As palavras que não couberam nas páginas transbordaram para esta capa. São náufragas que tentam respirar e se agarram no tronco da lombada. Ou são restos de vento que aqui se assentaram. Se infiltraram para dentro do papel porque era um dia quente de verão. Há sombra sobre o guarda-sol dos parágrafos. Crianças correm com pipas amarradas em linhas tortas. Se buscar a sinopse não encontrará. Isto não é um livro. Este já é o resumo de uma vida. Não a minha, não a sua. Um verso ou uma rima do pulso de quase toda coisa
nenhuma.
Logo,
tampouco
poderá
guardá-lo na estante. feito de instantes. Acima de tudo, não há de ser indicado ou convocado para servir à ordem das críticas e mistérios. Não
tem
nome.
Foi
abandonado
ainda
incompleto em seus primeiros meses de vida. Os moradores do bairro ouviram o choro e ofereceram mosaicos para construir uma casa provisória. Passará assim despercebido até encontrar repouso sob a grama do tempo. Contando este, poderá passar o mais longo dos meses em doses homeopáticas. Fevereiro tem carnaval. boa leitura. me escreva. Afinal, 30. Ainda resta algum espaço.../...Nichollas Alem.
Isto não é um livro. Afinal, 30. Nichollas Alem.
赤い折り紙 2019 2
AGRADECIMENTOS Obrigado Camilla, Larissa, Isabel, JoĂŁo e Pedro.
3
PRIMEIRO PREFÁCIO. Camilla Rollemberg. Uma palavra caça a outra palavra que deixa escapar um sentimento - o sentimento sempre escapa - e sai pra caçar junto outra palavra, e todos, os sentimentos e as palavras, emitem um som, um ruído e cantam dentro do tom, mas pra fora do peito, pra fora das mãos, pra cima do papel. É a música dele, seus sentimentos e suas palavras sempre emitem sons e desenham passos e derramam versos, e saímos à caça de suas rimas, dos tropeços de seus personagens perplexos, doídos e afoitos de encontrar um amor, um sentido, uma memória, uma moeda, uma razão para a gota que corre e nem percebe que faz uma marca definitiva no translúcido da janela. Mas ele tá sempre lá olhando pro lado que a gente não entende por que e parando em coisas de não parar e de repente vai passando o guardachuva da moça andando já meio longe e quem sabe ela encontre algo que a faça parar também e pensar que talvez não fosse o caso de deixar as coisas como estão. As coisas não devem ficar como estão. Não deixe, menina. Ele também não vai deixar.
4
Naquele dia, o tempo resolvera correr diferente. De manhã, preparou sua cama com diversos lençóis, cobertores, edredons e mantas. Não estava frio, mas ele queria sentir o sufocar de uma proteção. Apagou a luz e foi dormir. As memórias aproveitaram para se misturar aos sonhos, formando um caldo de ilusões que escorria pelas paredes. Na verdade, já não havia paredes. Elas fugiram, cansadas de ouvir tantos lamentos. Alguns pingos de chuva molharam o interior da janela. Esquentou a janta do dia anterior pelo dever de não desperdiçar comida. Ao longo da tarde, o romance ganhou algumas páginas, a geladeira mantimentos e o canal de vendas um novo telespectador. A previsão do clima errara novamente. O compacto das Supremes tocou mais uma vez - apenas porque estava na vitrola. De noite, preparou seu almoço enlatado. A partir de agora, cada um deveria se preocupar com sua própria refeição. Enquanto comia, fitou seus pés. Eles não encontrariam mais palavras para pisar. O caminho não formaria uma frase. As margens do rio não seriam margens do caderno. Deitou-se por alguns instantes apenas para conferir se o teto não estava mais baixo. Finalmente, levantou-se e acendeu a luz. Uma vez, uma amiga lhe disse: um agora acontece. Para ele, o agora sempre se atrasava. ///////// O universo estava se expandindo pouco a pouco. Ainda sim, tudo parecia tão apertado.........
5
De repente a casa ficou vazia. Não porque alguém havia morrido, fugido ou deixado de se preocupar com o bafio das paredes. Tudo estava em seu devido lugar: a poltrona que não reclinava, os retalhes do velho quimono, agora usados para limpeza, e os pensamentos, que jaziam no chão em meio à poeira. Tudo estava no mesmo lugar e por isso mesmo a casa estava vazia. Ele sabia que as horas chegaram atrasadas. Quando era criança gostava de inventar outros nomes às coisas. Simplesmente não aceitava aqueles títulos sem graça que sua mãe, seus professores e seu mundo o ensinavam. Agora guardava em sua coleção nomes. Nomes que carregavam histórias que carregavam lugares – e assim poderia dizer que conhecia tudo e todos. Desejou muito esquecê-los ou descobrir algo novo, que só ele e mais ninguém conhecia. Por entre as nuvens irromperam tentáculos gigantes. Destruíam casas, carros, pessoas e a previsão de uma tarde ensolarada. Ele permaneceu imóvel no parapeito da janela, observando o espetáculo fantástico com indiferença. Nem mesmo um polvo vindo dos céus, por colossal que fosse, poderia fazê-lo decidir sobre a mudança de ares. ///////////////////////Se a meia noite tivesse doze horas. Os cabelos têm fome de dedos. Se reparar bem, bem mais que a garoa entra no quarto. Se em doze horas coubesse uma noite. Mas as noites duram muito............................
6
Do nosso encontro nasceu a espuma branca. Branca porque não é cor, é todas as cores, ou simplesmente esqueceu de ser. A praça se desfez como uma praia deserta, apesar das músicas, das memórias e do calor ao redor. Cada grão de areia...farelo que o tempo deixou para lembrar o caminho de casa... Cada grão de areia em mim imaginou-se castelo. Era preciso uma enorme torre para poder avistar todo aquele oceano. Fosse possível saltar das alturas e mergulhar no infinito de suas pintas. Cachos viraram ondas. Beijos afogamentos. Fôlego sorrisos. Noite em viagem. A brisa soprava do mar para a terra. A deriva das horas durou pouco, mesmo com meu relógio intencionalmente quebrado. Foi assim. Do nosso encontro fiz-me porto... para que nosso céu pintado de azul e cinza pudesse voltar na lua cheia de janeiro./////////////////////////////////// ///////////////////////////////////////// ///////////////////////////////////////// /////////////////// Acordou vestindo a vontade do dia terminar. Na madrugada, a leve proteção do lençol já não servia - nem contra o frio, nem contra a passagem das últimas horas de sono. O uniforme diário estava molhado pela goteira mensal formada com a chuva semanal. Seu café da manhã quase não podia empurrar os resmungos e reclamações para dentro. Já não sabia se era destro ou canhoto..
7
não escrevia há algum tempo. Faltavam palavras no armazém de seu peito. Ficou em dúvida se naquele último ano havia falado de mais ou de menos. Andarilhou
pela
câimbra
da
perna,
pelos
sentimentos tatuados nas costas e pelo resto de suspiro na nuca. Conferiu o preço de um par de meias para esquentar os seus. Organizou alguns enlatados por ordem de tamanho e algumas músicas por ordem de memória. Na verdade, a cada volta do ponteiro se esquecia do significado ou da grafia de algum vernáculo. Ou será verbáculo? Oferecia letras desmedidamente como trocados. E logo mais a carteira ecoava o vazio entre dedos. Tomou nota: “parcele o ar que respira”. “respire o ar que parcela”. “acumule a dispensa”. Concluiu que o amor se tornara asmático e, apesar de tudo, vivia bem sem medicamento.////////////////////// ///////////////////////////////////////// ///////////////////////////////////////// ///////////////////////////////////////// ///////////////////////////////////////// ///////////////////////////////////////// /////////////////////////////
Perambulava
pela casa contando os espaços não preenchidos. De longe, pensava poder identificar o sotaque das buzinas dos automóveis. Chegou a considerar que a causa (científica) do envelhecimento humano era o número de palavras ouvidas....................................
8
são fronteiras ciganas. Ao leste, uma fila de cavalos selvagens corre em nossa direção. Ao norte, a aurora boreal é o véu das estrelas mais tímidas. Ao sul, todos os rios que emigraram da montanha. No oeste, milhares de espelhos, assim, outros tantos alazões. O caminho é acólito de si mesmo. Por isso, o país dentro do corpo vai fechando seu próprio cerco. Define limites que existem em apenas alguns dias da semana. Nas quartas, os olhos curiosos pagam meio-infinito para entrar na realidade. Cores caem do céu em plena luz da noite. Se transmutam em criaturas – que tampouco formam e conformam. Mergulham em finas camadas de ar, água, ar, água que se sobrepõem como lençóis de seda. A enciclopédia universal pouco sabe desses estranhos habitantes, apenas cogita que sua área seja medida em metros quíntuplos – pois a todo momento se descobre um novo plano. Um sentimento antes oculto pelo isolamento da solidão. Enquanto as linhas ensaiavam um primeiro contorno, a caravana soltou-se
do
chão.
O
reflexo:
forasteiro
irreconhecível. Quiçá trocar a lente, a camisa e o penteado.
Só
restou
o
nome.
///////////////////////////////////////// ///////////////////////////////////////// //////////// A verdade é que sempre preferimos o impressionismo. Por isso, a amizade e o desejo se confundem com o nascer do sol e os barcos..............
9
Nosso final de semana foi uma bolha de sabão. Dessas que refletem o arco íris. E acabam no sorriso de duas crianças em suas próprias nostalgias. Ou será um orvalho? Pendurado na ponta de uma folha muito frágil. Em algum lugar, não lembro onde, li que “Grufra”, em árabe, é a quantidade de água que pode ser levada nas mãos. Talvez devêssemos criar uma palavra para o tanto de amor que cabe em algumas poucas quarenta e oito horas. Horas que também pingaram de nossas mãos e deixaram a saudade para trás – no caminho de casa. Mas não provávamos do amor que é possível beber. A sede está mais próxima da felicidade ou da tristeza? O mergulho que dei nos seus olhos: por onde terá emergido? Infelizmente, como você mesmo disse, não existe meio termo. A bolha não vai bailar pelo ar para sempre. O orvalho não se segurará eternamente. E eu precisarei escolher: o que exatamente? Já sinto saudade do sotaque – que não vem por mensagens escritas. Como seria se o país fosse apenas o grande estado de Minas Gerais? ///////////////////////////////////////// //////// Eu é outro quase sempre que as gotas do céu resolvem se unir e molhar o asfalto bocejante. A banca despediu-se do terno, que contava o troco de quarenta centavos. Levava em sua cabeça meia dúzia de pensamentos e toda a umidade da garoa. A avenida pobre cruzava com a dos bancos..............
10
Encontrou presilhas nas gavetas da cômoda, na pia do banheiro e na estante sala. A quem pertenciam? Apesar de seu esforço, já não serviam para prender as lembranças entre seus fios de cabelo. Uma partiu quando nunca mais ligou. Outra deixou uma caixa cheia de cartas de amor e alguns presentes devolvidos. Trocou as lembranças e os quadros da parede de lugar. No fim, apenas se desfez das notas fiscais acumuladas pelo mero acaso. Perguntou-se se os bilhetes de metrô franceses eram apenas mais uma passagem para o asilo da solidão. Por que guardamos tantos papéis? Ora, poeiras e lágrimas eram iguais sobre o chão. Ambas fitavam o mundo com a curiosidade de uma ideia recém-nascida. Terminariam varridas entre vãos. Ser usado para acalentar a tristeza alheia só era doloroso pela falsa ilusão do futuro sobre guarda-sóis. Meses adiante, perceberia que há pouca diferença entre esperar ou ouvir o celular realmente tocando. Era o momento de encerrar a cena. Todos atores entravam e agradeciam os aplausos antes do ato final. Depois, cortinas
fechadas
para
a
luz
não
sair.
///////////////////////////////////////// //////////////////////////////// apercebeuse como um daqueles pontos desprezíveis que vagavam pela multidão. Ele provavelmente já havia sido incluído em alguma estatística ou poesia sobre a pós-pós-pós modernidade.....................................
11
O tempo fechou os olhos... torcendo que as eras não viessem acordá-lo. Uma vez inexorável, passaria sua vida
elegendo
números
repetidos
em
velhos
encadernados. Segurou com força o lençol, na esperança de se atrasar. Quem sabe os homens voltassem a depositar suas esperanças em baldes de águas furados ou na areia de ampulhetas? Sentia afinal que a própria gravidade se mantinha pendurada nas pálpebras. Os sonhos não escolhem seus sonhadores – nem ele a chance de rolar o dado e não ser mais a linha reta em uma só direção. O que lhe faria uma máquina de viagem? Romperia seus tendões em mutantes gotas? Enquanto isso, a cesta de frutas ansiava pela sexta-feira. A ligação propositadamente não atendida. O guarda-chuva que não foi levado para o conserto. A receita de bolo engavetada. Para
amantes,
o
tempo passava
diferente – em cada lugar, em cada boca. O despertador tocou pela terceira vez: entre a casa da infância
e
o
sorveteiro
do
domingo
anterior.////////////////////////////////// ///////////////////////////////////////// ///////////////////////////////////////// ///////////sentou-se no chão quase implorando uma massagem do chuveiro. Naquela semana, a água parecia ter-se agarrado demasiadamente nos canos de ferro. Imaginou se teria acertado a sena, a quina, as quadras e esquinas..................................
12
Menina do girassol, nosso encontro foi mais que mero acaso. Talvez você não acredite, mas eu não faço
parte
dessa
busca
premeditada
pelo
desencontro marcado. Ainda quero acreditar nos castelos de areia. e cada gota de chuva será um soldado que lutará para molhar um pedaço de céu. A mim, não existe Dulcinéia – sem meus óculos, não reconheço o horizonte entre realidade e sonho. Tenho fomes. Deixe que eu alimente minhas ilusões inofensivas: viagens ao oriente desconhecido, o mamão na feira para o seu café e a poesia que gostaria de ler. Um virginiano irá sentar na soleira da porta para organizar as estrelas e fazer com que, de algum jeito, as previsões percam seu sentido. Tanto buraco negro para tirar as coisas do lugar. Enquanto isso, girassol da menina, você irá se contorcer para buscar um fio de luz no qual possa se agarrar, se balançar e despejar sorrisos que cabem em mais de mil rostos. o suspiro, como os ventos, muda de natureza, de direção e de verbos. Hoje mesmo, uma alegria colorida irá sair para sambar na avenida rascunhada de minha casa. Eu estarei
entre
livros...escrevendo
nas
bordas...
imaginando o que você gostaria de ouvir ou de silenciar.
As
outras?
Cadeados
abertos.
//////////////////////////////// pressentiu um vulto. pensou ser o gato se acomodando no pé da cama. era apenas a sobra do tempo.....................
13
Um oceano infinito cochila sobre a areia da praia. Ronca espumas. É raso. Tão raso que é possível cruzá-lo sem molhar os joelhos. Talvez por isso, ninguém nunca tenha se aventurado a entender suas profundezas horizontais. Depois de um dia preguiçoso, as costas avermelhadas querem imitar o pôr do sol. recolhendo-se com o cair da noite. No fundo da cabana, George canta 'Do you want to know a secret'. Namastê, meu amigo. Em qual de seus discos estaria o conselho que preciso? Meu corpo está leve. Leve. Prestes a se transformar numa revoada de mil pássaros esquecidos. É no colo dela que desejo repousar minha cabeça após arrastar a canoa cheia de peixes. Devo puxar assunto? Elogiar o álbum de fotos? Confessar como o ukelelê voltou a tocar? O peito treme como a vela balançada pelo vento. A cada sopro, um pingo de luz cai no chão. respinga nas paredes. Ou revela uma pista, ou o fogo ficou menor. Um dia quero escrever músicas bonitas como você, George. A meu jeito, mergulhar em silêncio para dizer que não é preciso um outro amor. Olhos nos olhos – e nada mais. Acorda, mar! Prepara que hoje você vai para o sertão. Vai buscar a saia em preto e branco, enquanto eu conserto o buraco do telhado.///////////// subiu na cadeira e tapou a goteira com o dedo indicador. sentiu-se molhar por dentro. bastaram poucos segundos para encher o balde do peito............................................
14
Moreninha, nuvem moreninha. Achei que minha sina era esperar em táxis sob o sol. Filosofando sobre o eterno trânsito de nossas vidas. Depois da primeira estação, fui uma das cabeças de Moai. Um todo de pedra imune a declarações de amor. Parte de um exército convocado por alienígenas para vigiar se o horizonte se comporta bem... Se cumpre seu papel nos lembrando da pequeneza das coisas. E mesmo sem vento nenhum, você simplesmente aparece. Cobre minha cabeça de sonhos e planos. Traz a sombra refrescante que eu quase esqueci existir nessa ilha. Os braços vão perdendo a rigidez e voltam a escrever contos esperançosos. Os olhos se prendem ao céu. A boca treme com receio de recitar
versos
em
excesso.
O
mormaço
da
indiferença se esvai e cada poeira de nós dois é um infinito a ser descoberto. Nas montanhas-estantes, Barthes: 'A identidade fatal do amante nada mais é que: sou aquele que espera.' A mensagem não chega... Quem sabe nem tenha sido enviada? A cada minuto, o tempo desprende um fragmento da estátua... Mas eu sou cada um desses fragmentos. Os que foram ou os que resistiram? Moreninha, se você for apenas uma nuvem passageira – que deixa um rastro de ilusão... Tudo bem. Fui feliz. A fantasia também é um estilhaço... do que um dia foi (ou será) real./// Nossa canção acabou antes do disco acabar. O amor virou semi-colcheia. Inteira. vazia....
15
Quando foi a última vez que você me escreveu? Não me importo em ser um guarda-chuva virado do avesso. Aguardando a decisão pelo concerto ou a urgência no atraso dos dias de chuva torrencial. A tristeza vem do sonho que não chegou. A penumbra em seu eterno entorpecer faz com que as esquinas das paredes do quarto se fantasiem. Horas de maquiagem antes do encontro. Viga por viga, percorrerão provando que têm sim ouvidos. Afinal, essas esquinas são também as linhas de varas imaginárias – que fisgam as peças do taco. Se reparássemos
bem,
toda
superfície
plana
é
ondulada pelos passos que deixaram flutuando para trás. A cada dia, o livro parece perder páginas. O fantasma do que não é escrito trata de arrancar – quase sem êxito – os capítulos que já haviam sido terminados. A piedade exigiria a estaca ou a compra de calendários para os próximos anos. Um dia você confessará que morri só? Aos entes. Peço desculpas pelo funeral das palavras. Ausentes. Queimamos o dicionário sinalagmático.///////////////////// ///////////////////////////////////////// ///////////////////////////////////////Era como um daqueles antigos balanços de pesqueiros. Cordas amarradas em uma árvore que parece ceder demasiadamente. Arrastou-se para trás e ficou na ponta dos pés. Soltou. Sentiu sua alma ficando para trás e o corpo balançando. A liberdade parecia isso.
16
Os dois lados da avenida ficaram incomunicáveis, apesar das milhares de antenas espetadas nos prédios-aperitivos. Com o fluxo de carros escritos no asfalto, era difícil entender quem ia em qual direção. Pedidos de desculpa pareciam ser apenas uma dose de um calmante para dormir bem. O outdoor se foi, mas o discurso foi vestido. A jornada pelas novas experiências e descobertas era como uma viagem de degustação pelas unidades de Starbucks. No fim, perceberia que todas as camas têm o mesmo gosto do cappuccino. Nesse mesmo tempo, abandonava o mistério da lavoura e dos dias que também morrem iguais. O pequeno infinito de seu peito podia se expandir sob a sombra da árvore no parque – entre histórias inventadas e inventos históricos. Por viver com qualquer dose de amor, não ansiava pela constante auto-prova de liberdade. Daqui não muito, sentiria falta de um outro café – servido na cama por um sorriso sempre disposto a estourar bolhas de sabão. \ O universo se expande, eu retraio. Tudo acabará no último astro que sair e deixar a luz acesa.\\ As ruas do centro vão se ocupando de se ocupar. Os postes não se maquiaram. Sem qualquer sincronia, escolhem por capricho se acendem ou não.\\\
17
Você me conheceu anos antes de eu me reconhecer diante
do
espelho.
Naquela
época,
era
tão
pequenino... tão pequenino que precisava falar alto para ser escutado. Me esgueirava no meio fio das atenções. “Melhor ficar quieto” – era sempre a melhor resposta. Hoje, não preciso me esconder sob disfarces escuros e cabelos compridos. O cobertor quase sempre é suficiente para aquecer em um dia frio. Alguém nos vê andando juntos e pensa que somos namorados... apesar de cada mão gesticular sua própria história. Quase acredito conhecer o gosto de seu longo dia de trabalho. Mas o delírio e a realidade conheceram-se outro dia na mesa do bar. tornaram-se próximos. misturaram-se à solidão e ao fichamento de milhões de páginas em uma orgia de olhares escancarados. Contra tudo, o que fui? Será que sua lembrança de mim tira seu interesse no agora e depois?************************************* /\\/\\/\//\/\/\/\////\\\\\\\\\\////////// /////\\\\ Levo um lenço de pano aos restaurantes para não prometer em guardanapos o que não posso cumprir. As confissões de meio ouvido e meia noite são inteiras. Do fundo do peito. Porque lá caíram e não souberam como sair. Não que seja escuro, mas estou improvisando o presente. Até o coração de pedra sonha com a britadeira. sonha ser mina de ouro descoberta. ser aerolito em direção ao sol. ser caverna, tocaia contra chuva...................................
18
Deus não criou o mundo em um dia. Tampouco a vida podia se fazer em apenas uma noite. Se você esperasse. Insistisse por um milésimo de poesia que fosse. Entenderia o quão profundos podem ser os sentimentos por trás da face pálida de um Keaton latino americano. O pedaço de céu, para quem o contempla do poço. Um pedaço do infinito, se eu o contemplasse de seus olhos. A lua, que também é pálida, nem foi maquiada, nem criada de propósito. Ainda sim, guarda a beleza do inalcançável. Estranha, parte da rua, parte dos lençóis, parte de minha casa sem se despedir. Levando mais que a janela não fechada. Sequer deixou uma flor de cerejeira para que eu pudesse despetalar: o curto e direto não-me-quer-não-me-quer. Você foi um luar de 18 de março desse ano: único e solitário para tão quatro horas. Não fosse a mania de esperar respostas sem ter feito as perguntas. Como querer que o próprio tempo descasque a ferrugem. Se um dia o parque não curar o tédio, estarei aqui ensaiando uma nova dança na chuva.------------------------------------------------------------------------Não quero porta afora. quero janela adentro. quero saber de seu nome do meio – oculto das assinaturas e das mídias. conhecer suas qualidades indesejadas. ou os defeitos amenizados pela massagem de palavras doces. os sonhos que incomodam. e as frustrações que pressionam o amanhã melhor...........................
19
Goethe uma vez disse: ‘No peito a matéria, a forma na mente.’ Nossa cabeça se julga no direito de comandar o resto do corpo. E sofre com sua impotência
quando
as
involuntariamente. A
estruturas
tremem
forma...ora, a forma. A
separação não exige seus próprios pincéis, uma afinação atípica ou o diálogo com o senhor Stanislavski para a performance final. As lágrimas se alternam nos cantos dos olhos porque sabem que nem todo caos precisa ser ordenado. Despedir com a visão turva – como quem força os olhos para encontrar um táxi sob a chuva torrencial. Se chove forte ou fraco, pouco importa. É sempre a matéria que se molha e se enche como um balde. Transborda e atinge as bordas de fora. Sai pela pele com o suor do erro não descoberto. Transgride e agride
quem
não
merece
ser
machucado
–
inconformada franze as sobrancelhas. A solução seria até simples demais: não fossem as cirurgias recém-necessárias de novelas mexicanas. Goethe uma vez inventou a língua alemã. rascunhou o suicídio passional. oitenta e dois anos fáusticos. E se nós pudéssemos fazer o trato? Entregaria a morte para entrar na vida?
...
Do paraíso, sentia-se saudade do medo da morte. A eternidade era palavra dos poetas, não dos homens. Palavra como o silêncio. Enterrado a sete versos da última canção.
20
Enquanto você não volta, percorro minhas próprias trilhas. O tempo esculpiu o peito em infinitos desfiladeiros. O coração é um labirinto feito apenas de
entradas.
Os
aventureiros
perdidos
se
misturarão à paisagem como fotografias em preto e branco ou pinturas em tons outonais. Na Serra da Canastra, vi a nascente do rio São Francisco. Pequena e frágil. Brotando da terra como uma flor d`água. Talvez querendo alcançar o céu, talvez sabendo onde desembocará. Foi assim. Você chegou de um sonho acanhado – de minutos antes do despertador berrar. Agarrou-se em meus braços e virou uma corrente da qual não posso me libertar. Ao fim de apenas duas semanas, seu sorriso podia me lançar contra o fundo de mim mesmo... a mais forte das cachoeiras. Desde então ou desde quando? pela manhã, naveguei as mãos pelas ondas do lençol à sua procura. É preciso a delicadeza da triste canoa. Disfarçar
a recente paixão para que
parecesse saudade. Só, os sentimentos não ficariam na superfície quando fossemos mergulhar. Quem iria imaginar que algo tão intenso só conseguiria flutuar? Volte logo. [[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[]]]]]]]]]]]]]]]]]]]]]]
A semana: domingo-segunda-segunda-segundasegunda-sexta-sábado.
21
Volto ao hoje como a neve volta para o chão. A primeira que vi estava suja, acumulada em um canto do parque. Fora de meu país, vi o amor de minha vida passar. Sorrimos timidamente um para o outro enquanto nos cruzávamos. Nunca mais nos veremos. A vida aplica seus testes sem querer saber dos resultados. Apenas tempo depois formulo uma abordagem fingindo estar perdido. // Quem diria que a saudade de falar sua própria língua quase pode ser aliviada por papel e caneta tão baratos? Meu cachecol enrosca na poltrona e me chama a atenção para uma possível foto bonita. O caderno de notas vai acumulando mais sobre mim, menos sobre as cidades que visito. Nas janelas da direita, as paisagens correm em um sentido, nas da esquerda, em outro. Em que primavera estou? Na estação, no trilho ou no trem? Andei por toda calçada que passou pelo meu mundo apenas para coletar pegadas por meu corpo. O ferro segue firme. ‘’’’’’’’’’’’’’’’’’’’’’’’’ Mas o trem e o rio vão juntos e chegarão juntos – separados de mim. Se mudássemos o nome das cores o horizonte deixaria de existir. Lá vai o azul-montanha,
o
azul-céu,
o
azul-poeira-
levantando. Talvez a minha imaginação tenha se cansado de mim e fugido em um balão. Me deixou vendo nuvens como se nuvens fossem. Com muito esforço, lá estava uma bola de papel amassada – entre tantas do escritório e do meu quarto...............
22
Em alguma distante aula de física, aprendera que duas coisas não poderiam ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Mas naquela noite, a sala estava repleta do cheiro do incenso, da música que vinha de fora e de uma pesada solidão. Poucos dias antes, um sonho dentro de um sonho. Andava pelas ruas da cidade enrolada em um lençol branco e nada mais. Vagava até que um programa de televisão a salvasse dessa condição. Acordara com a perna balançando – fingindo tropeçar. Agora, fitava seus dedos, desconfiando da intenção maligna. Ligou um som ainda mais alto – que pudesse expulsar o que entrava pela janela – e preparou um chá. Não era feriado, mas em algum quintal do bairro soltavam bonitos fogos coloridos. Na sacada, sentiu os lábios tocando delicadamente sua nuca e os braços a envolvendo. Jura que sentiu o calor da barba: mera ilusão. Pensamentos, restos de poesia e pendências antigas se acumulavam pairando no ar. Cruzou a sala com dificuldade, tentando romper a densidade da existência. A cada respiro, um pingo de canção e outro fragmento de espelho acabavam se fincando no peito. Despiu-se e procurou no celular uma companhia. Nem terminaram a série, nem os afazeres, nem se encontraram. Descobriram que o ‘boa noite’ é a pior das despedidas na era digital. O mundo foi tragado para dentro e sábado virou apenas a terça-feira................................................
23
Conferiu no calendário se realmente faltavam apenas algumas horas para o amanhã. Depois das vinte e duas... ou vinte e dois anos, desaprendera a contar o tempo e as espécies de dinossauros. Na sala ao lado, Dona Amália usava a enceradeira – presente de sua tia-avó. O som: quase hipnótico. Ele decidiu que pintaria todos os tacos da casa. Cada peça de madeira seria uma pessoa que passara por sua vida. Mas não tinha tinta, pincel ou lembranças suficientes. Tateava pelo chão em busca dos nomes. E aquele cliente da reunião de amanhã? Como é mesmo que se chamava? Pela quinta vez naquela semana seu país trocava de ditadores. Não pôde sequer
aprender
o
significado
das
primeiras
medalhas que subiram para discursar. Balas cruzavam o céu a procura de incidentes. O relógio – autoritário – marchava. Apontava para as memórias e
atirava
seus
segundos.
Um,
dois,
três.
Tiranossauro. Velociraptor. Estegossauro. Tentou recordar se parte de sua terceira série estava a salvo em alguma caixa de papelão. Na quarta, foi um sorriso preto e branco que salvou a semana. Sorriso de uma ainda desconhecida sob um chapéu. E isso que importava? Desamar e dimanar. Sempre e sempre, devagar. Os tacos insistiam em dormir marrons. //////////////////////////////// A estação dividia-se em doze meses e terminava em pleno agosto...........................................................
24
TERCEIRO PREFÁCIO. João Turchi. Uma página, vista à distância, pode ser qualquer coisa e, ainda assim, nunca deixa de ser uma página em branco e um livro inacabado. Estamos todos repletos de textos que não vamos terminar. Eu te encontro e te perco nas palavras que escreveu, Nico, e as vezes eu também me encontro e me perco aqui. Como você, penso muito sobre os espaços, minha casa em silêncio, a tela do computador e a geladeira vazias, a distância entre as vírgulas, as palavras que eu não disse, o abismo entre eu e um outro. Me parece apropriado que quase todos os textos sejam em terceira pessoa, são e não são você, é e não é um livro, movimento mas também repouso. Espera. Eu tenho ainda muita coisa pra dizer e me falta pouco espaço. Esse livro pra mim é sobre como ocupar os espaços. Quase nada é mais bonito que o silêncio. Essa frase em japonês que eu não entendo no início pode ser uma sinopse possível. Esse livro é sobre o que a gente disse, o que não soube entender e tudo o mais que calamos.
25
naquela biblioteca os livros haviam sido guardados do avesso. as capas escondiam-se abraçadas na exata metade das páginas. as folhas se esforçavam para se manter agarradas à costura. quem fosse descobrir o autor e o título da obra, percorreria necessariamente algumas centenas de linhas. e assim, a profusão de sentimentos de Jane Austen – na verdade – se revelava um curto poema de Baudelaire. a moça que vai, que passou. as histórias, nem por isso, eram apócrifas. cada um levava em sua memória a cumplicidade do segredo. as estantes organizavam sua coleção pelo número de pontos e vírgulas – nada mais. não eram necessárias sinopses, muito menos catalogação. os visitantes – os únicos que conheciam aquele acervo – preferiam ser surpreendidos ao folhear um tomo ao acaso. o ocaso do ano, em pleno dia catorze de dezembro. a dúvida era saudável, por trazer a certeza de que era preciso a revoada. vencer a hipopotomonstrosesquipedaliofobia.
afinal-todas-
as-palavras-do-mundo-sempre-estiveram-juntas. há
muito
o
que
ler;
falar.
silenciar,
quem
sabe?~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~ Olhou para a manga de seu paletó. Três botões se empilhavam e fila indiana, aguardando a próxima reunião ou o retorno do telefonema anterior. Mania de fazer fila.............................................................
26
De dentro do carro não era possível saber se o alaranjado que pairava era capricho do entardecer ou predileção dos moradores. As casas aposentadas sentadas ao acaso. Contemplavam as miniaturas de histórias até desfalecerem. Eram enterradas em algum cemitério de entulho. Choravam janelas por alguns minutos. Indolor. Apenas porque a memória já havia partido muito antes. Sedada por papéis dobrados em letras miúdas. O tapete, porém, permaneceria pregado. Escondendo os amores platônicos que não se cruzavam no metrô. E mais abaixo: os tubos de fiações e esgotos, o centro da terra, o topo de outras antigas casinhas que também se entregariam às torres de observação. Em algum beco, o vento havia tomado lições de violão. Passava as noites tocando os fios dos postes. Extraindo a marcha fúnebre que entristecia os cães. Não fossem as novas máquinas de escrever, não haveria
as
máquinas
de
leitura.
>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> transformou suas mãos em um estaleiro. Dobrou o barquinho de papel e o lançou na bacia. O céu e o mar eram muito parecidos, mas apenas um interessava.............................................................
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Deitou-se de bruços no chão da sala para receber a massagem do sol. que entrava preguiçosamente pela janela. demorou algum tempo até acomodar sua cabeça sobre os braços cruzados. fechou um olho, abriu, fechou o outro. reparou que nem mesmo seu olho esquerdo e direito chegavam a um consenso sobre a posição do cotovelo. pior que isso. talvez por um truque de mágica. um capricho da ilusão. parte dela estava transparente. o olhar atravessava confiante sua blusa cinza e se fincava na parede. podia decifrar todos os ciscos de poeira no caminho. estava frio, verdade, mas as costas esquentavam...esquentavam...
até
cogitar
abrir
vinte fatos íntimos de si mesma em alguma rede social desconhecida. emperrou no terceiro. naquela semana, ela mantivera contato direto com o dono da maior companhia de parafusos de cinco milímetros da cidade. este senhor possivelmente era o único habitante do país a cultivar longas suíças pelo rosto. jurava solenemente conhecer o presidente. então ela esboçou seu primeiro projeto de lei: os 365 dias do ano deveriam ser contados em ordem decrescente. e ao final de dezembro, explodiríamos as bombas de fogos de artifício. das mazelas. das falsas memórias. de
chocolate.
do
nenhum
mais.::::::::::::::::::::::::::::::::::: Seus avós eram órfãos. Seus pais também. Ela, porém, filha do silêncio do universo. E, por isso, algum sotaque no suspiro.......
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Quadro de Pollock. Toque sem dedos, sem noite, sem toque. Chuva com vento. Invento, horizonte, tento. Se o caos concedesse. a coincidência dos mundos. Acaso em café. ou. Ocaso da culpa. ou. caso em segredo. Voto de silêncio no carnaval. Templo sem oração. A desconstelação de estrelas. Contra o ar quente do balão. Fecho da camisa aberto, enquanto o paraquedas soergue. De perto, nenhuma folha é árvore ou livro. O amor pode pedir sua licença poética e inventar momentos irreais. A vida seguirá normalmente e ninguém conhecerá nossos
não-crimes-de-não-deixar-a-rima-rara-
morrer. Pouco importam os títulos ou anéis, a assinatura em cartório ou o poder sobre o interfone. As bocas se encontrarão no segundo. que não coube no primeiro minuto. Qualquer maneira – mesmo fora da ordem. Só peço ao tempo, por favor, não deixe chegar a luz antes do som. No escuro, no silêncio, nosso amor – maior que o caos. | | | Escolher sempre O que couber Na palma da mão | | |
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Não tenho ouvido discos, nem lido os livros. Acumulados na estante. Dos amigos. Se alguém mais responder que vida anda corrida. eu juro que puxo o freio. Abandono a carona. Rumo o litoral. Ah! Surto. Assusto. Com tanta gente querendo ser Steve Jobs. Fazer da vida um hobby. Parecer bonito na novela. Esquecer que o papel pequeno tem sua graça na peça. Na porta da geladeira. De que adianta filosofia? Saber que o corpo é líquido, não porque é feito de água. Se o ar que eu inspiro é sólido. E pesa no peito. É preciso expirar com tanta força, que vira suspiro. Adoçado pelo café. Meu violão me deixou para trás e seguiu sua vida. Nas mãos de um outro qualquer. Tudo tão racional. Eu não era um virtuose. Talvez nem a virtude. Das modas de amor. De que adianta? Se não me chamo Caetano, nem Belchior volta a cantar. Tanta atenção e tanto suor nos tantos que tão pouco importam. Sobraram letras, faltaram palavras. Sentir me dói o pensamento. Quando voltar para casa, traga consigo um lar. que em mim eu cansei de morar. & & & O azul do céu Não julga o azul do mar.
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O trabalho de barman já não me desagradava. Na maior parte do tempo, eu ruminava frases na boca de pessoas desconhecidas. Imaginava conversas que elas provavelmente nunca teriam. Isso fazia o artesanato com as garrafas menos tedioso. Talvez por
gastar
consciência
palavras
desmedidamente,
tornava-se
(cada
vez
minha mais)
monossilábica. Não foram poucas as vezes que meus
complexos
questionamentos
foram
respondidos por resmungos guturais... de algum lugar entre o estômago e a nuca. Toda noite algum cliente insistia em contar entusiasmado uma mentira trivial. Mentira esta que morreria sem a pretensão de um dia se tornar verdade. Será que minha barba denunciava meu riso contido? // O essencial era manter-se afastado daquele quarto. Um sanatório vazio com o último telefone fixo do prédio. Agora mesmo deveria tocar para oferecer alguma promoção. Certa vez, pedi que escrevesse uma lista de adjetivos difíceis e pouco usuais. Sem entender muito bem minhas razões, retirou do blazer o pequeno caderno, rabiscou “hirsuto”, arrancou a folha e me entregou com alguma dose de apatia. Para minha decepção, esse era o apelido que minha avó atribuíra ao meu avô, um razoável ator de teatro que ainda conservava seus longos cabelos sobre os ombros. Foi assim. A noite caiu e ninguém quis levantar...........................................................
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Não é minha voz que escuto quando leio. E mil palavras não me importam muito mais. E se as passagens desse meu receio... Forem para o estado (de espírito) de Minas Gerais? Eu tenho medo de um dia abrir um livro... Que conceda de volta a minha solidão. Vasculhar o porão: sonho-livre. Exorcizar os fantasmas do meu coração. Tossir a mensagem, lembrar o orgasmo. Até o que ele não escreveu virou canção.
Se
por
acaso
seu
andar
desengonçado...passar errado no meu entreolhar... será que os ombros, cabriolas, desdém? Será o que o peito, refém, assombração? Clara manhã, me desculpa. Talvez anseie mais que só viver. Pingo de paz. Faço questão... de levar guarda-chuva... contra sol de inverno e de inverso de estação. Queria amar ou ser amiga? Aceitar a fadiga que o velho-novo traz. Redescobrir seu cheiro...o outro perfume... que a vida impregnou no seu jeito de sorrir. Prometesse a deriva: a calmaria da perfeição. Eu embarcaria até o fim horizonte...para deitar ao seu lado, segurando a sua mão. Medo, cala teu conselho. Minha bússola é o dente de leão. viajando em alto mar. x x x x A cada suspiro O ontem chega mais cedo
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Dentro da baia. Sobre os papéis. Precisa escolher cada palavra com cuidado, meu amor. Eu imagino se retoca a maquiagem, reembolsa a viagem ou se rende ao pavor. Desse escritório... se olhasse da janela, não perceberia que, agora mesmo, estou a apenas dezoito jogos de escada...ou dois botões. Eu subiria (a rua) pra (me) fazer uma surpresa. Eu peço qualquer coisa. Como na calçada... ver se esqueço o som da sua voz. Meu coração não envelheceu comigo. Eu hoje mal consigo, parar de pé. Ou engatinho ou tropeço...pois não sei nadar. Trocaria a poeira pela chuva. Nasci pra ser incógnito, meu amor. E me perdoe, se não entendo essa sede pela mansão...
tenho
sede
é
de
um
copo
de
cerveja...perambular pelo mundo a procura de um lugar, que não me sirva de casa nem prisão. Tudo que tenho é carinho pra gastar. E não quero acumular... Talvez especular. Planos de paz. Eu tenho medo que nas próximas férias suas, quando o corpo pedir descanso (ou o calendário mandar)... Eu regresse do infinito... morando em Picinguaba, sem sinal. Dentro da baía. Sem os papéis. Não escolhendo palavras pra dizer ao meu amor. ) ( ) Da última vez que você se foi eu era só mais um móvel da casa.
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Eu sei que nos caminhos escuros mendigamos um pingo de luz. E nos agarramos aos fios que o sol deixou para trás. na noite. Todo reflexo é o reflexo do teu olhar. Como falava o poeta, seus pés corriam ariscos, valente menina. Enquanto eu esperava, sem arriscar. Um covarde velho. Sentindo o sangue correr na pele, cada vez mais fina – do meio-fio. Fosse o assassino de infantes, fosse o infame horizonte do não-toque. era preciso um calmante. para escalar o prédio. O tempo tornou-me pobre de histórias. fazendo questão de me lembrar. que essa dor no estômago. é fome e ânsia. por sorrir. Eu prometeria cambalear longe de sua vista, mas não sei se posso mais. tão simples. frágil. vulnerável. que me encaixo em qualquer parte do seu dançar. Vou ser o rastro do que poderia ter sido. Esperarei no ponto o ônibus voltar. Que me leve para casa, para qualquer casa. Eu redescubro minha sala de estar. Sentarei no teto, ouvindo o rádio. Na esperança de um outro chegar. E esse outro sou eu. Olha o filme na chuva. A pestana fechada. O sinal amarelo. Viaduto, o que você faria em meu lugar? # # Você devolveu o que era meu em mau estado Já não encaixa no peito mais Agora sou o ponto Entre dois pontos finais
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E se eu deitar a cabeça em seu ombro para ver a maré chegar? Intrêmulo. Mudo. Me acomodo onde não toca a luz do farol. Se permitir, meus pensamentos podem embarcar em seus navios tatuados. Partirão em busca de estrelas, cada vez mais distantes. Contrariadas pela expansão do universo. Tentam prender seus fios de luz nos olhares de sonhadores. Cada vez mais raros. Uma dose de melancolia e duas de cachaça. Ligaria a vitrola baixinho...para que ninguém nos encontre ouvindo Lana. Ou talvez dedilhar o violão em busca das aulas já esquecidas. Sua perna sobre a minha. Sob a areia o céu. Lua e sol compartilhando apenas um resquício de nossa atenção. Meus sete décimos suspirando. Conta errada nas miçangas e faltou um colar. Queria te escrever uma carta. pelo prazer de esperar uma resposta. Queria te amar. pelo prazer do prazer. Acordados pelo vento do litoral. que nos descobre quase nus. Olha a onda a arrastar nossa conchinha para dentro da pousada. Derrube minha porta. A clausura é guardada por tão leves almofadas. Mas risco a terra do vaso sozinho. Cantando Caetano e seu onde está você agora. ¨ ¨ ¨ ¨ Isto não é uma página.
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O vizinho do andar de cima oferecia charadas diárias sobre suas ocupações domésticas. Coleções de bolas de gude caíam no início da manhã. Tamanduás farejavam formigas nos cantos da parede. Navios partiam da cozinha janela afora arrastando
baús
do
tesouro.
Era
impossível
discernir cada um daqueles sons. As visitas mais frequentes acostumaram-se a apurar os ouvidos logo quando entravam. Na verdade, isso tudo pouco importava em meados de abril. Cruzara com uma antiga desconhecida que perguntara sobre eventos e pessoas há muito abandonados no passado. Cogitou inventar alguma história complexa, mas contentou-se com um meio sorriso. Para muitos, recompor significaria recolher os pequenos cacos de si. E se montar no quebra-cabeça colecionado ao longo dos anos. Para ela, recompor era tirar as inúmeras
camadas
em
excesso.
Camadas
acumuladas pelo hábito pouco saudável de buscar proteção em manias alheias. O risco (claro) era desnudar-se por completo em qualquer brisa ou banho morno. Segurar o coração não era tarefa assim trivial. Por hora, um chá de sabor nunca experimentado seria o suficiente... a fim de apaziguar os papéis murchos. ------------------------Subir no muro Para avistar a certeza
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Hoje eu durmo no chão duro. Abdico o teto. A cama de casal se tornou demasiadamente vasta. E, afinal, gosto de ver a água se acumular em poças irregulares. Aproveito para organizar as estrelas do céu a procura de uma explicação. Quem passa me toma por triste montanha e me atira uma memória de Belo Horizonte – que nunca conheci. Meus ancestrais vieram do oceano. Logo sei que a ilha não se faz da pouca terra, mas do infinito mar que a rodeia. Também sei que toda brisa ou meio sorriso leva consigo um pouco de nós. Convém então carregar um punhado de areia no bolso da calça... para se recompor de tempos em tempos. Talvez tudo se resuma a isso. Ao inresumível tempo. Fostes para não me ver convalescido pela friagem. O sintoma na calçada. Está no ciúme solto das mãos. Está no cimento preso nos pés. Sigo ouvindo Rita para me fazer mutante. Sigo ouvindo Belchior para, quem sabe, latino-americano. Não é necessário cavar. São cavernas abertas. Chuva afora, infiltração adentro. É
a
ampulheta
sem
vidro
que
continua
a
funcionar.///////////////////////////////// ///////////////////////////////////////// Quero escolher Mais que marca da aguardente Nem todo salto é uma queda Nem toda queda machuca E todo hoje dura três ontens
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Se chove me lembro. Se anoitece recordo. As nuvens devem subir para que os pensamentos possam saudar a poeira que baixa. Avião. Distante. Em Bogotá, Amsterdã ou Pequim. Abraço armado ou intromissão diplomática. Não se pede licença para chegar. Ele começou escavando o coração para minar
sentimentos.
Acabou
desenhando
trincheiras. Parte de sua vocação: lutar contra inimigos invisíveis. Uma carta (de rendição) serviria. Um tratado (de paz) serviria. Um café coado no espaço de agendas seria perfeito. Ainda tentava descobrir qual passagem me venderam. Talvez o cerzido que cobre o rasgão no tecido do tempo. Um bilhete para retirar o sorriso vestido que ficou para ser remendado. Usaria o uniforme de bom grado se soubesse o humor do amanhã-voltar. Era preciso perseguir ou recolher a lona? Abriria mão das memórias.
Sobretudo
daquelas
que
não
são
minhas. Para convencê-lo que tudo que seu ombro precisava era o incômodo de suportar minha cabeça. E não conseguir dormir nas posições mais românticas dos filmes. //
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A gota de luz que você leva na palma da mão. Escorreu da calha. Pousou como pluma. Estava sob uma pedra. Garimpada no rio doce. Talvez tenha se soltado de uma estrela pouco cobiçada. Caiu da lágrima de uma terça-feira que não passava. Era a mãe solteira. O sorriso sem dentes. O não-escrito pelo pouco espaço do universo. Carregue com cuidado. Sobraram poucas. Há quem diga que é alimentada de preces. Sussurradas, parecem iguais em todas as línguas. Depressa. Parece tremer ao ouvir ‘eu te amo’. Responde reluzindo que não tem certeza. Afinal, o brilho só é visto no escuro. Certifique-se de levá-la, portanto, no bolso. Quando pular uma janela, atravessará novembro. __________________________________________________
espaço reservado do leitor e leitora
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Onda que vem e beija minhas costas de areia. Me torno grão. Navego as mãos sobre as ondas do lençol. Entorno sorrisos que não durarão mais que a manhã. Por que vai com a maré? E se esquece de voltar. A lua me puxa o sonho. É assim meu sol. ou o ascendente. ou descende. fruto de uma civilização antiga extinta afogada em bemol. Sempre gostei da brisa marina. Do frescor de um verde mastigado com os olhos e as mãos. Mas os primeiros cabelos brancos são fios de pesca. Querem ir ao fundo do oceano.
Enroscar-se
em
tesouros
sem
valor.
Encontrar um mapa e emoldura-lo. Ultimamente tenho pensado muito na sala de estar. No banco sob a janela. Para fazer o sol bater nas costas. Abrir a sombra sobre o livro. E recitar o primeiro verso que rimar com o seu nome. Mas seu nome não existe, praia. Ainda não foi descoberta pela cartografia dos homens. E eu, nem farol, nem caverna, desconfio que não sou.
1
2 3 4 5 6 7 8 9 Dobre aqui este origami vermelho.
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Ontem a chuva começou a voltar para o céu. Pingo por pingo. Desafogavam-se da calçada. Elevando-se como que abduzidos pela beleza sideral. Ou o corpo deitado invertido para Gibraltar? Confundiu o piso azul da cozinha e a torneira por consertar. A rua cheia de carros parou – esperando que alguém lhe desse a mão e a atravessasse pela avenida. Os reflexos
do
asfalto
molhado
corriam
para
acompanhar suas bicicletas. Era início de ano, era alguma parte do verão. Cada um procurava em suas bolsas e sacolas a proteção que sabia ter deixado em casa. O noticiário, pela primeira vez naquele ano, acertara a previsão, mas era tarde demais. Perto daquele
restaurante,
alguém
descobriria
que
acertara a sena. Na mesa ao lado, ela deixou de fumar [enquanto a linha não chegava]. Na esquina da frente, abriu a janela na última esperança de encontrar algo mais que a parede de concreto do prédio da frente. Sepultou ali mesmo a vontade de trabalhar e cumprir suas promessas. A chuva, triste, perdeu seu rumo e ralentou. no ralo. ___________________________//____________________ azul cinza azul cinza azul cinza
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Andar por essa avenida tornou-se um movimento automático. Caminho como se percorresse os próprios contornos da sentença que selou meu destino. ou que escolheu as palavras das memórias não autorizadas. Poderia mentir que conheço o número de passos que liga a estação à minha casa. Por descaso, ignoro a origem dos casarões que resistiram ao tempo. A depender do horário, são dois olhares e meio soslaio. Um terço rezado sem templo. Um quarto fumando de janela aberta. Um quinto de resto de domingo desaparecendo no horizonte carregado pelos carros. Falta luz. Assusto com uma presença que parece perto demais. É apenas a sombra de meus medos e da desigualdade histórica do país. Vejo os casais passando e sinto saudades de nós. A melancolia não é ruim. Embala a solidão como um presente azul marinho: um livro cuja ordem dos capítulos pouco importa. O apartamento é o mesmo. A porta poderia oferecer alguma resistência. Negar a chave ou agarrar-se ao chão. Mas o vácuo sempre atrai o espaço para dentro. Os móveis recepcionam seu amo com um sorriso amarelado. E por uma graça divina: a luz se queima. Ainda bem.
não colocar nada aqui
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Apertou as tarraxas do violão. Tinha certeza de que qualquer variação de temperatura poderia desafinar sensivelmente as cordas. Naqueles dias, o tempo tornara-se demasiadamente caprichoso. As noites eram quentes e os dias gélidos. Assistiu pela televisão um general bradar contra o vento. Ensaiou preencher os cômodos da sala com vibrações sonoras e psicodélicas. Desistiu. Uma fábrica de grades havia sido instalada no bairro. Todos os dias, a fuligem se acumulava nas portas e janelas. Não fosse a chuva inesperada de terça, estariam todos emprisionados no pó. Calçou a sapatilha e saiu desleixada para o café. Escolheu a segunda mesa de sempre – já que a primeira opção estava mais uma vez ocupada. Cheio. Todos sabiam sobre política. Todos
discutiam
meio
ambiente.
Doutores
universais e oniscientes. Acreditando em fatos escolhidos a dedos no caderno de postagens. vozearia de tantas conversas. da profusão de conhecimento. era tão silenciosa quanto a véspera do Big Bang. Se tivesse uma caneta teria anotado no guardanapo as
feições
curiosas
do novo
atendente. Como era pequena... Pôde se agarrar nas pequenas coisas. Ao menos. Até o lançamento do próximo grande filme no cinema.
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O parafuso. ainda pela metade. na parede. cedeu. O peso da escrivaninha embutida. agora solta. fez pressão sobre suas costas. Naqueles três segundos, desesperou cinco mil soluções não claras sobre o que poderia fazer. Reparou que o rodapé retera para si uma pequena coleção de objetos que haviam caído no vão. Nunca sentiu falta de qualquer daqueles fragmentos. Mas uma vez encontrados, fingiam-se demasiadamente importantes em sua vida. Nos dois próximos segundos, criou vínculos que talvez nunca tenham existido. Sentiu-se como encontrando uma única passagem grifada em um livro adquirido de um sebo. A mão passou a suar. Era preciso tomar uma decisão. Optou por deixar de comer carne. Acabou morrendo soterrado por lembranças. Isso foi no sábado. Terça feriado. Na quarta voltou a trabalhar e se preocupar com a queda de ações, armários, chuva e canivetes.
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O tempo sempre guardou para si os melhores de seus segundos. Porém, distraído pelos primeiros limões do novo pomar, derramou os meses de sorrisos que havia acumulado em seus segredos. Banharam-se naquela chuva, que terminou de arrancar as vestes do medo. No mesmo dia, enquanto ainda brincavam nas poças, receberam a encomenda atrasada. Uma coleção de livros que talvez levasse a vida para ser lida. Livros escritos com tinta branca sobre o papel igualmente branco. Deitaram no tapete novo da sala. A vitrola passou a girar, não mecanicamente, mas
com
alguma
intenção ou malícia... na esperança de embaralhar o som, o silêncio e os olhares. Distribuiu as cartas, as canções e os copos de vinho, enquanto pedia para virarem o lado do disco. A casa era nova não pelos móveis recém comprados. Não pela cor de tinta extravagante mexida à mão e não escolhida na loja. A casa era nova porque aquela mesma torrente havia lavado os resquícios de pó. Bastava o mínimo – o sol nas costas e o cheiro dela no travesseiro. ou nas roupas emprestadas. Ou ainda menos-muitomais: nós amarrados. pelo tempo e cachos.
Afinal, 40.
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SEGUNDO PREFÁCIO. Pedro Tomé de Castro Oliveira. Nichollagens: justaposição de sonhos, devaneios, flashes de lembranças, intuições, lampejos, frases de efeito, jogos de palavras, referências literárias, marcas tipográficas, imagens. O personagem, aqui, é a voz. Voz que primeiramente é de roteirista que decupa imagens num faux documentário, conduzindo nosso farejo de leitor. O que dá o tom de ficção é a metáfora que modula o real. E o real? O que precisamente se dá numa obra literária, em última análise, sem personagens que se revelem para além da divagação, sem fatos que pareçam incidir na concretude do mundo? E no entanto se tem a sensação de uma narrativa. A cada fim de página, algo se passou. Confessional é a toada por vezes, e por vezes crermos ser nós leitores a confessar. Isso porque a voz que encena, aqui, tem um dom de encarnação que praticamente nos coage à empatia, e de pronto nos vemos a falar por ela. Sim, leitores porta-vozes - o não-livro é assim cativante. “Não é minha voz que escuto quando leio”, afirma nosso eu lírico lá pelas tantas; e o “eu é outro” rimbaudiano também dá o ar da graça. Retomo: a personagem, então, fica sendo aquela voz e sua abertura em leque para o nosso interpretar - e ocupar. São as deixas de um roteirista. Assim se cadencia um ritmo, de períodos curtos, rasantes, muitas vezes ocultando o sujeito. Há algo de crônica aqui: a anedota do vizinho barulhento, a pessoa que vai à lanchonete onde todos falam demais e sabem tudo. Mas são crônicas de uma não interação, são fatos cujo acontecimento só se perfaz na percepção de um sujeito. Assim é que o vozerio altissonante
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da lanchonete se compacta numa nada silencioso. E, se a narrativa é assim tão pertencente à esfera do indivíduo, que porém se dilui nessa sintaxe de omissões do sujeito, lá vamos nós leitores a predicar. E nós estamos situados, em boa parte do tempo, num ambiente caseiro. São móveis, paredes, cobertores, comida requentada no micro-ondas, a consciência da chuva a cair lá fora. São os vestígios da presença de alguém que não mais está. Porém, o vocativo que interpela é uma forma de presentificação. O afastamento e o chamamento, o difícil enlace das relações humanas; bem, o amor. Um “control + F” nos revela 18 aparições de “amor” no texto; maior ainda é a recorrência de águas, isto é, do campo semântico aquoso. Amores líquidos? Estamos situados, em verdade, no íntimo de um Stephen Dedalus lusófono, que, para “piorar”, tem vocação para heterônimos. Isso explica o ritmo de saltos bruscos, em que a fala da mente em conjectura cede espaço ao voo livre da imagética. Do mobiliário banzeiro à abstração de um aforismo à vastidão de mares, praias. Numa narrativa introvertida, quase incomodada com a radiação cósmica de fundo da falação alheia (o tal vozerio de vésperas de Big Bang). Mas a introversão precisa, no limite de seu paroxismo, de vazão. E quando a vazão vem caudalosa, colore telas com cavalos, auroras, rios e espelhos. Apenas para depois retornar. São as idiossincrasias do tempo, que o “control + F” acusa 26 vezes aqui; o tempo que na verdade é impossível circunscrever à enumeração computadorizada. Salve, homo sapiens sapiens; sigamos pelo devaneio.
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