus povos e intérpretes do ser humano, em qualquer época, em qualquer país. E Nêumanne também, por ter a consciência de que a Língua Portuguesa é apaixonante, torturante, mas lendo bons escritores desta seara, você se purifica. Ouçamos o poeta Nêumanne: Venho de muito longe, e da aldeia onde nasci trago notícias da preciosidade desta língua cuja sobrevivência em liberdade decente nos cabe a todos assegurar. E é este o requerimento que aqui subscrevo. Valho-me desta ocasião única para fazer um apelo: “Não deixamos esta nossa Língua Portuguesa morrer”![5] José Nêumanne Pinto

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4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra GONZAGA, Luiz. Légua Tirana. in.: A viagem de Gonzagão & Gonzaguinha. Canta: Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga. s.d. Rio de Janeiro. EMI. Faixa 13. HUTCHEON, Linda, (1991). Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago.

KAUFMAN, Helena, "A metaficção historiográfica de José Saramago". Colóquio/Letras, n. 120 ,1991. KOCH, Ingedore Villaça e ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender os sentidos do texto. São Paulo, 2006. MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 8 ed. São Paulo, Ed. Cultrix, 1970. KRISTEVA, Julia Historia da linguagem. Lisboa: Signos, 1974 idem. Introdução a Semanálise. Tradução de Lucia França Ferraz. SP: perspectiva. MELO NETO, João Cabral de. Antologia Poética. 2 ed. Rio de Janeiro : José Olympio, 1973. OLIVEIRA FILHO, Odil José de. Carnaval no convento: intertextualidade e paródia em José de Saramago. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993. ___________________.Obra Poética. Volume único, Cia. João Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1969. ___________________. Mensagem. Lisboa. Assírio & Alvim, 1950. PINTO, José Nêumanne. Solos do Silêncio, poesia reunida. 2 ed. São Paulo: Geração Editorial, 2002. ___________________. O Silêncio do Delator. 2 ed. São Paulo: A Girafa Editora, 2004. ___________________. Erundina: a mulher que veio com a chuva. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra POUND, Ezra. ABC da Literatura. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 1997. QUEIROZ, Eça de. A cidade e as Serras. 13 ed. Porto: Aillaud & Lelos Ltda., 1933. RICARDO, Cassiano. Jeremias sem-chorar. José Olympio. 3 ed., 1976. ROSA, João Guimarães. 1965. Grande Sertão: Veredas. 4 ed. Rio de Janeiro, José Olympio. SARAMAGO, José. Memorial do Convento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. SECCO, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro (coord.). Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX. Rio de Janeiro: UFRJ. Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 1999 e 2003. 3 v. SUASSUNA, Ariano. História d'o Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: Romance Armorial e Novela Romançal Brasileira – Ao Sol da Onça Caetana, J. Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1977. VIEIRA, Pe. Antônio. Os Sermões. Seleção com ensaio crítico de Jamil Almansur Haddad, Ed. Melhoramentos, São Paulo, 1963.

REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

http://www.linguaportuguesa.ufrn.br/pt_3.4.f.php 21h11min: 23.

/ Acesso

em

01/10/2007

http://www.instituto-camoes.pt.html / Acesso em 24 de ago. de 2007. 21h34min: 21. voltar ao sumário

ANEXOS:

POEMA DE JOSÉ NÊUMANNE PINTO (A SEARA DE SARAMAGO)

Esta língua é minha semente, machado de mulato do morro, pátria de poeta lisboeta. Esta língua é minha visão, o sol do soldado caolho, a mão do soldado maneta.

Esta língua é minha música, na palavra do padre pregador, no pássaro do padre voador.

Esta língua é minha mulher tem cuidados de mãe no leito da amante. Esta língua é minha rosa, tem perfume dos sertões gerais, tem sabor de vinhos do Porto.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

Esta língua é meu cavalo para subir cidades e serras, que a brisa do Brasil beija e balança. Esta língua é fel com mel, cantigas a palo seco de ninar o futuro.

Esta língua é meu coração, na tortura, na paixão e no sal amargo da purificação.

Esta língua é jóia africana, ela caça a onça caetana, ela cruza a légua tirana. Esta língua é fruto de meu ventre, mata sede de amizade, me arma nos bons combates.

Esta língua não é de viver, língua de navegar e de lamber e de dançar o tango argentino.

Esta língua é meu berço, esta língua me conhece, esta língua é meu caixão.

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POEMA DE CASTRO ALVES (O NAVIO NEGREIRO)

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra TRAGÉDIA NO MAR VI (...) Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra E as promessas divinas da esperança... Tu que, da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!... Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo O trilho que Colombo abriu nas vagas, Como um íris no pélago profundo! Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Andrada! arranca esse pendão dos ares! Colombo! fecha a porta dos teus mares! voltar ao sumário

POEMA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO (A PALO SECO)

Se diz a palo seco o cante sem guitarra; o cante sem; o cante; o cante sem mais nada; se diz a palo seco a esse cante despido: ao cante que se canta sob o silêncio a pino. O cante a palo seco é o cante mais só: 109


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra é cantar num deserto devassado de sol; é o mesmo que cantar num deserto sem sombra em que a voz só dispõe do que ela mesma ponha. O cante a palo seco é um cante desarmado: só a lâmina da voz sem a arma do braço; que o cante a palo seco sem tempero ou ajuda tem a abrir o silêncio com sua chama nua. O cante a palo seco não é um cante a esmo: exige ser cantado com todo o ser aberto; é um cante que exige o ser-se ao meio-dia, que é quando a sombra foge e não medra a magia. O silêncio é um metal de epiderme gelada, sempre incapaz das ondas imediatas da água: a pele do silêncio pouca coisa arrepia: o cante a palo seco de diamante precisa.

Ou o silêncio é pesado, é um líquido denso, que jamais colabora 110


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra nem ajuda com ecos: mais bem, esmaga o cante e afoga-o, se indefeso: a palo seco é um cante submarino ao silêncio. A palo seco canta o pássaro sem bosque, por exemplo: pousado sobre um fio de cobre; a palo seco cantam ainda melhor esse fio quando sem qualquer pássaro dá o seu assovio. A palo seco canta a bigorna e o martelo, o ferro sobre a pedra, o ferro contra o ferro; a palo seco canta aquele outro ferreiro: o pássaro araponga que inventa o próprio ferro. A palo seco existem situações e objetos: Graciliano Ramos, desenho de arquiteto, as paredes caiadas, a elegância dos pregos, a cidade de Córdoba, o arame dos insetos. Eis uns poucos exemplos de ser a palo seco, dos quais se retirar higiene ou conselho: 111


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

não de aceitar o seco por resignadamente, mas de empregar o seco porque é mais contundente. voltar ao sumário

MÚSICA DE BELCHIOR (A PALO SECO)

Se você vier me perguntar por onde andei No tempo em que você sonhava De olhos abertos lhe direi Amigo, eu me desesperava Sei que assim falando pensas Que esse desespero é moda em 76 Mas ando mesmo descontente Desesperadamente eu grito em português Tenho 25 anos de sonho e de sangue E de América do Sul Por força desse destino Um tango argentino Me cai bem melhor que o blues Sei que assim falando pensas Que esse desespero é moda em 76 E eu quero é que esse canto torto feito faca Corte a carne de vocês voltar ao sumário MAPA DOS PAÍSES E REGIÕES ONDE O PORTUGUÊS É LÍNGUA OFICIAL

MÚSICA DE LUIZ GONZAGA (LÉGUA TIRANA) 112


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Oh, que estrada mais comprida Oh, que légua tão tirana Ai, se eu tivesse asa Inda hoje eu via Ana Quando o sol tostou as foia E bebeu o riachão Fui inté o juazeiro Pra fazer a minha oração Tô voltando estropiado Mas alegre o coração Padim Ciço ouviu a minha prece Fez chover no meu sertão Varei mais de vinte serras De alpercata e pé no chão Mesmo assim, como inda farta Pra chegar no meu rincão Trago um terço pra das dores Pra Reimundo um violão E pra ela, e pra ela voltar ao sumário

LUIZ VAZ DE CAMÕES (OS LUSÍADAS) Canto I (3 primeiras estrofes) 1 As armas e os barões assinalados Que da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca dantes navegados Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; 2

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valorosas Se vão da lei da Morte libertando, Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. 3 Cessem do sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandre e de Trajano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Neptuno e Marte obedeceram. Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta. voltar ao sumário BÍBLIA SAGRADA

(SEGUNDA CARTA DE SÃO PAULO A TIMÓTEO – (cap. 4, v. 6-8)

Combati o bom combate – Quanto a mim, meu sangue está para ser derramado em libação, e chegou o tempo da minha partida. Combati o bom combate, terminei a minha corrida, conservei a fé. Agora só me resta a coroa da justiça que o Senhor, justo Juiz, me entregará naquele Dia; e não somente para mim, mas para todos os que tiveram esperando com amor a sua manifestação. voltar ao sumário "A Minha Pátria é a Língua Portuguesa"

“Boa é a vida, mas melhor é o vinho”. “Ao gozo segue a dor, e o gozo a esta”. 114


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Ora o vinho bebemos porque é festa, Ora o vinho bebemos porque há dor. Mas de um e de outro vinho nada resta”. “Afoga a alma em vinho”. ______________________________________________________________________ Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso." Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tornou o misticismo da nossa raça. (texto do livro "Fernando Pessoa - Obra Poética") & "Navigare necesse; vivere non est necesse”. (Pompeu, general romano, 106-48 a.C.).

POEMA DE MANUEL BANDEIRA (PNEUMOTÓRAX)

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse. Mandou chamar o médico: Diga trinta e três. Trinta e três... trinta e três... trinta e três... — Respire. .............................................................................................................. O Sr. tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito 115


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra [infiltrado. — Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. voltar ao sumário POEMA DE AUGUSTO DOS ANJOS (O CAIXÃO FANTÁSTICO)

Célere ia o caixão, e, nele, inclusas, Cinzas, caixas cranianas, cartilagens Oriundas, como os sonhos dos selvagens, De aberratórias abstrações abstrusas! Nesse caixão iam talvez as Musas, Talvez meu Pai! Hoffmânnicas viagens Enchiam meu encéfalo de imagens As mais contraditórias e confusas! A energia monística do Mundo, À meia-noite, penetrava fundo No meu fenomenal cérebro cheio... Era tarde! Fazia muito frio. Na rua apenas o caixão sombrio Ia continuando o seu passeio!

voltar ao sumário [1] COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária. 2.ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978. p.9-10 [2] Enciclopédia Delta Universal, vol. 12, editora Delta S.A. Rio de Janeiro, Brasil, 1982, pg. 6500-6505. [3] LESSA, Adelaide Petters. Universo – poema, in Antologia da Literatura Mundial – Antologia de Poetas Brasileiros. Ed. Globo. SP. p.230 [4] RICARDO, Cassiano. Jeremias sem-chorar. José Olympio. 3 ed., 1976, p.11. 116


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

[5] PINTO, José Nêumanne. Discurso da Cerimônia de entrega do Prêmio José Ermírio de Moraes pelo melhor livro de 2004 - O Silêncio do Delator. Academia Brasileira de Letras, 2005. A Girafa Editora, São Paulo. Dezembro de 2005. P.12.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

O TESTAMENTO DE UMA GERAÇÃO Ruy Fabiano

Os anos 60 do século XX constituem um século dentro do século. Foram de tal intensidade e abrangência as transformações comportamentais, ideológicas e culturais ali operadas que seus efeitos morais e psicossociais marcaram as gerações seguintes ¾ e continuam em plena vigência, desafiando artistas, pensadores e estudiosos em geral. Foi um século (isto é, uma década) que não acabou ¾ ainda. Nela, entre outros, desfilam Beatles, Rollings Stones e Bob Dylan; a revolução sexual, o movimento hippie, o culto às drogas e ao psicodélico; a utopia marxista, a Guerra Fria, o assassinato de Kennedy, a Guerra do Vietnã, a revolta estudantil em Paris, o cinema cult/experimental de Godard, Pasolini, Visconti, Fellini, Antonioni, Buñuel etc. Entre (muitas) outras coisas. No Brasil, a década foi igualmente movimentada: golpe militar, cinema novo, bossa nova (nascida na década anterior, mas consolidada e exportada na dos 60), festivais da canção, músicas de protesto, jovem guarda, tropicalismo, teatro experimental, drogas e barato total, tendo como desfecho trágico, em dezembro de 1968, a edição do AI-5 e o aprofundamento da ditadura militar. Uma década insepulta a pairar como espectro na memória de um dos séculos mais densos e movimentados da história humana. O Silêncio do Delator , romance do escritor e jornalista paraibano José Nêumanne Pinto, recém-lançado pela Editora A Girafa, propôs-se a inventariar aquela geração. Inventário moral, estético, político-ideológico, espiritual. O desafio não é pequeno, mas pode-se dizer que o autor o enfrentou com categoria ¾ e saiu-se bem. Conseguiu dar ao texto um ritmo vertiginoso, que se mantém ao longo das suas 544 páginas, recheadas de citações da cultura pop e do universo intelectual da esquerda marxista, como convém a uma década que sonhou simultaneamente com a revolução pelas armas, pelas drogas e pela música, e cujo charme está não no fracasso, mas no glamour com que o protagonizou.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra O fio condutor da narrativa é a música. Música Pop. Mais precisamente, a música dos Beatles e de Bob Dylan, extraída dos legendários discos Sergeant Pepper's lonely hearts club band (Beatles) e Bringing it all back home (Bob Dylan). Cada capítulo se refere a uma das faixas desses dois discos. E termina com uma estrofe do belo poema Inventário , de Pedro Paulo de Sena Madureira, dedicado ao autor, que de um de seus versos extraiu o título do romance. A história se desenvolve em planos temporais distintos e simultâneos. Em 2004, num lugar qualquer do Ocidente (o autor propositalmente não o situa), dá-se o velório do protagonista e narrador, João Miguel, professor universitário e escritor fracassado. Como um Brás Cubas contemporâneo e mais cético ainda que o original, João Miguel narra a história, os sonhos e frustrações de sua patota, cujo nome é uma paródia do legendário disco dos Beatles: a "patota dos sovacões solidários do recruta Pepé". Seu velório é o de sua geração, que sonhou mudar o mundo, mas apenas o virou do avesso. Os amigos do morto se reencontram no velório e, em torno das lembranças que ele evoca, repassam os sonhos e desventuras da década dos 60. O finado os escuta e intervém em pensamento, com observações e relembranças. Não é ouvido, mas ouve ¾ e cabe-lhe conduzir a narrativa. Nêumanne diz ter concebido essa história há mais de vinte anos, sem conseguir ir além de um esboço no papel, que considerou ruim. Foi no início deste ano, quando assistiu As Invasões Bárbaras , do diretor canadense Denys Arcand, que teve o estalo para fazê-lo. E o fez compulsivamente, em nove meses de frenético labor matinal. O parto deu-se em setembro. Apesar do tom crítico e desencantado, o romance é uma comovida homenagem àquela década, na evocação de seus poetas, líderes, idéias e ideais. Para contar essa história, Nêumanne recorreu a artifícios formais complexos, que, mesmo sem essa pretensão, inovam a narrativa romanesca brasileira contemporânea. O romance é contado em sete "vozes", conforme os versos do samba A Voz do Morto , de Caetano Veloso ( Voz do Morto, Pés do Torto, Cais do Porto, Vez do Louco, A Paz do Mundo, Atrás do Muro, Na Glória ). Em cada uma dessas vozes, são contadas as histórias dos personagens da patota, suas lembranças e reflexões. E o corifeu desse coro de narradores é o finado João Miguel ¾ João em homenagem a John Lennon, e Miguel em homenagem a Mikhail Gorbachov, os dois coveiros das duas utopias que embalaram os jovens rebeldes dos anos 60. 119


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

A história começa em 1967, quando um personagem-chave da narrativa, Marco Antonio, codinome Coelho, apresenta à "patota dos sovacões solidários" os dois discos que iriam marcar os demais anos da década e se intrometer na seguinte. Coube-lhe também apresentar à turma o LSD, como antes a havia apresentado à utopia marxista. Coelho, um ser misterioso e intrigante, cujo enigma é decifrado apenas no final do livro, personifica o espírito da década. A cada aparição, abre novos horizontes de reflexão e perplexidade à patota. Coloca-a diante de novos enigmas, mas nem de longe acena-lhes com a solução, até porque não a tem ¾ e nem mesmo sabe se existe uma. A Geração de 60 buscou Deus onde Ele não estava. E concluiu que o sonho, que nem sequer chegou a ter certeza de haver sonhado, havia acabado. É desse sonho hipotético, que se transmuta em desalento e ceticismo, onde exhippies e ex-marxistas acabam funcionários públicos ou operadores do mercado financeiro, que o livro trata. Não por acaso, o cenário é um velório. E o enredo o testamento moral e existencial de uma geração.

© Estadão (página D7) do domingo 9 de outubro de 2004.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra O SILÊNCIO DO DELATOR:

Livro de uma geração Sérgio de Castro Pinto

Se me perguntassem o que “O Silêncio do delator”, de José Nêumanne, tem de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, eu responderia: o fato de, postumamente, um personagem discorrer sobre o passado e o presente, além de, bem ao gosto do bruxo de Cosme Velho, e como se fora um dos alter egos do narrador, interferir na prosa deste de modo a apontar-lhe os excessos, as redundâncias, enfim, as deficiências de sua escrita. Quer dizer, se Machado de Assis estabelecia um diálogo com o leitor a respeito dos seus mecanismos de criação, o personagem João Miguel provoca o narrador, desafia-o, instiga-o, na medida em que questiona o enredo, a intriga ficcional, como também a linguagem que serve de lastro, de sustentação ao romance. Isso sem contar que, coincidentemente ou não, Nêumanne tende a abolir a paisagem no seu livro, ao mesmo tempo em que as suas personagens vivem entre quatro paredes. Ou seja, “O Silêncio do delator” é um romance urbano cujas personagens, paradoxalmente, não saem às ruas, no que também lembram os “claustrofóbicos” viventes machadianos. Mas isso não quer dizer que Nêumanne seja um epígono do autor carioca, pois, na verdade, ele imprime ao seu texto o sinete de uma individualidade já reconhecida, inclusive, por Wilson Martins, para quem esse paraibano de Uiraúna conseguiu a proeza de inovar o romance brasileiro. O certo mesmo é que “O Silêncio do delator” presta um tributo àqueles com os quais José Nêumanne possui afinidades eletivas desde sempre. Ou desde quando, adolescente míope de Campina Grande, já enxergava longe. Daí, a homenagem a Machado, a Bob Dylan, aos Beatles e a muitos filmes e textos com os quais dialoga no plano da intertextualidade, da metalinguagem e da paródia. Em suma, nesse livro convivem, harmoniosamente, o ensaio, a ficção e a poesia, embora os mais preconceituosos ainda hoje delimitem os gêneros literários em compartimentos estanques, quando a diluição deles não exclui, necessariamente, a literariedade de uma obra. Literariedade, aliás, que não 121


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra falta ao “Silêncio do delator”, livro no qual Nêumanne se vale do seu temperamento eclético, ubíquo, para transitar, com extrema desenvoltura e brilhantismo, do cinema para a música ou desta para as artes plásticas e ainda para a literatura. E aqui convém lembrar que Nêumanne não é benevolente com a geração a que pertenceu: a dos tumultuados anos 60. Antes pelo contrário, pois ele a inventaria sem concessões de qualquer espécie, como o fez – claro que guardadas as devidíssimas proporções – Mário de Andrade quando registrou os 25 anos da Semana de Arte Moderna. Enfim, sem jamais perder a ternura, José Nêumanne, mais do que expor, escarafuncha as feridas ainda abertas da geração 60. E o faz a partir de “Inventário”, poema de Pedro Paulo de Sena Madureira com cujos versos ele também arremata os vinte e cinco capítulos que compõem este excelente romance recém-lançado pela Girafa Editora.

© Blocos Online

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra OBRA LEMBRA SÉCULO 20 POR MEIO DE MORTO FALANTE Walter Fontoura

Não é um livro convencional, esse "O silêncio do delator", que José Nêumanne lançou por estes dias no Café Suplicy, em São Paulo. O personagem principal, João Miguel, já começa o romance morto e dentro do caixão, no seu velório, mas falante e vivaz, prometendo revelar ali mesmo tudo o que estiver ao seu alcance. Professor universitário, mulherengo e desastrado, João Miguel "vê" desfilarem ao seu lado os companheiros dos primeiros anos da juventude, quase todos frustrados, como ele, por não terem sido capazes de realizar seus sonhos – e muito menos de mudar o mundo, como um dia pretenderam. E promete: "Agora que já me despi das vaidades humanas, agora que me livrei das censuras, agora que ninguém nem nada mais poderá me atingir, contarei tudo. Tudo o que sei, tudo o que intuí". Na imobilidade do caixão, em pleno velório, João Miguel recebe e troca opiniões e impressões, discute, responde, repreende e descompõe ou elogia e até declara amor aos que vão levar-lhe o último adeus. Os personagens dirigem-se ao morto, e ele a eles; no diálogo que travam vai-se tecendo a história. Mas não se revelam pelos nomes. A narração é feita através de sete vozes, que dão um certo ar de coro grego ao texto: "Na Glória!" é a voz que descreve o velório; "Na Paz do Mundo" é a política; "A Vez do Louco" trata da iniciação dos amigos do morto; o sexo está em "Atrás do Muro"; as transgressões ( como drogas ) estão em"Os Pés do Torto"; histórias de personagens paralelos ao grupo, em "O Cais do Porto". "A Voz do Morto" fala por João Miguel, ou vice-versa, naturalmente. São todos sobreviventes "dos rebeldes anos 60 intervenções estão recheadas de referências a quase naqueles anos e despertou o interesse, fez sonhar ou grupo que agora se reúne no velório para despedir o mortíssimo mas falando sem parar.

do século 20", e suas tudo que foi relevante tocou a imaginação do professor João Miguel,

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Os Beatles, Jorge Luíz Borges, Lênin, Che Guevara, Sartre, Kennedy, Jorge Amado, Marylin Monroe, John Kennedy, Stalin, Maria della Costa, Hitler, Ray Charles, Charles Chaplin, Martin Luther King, Gabriel Garcia Marques, Milton Nascimento, Burt Lancaster, Glauber Rocha, Alain Delon, Carlos Lacerda e Belchior, entre outros, estão mais e menos na memória coletiva, no imenso, atilado e bem informado diálogo que é "O silêncio do delator". Na capa, entre a foto de Maria della Costa e os Beatles, há um sujeito de cabelo preto e bigodinho que segundo José Nêumanne o capista, Newton César, supunha ser Sandro Polônio, mas é o tenente Bandeira, nacionalmente famoso no fim dos anos 50 ao ver-se envolvido no rumoroso "crime da Ladeira do Sacopã", no Rio. O tenente Bandeira não aparece no livro, mas não fica mal ali, naquele clima sobrenatural. O leitor terá talvez a tentação de identificar alguém, ou o próprio autor, em algum personagem. Mas é inútil. Nêumanne não está lá. Marco Antônio, o Coelho, também não tem relação alguma com o líder comunista Marco Antônio Coelho, nem Ricardo Azevedo é um quadro do PT, filho do Clóvis Azevedo. Nenhum personagem da vida real está retratado no livro, em ação, exceto talvez Pedro Paulo de Sena Madureira, o poeta e editor, cujo poema "Inventário", dedicado a José Neumanne Pinto, vai publicado no fim do volume. "O silêncio do delator" é um livro escrito em Português legível, como era o de Rubem Braga, como é o de José Nêumanne.

© 9 de outubro pela Folha de S. Paulo Ilustrada, pag. 4

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

O Silêncio do Delator W. J. Solha

A reconstituição de uma época riquíssima, num romance ágil, denso e original

A ficção é a melhor forma de se assistir aos acontecimentos de uma parte do passado como se fosse “ao vivo”. Tornam-se incrivelmente presentes, nos grandes romances, aquela gente que resistiu à invasão napoleônica em Moscou, aqueles americanos ricos que vagaram pela Europa no entreguerras, aqueles paraibanos que viveram o Ciclo da Cana de Açúcar. “O Silêncio do Delator”, de José Nêumanne, tornou-se, na mesma linha, a maneira mais perfeita de se “ver” o que foram os muitos grupos de jovens brasileiros dos anos 60, apaixonados – e marcados - por Bob Dylan, Mao e Che, pelos Beatles, mais o cinema de Glauber e Godard, além do tórrido tempero da revolução sexual. Tolstoi dizia que não escrevera nada que não houvesse visto. Hemingway fez parte da lost generation. Zé Lins foi, ele mesmo, um menino de engenho. Com uma carreira que inclui a Folha de São Paulo, o Estadão e o Jornal do Brasil, Nêumanne começou no jornalismo justamente nos anos 60, tema de seu livro, como crítico de cinema do Diário da Borborema. - Nos idos de 67 – segundo me disse -, Bráulio Tavares presidia o Cineclube de Campina Grande, eu, o Glauber Rocha. Eu programava o Cinema de Arte do Cine Capitólio; ele, a sessão Cultura do Cine Babilônia. Adquirindo saber e enorme vivência com artistas, políticos e intelectuais daqui e do Sul em seu desenvolvimento, aparelhou-se, com o tempo, para produzir aquilo que o narrador de seu livro classifica de romance enciclopédico, o que nos lembra logo o “Ulisses” de Joyce e o “Contraponto”, de Huxley, obras. que fazem os inventários completos de suas épocas e de seus ambientes, tal como Dante – em “A Divina Comédia” - fez com a Florença que o exilou. Assim, “O Silêncio do Delator” nos traz do passado uma juventude idealista e culta que seqüestrou um embaixador, protestou contra a guerra do Vietnã, padeceu a ditadura, idolatrou Woodstock; viu mil vezes “A Chinesa” de Godard e “Os Retratos da Vida” de Lelouch, analisou telas de Lichtenstein e de Wharol; dissecou romances de Camus e Salinger; riu e se comoveu com as tiras em quadrinhos de Crumb e Quino, deslumbrou-se com as sinfonias de Luciano Berio e Phillip Glass, usufruiu e sofreu a revolução da pílula, que transformou

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra o comportamento reprimido da década anterior, principalmente entre as mulheres. - O livro de Nêumanne – diz Affonso Romano de Sant´Anna – realizou, de modo original, aquilo que tantos tentaram – “o romance de minha geração”. De modo original? Sim, porque, entre outras coisas, “O Silêncio do Delator” é um enorme monólogo em que um autor incerto orquestra as vozes de todo um grupo de velhas figuras - marcantes no seu tempo -, reunidas agora no funeral de uma delas, o Morto, com quem faz duo constante (numa brincadeira com o Brás Cubas do Machado). Falam, aí, a historiadora, o publicitário rico que não conseguiu se impor como romancista, a psicanalista, o ex-guerrilheiro que fez fortuna especulando na bolsa, o militante comunista que virou ministro, o popstar que é gay; o artista plástico que ficou na miséria; etc, etc. Ao contrário que seria de se esperar de quem é poeta, Nêumanne não usa em seu romance as construções comuns em Gabriel García Márquez (“El mundo era tan reciente, que muchas. cosas carecían de nombre”) ou Guimarães Rosa (“estalinho de estrelas, deduzir de grilos”). Assim, ele preenche as 540 páginas de seu livro com o que ele mesmo chama de “texto zero”, tão despojado quando o do também jornalista-romancista Ernest Hemingway. - “Tudo o que estiver ao meu alcance será revelado neste velório”, promete, objetivamente, o início de “O Silêncio do Delator”. Mas isso, capciosamente como no título, não é cumprido, pois enquanto García Márquez cria nomes precisos para os habitantes de sua precisa Macondo, como José Arcádio Buendía, Amaranta, Remédios, mais Úrsula Iguarán; enquanto, no “Grande Sertão;Veredas”, vigoram os bem mineiros Jisé Simpilício, Titão Passos, Jazevedão ou Fafafa, Nêumanne vai chamando suas personagens femininas de Helena, Penélope e Hebe, obtendo com isso uma desindividualizaçãogeneralização semelhante às das máscaras do teatro grego, colocando todo mundo – isso é ainda mais significativo – em alguma cidade do país da qual não se sabe o nome nem a que estado ou região pertence. Acaba-se chegando, com isso, por vias indiretas, ao “poético” necessário ao gênero herdeiro da “Ilíada” e da “Eneida”. Quando peguei “O Silêncio do Delator” pela primeira vez, há cerca de dois anos, travei logo no início. Não conhecia o comentário em que Bráulio avisava: “No começo o leitor custa a pegar o tom e o ritmo, mas depois que consegue passar a terceira, vai em terceira até o fim”. Senti o que me pareceu excesso de referências e citações, grande problema do “Contraponto” de Aldous Huxley... e de todos os meus romances. Tanto, que para me livrar do cacoete no último, ainda inédito, tive de reduzir suas 400 páginas originais a 160. Mas com o nome de Nêumanne repetido freqüentemente – há pouco tempo – devido à sua posse na Academia Paraibana de Letras e na de Cinema, retomei a leitura de sua narrativa e me aconteceu a reedição de minha descoberta em dois tempos 126


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra da “Chacona”, de Bach: o primeiro, com estranhamento e resistência, o segundo com sintonia e prazer. Nada de excesso de referências. O que há é um fabuloso uso de necessários tijolos ou átomos para a reconstrução de um universo, talvez o mais rico da recente história brasileira. Bem, falou-se e fala-se muito, merecidamente, de A Pedra do Reino, do Ariano Suassuna. Acho que está na hora de se fazer igual barulho em torno de todo esse “ Silêncio”, para que se faça justiça à sua retumbante fortuna crítica, a que venho juntar este meu tarol. Uma minissérie da Globo cairia bem.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra A GERAÇÃO PERDIDA Wilson Martins

Reunindo os "remanescentes dos anos 60" no velório de um amigo, José Nêumanne Pinto inovou o romance contemporâneo tanto na temática quanto nas técnicas narrativas (O Silêncio do Delator. São Paulo: A Girafa, 2004).

É a história intelectual e sentimental de uma geração, pontilhada no ritmo da ação pela música e, sobretudo, pelas letras dos Beatles e de Bob Dylan: "Vista aqui do caixão", diz "a voz do morto", narrador complementar e crítico do autor, "posta em contraste com os círculos espalhados pela sala [...] de viúvas de Elvis Presley e nostálgicos de John Lennon, de fãs de carteirinha de Mick Jagger e saudosos de Jim Morrison, ela tem um viço que salta aos olhos e atinge o plexo solar como um soco de Mike Tyson - nós, da geração de Cassius Marcellus Clay, ou melhor Muhammad Ali; nós, que vimos com um pouco de preconceito o filme de Hollywood com o trânsfuga Mikhail Barishnikov, meu outro xará russo, pensando que aquilo era sobretudo o desperdício de um talento, nós que gostávamos das tiras de Mafalda e Charlie Brown. Pois é: esse viço evidente, esse jeitinho de flor beijada pelo orvalho, esse ar de sereno de madrugada não combinam com este ambiente, nada têm a ver com a morte". É também o romance das ilusões perdidas, matéria privilegiada dos grandes romances, "velório de uma geração inteira, o sepultamento do sonho desta turma de gente bem-intencionada, mas que não soube cuidar direito das próprias intenções, por melhores que fossem. Aqui não jaz meu corpo apodrecido pelo câncer. Aqui jazem, de certa forma, ideais que ele abrigou e expôs, burilou e perdeu, ao longo da vida. Aqui jazem algumas ilusões, espremidas entre as flores neste caixão". Pouco importam, a essa altura, as racionalizações compensatórias a que o morto se entrega: as vitórias e sucessos posteriores dos personagens no plano mundano apenas encobrem o malogro essencial que os acompanha como um remorso implacável. Eram todos vitoriosos - à custa de sua autenticidade profunda. Em brilhante derrota, tinha conquistado o mundo, mas perdido a alma. Eram agora "o publicitário famoso, o cantor de sucesso, o burocrata aplicado, a historiadora persistente, a psicanalista analisada, todos enfim, até aquele que poderia ter estado ali, mas ninguém cumprimentou nem por 128


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra alguém foi cumprimentado, embora alguém pudesse tê-lo notado". Mas, todos vencidos da vida, segundo Eça de Queiroz, em passagem conhecida, definiu um desses grupos. Dominando a complexidade da intriga e a estruturação cronológica (exigindo, como é natural, ativa participação do leitor), José Nêumanne Pinto assume o seu lugar entre os mestres do romance contemporâneo, tanto mais que tudo resulta de rigorosa planificação. Percebese que "a voz do morto" é, na verdade, um desdobramento do autor, propondo os esclarecimentos necessários para poder acompanhá-lo, enquanto simultaneamente toma consciência do romance como obra de arte literária, história mental da segunda metade do século 20, em torno do personagem que "abandona a mulher (que conheceu na adolescência) com os filhos e a amante casada, para arriscar um segundo casamento com a primeira paixão da adolescência [...]. Sua primeira ideia era fazer uma abordagem joyciana do texto ... mas o resultado final ficou tão ruim, a história se perdia em tantos malabarismos que você resolveu desistir". De fato, a partir de Joyce, o romance não pode pretender que Joyce não existiu, mas o romancista autêntico não se dispõe a imitá-lo servilmente, mas antes a prosseguir nas incontáveis direções que sugeriu. Um dos sinais possíveis dessa emancipação genética e o abandono da narrativa linear e progressiva em favor da composição circular, própria da civilização eletrônica (Marshall McLuhan tem mais razão e viu mais longe do que imaginam os críticos superficiais). Cedendo à vaidade inocente de nos fazer perceber o rigoroso planejamento da intriga - diferenciando-se dos experimentalismos arbitrários em que tantos se comprazem - o autor mais uma vez esclarece pela "voz do morto": "eu bem que desconfiava que sua tática de querer fazer tudo de uma vez ... tinha tudo para malograr. [...] O problema é que você foi espalhando migalhas no caminho da floresta e os passarinhos se fartaram, agora você não tem pistas para voltar". No começo, diz o autor em confissão transposta para a "voz do morto": "Lembra-se de quando começou este projeto de traçar um inventário de sua geração num romance-enciclopédia? Pois é, no começo deste relato, no começo dessa delação, você o situou em 1984. Primeiro, você tentou escrever sobre um cara que abandona a mulher, amiga de infância, e a amante, que não tinha nenhuma relação com sua história de vida" – romance convencional que, como se vê, nada acrescentaria ao romance convencional. Contudo, Joyce havia existido, tornando obsoletos os romances convencionais ... fossem quais fossem as suas qualidades intrínsecas enquanto romances. Em 1922 (ano prodigioso!), ele inaugurava o século 20 literário, e o século 20 literário passou a existir num mundo que, além dele, era mentalmente configurado pelo cinema e por Bob 129


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Dylan, pelos Beatles e por tudo que se incorporou à genética das idéias e dos sentimentos. Nisso estava, justamente, o roteiro virtual do romance moderno, pós-balzaquiano com tudo o que significava, isto é, o século 19 com russos e ingleses, franceses e italianos, portugueses e brasileiros ... As ironias da história transfiguraram os jovens revolucionários dos anos de 1960 (guiados, é preciso dizê-lo, pela ideia mística, não realista, da revolução), em conservadores desenganados, sem repudiar, bem entendido, a aventura heroica que haviam vivido. Por esses processos, o autor transmite o caráter caótico daqueles tempos (como todos os tempos), condicionado, entretanto, por sua própria lógica interna. História retrospectiva que introduz coerência no passado, enquanto a atualidade dinâmica, no momento em que é vivida, é sempre movida por suas "contradições internas" como diria um esquerdista de manual. Ou a "voz do morto", exprimindo as inquietações do autor: "este romance está virando um samba de crioulo doido. Primeiramente porque se já não tinha um espaço definido, agora também se perde no tempo [...] se tinha um assunto central, o inventário de uma geração de repente, sem aviso nenhum ao leitor incauto, saltou para temas que não lhe dizem respeito e que aparentemente com nada se conectam". O que, precisamente, é a grande qualidade deste romance como romance.

© Gazeta do Povo 22/11-segunda-feira -Caderno G, página 4

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O SILÊNCIO DO DELATOR (Capítulo 6, p 129-150)

6 – Ela Me Pertence

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra O CAIS DO PORTO Quando a Zuca e João Miguel se encontraram, ninguém poderia apostar que ali estaria surgindo um sólido caso de amor. Dir-se-ia que foi uma conjunção de astros o que os aproximou e de uma forma tão indissolúvel que aos dois parecia que, sim, viviam um matrimônio regular entre si e não com seus parceiros fixos. Seria uma ingenuidade classificar João Miguel de um marido fiel. Ao contrário. Ele vivia freqüentemente aventuras extraconjugais, mas elas tinham duas características básicas: 1 – as parceiras eram egressas de seu ambiente doméstico ou profissional; e 2 – ele tinha um cuidado obsessivo de evitar que Penélope fosse informada de seus casos. Maledicentes diziam que João Miguel era covarde e acomodado até nisso: suas parceiras, por mais que se sentisse atraído por elas, por mais que a hipótese de vir um dia a se afastar delas fosse concreta, tinham a impressão de que foram elas que o escolheram e ele apenas as acolhera, sob inúmeras condições. Os horários dos encontros eram cuidadosamente marcados e eles só ocorriam se não interrompessem a rotina acadêmica e pessoal do protagonista. Compungido, constrangido, usando o tom a que um médico recorreria para noticiar a um paciente que este seria portador de uma doença terminal, ele invariavelmente avisava, antes de se envolver em qualquer parceria afetiva ou meramente sexual: - Eu sou casado, muito bem casado e não pretendo, de forma nenhuma, pôr fim à relação estável que tenho, nem sequer sair de casa. Com o tempo, as parceiras se acostumavam com os horários draconianos, o constrangimento de não se cumprimentarem quando o encontravam com algum familiar e às vezes até com alguns conhecidos em comum. A VOZ DO MORTO Alto lá, sujeitinho. O retrato que você está traçando do morto aqui não é nada honroso. Chega a ser execrável. O perfeito cafajeste. Explorador de mocinhas incautas. Adúltero contumaz. E, sobretudo, hipócrita. Você já se perguntou por que as tais parceiras avulsas descritas na seção acima aceitavam uma relação que lhes era assim tão desfavorável? Afinal, este morto não era propriamente um galã que despertasse o desejo feminino pelos belos olhos, como seu amigo Marlon. Nem seu desempenho sexual era de qualidade tal que lhe permitisse gabar-se, como Charlie Chaplin, que se chamava nas rodas de amigos, aos quais contava vantagens, como qualquer peru vaidoso, de “máquina sexual”. De fato, sua vítima favorita era um sujeito meio ensimesmado e a maior parte das vezes silencioso na cama. E, ao contrário do que ficou parecendo na abertura infeliz deste capítulo, não era de ficar relatando suas aventuras de alcova aos amigos, mesmo aos mais íntimos, nem

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra fazia propaganda de seus feitos sexuais para aumentar a relação das parceiras fora do casamento. Casamento, aliás, que sempre foi, do princípio ao fim, altamente satisfatório do ponto de vista do desempenho entre lençóis e fronhas. Em defesa do morto, que não pode erguer-se do caixão e protestar em altos brados ou lhe atracar os colarinhos para tomar satisfação ou ainda levá-lo, como, aliás, deveria, às barras dos tribunais, talvez seja o caso de explicar que este livro, que nunca se pretendeu um elogio fúnebre, pode tornar-se definitivamente um auto-de-fé, caso o morto não saia de seu silêncio forçado para delatar o delator. O CAIS DO PORTO Talvez fosse um exagero definir como um mar de rosas a vida conjugal de Elsa, a Zuca, no dia em que ela se encontrou por acaso pela primeira vez com o protagonista desta ficção. O relacionamento tinha seus altos e baixos, como sói ocorrer com casamentos longevos, mas também não seria exato dizer que se tratava de um inferno. Nas aparências, que aliás nem sempre são enganosas, tudo fluía bem naquela casa. José Eugênio a havia conhecido num momento difícil da vida dele. O primeiro casamento desabava sob o peso de incompatibilidades inconciliáveis de temperamento. Raquel, a primeira mulher, pedagoga de renome e reconhecido sucesso profissional, não era propriamente fanática por manter as aparências, o que José Eugênio considerava algo lamentável, quase até desprezível. Ao abrir a gaveta das meias e encontrá-las amontoadas, os pares descasados, misturadas com lenços e algumas cuecas, costumava se perguntar por que cargas d’água se havia casado com aquela mulher tão desleixada. Ela nem era propriamente um tipo de beleza de quem ele pudesse se vangloriar com os amigos no happy hour habitual das sextas-feiras. Eram amigos de infância, se conheciam desde um tempo que depois de um convívio mais prolongado nenhum dos dois conseguia mais se lembrar. Já eram amigos os pais. Costumavam se revezar na ida à escola. Os irmãos de ambas as famílias cresceram juntos. O namoro e o noivado de Raquel e José Eugênio pareciam fazer parte de uma rotina previamente programada. Adolescente, Raquel já se destacava entre as amigas como a que menos se preocupava com a aparência, que não chamava a atenção dos rapazes. Deixava o cabelo crescer a ponto de ganhar o apelido, mais jocoso que carinhoso, de Rapunzel. Nem sempre sua blusa escolar estava bem passada. A maioria das vezes, ao contrário, parecia que ela a havia tirado de dentro de uma garrafa para vestir. Nessa época, o aspecto desleixado da namorada não perturbava José Eugênio, embora ele fosse o mais alinhado da turma. E também o mais bonito. E o partido (era essa a expressão que se usava então) mais disputado no colégio e nas rodas sociais que ambas as famílias freqüentavam. Seu sapato estava sempre impecavelmente lustrado. A roupa, bem passada. A pele,

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra perfumada. Apreciava, é claro, o sucesso que fazia entre os brotos. Assim é que se chamavam as garotas naqueles anos. Fazia praça disso nos torneios esportivos colegiais, nos quais não chegava a ser um astro, porque não se destacava pela habilidade atlética, mas chamava a atenção pelo porte garboso. Apesar das enormes diferenças de temperamento, o casamento foi comemorado como uma espécie de conquista mútua das famílias do noivo e da noiva. Os pais dele, proprietários de uma indústria de porte médio, fizeram questão de lhes financiar a lua-de-mel em Paris. Os pais dela, do mesmo nível social, cederam um apartamento para que começassem a vida sem pagar aluguel. Ela acabara de receber o diploma de Direito numa Faculdade tida como a melhor. Ela começava a bem-sucedida, não tanto financeiramente, mas na certa social, carreira de pedagoga. Quando surgiram os primeiros sinais de que o casamento ruiria, Raquel mudou o comportamento. Passou a caprichar na maquiagem, mudou sutilmente o guarda-roupa, comprou camisolas mais sensuais para estimular a libido pouco entusiástica do amigo de infância que virou marido. Não era uma vida sexual das mais movimentadas, mas eles, que tinham um filho, terminaram gerando o segundo. Para ela, uma esperança de mantê-lo por perto. Que tivesse suas aventuras, porque os homens não são de ferro, graças a Deus, mas voltasse sempre para casa. Para ele, a prova definitiva de que aquele barco naufragaria inevitavelmente. Não haveria como mantê-lo à tona. O terceiro livro de Raquel foi lançado quando lhe nasceu a filha. José Eugênio, então, já havia saído de casa. A VOZ DO MORTO Hilda Hilst lamentava muito ter passado a vida inteira paparicando personagens. Que pena que este cadáver, esta vida imobilizada não tivesse surgido de um sopro dela. No entanto, o escribazinho filho da puta que o criou parece realmente fadado a repetir Ariano Suassuna, aquele escritor tirano que adorava torturar e até assassinar suas criaturas, desde que começou, ainda na infância, a engendrá-las, para horror dos parentes mais velhos. Imagine, caro leitor, o sofrimento de um ser, não se importa se real ou fictício, se gente ou figura de ficção, que por dever de ofício seja obrigado a tomar conhecimento das glórias e misérias do rival, daquele que sempre foi um obstáculo entre a dor e o prazer, entre a tristeza e a alegria, entre a angústia e a felicidade. É o que resta ao protagonista deste velório que virou romance. Ainda bem que o canalha não poderá continuar empulhando o leitor com excesso de particularidades sobre um tema paralelo de sua narrativa central e, quando sair desse sacrifício que impõe ao próprio protagonista, este filho da puta, este autor desnaturado vai ter de dedicar mais tempo, mais espaço à bela Zuca. Esta é a única razão pela qual este morto terá a lamentar, em definitivo, seu precoce desaparecimento.

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O CAIS DO PORTO Elsa era, então, uma adolescente pouco incomum, daquelas de rosto sardento e com muita acne. A VOZ DO MORTO Deo gratias! Até que enfim, algo agradável nesta narrativa. Prossiga, canalha! O CAIS DO PORTO Filha única, mas nada mimada, gostava de conviver com as amigas de sua idade, as colegas de classe, as filhas da amiga da avó, em cuja casa passava a maior parte do tempo, mais mesmo que no quarto amplo e confortável que tinha na casa paterna. Preferia o abrigo avoengo exatamente porque tinha a companhia das primas da mesma idade, um bando barulhento, alegre e alvoroçado que se reunia praticamente todos os dias para fazer verdadeiras expedições pelos baús repletos de roupas antigas muito limpas cheirando a naftalina, de misteriosos documentos e fotografias cuja antigüidade era denunciada pela tonalidade sépia do flagrante ou pelos estilos de cabelos e vestimentas usados pelos modelos. As fotografias mostravam uma gente estranha, embora familiar. A Zuca ficava horas com as primas tentando identificar quem era quem naqueles retratos. A própria avó. As tias. As bochechas coradas e o olhar brilhante e generoso do avô ilustre de quem todas elas só se lembravam do cheiro acre e forte do charuto que ele fumava com os amigos reunidos na biblioteca... A VOZ DO MORTO Ah, a biblioteca! Lombadas de livros alinhados nas estantes. Lombadas escuras, sombrias, misteriosas. Ah, o repositório das almas penadas, das vidas não vividas. Abrir as portas de madeira e vidro que escondiam aquele tesouro. Lembra-se do Tesouro da juventude? Você gozou na infância e na juventude aquele prazer inenarrável de folhear a coleção de capa dura, bebendo cada informação, se assombrando com cada aventura? Leu Os 12 trabalhos de Hércules, a adaptação do clássico grego por Monteiro Lobato, com caprichosas ilustrações, imagens que encantavam e puxavam pela imaginação antes do cinematógrafo? O CAIS DO PORTO

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Depois que o avô morreu, a biblioteca dele passou a ser o esconderijo favorito de Zuquinha e das primas. Elas costumavam abrir as portas de vidro que protegiam os volumes mais raros da coleção e os levavam cuidadosamente, como se fosse o sacrário empunhado pelo padre na procissão de Corpus Christi, sob o pálio, nas procissões. Em seguida, se sentavam sobre o tapete, com as pernas abertas e abriam o volume entre elas. Folheavam-no religiosamente contemplando a mancha negra das letras sobre o papel sem prestar atenção no que elas diziam. Era uma espécie de ritual de iniciação. A VOZ DO MORTO Perdão, leitor! Este cadáver, imobilizado pela paralisação do coração e pelo não funcionamento dos órgãos, todos eles, permite-se, pela primeira vez neste livro, ao prazer infinito de acompanhar, embora em breves cenas, a trajetória de um ser humano que significou uma graça, uma bênção na parte final de sua vida, aquilo que ele costumava chamar de um segundo tempo, quando, na verdade, não passava de uma prorrogação. Trata-se de um desvio da história toda da Patota dos sovacões solidários do recruta Pepé. Trata-se de algo certamente menos excitante e aparentemente até desconexo em relação ao que vinha sendo narrado. Mas é a pausa necessária para evitar que você desfaleça no ritmo vertiginoso dessa narrativa. E um momento de paz de cemitérios para um morto cuja exposição pública da própria vida e dos personagens dela não lhe tem sido até aqui permitido entre o falecimento propriamente dito e o sepultamento por vir. O CAIS DO PORTO No silêncio escuro, atro e úmido, no silêncio religioso e quase tumular daquela biblioteca, a menina Elsa sentia que tinha tudo de que precisava: paz e aventura, repouso e aventura, harmonia e confusão. Era como se a vida se resumisse àqueles momentos. Na adolescência, abandonou aquele refúgio, como um animal deixa a caverna para ir à caça. Foi à luta e deixou a biblioteca para trás, com os baús de roupas, fotos e papéis velhos e com as bonecas desengonçadas que mais amava. O engraçado é que quando encontrou João Miguel, por acaso, diante de um quadro numa exposição do pintor pop americano Roy Lichtenstein, ela estava em pleno revival dessas lembranças. A avó já morta, a casa habitada apenas por uma tia velha caduca. E ela se refugiava na biblioteca, como se nela encontrasse a calma que a vida adulta lhe tomara na infância. A VOZ DO MORTO

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Não dê um salto tão grande. Até chegar aí vai ser preciso revisitar a vida do traste, do indesejável, do empecilho, do muro que se ergueu para impedir que o futuro me sorrisse. De fato, não há como pular assim. É preciso ir passo a passo para o leitor não se perder no labirinto, ainda que os corredores sejam curvos e pareçam não ter fim. Não os labirintos de Borges, não a amarelinha jogada por Cortazar. Como dirá Bráulio Tavares, uma narrativa ao estilo “tire o fôlego do leitor”, à Jack Kerouac. Um romance beatnik. O CAIS DO PORTO Bonita, fresca, juvenil, Elsa, a adolescente de sardas e espinhas, com os livros na mão cruzava a calçada da avó quando foi pilhada pelo olhar inquieto do rapaz mais velho, bem vestido, que por ela passava. - Foi amor à primeira vista – ele garantiu, a vida inteira, apesar dos percalços, dos mútuos enganos, das mentiras úteis. - Ele estava saindo de casa. Eu fui a primeira que cruzei no caminho dele. Não resisti. Como ia resistir? Um homem bonito daqueles... A VOZ DO MORTO Também não precisa tripudiar. Está certo que o obstáculo para existir tem de ser construído. Mas é necessário fazer um pobre morto ser humilhado além da conta? O CAIS DO PORTO José Eugênio, o advogado bem-sucedido das multinacionais, a fonte permanente dos telejornais para assuntos técnicos de interesse geral, o manequim talhado para os ternos da moda, viu o futuro desenhado nos olhos gaiatos de Zuca. Previu os prazeres que encontraria em suas ancas. Percebeu a generosidade marota do sorriso dela. Sorriu-lhe com um ar que significava, simultaneamente, ambição, segurança e desejo. Elsa lhe sorriu de volta como se aquilo fizesse parte de um folguedo juvenil, como sorriria para um colega de classe, de sua idade, despertados os dois por um súbito desejo inconfessável, indescritível. José Eugênio era mais velho. E daí? O homem bonito que cruzou seu caminho era apenas um homem. E não lhe passou pela cabeça que ele poderia ser seu. Mas foi. A VOZ DO MORTO E como dói sabê-lo! O CAIS DO PORTO

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Ele anotou o endereço, guardou bem a hora, voltou ao local. Abordou a menina, levou-a ao cinema, namoraram. Foi um namoro tumultuado: os pais até que não se opunham tanto, mas a avó não suportava a hipótese de ver a bela e querida neta se envolvendo com um homem casado. Tentou impedir o inevitável. Não conseguiu, é claro. ATRÁS DO MURO Ah, os seios de Zuca! Seios fartos, generosos. auréolas infantis que se insinuam quase sem diferença de cor da pele clara... A VOZ DO MORTO Não, pelo amor de Deus! Isso não. É torturante demais que logo ela protagonize uma cena se sexo com ele. Lembre-se, seu autor de merda, da afirmação de Antônio Lobo Antunes, de que não há possibilidade de se escrever uma cena de sexo que não seja vulgar. O autor de Os cus de Judas, que era mui amigo de Jorge Amado, por exemplo, não apreciava sequer o decantado talento do autor baiano para narrar cenas sexuais. E justificava a completa abstinência de sexo em seus romances pelo fato de só ter lido, durante toda a vida, duas descrições bem-feitas de intercursos: uma, o de dois idosos em O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez. Outra, num best-sellerque nem valeria a pena lembrar. Lembre-se disso pelo menos para poupar seu protagonista do ciúme inconfessável, mas incontido, ao ler a descrição de uma cena de sexo dela com o homem que o impediu de ser feliz com ela. Arre! ATRÁS DO MURO Os seios de Elsa eram o que os romancistas românticos chamariam de opulentos. Fartos. Elsa nua à sua frente lembrava aquelas estátuas de deusas greco-romanas que simbolizavam a beleza pelos padrões da Antigüidade. Nada nela era acanhado. Tudo saltava à vista. A pele de alabastro. O volume dos seios. As ancas do desenho do bojo de um violão. O tufo de pêlos pubianos também se desenhava explícito sem aqueles cuidados que as mocinhas da geração dela tomavam para que não escapassem da calcinha do biquíni. Os grandes lábios se mostravam na vulva como se estivessem mandando um beijo estalado. Sólidas. Essa era a melhor definição para as coxas da Zuca. Sólidas, sim, nada discretas, mas certamente harmoniosas com o conjunto do corpo. O corpo daquela fêmea o enchia de um desejo que ele não conseguia controlar. Gostava de lhe acariciar as ancas, porque sabia, embora ela não confessasse, e ele nunca lhe houvesse perguntado, que aquela área de sua pele branca era muito erógena. Ele nunca havia antes conhecido uma mulher que reagisse com

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra tanto prazer ao toque nas ancas. Mesmo sobre o tecido. Mas agora ele lhe tocava as ancas nuas. Os dois estavam nus na cama. E sua mão saiu das ancas para envolver as duas nádegas. E acariciá-las. Mais que isso: apertá-las, beliscá-las. Ela gemeu. Ele não sabia se de prazer, dor ou medo. Ou as três sensações ao mesmo tempo. O feremônio invadia as narinas do casal, acelerando o senso de urgência dos dois. Quando ele a penetrou, ela estava inteiramente lubrificada. - Lindo! – ela disse. E, da forma como a pronunciou, não havia dúvida: a palavra não continha dor nem medo. Ela foi emitida embalada num invólucro em que só cabiam prazer e desejo. Ele correspondeu ao desejo com estocadas lentas e profundas. - Você está indo bem fundo. Muito dentro de mim. A VOZ DO MORTO Não, pelo amor de Deus, não ceda assim à vulgaridade. Seja elegante. Senhor narrador, atenda a meu póstumo desejo: não reproduza o que ela disse. Não. Recorra àquelas metáforas do cinema: a onda chegando à praia, o rio fluindo. Se for o caso, apele para as metáforas comuns: carrilhões de sinos, botões se abrindo em flor. Só não reproduza o que os casais costumam dizer na linguagem tatibitate do amor nessa hora profana, nessa hora secreta, neste instante sagrado. Profana sagração de todas as primaveras, invernos e verões. ATRÁS DO MURO Minutos depois, o desejo saciado, os dois conversavam sobre a bênção, a graça infinita que era terem chegado juntos ao orgasmo. Num uníssono de gemidos, gritos e sussurros, depois que suas estocadas lentas e fundas se tornavam mais rápidas, mas nem por isso mais superficiais. Ela se sentira invadir, primeiro por uma euforia infantil e, depois, por uma paz aguda e fina, que talvez só se encontrasse no fundo dos lagos mais profundos, que talvez só se encontrasse na morte. Numa pequena morte. Em todas as pequenas mortes que, somadas ao longo dos anos, produzissem o orgasmo definitivo, que é o da morte que não acaba, a morte, que, ao contrário da vida, não tem fim, é inifinita. A VOZ DO MORTO Talvez seja preciso tornar público o grato reconhecimento deste cadáver pela imensa consideração que, ao contrário do que vinha acontecendo até aqui neste texto, o autor teve de narrar a cena sexual que acaba de ser narrada. Não que ela tenha sido um primor de bom gosto. Certamente, ela está muito distante da discrição alcançada por García Márquez no intercurso de idosos

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra em O amor nos tempos do cólera. Dificilmente ela terá atingido o nível literário da cena em que, segundo Lobo Antunes, Jackie Collins se superou num best-seller que não teria como chamar a atenção se não fosse a tal cena de sexo entre seus personagens de romance barato. Seria o cúmulo da pretensão imaginar que o autor de Os cus de Judas incluísse o que acima acaba de ser narrado entre as exceções à lei dele, segundo a qual todas as cenas de amor carnal na literatura não passam de subliteratura vulgar, com intuitos popularescos, apostando no ponto abaixo da cintura que todo leitor tem no cérebro. Mais absurdo que isso seria o autor imaginar que Lobo Antunes pudesse enfim, ao se deparar com o terceiro exemplo de trepada bem narrada, abrir mão de sua decisão inamovível de jamais reproduzir uma num de seus magníficos textos de ficção. Mas se isso tudo é verdade e nem mesmo uma tentativa bajulatória de evitar que o autor continue agredindo este protagonista imóvel e indefeso poderá negá-lo, é preciso destacar a extrema gentileza, o fino cavalheirismo, com que o autor destas mal traçadas linhas deixou de definir o protagonista masculino da citada cena. Terá sido o advogado de empresas José Eugênio, em plena vigência de seu matrimônio com Elsa? Ou não, ou terá sido João Miguel, que agora está morto e não tem mais como usufruir das magnificências do amor carnal da mulher com a qual ele se dispunha a partilhar seu futuro, futuro que acabou com a morte e se confunde agora com o vazio do infinito que a grande morte, soma de todas as pequenas, traz? O leitor mais cínico dirá que havia um entusiasmo na cena que ela não poderia reproduzir algo que tivesse ocorrido sobre um legítimo tálamo conjugal. Contra tal cinismo convém argumentar que era Elsa quase uma menina quando juntou sua sorte à de José Eugênio, recém-separado de Raquel. E nos primeiros anos de matrimônio, a vida sexual costuma ser mais que satisfatória, entusiástica. Como não há uma definição precisa sobre qual foi o período do tempo em que se deu o abraço dos dois corpos nus e aquele orgasmo que, certamente, se repetiria, uma vez que não é possível que tanto ardor narrado se tenha resumido a apenas uma tentativa com êxito, não é possível definir, de forma isenta, se o ponto de vista masculino da cena narrada foi de José Eugênio, João Miguel ou ainda Abelardo, o respeitado neurocirurgião com quem a Zuca tivera um rápido affair de três meses apenas. O CAIS DO PORTO Elsa precisava saber se ela ainda era uma mulher desejável. Os dois filhos ainda eram pequenos, precisavam de sua atenção quase absoluta, quando ela se viu forçada a dividi-la com uma descoberta que a atingira como uma avalanche que desabara sobre ela. José Eugênio não a desejava mais como antes. O ímpeto diminuíra muito. As colegas médicas, reunidas no consultório do hospital, já lhe haviam informado que era assim mesmo. Com o tempo, com a criação dos filhos, com o convívio permanente, repetitivo e rotineiro, o

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra desinteresse sexual diminuía. Mas o de José Eugênio diminuiu rápido demais e se tornou quase inexistente. Talvez pudesse ser o consumo exagerado de cocaína. O marido era cada vez mais dependente. Os desafios profissionais seriam um bom pretexto: por mais próspero e bem-sucedido que ele fosse, mais ele se sentia desafiado a enriquecer ainda mais. Até que um dia algo mais perigoso chegou a seu conhecimento: José Eugênio tinha uma amante, aquele tipo de mulher que Jorge Amado chamava de “teúda e manteúda” nos romances do ciclo do cacau. - Eu só não entendo é por que ele se casou comigo. Afinal, ela já era amante dele no primeiro casamento. Raquel sabia – contou Elsa à maior amiga, desde a infância, uma prima. O primeiro impulso foi sair de casa, se instalar num flat com o casal de filhos ainda pequenos, se desdobrando entre o novo lar e o setor de oncologia do hospital, que ela dirigia. A forte decisão durou pouco. Flores, jóias e presentes com que ele a assediou a levaram de volta para casa. Nem se importou de ter de expulsar pessoalmente a amante, não mais aquela, mas a décima, ou décima quinta depois dela. José Eugênio, tão avaro em lhe dar prazeres carnais antes da sepração, foi sempre um mulherengo inveterado e, ao que parece, o consumo excessivo de cocaína havia varrido de sua memória e de suas preocupações quaisquer resquícios de escrúpulos. Quando voltaram a coabitar, o sexo se tornou uma obrigação semanal esporádica dos sábados à tarde. Ela, ainda uma mulher desejável. Seu colega mais brilhante, seu único confidente do sexo masculino passou a ser o cais em que jogou seu massame. Foi um caso rápido, que sucumbiu à vergonha de ela se encontrar com a mulher do amante, também colega de escola, e de este ser flagrado pela cônjuge. Foi um caso rápido, porque ela estava disposta a tudo para ficar com ele, mas Abelardo morria de medo de um dia serem flagrados e a mulher, Heloísa, ficar sabendo. Mas o caso só foi rápido porque ela lhe deu a chance de pular fora sem remorso e ele não a desperdiçou. Foi um caso rápido porque ela nem sabia, pensava que não, mas estava apaixonada por ele (ou começava a se descobrir apaixonada por si mesmo) e ele só queria uma aventura e tinha certeza de que ela, também, só queria uma aventura. Mas passou a se preocupar quando começou a sentir indícios que, bem, não era assim. Talvez ela tivesse outras expectativas em relação aos dois. A VOZ DO MORTO Sim. É preciso reconhecer que esta história precisava dar uma respirada. Essa história de revolução política e sexo, drogas e rock and roll podia cansar o leitor. Então, um pouco de romance daria o repouso da carga pesada e ainda poderia ligar novamente o interruptor do interesse do leitor. A VEZ DO LOUCO

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra E Dylan girando na vitrola sem parar: “ela tem tudo de que precisa” A VOZ DO MORTO De fato, nada lhe falta naquele casamento. Um marido bem-sucedido profissionalmente, próspero economicamente, respeitado socialmente. Dois filhos saudáveis, belos, esportistas, limpos, caretas. Um lar burguês sólido, diria, meio com asco, meio com inveja, um esquerdista de bar dos anos 60. Ela tinha tudo de que precisava. Teria amor? Afinal, a canção de Lennon e Mc Cartney garantia que tudo que alguém pode precisar é amor. De certa forma, uma versão nova daquele versículo da epístola de São Paulo aos coríntios, não é? Ih, desculpe, que escorregão: esse lugar comum é de doer, não é? Melhor prosseguir, hein? A VEZ DO LOUCO E Dylan girando na vitrola sem parar: “ela é uma artista, ela não olha pra trás”. A VOZ DO MORTO Sim. É isso mesmo. Se fosse possível definir a alma humana, que é invariavelmente tão complexa e variada, que é sempre tão surpreendente, numa característica, numa frase, talvez esse verso de Dylan traçasse o melhor retrato dessa mulher: a Zuca não olha para trás, se interessa apenas pelo presente. Para ela, o que passou só importa na medida em que o dia atual, a vida que passa, é uma conquista do que antes ocorreu. Zuca não coleciona ocorrências, mas acontecimentos. Ao contrário de Penélope, a agora viúva (e Elsa não é), ela não se esconde no passado com medo do futuro. Mas procura ficar permanentemente atualizada. Também não lê horóscopos, não consulta tarô, não crê em videntes. Pois acha que o futuro é e será sempre uma surpresa. E ela não quer perder a graça do inesperado, do inusitado, do que está por vir. A VEZ DO LOUCO E Dylan girando na vitrola sem parar: “Ela tem tudo de que precisa, ela é uma artista, ela não olha para trás. Ela pode apagar o escuro da noite e pintar o dia de preto.” A VOZ DO MORTO Pintar o dia de preto, que belo verso do sr. Zimmerman, hein? No entanto, injusto na definição de Elsa. Elsa ilumina a noite, sim, porque é um ser eminentemente solar. Funciona assim como uma espécie de lanterna a iluminar 143


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra os recantos escuros e soturnos dos sótãos recônditos das pessoas que convivem com ela: a avó, os pais, as primas, o marido, os filhos, os amantes. Mesmo às vezes sem perceber, essas pessoas tiveram baús abertos, teias de aranha espanadas e cantos escuros iluminados pela presença de seu sorriso discreto, por um gesto quase imperceptível de carinho, pela alusão a um livro lido, um filme visto, uma canção ouvida. A VEZ DO LOUCO E Dylan girando na vitrola sem parar: “ela nunca tropeça, ela não tem lugar para cair. Ela nunca tropeça, ela não tem lugar para cair”. A VOZ DO MORTO É claro que ela tropeça. Mas, de fato, a sensação de quem convive com ela é de que não há na Terra lugar para acolher seu baque. Como reza a letra de She belongs to me:She’s nobody’s child, the law cant’t touch her at all / “de ninguém ela é criança: a lei não a alcança”. Não é engraçado? A VEZ DO LOUCO E Dylan girando na vitrola sem parar: “Ela usa um anel egípcio que brilha quando ela fala. Ela usa um anel egípcio que brilha quando ela fala. Ela é uma colecionadora hipnótica, você é uma Antigüidade em movimento.” A VOZ DO MORTO Bingo! Gol! O poeta Dylan, que manda comprar um trompete para ela no Dia das Bruxas e uma bateria no Natal (não é engraçado?), cumpre, então, o destino dos poetas, a antena da raça, segundo Ezra Pound. Uma vez, você se deve lembrar muito bem, o poeta José Paulo Paes definiu poesia, numa conversa particular com você, como sendo a capacidade que um ser humano tem de, ao expressar um sentimento próprio, vivido ou não, traduzir de uma forma incomparável o sentimento que outra pessoa, ou seja o leitor, tem. Captar os sinais ou antecipar-se a eles – eis o destino da antena do gênero. O CAIS DO PORTO A primeira vez que se viram foi numa exposição do artista americano Roy Lichtenstein. A VOZ DO MORTO

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Não lhe parece estranho que, como o disco de vinil, a revolução socialista, os hippies, o amor, o sorriso e a flor e outras modas de sua geração, também a arte pop tenha desaparecido? Não lhe parece instigante que Andy Warhol tenha virado peça de museu – não importa se o retrato de Marilyn Monroe ou o falo de um amante anônimo (terá Lou Reed sido realmente amante de Warhol?). Na verdade, no século 21 a maior contribuição de Warhol não parece ser das artes plásticas, mas da sociologia. As enquetes dos telejornais e os reality shows tornam cada vez mais próxima de se realizar a profecia dele de que um dia todos serão famosos pelo menos por quinze minutos. Ou teriam sido cinco? O CAIS DO PORTO Elsa não sabia se tinha feito bem quando disse a Abelardo que o melhor a fazer, se tinham de continuar trabalhando juntos, e juntos com Heloísa, também médica, era deixarem de se encontrar furtivamente, acabar o caso ali mesmo. E ela não sabia se tinha feito bem porque, algum tempo depois, na cama com João Miguel, confessou que ela daria tudo na vida para ouvir dele: - Não, meu bem. O que é isso? Vamos continuar. Tolice. Qual o quê! Ele aceitou a proposta imediatamente, como faria qualquer macho que já tivesse provado o gosto secreto da fêmea ao lado e fosse mimoseado com a oportunosa ensancha de pular fora de um relacionamento que não nascera mesmo para ser sólido e perene, pelo menos do ponto de vista dele. E se foi. Elsa ficou inconsolável. Mas como poderia ficar chorando pelos cantos com os filhos andando pela casa, com o marido chegando do trabalho? Por mais desligado que ele fosse – e ele era -, um dia perceberia. Conseguiu o pretexto de passar o tempo do luto fora e não o perdeu. Viajou para fora do país para fazer uma palestra num congresso sobre novas técnicas de combate ao câncer. Chorou a viagem inteira, silenciosamente, envergonhada com o vexame. Nada a constrangia mais do que o pranto acompanhado. Sentia-se nua no avião lotado de desconhecidos. João Miguel estava na mesma cidade e na mesma ocasião também para atender a compromisso profissional. A VOZ DO MORTO Na verdade, esses congressos acadêmicos podem ser definidos com mais exatidão como oportunidades de turismo que propriamente como compromissos profissionais. Hahaha! O CAIS DO PORTO

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Ela estava diante do quadro Step-on-can with leg, de Roy Lichtenstein. Um quadro em dois movimentos como uma seqüência de cinema ou uma tira de quadrinhos de jornal. Primeiro movimento: um pé feminino, um sapato com lacinho sobre o peito do pé, um balde florido. Segundo movimento: abre-se a tampa do balde. - Chutando o balde – traduziu ele, com a nítida intenção de puxar conversa, mas fingindo cochichar para si mesmo. Abriu-se um sorriso no rosto de Elsa. Um sorriso tímido, mas luminoso. Sorriam mais os olhos que os lábios. Lábios pintados discretamente, ele observou. Bela boca. Queixo bem desenhado. Olhos brilhantes, promissores., Canalha, ele pensou, num impulso autocrítico. A VOZ DO MORTO Na verdade, Lichtenstein pode ser a exceção dos artistas pop que sobreviverão nos próximos 100, 200 anos. Qualidade, precisão, uso pleno e econômico dos recursos plásticos. O CAIS DO PORTO Seu primeiro impulso foi não dar o segundo passo, depois do comentário. Na verdade, não era sua intenção conhecer ninguém, conversar com ninguém, encontrar ninguém. Ela fora à exposição para se esconder do marido, dos filhos, das primas, dos amigos, de todos. Ela só queria estar só por um tempo. Mas a voz lhe soou cálida, familiar. Não resistiu a responder. Conversaram como se fossem amigos de infância. Uma sensação que ele, que nunca antes havia abordado uma desconhecida daquele jeito, e ela, que também era muito reservada, jamais tinham experimentado. A VOZ DO MORTO Foi como abrir a porta que dá para a varanda de sua casa e encontrar o mar no lugar do jardim. Ela não percebeu isso. Ela nunca percebeu isso. Elsa tem um tal senso de proporção, um espírito tão pragmático que ela nunca foi capaz de perceber completamente qual o impulso que moviam as pessoas de seu convívio em sua direção. Não é bem modéstia. É uma espécie de hiperrealismo nada narcísico. A VEZ DO LOUCO E Dylan girando na vitrola sem parar: “Acene pra ela no domingo e a cumprimente quando seu aniversário chegar”. A VOZ DO MORTO 146


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Elsa era uma pessoa sempre surpreendente. Encontrá-la mais uma vez era como se fosse encontrá-la pela primeira vez. Sua chegada provocava uma sensação de frescor. Como abrir uma porta e entrar uma lufada de ar. Como abrir uma janela e tropeçar num raio de sol. Nesse ponto de vista, todo dia era aniversário dela. Pois ela era a metáfora carnal da vida. E a vida faz aniversário todo dia. Dizer que ela me pertence, como Dylan no título da canção que a retrata, mais que isso a flagra, era um excesso de pretensão, um excesso de ambição. Elsa não pertence a ninguém, nem a si mesma, nem aos filhos ou ao lar, que quis abandonar, mas nunca mais quis, quer ou vai querer abandonar. Como a vida, de que é a melhor metáfora disponível, Elsa não tem dono, não tem hora nem lugar. Elsa nunca é nunca. Elsa é sempre mais. O CAIS DO PORTO Os dois riram muito diante do quadro The engagement ring. Nele o pintor registra um quadrinho da heroína Winnie Winkle, de Branner, no qual ela diz: “Não... não é um anel de noivado. É?” - Cuidado, mocinha: saiba que a diferença entre amor e humor é apenas uma sílaba. - Ah, é? - Sabia não? A VOZ DO MORTO Não. Infelizmente não era. Mas esta história terá de ser contada depois. Bem depois. Capítulos à frente. O CAIS DO PORTO Agora é hora de registrar que, a milhares de quilômetros longe dali, Penélope contava a uma classe de alunos indiferentes (e certamente ignorantes) como os gregos resistiram no desfiladeiro de Termópilas. Enquanto longe dali, anoitecia. Ou melhor: Anoitecemos como Penélope

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JOSÉ NÊUMANNE PINTO 18 de maio de 1951 - Uiraúna, Paraíba, Brasil. JORNALISMO 1968/69 Diário da Borborema, Campina Grande, PB - Repórter 1970/75 Folha de S. Paulo - Repórter 1975/86 Jornal do Brasil - Repórter da sucursal de São Paulo (1975/83) - Secretário de redação (1983) - Chefe da redação (1984) Repórter especial da sucursal de São Paulo (1985/86) 1986/91 O Estado de S. Paulo - Editor de política (1986/88) - Editor de opinião (1988/89) - Editorialista (1989/91) 1991/96 Assessor político e ghost writer do senador José Eduardo de Andrade Vieira, ex-ministro da Indústria, do Comércio e do Turismo e da Agricultura 1994-96 El Nuevo Herald - foi colunista, com um artigo semanal sobre Brasil na edição em castelhano do jornal “Miami Herald”1996-97 e 20042006) Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) - comentarista político e econômico no programete diário “Direto ao assunto” Desde 1996 Jornal da Tarde - Editorialista Desde1996 Rádio Jovem Pan - comentarista: coluna “Direto ao assunto” no “Jornal da Manhã” e na “Hora da Verdade” 2000 Cineclick – colunista semanal do site, especializado em cinema PRÊMIOS E CONDECORAÇÕES 1975 Prêmio Esso de Jornalismo Econômico (com Maria Inês Caravaggi), pela série “Perfil do Operário Brasileiro Hoje” (“Jornal do Brasil”) 1975 Troféu Imprensa de Reportagem Esportiva (com Paulo Mattiussi), pela reportagem “Éder Jofre e o Boxe Brasileiro” (“Jornal do Brasil”)

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra 2005 Prêmio Senador José Ermírio de Moraes, da Academia Brasileira de Letras, de melhor livro de 2004, com o romance O silêncio do delator, A Girafa Editora. 2005: Troféu Personalidade TV Tambaú. Reportagem biográfica completa da TV Tambaú, sob a direção do jornalista José Vieira Neto, exibida na noite do Prêmio Personalidade TV Tambaú, recebido por José Nêumanne. 2005 O romance O silêncio do delator também figurou entre os 14 finalistas do prêmio de melhor livro de 2003/2004 da Jornada Literária de Passo Fundo (RS), em 2005, vencido pelo romance Budapeste, de Chico Buarque de Holanda. 2005 O romance O silêncio do delator também foi relacionado entre os dez finalistas do Prêmio Literário da Portugal Telecom, de 2005. 2007 (26 de outubro): Medalha José Lins do Rego do Mérito Literário, concedida pela Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba. 2008. Homenagem do Conselho de Desenvolvimento Econômico de São Bernardo do Campo. Iniciativa do prefeito William Dib e do secretário de Desenvolvimento e Turismo, Fernando Longo. 2008 (terça-feira 22 de julho): Posse na Academia Paraibana de Letras. Cadeira n. 01, Patrono Augusto do Anjos.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

JOSÉ NÊUMANNE PINTO POR ELE MESMO Uma dúzia de receitas para livro ou CD Diante da perspectiva agradável de lhe contar, preclaro leitor, patrão e objetivo de qualquer escritor que se preze, como escrevo meus livros, descubro, entre confuso e espantado, que, da mesma forma como meus poemas, os 11 títulos que assinei (além do CD que gravei) têm histórias tão diferentes que o melhor meio de dar a receita será resumir na medida do possível a história particular deles.

Mengele: A natureza do mal. São Paulo: EMW, 1985, romancereportagem. Romance-reportagem lançado pela EMW Editores, de São Paulo. Eu era repórter da Sucursal do Jornal do Brasil do Rio em São Paulo e tive acesso privilegiado, graças ao então diretor do Dops, delegado Romeu Tuma (depois senador pelo PFL de São Paulo), e ao legista Nelson Massini, então na Unicamp, às informações sobre a descoberta da ossada do célebre criminoso de guerra nazista Josef Mengele num cemitério de Embu, na Grande São Paulo. Os colegas jornalistas Luiz Fernando Emediato e Marcos Wilson eram sócios na editora que me encomendou o livro, feito na esperança de nos aproveitarmos do interesse internacional do assunto. Os colegas da Sucursal coletaram vários dados sobre a descoberta da ossada e a vida pregressa de Mengele no Brasil e eu redigi o texto final, preenchendo as lacunas da parte ignota da vida do protagonista com capítulos romanceados. Ocioso dizer que demos, os colegas, os editores e eu, com os burros n’água. O livro fracassou comercialmente, nunca despertou o interesse de ninguém no exterior, não tendo sido, portanto, traduzido nem inspirado algum filme, como tínhamos a pretensão de que acontecesse.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra As tábuas do sol. São Paulo: EMW, 1985, poesia.

Coletânea de poemas, editada pela Secretaria de Cultura do Estado da Paraíba. Escrevo poesia desde os 14 anos e foi juntando todos os meus poemas inéditos em escarcelas de cartolina. Na juventude, pertenci ao grupo do poema/processo, que radicalizava a proposta da poesia concreta, abolindo o uso da palavra. Passada a febre vanguardista, peguei as velhas pastas, exumei os poemas verbais abandonados e lhes dei um tratamento crítico. A idéia era publicar poemas verbais e visuais numa coletânea chamada Ploft, que submeti ao poeta José Paulo Paes que, à época, trabalhava na Editora Cultrix e que eu havia conhecido como repórter da Folha de S. Paulo e depois do Jornal do Brasil. Com as bênçãos de José Paulo e até um texto de introdução escrito por ele, levei os poemas àquela que considerava a maior editora na ocasião, a Nova Fronteira, do Rio de Janeiro. Lá me surpreendi com a presença de um velho amigo, Pedro Paulo de Sena Madureira, que havia conhecido na Editorial Bruguera, em Olaria, onde ambos trabalháramos em 1969. Pedro deu o retoque final no livro, exigindo a retirada dos poemas visuais e reordenando os verbais. José Louzeiro, que havia sido meu colega na reportagem da Folha e então já era conhecido pelo sucesso de seu livro, Aracoeli, meu amor, me sugeriu o título retirado de um poema (“Tríptico Marinho”). A saída de Pedro da Nova Fronteira para a Salamandra, levou-me a mandar os originais para meu amigo Luiz Augusto Crispim, que era secretário da Cultura do Estado da Paraíba. O volume acanhado espantou seu chefe, o governador Milton Cabral, que ao receber o exemplar que lhe mandara pelas mãos de meu pai, Anchieta Pinto, exclamou: “Mas é um livrinho!” O livrinho, com belas ilustrações de um conterrâneo querido, Ciro de Uiraúna, está esgotadíssimo e é muito raro encontrar exemplares doados a escolas do interior da Paraíba ou simplesmente... perdidos.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

Atrás do palanque: Bastidores da eleição presidencial de 1989. São Paulo: Siciliano, 1989, reportagem

Reportagem sobre os bastidores da eleição presidencial de 1989. Eu era editor de Política do jornal O Estado de S. Paulo e, estimulado por meu chefe, Miguel Jorge, saí a campo para cobrir a primeira eleição presidencial direta em 29 anos. Viajei e entrevistei os dez principais candidatos daquela campanha memorável. Escrevi no calor da hora e a realidade me fez acrescentar trechos ao texto original. Encomendado por Pedro Paulo, então na Siciliano, o livro foi um sucesso de vendas: ficou seis meses na lista dos dez mais vendidos da Veja e compareceu nos dez mais vendidos do ano. O maior elogio que recebi por causa dele foi dado pelo biógrafo de Che Guevara, que depois seria chanceler mexicano Carlos Castañeda. Nos bastidores de um Roda Viva, na TV Cultura, ele me disse: “Tudo o que sei de Brasil aprendi com seu livro”. Não sei se Castañeda sabe muito de Brasil, mas que foi gratificante ouvir isso, ah, se foi!...

Reféns do passado. São Paulo: Siciliano, 1992, artigos e ensaios políticos.

Coletânea de ensaios e artigos políticos publicados na imprensa, encomendada por Pedro Paulo de Sena Madureira para a Editora Siciliano. Não gosto da idéia de reunir textos de jornal em brochura, mas fui convencido a fazê-lo. Embora tenha preparado um ensaio específico para abrir o livro, não gosto do resultado final. Nem o leitor gostou: o livro, como era de esperar, fracassou nas prateleiras.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Erundina: A mulher que veio com a chuva. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989, perfil biográfico.

Perfil jornalístico e biográfico da ex-prefeita de São Paulo Luiza Erundina de Souza. Eu era editor de Política do Estado de S. Paulo, quando a então deputada estadual petista ganhou a eleição de Paulo Maluf. Atendendo a pauta de Augusto Nunes, que era diretor de redação do jornal, passei o fechamento da edição histórica para meu sub à época, o competente Wagner Kotsura, vulgo “Alemão”, apesar de ser descendente de russos, e me tranquei numa saleta de editorialistas para entrevistar vizinhos e amigos de infância da vitoriosa na eleição, que, por coincidência, havia nascido na mesma pequena cidade sertaneja, onde eu também nasci. Escrevi um perfil dela. Fernando Pedreira, que havia sido meu chefe no Jornal do Brasil, foi quem teve a idéia de me propor o livro e sugeri-lo a um amigo dele, empresário mineiro que morava no Rio e era dono da editora Espaço & Tempo. Viajei para a Paraíba com Erundina, que comemorou o aniversário (30 de novembro) em nossa cidade natal. Ela viajou comigo de Campina Grande a Patos e me deu a entrevista que faltava para completar o texto final, escrito num computador que havia comprado numa viagem a Londres para ver in loco a experiência de Dame Margaret Tatcher, comandando a privatização à inglesa. Foi a primeira vez que usei computador, por insistência de outro antigo colega do JB, Noênio Spinola, que defendia tão ardorosamente a informática que ganhou o apelido jocoso de “índio eletrônico”. Fi-lo na casa de meu cunhado Aluísio Felizardo do Nascimento Filho em Natal, Rio Grande do Norte, e também na casa de meu sogro, Aluísio Felizardo do Nascimento, no Ponto de Cem-Réis, em Campina Grande, Paraíba. O dono da editora morreu num desastre aéreo e o livro demorou a sair, perdendo o calor da hora. Mesmo assim, fez imenso sucesso no lançamento (mais de 400 livros foram vendidos no na Livraria Cultura, no Conjunto Nacional e houve gente que foi lá e, ainda assim, não conseguiu comprá-lo), mas nisso parou sua carreira. Logo estaria esgotado.

Barcelona Borborema. São Paulo: Geração Editorial, 1992.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Poemas sobre a arquitetura de Gaudi e o forró de Campina Grande. Naquela mesma viagem à Europa para conhecer projetos de privatização, conheci Barcelona e confirmei uma antiga paixão infantojuvenil (inexplicável) pela capital da Catalunha e pela obra do mais importante arquiteto modernista da Europa. O impacto do Parque Güell e da Sagrada Família sobre mim foi tal que ao embarcar para Paris escrevi os primeiros versos da série “Barcelona” num guardanapo cedido pela aeromoça. Vários dos 25 poemas dessa série foram escritos em guardanapos de aviões e de restaurantes e papel de correspondência dos hotéis de Paris e Londres, por onde passou o grupo com que eu estava e que tinha antes visitado Madrid e Barcelona. Guardei as anotações numa gaveta e muito tempo depois a abri, li, fiz correções e pensei no primeiro projeto: um livro de poemas intitulado 24 horas de Gaudi. Procurei o publicitário barcelonês Francesc Petit, da DPZ, e lhe propus que traduzisse os poemas para o catalão e fizesse um contato com a Generalitat da Catalunya para possibilitar uma edição trilíngüe português-castelhano-catalão. Apesar de catalão, Petit não escreve em catalão. Inês, sua mulher, que é brasileira, escreve. Ele me aconselhou que eu obtivesse uma espécie de aval literário do poeta Mário Chamie. Mário escreveu um competentíssimo posfácio para o livro, que mudou de figura. Convidado por Sérgio Reis, diretor de marketing do Bamerindus, fui ver Antonio Gades dançar Carmen no Teatro Guaíra, em Curitiba. Dali me veio a idéia de escrever uma série sobre dança, o forró de Campina Grande, para servir de contraponto à arquitetura de Gaudi. E resolvi fazer um livro simétrico: 25 poemas sobre Barcelona, 25 poemas sobre Campina Grande (a Rainha da Borborema) e um sobre Gades (o poema vírgula) fazendo a passagem entre a arquitetura e a dança. O 25° poema, depois de muito tempo, me veio num sonho. É o único que nunca foi retocado, com a ajuda feroz de meu amigo editor, Pedro Paulo de Sena Madureira. Mas não foi ele quem editou o livro e, sim, Luiz Fernando Emediato, que agora tinha outra editora, sozinho, a Geração Editorial. O livro saiu com ilustrações, diagramação e capa de Petit e foi publicado porque eu, que fizera sucesso escrevendo um livro sobre a ascensão de Collor, topei a proposta do jornalista, escritor e editor para descrever o processo de sua derrubada.

A república na lama: Uma tragédia brasileira. São Paulo: Geração Editorial, 1992.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Relato do folclore da República de Alagoas e história de sua queda. À época, eu era assessor do banqueiro e presidente nacional do PTB, senador José Eduardo de Andrade Vieira, no Senado. Ele me incentivou muito para que eu aproveitasse o ponto de vista privilegiado para descrever a queda do “carcará sanguinolento” da Presidência da República. Escrevi o livro no calor da hora, acompanhando os acontecimentos, tal como o fizera antes com Atrás do Palanque. Como aquele, é um livro feito às pressas, mas o resultado final me agrada muito. Fez muito sucesso de vendas e teve três edições.

Veneno na veia. São Paulo: Siciliano, 1994, romance policial. Romance policial sobre o episódio dos “anões do Orçamento”, publicado pela Editora Siciliano. O ator e escritor Juca de Oliveira me propôs que escrevêssemos uma comédia a quatro mãos sobre a rede de intrigas de Brasília, inserindo-a nos sete pecados capitais. Chegamos a trabalhar juntos três meses no esboço da comédia, mas ela não decolou. Juca abandonou o projeto para escrever seu grande sucesso, Caixa 2, e eu aceitei a proposta de Pedro Paulo de Sena Madureira, da Siciliano, para tentar realizar um best-seller programado. Li um livro que ele me deu do agente literário do best seller americano Ken Follet e fiz o que mandava a receita: planejei o livro, capítulo a capítulo, aproveitando o motivo dos sete pecados capitais da comédia que não escrevemos Juca e eu. Resolvi contar a incrível história do burocrata (José Carlos dos Santos) que matou a mulher para queimar arquivo e aproveitar para falar de Brasília, da mesma forma como havia aproveitado do episódio da vitória eleitoral de Erundina para falar de meu sertão natal. Um livro, Brasília, uma cidade modernista, do antropólogo americano James Holstein, me serviu de guia para traçar o perfil da cidade. Escrevi um roman-à-clef, como se diz em linguagem teórica. Ao me referir a ele num seminário de literatura no Teatro Municipal de Campina Grande, disse: “Este não é um romance de aventuras, mas um romance sobre nossa desventura”. Ariano Suassuna me telefonou pedindo para usar a frase como epígrafe do romance que ele estava escrevendo. Ah, e tem mais: fui à estréia de Caixa 2, no Teatro Cultura Artística, fiquei na primeira fila, ri para valer, gostei muito e, depois de aplaudir muito, fui à coxia cumprimentar Juca. E lhe disse: “Juca, esta é a melhor contribuição que eu poderia dar ao teatro brasileiro”. Juca estranhou: “Mas a peça não tem nada seu”. E eu concluí: “Exatamente por isso”.

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra Solos do silêncio. São Paulo: Geração Editorial, 1996. Poesia reunida, editada por Luiz Fernando Emediato na Geração Editorial. Ele mesmo cuidou do projeto da capa e eu reuni tudo o que tinha produzido até então: As tábuas do Sol, Barcelona, Borborema, poemas inéditos e algumas traduções. A respeito das traduções, meu amigo Alexandre Daunt vivia me citando uma frase de Millôr Fernandes que, segundo ele, dizia que o importante para o tradutor era dominar bem a língua para a qual traduzia, não tanto a língua da qual traduzia. Fiz um teste e, além de traduzir o magnífico soneto “Les voyelles”, de Artur Rimbaud, passei para o português poemas do catalão, que não falo e não leio, para provar que Millôr estava certo. Contrariando minhas expectativas e do editor, o livro chegou à segunda edição.

As fugas do sol. São Paulo: CPC-UMES, 1998, cd, diretor-artístico, Marcus Vinícius de Andrade.

CD em que leio poemas de minha autoria com trilha sonora original do maestro Marcus Vinicius de Andrade, lançado pelo selo CPC/Umes. Certo dia, a convite de minha amiga Maria Elisa Porchat, li meu poema “Seara de Saramago” (de As Tábuas do Sol) em seu programa na rádio Trianon, de outro querido amigo, Fernando Vieira de Mello. Tereza Rachel, a mais maravilhosa voz do teatro e da televisão e ex-mulher de meu amigo cineasta Ipojuca Pontes, me telefonou para dizer: “Nunca mais leia seus poemas. Eles são lindos demais e você os lê muito mal”. Citei essa frase da atriz ao maestro, meu amigo de infância, quando ele me convidou para fazer o segundo título da coleção “Poesia Viva”, que tinha sido aberta por Mário Chamie, com Caravana Contrária. Mas Marcus insistiu e lembrou que a experiência de dois comentários diários na Rádio Jovem Pan me havia ensinado a colocar melhor a voz. Ele tinha razão: orgulho-me do resultado final. Digamos que seja um livro de poemas, só que para ser ouvido, e não lido.

Os cem melhores poetas brasileiros do século. São Paulo: Geração Editorial, 2001. Antologia preparada por encomenda de Luiz Fernando Emediato, da Geração Editorial. Emediato estava impressionado com o sucesso da 158


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra antologia que Ítalo Moriconi fez dos melhores contistas e resolveu sair antes com a dos poetas. Entreguei-me ao trabalho com a competente ajuda do professor maranhense da Universidade Federal da Paraíba Rinaldo de Fernandes. Tentei fazer um trabalho de editor de jornal e o resultado, com trabalho gráfico magnífico de Tide Hellmeister, que eu sugeri ao editor, foi pra lá de satisfatório. Apesar do bafafá causado entre os poetas preteridos. Uma cisterna até aqui de mágoa... Ainda assim, valeu.

O silêncio do delator. São Paulo: A Girafa, 2004, Prêmio José Ermírio de Moraes, da Academia Brasileira de Letras. Romance editado por A Girafa Editora em 2004. Em 1984, imaginei escrever um romance sobre um triângulo amoroso formado por passado, presente e futuro, sob o título de O enigma do vôo 160. Escrito a máquina, o texto, muito complexo formalmente, foi submetido ao poeta Álvaro Mendes, que o considerou de má feitura. Projetei, depois, encaixar nesse projeto outro, no qual homenagearia os 20 anos do lançamento do LP dos Beatles Sergeant Pepper’s lonely hearts club band, em 1986, mas não levei o projeto adiante. Anos mais tarde, imaginei adaptar o samba de Paulinho da Viola O velório de Heitor ao filme Rashomon, de Akira Kurosawa, mas também não o realizei. Em fins de 2003, ao ver o filme As invasões bárbaras, de Denys Arcand, tive a impressão de que o cineasta adaptou o romance que não havia escrito sobre o fracasso da geração que viveu a fervura dos anos 60 e malogrou na revolução política, que terminou nas ditaduras de direita e de esquerda, e na dos costumes, pois o amor livre desembocou na “galinhagem” generalizada. O filme sugeria uma forma simples (“texto zero”) e o desfecho mais “natural” que o do texto inicial (em que o protagonista jogava o carro embaixo de uma carreta na Via Dutra). Ao longo de dez meses, escrevendo um capítulo por semana, travei uma batalha com o texto. Segui o conselho de meu amigo de infância Bráulio Tavares de escrever sem olhar para trás e terminei não virando mesmo uma estátua de sal, como a mulher de Lot: só parei para reler depois de ter escrito a palavra Fim. Mas meu projeto de “texto zero” sucumbiu e mais uma vez predominou em mim o “James Joyce de Bodocongó” sobre o “Machado de Assis do Rio do Peixe”. Radicalizei na verossimilhança ao substituir a agonia do filme pelo velório no livro, mas recorri a uma estrutura polifônica (sete vozes, baseadas me versos do samba A voz do morto, de Caetano Veloso), dando ao cadáver a parte do corifeu. Escrevendo o livro, ocorreu-me que a vitoriosa da geração dos anos 60 foi a mulher e que o português Lobo Antunes tinha

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra razão quando escreveu que um bom livro se faz, não é feito. Tomara que ele não tenha tido razão quando disse que não há cenas de sexo bem realizadas literariamente: neste meu livro, o sexo é importante e foi narrado da forma mais poética possível

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

LANÇAMENTO 2011

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra O que sei de Lula. Rio de Janeiro: Topbooks, 2011. “Sinopse: Esta obra relata episódios na vida do ex-presidente, como a reunião de Lula com um emissário do Planalto no governo Figueiredo, o major Gilberto Zenkner. E acompanha a trajetória do menino retirante do sertão de Pernambuco à Praça dos Três Poderes.”

RESUMO DA CRÍTICA Nêumanne escreve porque esteve lá, diante do evento que estava sendo gerado. É irretorquível, portanto, o caráter conservador de Lula e de sua turma. Não dá, depois das páginas deste livro, para tagarelar em ‘esquerdês’ no caso do gárrulo presidente. Roberto Romano

Neste livro, Nêumanne nos dá uma contribuição extraordinária para entendermos as idas e vindas de quem se definiu como metamorfose ambulante. Leôncio Martins Rodrigues

Para conhecer as mazelas e as involuntárias virtudes de Lula é preciso conhecê-lo. O livro de Nêumanne pode ser a chave para decifrar o enigma. O inconsciente é um oceano de verdades recalcadas. Ronald de Carvalho

Eu jamais poderia dizer de Lula o que digo aqui sobre o autor deste livro: José Nêumanne, excelente profissional, é antes de tudo homem confiável. Moacir Japiassu

Fascinante na forma de narrar, no conteúdo sólido e na construção precisa e detalhada do personagem. Transcende ao Lula. É uma aula de política brasileira. José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (Boni)

É nitroglicerina pura. E com o tempero de um gourmet da palavra. Alexandre Garcia 162


Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

O que se esconde por trás do mito? O que faz o líder da resistência democrática utilizar a democracia para dar vazão a seus arroubos autoritários? Qual a verdadeira trajetória de Lula? Este livro de José Nêumanne se parece com o José Nêumanne: corajoso, vibrante e verdadeiro. Rubens Figueiredo

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Especial O Silêncio do Delator. Fortuna Crítica e Fragmento da Obra

2012 ANO VI

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