HISTORIAL DA VITICULTURA E DA VINICULTURA NA ILHA DO FOGO Não é fácil falar da história dos primórdios da ilha do Fogo estando sedeado nela. Não obstante haverem muitos documentos históricos que abordam o seu percurso, muitos outros e bons encontram-se fora, de modo que o historiador, enquanto residente, enfrenta dificuldades diversas na construção da história da ilha. Os documentos constituem condições necessárias para que o historiador escreva sobre o passado; aliás, nenhum historiador comprometido com a verdade histórica corre o risco de a construir sem documentos. Sobre a vinha e o vinho no Fogo fizemos um enorme esforço de pesquisa, cujo objectivo foi o de encontrar documentos que nos facultassem informações e estamos convictos de que os encontrados, e nos quais nos apoiamos, nos ofereceram dados que nos permitiram analisar o assunto com precisão.
A ilha de Sam Filipe, hoje do Fogo, entrou na história a partir de 1460, junto com as demais ilhas chamadas orientais (Santiago, Maio, Boa Vista
e Sal), aquando da chegada dos primeiros descobridores (António da Noli e Diogo Gomes).
O seu povoamento iniciou-se alguns anos após o povoamento da ilha de Santiago com algumas pessoas vindas da Ribeira Grande (1o Foco Populacional), outras vindas da Europa e da Costa Ocidental Africana, principalmente da região então chamada Guiné. A fixação do primeiro contingente humano na ilha, assim como em Santiago e nas outras povoadas posteriormente, não foi fácil, devido à agressividade do clima, à aridez do solo, à escassez de recursos naturais, etc. Nesta ilha pode dizer-se que o povoamento decorreu entre 1480 e 1493 e as primeiras actividades praticadas foram a agro-pecuária e o comércio.
Os portugueses, no momento do povoamento das ilhas de Cabo Verde, principalmente as de Santiago e Fogo, tiveram a preocupação de trazer para cá as culturas alimentares mediterrânicas que faziam parte dos seus hábitos alimentares. Vasculhando alguns documentos percebemos que a vinha não chegou nos primeiros momentos do povoamento das ilhas. O sociólogo Cláudio Furtado afirma que “ a colonização e o povoamento das ilhas de Cabo Verde são acompanhados de introdução de novas culturas, como a do milho, a cana-de-açúcar, mandioca, o arroz, o algodão” . O historiador António Carreira, ao falar das primeiras culturas alimentares, também não frisou a entrada da vinha. Aug. Chevalier afirma que “ La Vigne a été cultivée aux îles du Cap Vert depuis le XVIe Siècle. Pendant près de deux siècles et jusqu’au milieu du XIXe siècle les îles du Cap Vert produisirent du vin qui s’exportait au Brasil.”
Relativamente às pesquisas feitas, as informações mais antigas sobre a vinha no Fogo são as extraídas da carta de 01 de Agosto de 1606 em que o Padre Baltasar Barreira diz que no Fogo “há vinhas de que se faz muito e bom vinho.” Depreendemos que a cultura da vinha só se efectivou no Fogo a partir do século XVI. Conclui-se então que os primeiros produtos agrícolas a chegar ao Fogo foram: cereais, algodão e vinha sendo que este último produto só entrou nos meados do século XVI. António Correia e Silva confessa que “é nas zonas húmidas do Norte da freguesia de São Lourenço do Pico, sujeitas aos alísios, que aparecem, com maior expressão, as culturas alimentares”. Depreende-se então, através dos escritos do supracitado historiador, que as actividades agrícolas tiveram o seu início na região que constitui hoje uma parcela da freguesia de São Lourenço. Em algumas regiões dessa freguesia como as de Mira-Mira, Monte Tabor, Serrado, Pico Pires, Pico Gomes... constituíram os primeiros focos das culturas alimentares. De entre as culturas alimentares cultivadas no Fogo a partir do século XVI destaca-se a vinha sendo “uma das culturas de destaque no Norte da ilha”. Segundo Correia e Silva, os documentos notariais relativamente ao cultivo de produtos alimentares abundam, sendo de referenciar a vinha “quer a propósito da
inventariação, quer tratando-se da doação ou vinculação de propriedades”, o que, segundo ele, “não deixa de demonstrar a importância que se lhe dava, não tanto pela extensão, mas sobretudo pelo apreço do êxito de uma cultura ingrata em climas tropicais” . Nos primórdios da sua chegada a vinha era cultivada em Santo Antão, São Nicolau, Brava, Santiago e no Fogo mas só nesta última ilha se revelou muito cedo como a que melhor potencialidade tinha para o cultivo e sucesso da vinha: “note-se que, apenas aqui [Fogo], na freguesia de São Lourenço do Pico, e em nenhum outro lugar do arquipélago, a vinha é susceptível de ser cultivada com sucesso.”
O cultivo da vinha, como ficou demonstrado, foi possível em Cabo Verde e no Fogo no século XVI, mas o vinho já era consumido aqui muito antes da chegada da vinha. Frisámos anteriormente que o vinho fazia parte do hábito alimentar dos portugueses, de modo que os brancos residentes, no período que compreende 1460-1540 importaram da Europa cerca de 17.590 litros . A quantidade referida pela autora Maria Manuel Torrão demonstra a importância desse líquido no regime alimentar desses povos. É bom realçar que no início havia dois tipos de vinho em Cabo Verde e também no Fogo: o vinho da videira importado da Europa e consumido pelos brancos residentes; e o de palma vindo do continente africano consumido pelos intérpretes e pelos marinheiros africanos.
Nos primeiros anos do século XVI o cultivo da vinha no Fogo, apesar de bem sucedido, era destinado à produção da uva e do vinho. Cremos que, apesar do sucesso com o cultivo dessa planta, no início a sua produção era destinada ao consumo caseiro. De facto, recorrendo aos documentos relativos ao comércio da ilha com a costa da Guiné e a Europa consta o algodão, como produto produzido essencialmente para o comércio, mas a uva e o vinho não constam, o que nos leva a crer que o cultivo e a produção da vinha e do vinho, respectivamente, eram feitos pelos proprietários cujo objectivo era o autoconsumo. A partir do século XVII o cultivo da vinha e a produção do vinho aumentaram, de modo que passou a haver uma forte ligação comercial via Santiago para a Guiné e para o Brasil. Nos meados do século XVIII, o Marquês de Pombal, “no intuito de proteger as vinhas do Alto Douro, viria a ordenar, primeiro, a proibição de exportação do vinho para o Brasil e, no geral, para o estrangeiro, e depois, a pura e simples destruição de todas as cepas na ilha” . No entanto, no início do século XIX, os viticultores e vinicultores reiniciaram o cultivo da vinha e a produção do vinho e restabeleceram o comércio para com o Brasil: “ pendant près de deux siècles et jusqu’au milieu du XIXe siècle les îles du Cap Vert (principalement S. Nicolau, S. Antão et Fogo) produsirent du vin qui s’exportait au Brasil” . Inicialmente o cultivo da vinha e a produção do vinho destinavam-se a um grupo reduzido de pessoas. Vimos também que no século XVII e nos primeiros anos do século XVIII, o cultivo e a produção aumentaram e, a
partir daí houve um período de crise e no século XIX passaram a cultivar, produzir e fazer exportação para o Brasil. Essa exportação, tendo em conta o cultivo e a produção de então, era de grande escala, mas se a compararmos com a que se faz hoje é insignificante. Foi, a partir dos finais do século XVII e inícios do século XVIII que a cultura da vinha deixou de se circunscrever apenas às regiões que fazem parte da freguesia de São Lourenço do Pico para chegar às outras mais na serra e mais a noroeste tendo assim vingado e se expandido a produção da uva e do vinho. Sobre o processo da obtenção do vinho é de referir que na altura utilizavam aqui o mesmo processo que se utilizava em Portugal; aliás, é um processo que ainda hoje se usa, segundo o qual as pessoas lavam os pés, colocam as uvas num recipiente e depois pisam-nas. Hoje em dia esse processo está a cair em desuso porque está sendo lentamente substituído por novas tecnologias.
Pode dizer-se que a afirmação do cultivo da vinha e da produção do vinho só vingou e com largo rendimento durante os dois últimos séculos, principalmente a partir da primeira década do século XX em que passaram a cultivá-la na região de Chã de Caldeiras. Numa pesquisa feita nos anos cinquenta do século XX o geográfo Orlando Ribeiro diz que “a cultura da vinha é hoje, no Fogo, uma sobrevivência das `boas vinhas` que outrora forneceram vinho para o Brasil” . Devemos realçar também que depois das pesquisas desse conceituado geográfo, presenciamos após a independência um significativo crescimento do cultivo de boas cepas e produção de muitos e bons vinhos.
O cultivo dessa planta hoje circunscreve-se às zonas altas, situadas à volta do vulcão, o qual através das últimas erupções, de 1951 e 1995, contribuiu para a redução das áreas de cultivo e destruição de algumas variedades. Todavia, também hoje se assiste a uma progressiva expansão da área cultivada, quer no perímetro de Chã de Caldeiras e numa forma mais abrangente, a toda a zona alta da ilha.
Com a independência, no âmbito do desenvolvimento de vinicultura, o Projecto Integrado do Desenvolvimento das Ilhas do Fogo e Brava, através da Cooperação Alemã, construiu duas adegas e trouxe alguns equipamentos para a produção do vinho, oferecidos aos vinicultores de Relva, Achada Grande e Chã de Caldeiras e, ao mesmo tempo, introduziram alguns tipos de uva de mesa.
A partir de 1998, o cultivo da vinha e a produção do vinho aumentaram com a criação da Associação de Agricultores de Chã de Caldeiras e com o apoio técnico e financeiro da Cooperação Italiana e da ONG COSPE que permitiu a realização da actual adega e o fornecimento de alguns equipamentos. Presenciou-se, desde essa data, a uma valorização da
videira e um aumento significativo da produção de bons e de diversos tipos de vinho que são consumidos a nível nacional e internacional. Efectivamente, deve dizer-se que a qualidade do vinho do Fogo mudou para melhor a partir da criação da Associação dos Agricultores de Chã de Caldeiras, com intervenção da Cooperação Italiana e da COSPE. Hoje os maiores cultivadores e produtores destes produtos residem nos Concelhos de Santa Catarina e dos Mosteiros e acreditam muito neste tipo de cultivo e na qualidade do vinho que produzem, fornecendo vinho para toda a ilha do Fogo e outras de Cabo Verde e, ainda, para o estrangeiro.
Por: Alberto Nunes (Historiador)
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