DISCRMINAÇÃO DE SEM-ABRIGO, A PERCEPÇÃO SOCIAL DA SITUAÇÃO DE SEM-ABRIGO – TESE DE MESTRADO - 2007

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First International Conference of Young Urban Researchers (FICYUrb) Adília Rivotti Junho de 2007

ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA E EXISTÊNCIA NA CIDADE NUA

“ He aprendido que un hombre sólo tiene derecho a mirar a outro hacia abajo, cuando ha de ayudarle a levantarse.” Gabriel García Márquez

A Motivação Decidir sobre o tema de uma pesquisa é sempre algo de muito pessoal. Na decisão desta se centrar sobre pessoas em situação de sem-abrigo, havia já uma história, uma experiência próxima de pessoas, e dalgum modo essa primeira proximidade, fez levantar um conjunto de questões que me interessava compreender e explicar, partindo da antropologia. Embora haja «um elemento apriorístico em todo o trabalho científico, teremos sempre que formular as perguntas antes de podermos encontrar as respostas. As perguntas são formas de expressão do nosso interesse no mundo, são na sua própria base valorações». (Myrdal, Gunnar, 1976) Esta primeira expressão de um interesse permite a formulação, mesmo que imprecisa, das questões de partida. O desafio também pressuponha, modificar a percepção do semabrigo, centrar a pesquisa nas suas competências, conhecer as suas reinvenções adaptativas à condição de marginal, mais do que insistir nas suas fragilidades, sempre reforçadas, dos diferentes discursos. Interessava conhecer como podem fazer a cidade no sentido relacional, como espaço de mudanças, mas também como experiência de alteridade, rede de interesses e representações, e como negoceiam os espaços físico, precário, social e culturalmente heterogéneos da cidade, a natureza dos laços sociais que constroem vivendo a rua e os lugares.

Os interesses analíticos Como quadro teórico considerou-se pertinente o interesse analítico de uma antropologia da marginalização e da exclusão social para analisar os atributos do marginal; da racionalização – justificação do seu descrédito e do seu exílio do tecido social; o modo Mestrado em Antropologia Urbana Instituto Superior das Ciências do Trabalho e Empresa Lisboa

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de produção simbólico das representações sobre a marginalidade; as identidades estigmatizadas e papéis em interacção. A Antropologia tem uma tradição no estudo dos grupos marginais, mas «o retorno (...) às nossas sociedades no contexto de sucessivas crises, (...) fez-se em muitas ocasiões através da aplicação mecânica de uma certa perspectiva metodológica que consiste em estudar os «exóticos internos», quer se trate das populações rurais mais isoladas e remotas (...), ou aquele tipo de grupos que uma sociedade urbana produz nas suas margens, que aparecem aparte e com características que são percebidas como claramente diferenciadas dos sectores mais normalizados da sociedade». (Romaní, Oriol, 1996: 304). Superada esta perspectiva, a proposta de pesquisa propõe-se assim, compreender e explicar os mecanismos que conduzem à situação de sem abrigo, ciente de que os seres humanos constroem as suas realidades num processo de interacção com outros seres humanos, reconhecendo simultaneamente a necessidade metodológica de «estar por dentro», num esforço para compreender esta realidade, tal como o sujeito a vive. Os teóricos do interaccionismo simbólico, uma das principais correntes teóricas que, nas ciências sociais analisaram os temas do desvio e a marginalização social, consideram que indivíduo e sociedade constituem unidades inseparáveis. «Apesar de ser possível analisá-las analiticamente, a ideia de inseparabilidade traduz-se que a compreensão total de uma de essas unidades implica um conhecimento similar da outra». (Bergalli, 1980:56) E assim, apercebemo-nos ao falar de sem abrigo que inevitavelmente se entrava nas retóricas da pobreza, da exclusão social e da marginalização social. Embora esse facto, não altere significativamente as questões de partida, porque elas podem conduzir a uma abordagem compreensiva, leva porém, a aprofundar o objectivo caminhando no sentido de uma explicação teórica dos problemas de marginalidade, da caracterização das vivências urbanas, no plano dos quotidianos, do relacional, do simbólico, e dos quadros processuais.

Pessoas sem abrigo A única identidade que podemos ter por verdadeira, (...) é a que Lévi-Strauss mencionava em primeiro lugar, a identidade do humano.. (Michell Agier, 2001:27)

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Conhece-se históricamente o fenómeno da vagabundagem, do vadio, do mendigo, tendo este sido alvo de concepções que o consideraram, como resultante de uma pobreza estrutural, ou da incapacidade para trabalhar, ou como estando ligado à ociosidade, à mendicidade e até mesmo a práticas delinquentes. Em função desta oscilação as actuações das autoridades foram alternando entre a perseguição ou a tolerância. Só em 1976 foi abolida a repressão à mendicidade em Portugal, com a extinção do Serviço de Repressão à Mendicidade, criado em 1960, sendo este ainda o quadro legal actualmente vigente. O Decreto – Lei nº 365 de 15 de Maio de 1976, introduz mudanças significativas na percepção e compreensão do fenómeno, afirmando «que a mendicidade é consequência do nível de desenvolvimento socio-económico e cultural de uma comunidade sendo que na sua origem estão essencialmente causas de impossibilidade de angariar meios de sustento (por motivos de idade, de deficiências físicas ou sensoriais, de doença física ou mental e de desemprego) e outras de natureza psicológica (instabilidade e desvio de comportamento)». No quadro legal actual, deixa de ser punível dormir na rua, estando as autoridades obrigadas a intervir junto desta população com base no consentimento voluntário (Bento, 2002:44). Reconhece-se assim, que “em todas as sociedades encontraremos, num determinado momento, uma série de valores hegemónicos e em correlação com eles, um conjunto de normas, implícitas ou explícitas, produto dos diferentes conflitos e dos mecanismos socioculturais de superação, (...) para regular tanto a sua relação com o meio, como as relações entre os humanos”. (Romaní, 1996:306) O termo «sem abrigo» que é utilizado na actualidade parece acentuar a questão da habitação, num sentido restrito, mas decerto também a da pobreza e da exclusão social num sentido mais amplo. Efectivamente pesquisas contextuais confirmam que as dificuldades em manter habitação pode ser considerada como condutora à exclusão social nas suas dimensões material e relacional. Condições de habitação e de vida dignas constituem duas das necessidades mais básicas do ser humano. Garantir o acesso seguro a um alojamento adequado constitui, na maioria dos casos, um pré – requisito relativamente ao exercício da maioria dos direitos fundamentais que deveriam ser gozados por todos. (http://www.fundacao-ami.org/ami/artigo) Procura-se, num contexto europeu, encontrar um consenso crescente de que sem-abrigo não é apenas aquele que vive no espaço público, mas sim o que se depara com a Mestrado em Antropologia Urbana Instituto Superior das Ciências do Trabalho e Empresa Lisboa

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impossibilidade de ter uma habitação adequada, de ter posse legal sobre a mesma e manter a privacidade. Segundo a definição inglesa veiculada no The Housing Act de 1985, uma pessoa é sem abrigo se não possui o direito legal ou se encontra impedida de ocupar uma casa de forma segura ou com razoável conforto (Bento, 2002 apud Munoz e Vasquez, 25). A Federação Europeia das Associações que Trabalham com os Sem Abrigo (FEANTSA), propõe que se adopte uma definição que denominou de ETHOS – European Typology of Homelessness (Tipologia Europeia sobre Sem-Abrigo e Exclusão Habitacional), dado que considera ser esta uma definição abrangente, na qual as diferentes realidades dos sem-abrigo, por toda a Europa são integradas (Spinnewijn, 2005: 22). Construída em torno do conceito de casa, considera a existência de três elementos fundamentais, na ausência dos quais se esboçará a situação sem – abrigo: ter uma habitação adequada sobre a qual a pessoa e família podem exercer uma posse exclusiva; poder manter a privacidade, conseguir relacionar-se; e ter um estatuto legal para ocupação. Partindo destes elementos foram definidas categorias operacionais de sem-abrigo: •

Os sem tecto – alguém que se encontra a viver no espaço público, ou fica num abrigo nocturno mas é forçado a passar várias horas por dia num local público

Sem casa – que tendo uma acomodação temporária, não tem espaço privado nem estatuto legal para ocupação,

Habitação insegura ou inadequada – ou seja um espaço para viver, mas não é seguro, não tem condições de habitabilidade e existe a incapacidade para a manter em termos económicos.

A abertura do conceito de sem – abrigo a outras categorias operacionais teve a eficácia de alertar para o fenómeno que se inicia muito antes de se estar a viver na rua. Em Portugal a utilização desta terminologia tem vindo, mais recentemente, a ser debatida, procurando ganhar maior impacto na percepção de que esta está cada vez menos assente numa linearidade causal explicativa centrada nas características individuais dos sem abrigo, «sendo urgente promover uma reflexão que permita dar visibilidade às causas estruturais destes fenómenos de marginalização extrema e que se encontram, aliás, inscritas nas trajectórias individuais e familiares mais ou menos explícitas» (Baptista, 2005:60) Mestrado em Antropologia Urbana Instituto Superior das Ciências do Trabalho e Empresa Lisboa

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Na presente pesquisa, restringiu-se a atenção aos que estão a viver no espaço público ou se encontram alojados em abrigos de emergência mas, obrigados a passar várias horas por dia na rua.

A investigação em Portugal e na Europa

Segundo Dagrana Avramov, a investigação sobre situação de sem abrigo sofreu de uma perspectiva muito restrita e de um julgamento demasiado genérico. Só nos anos mais recentes é que a investigação gradualmente se move de um focus de deficiências individuais para a análise de processo social que conduziu a diferentes graus e formas de exclusão habitacional. O alargamento do domínio de pesquisa veio colocar novos desafios, e determina largamente o alcance da acção política, percepção da responsabilidade social e distribuição de recursos públicos para enfrentar a privação de habitação. Acrescenta ainda o autor que «nos poucos países europeus onde a legislação e a prática administrativa endereçam a situação de sem abrigo como uma questão de responsabilidade pública, existem diferenças significativas na percepção das condições de habitação que caiem na categoria de sem abrigo». (Avramov, 1999:1). É uma mudança significativa no discurso oficial que «altera o campo conceptual da investigação europeia nas situações sem abrigo desde o início dos anos 90. (…) Só nos anos mais recentes que a agenda da investigação sobre sem abrigo no plano europeu considera a organização e o funcionamento da sociedade e em particular as suas políticas sociais e serviços». (Avramov, 1999:2) Em Portugal «o fenómeno dos sem abrigo parece (...) não ter, até ao momento despertado o interesse da comunidade científica (...) sendo escassos os estudos ou reflexões sobre os fenómenos de marginalização extrema, (...) que partindo da complexidade e heterogeneidade normalmente associada a este tipo de situações e processos, tenha procurado explicitar as interacções que se estabelecem entre diferentes níveis de causalidade que se combinam e reforçam mutuamente, permitindo explicar o processo que conduz os indivíduos a situações de marginalização extrema, bem com à persistência dessas situações ao longo do tempo» (Baptista, 2005:59). Nos diversos estudos realizados em Portugal encontramos um esforço de caracterização que reconhecemos como essencial para o conhecimento do fenómeno, mas ao fixarem o enfoque num conceito mais restrito que limita a perspectiva mais compreensiva do Mestrado em Antropologia Urbana Instituto Superior das Ciências do Trabalho e Empresa Lisboa

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fenómeno, influenciam a percepção social da situação de sem-abrigo como situação marginal que afecta um número pequeno de pessoas. No sentido de olhar para a situação de sem abrigo como um processo social, mais do que uma simples condição de “não habitação”, a comunidade de investigadores necessita de identificar factores, grupos e formas de risco, materializadas por indivíduos e famílias pertencentes ao grupo de risco.

Construção de hipóteses de investigação A intenção de contribuir para a construção de uma teoria da marginalização social é um projecto a longo prazo de Teresa San Román, (1996) cujo objectivo último, é estruturar uma explicação teórica aos problemas da marginalidade, de forma que seja possível caracterizar a situação marginal de grupos e de categorias de pessoas e os seus quadro processuais em distintos momentos em sistemas socioculturais diferentes. Desde longo tempo que a autora se interessa por estudar a marginalização como fenómeno social. Num contexto diverso da pesquisa de que falamos, a autora parte de aspectos constatados empiricamente, com a intenção de construir uma teoria da marginalização social, que segundo ela, poderiam caracterizar um fenómeno muito mais amplo e oferecer explicações úteis. A proposta de Teresa San Román de construir uma série de hipóteses que pretendem dotar de conteúdo teórico os problemas gerais da marginalização, interessa particularmente na presente pesquisa, dado que pode permitir trabalhar os dados empíricos, e testar a pertinência das hipóteses formuladas no contexto concreto do grupo de pessoas que se encontram sem abrigo. Partindo destas hipóteses, o desafio situa-se no trabalhar os dados empíricos recolhidos no trabalho de campo; sistematizando e analisando os registos resultantes das observações directas; das conversas informais, da biografia, procurando interpretar os resultados no contexto das hipóteses de partida de uma teoria de marginalização social. O núcleo central do projecto de San Román, trata de por à prova a hipótese de que, a essência do que tipificamos como marginalização produz-se em situações de competição, em que existem possibilidades objectivas de que se resolvam na “suplantação” de um dos competidores, de forma que consiste socialmente na exclusão do marginalizado dos espaços sociais, do acesso institucionalizado a recursos comuns ou públicos, por forma que esse acesso é não regrado, menor, e limitado temporalmente. Mestrado em Antropologia Urbana Instituto Superior das Ciências do Trabalho e Empresa Lisboa

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Ainda, hipoteticamente, este processo de marginalização produz, acompanha-se e alimenta-se de uma formação ideológica que dá racionalidade e justifica a exclusão. Tratar-se-ia de estereótipos que dão suporte racional e justificam moralmente aquela suplantação como uma negação de acesso, atribuível a uma suposta incapacidade pessoal e que implica, em ultimo caso, a despersonalização social do marginalizado, a negação dos seus atributos sociais de entidade social. As regras processuais e a caracterização social são homólogas para qualquer tipo de marginalização. Seria então necessário estudar a ideologia da marginalização e as regras de despersonalização presentes nela, também a variação e natureza do conceito de pessoa, da criação cultural da noção de pessoa na sociedade. A marginalidade, pela sua escassa relação com as instituições, pela sua dificuldade de acesso institucionalizado aos recursos e direitos comuns e a tomar decisões com eficácia, tende a produzir o alheamento das normas, usos e relação comuns, dando lugar em distintos casos e condições, a contravenção das normas, ao abandono dos usos. Sem dúvida esse desinteresse pelas regras culturais comuns permitiria criar novos usos não estandardizados dos recursos culturais. Um outro aspecto a considerar é o da institucionalização da marginalização. Neste caso ter-se-ia também de recorrer ao conhecimento da regulamentação/ legislação dos centros de acolhimento para sem abrigo, as suas características, normas, espaços e o seu uso social. Por último, a hipótese de que a marginalização (...) é também, um estado ou nível de tensão inclusão /marginalização, um componente variável que pode estar presente em determinados campos de relação social institucionalizada.

Na rua

Sabemos que «(...) a relação entre a parte e o todo ou entre a produção de etnografia e o seu contexto tem sido uma das maiores dificuldades da antropologia urbana. Sendo esta relação o eixo principal da problematização, é possível identificar um conjunto de questões que estão interrelacionadas e que tem alcance teórico e metodológico.» (Cordeiro, 2003:11) Estas questões eram obviamente pertinentes para a pesquisa porém, impunha-se definir como iria conhecer a cidade, onde pesquisar, e que sentido teriam para o conjunto da cidade os locais escolhidos, como relacionar os espaços ou partes com o todo, que escala adoptar. Mestrado em Antropologia Urbana Instituto Superior das Ciências do Trabalho e Empresa Lisboa

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Era assim, em simultâneo, importante conhecer a cidade, de noite e de dia percorrendo-a na amplitude dos seus limites. Segui-se a estratégia do acompanhamento das equipas de rua de apoio aos sem abrigo para iniciar os percursos da cidade nocturna, o que permitiu abranger uma escala inicial mais ampla do que seria possível fazer individualmente. Acompanham-se duas equipes de rua. Uma de carácter institucional e pública, dependente da autarquia e outra que depende de uma associação privada sem fins lucrativos, desenvolvendo projectos no âmbito da problemática da exclusão social, especificamente direccionados para o indivíduo sem – abrigo. Foi-se seguindo o “percurso” das equipes por toda a cidade, percorrendo as ruas, obedecendo a caminhos definidos por estas e não pelo investigador. Era real a dificuldade de estabelecer ou adoptar formas de fragmentar a cidade. Inicialmente o desconhecimento da existência de suportes de micro escala como vizinhanças, limites de interacção social ou divisões territoriais com homogeneidade, não permitia ainda desenhar quaisquer recortes. Várias tem sido as tentativas de conceptualizar a cidade como totalidade fragmentável, tendo como vantagem a sistematização de um universo que se apresenta fluído, complexo e múltiplo, e consequentemente, um ponto de partida sólido para a reflexão da cidade. Na linha deste debate sobre as diferentes escalas de aproximação às unidades de observação e análise, José Magnani, elege a rua, a rua que interessa ao olhar antropológico (...) esta é uma rua que resgata a experiência da diversidade, possibilita o encontro entre desconhecidos, a troca entre diferentes, reconhecimento dos semelhantes, e uma multiplicidade de usos e olhares. (Magnani, 1993:2) Seguimos com entusiasmo esta proposta de recorte da rua, tal como José Magnani propõe, a rua enquanto lugar e suporte de sociabilidade, uma rua identificada pelo olhar antropológico e recortada de variados pontos de vista que são oferecidos pela multiplicidade dos seus utilizadores, dos seus horários, suas tarefas, e formas de ocupação. Não se está a falar da rua na sua materialidade mas sim em experiência de rua. A riqueza que caracteriza a experiência urbana está então nesta diferença que os grupos encontram na cidade em determinados espaços. (Magnani, ob.cit.:3). Com o tempo foram surgindo elementos diferenciais sobre a vivência dos espaços, o tempo de permanência nos lugares, redes sociais localizadas. A cidade conhecida revelou-se diferente, os espaços ocupados tomaram outro sentido, até ir identificando Mestrado em Antropologia Urbana Instituto Superior das Ciências do Trabalho e Empresa Lisboa

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«contextos empíricos, locais onde é possível a recolha de depoimentos, histórias de vida, narrativas orais, termos de parentesco (...)» (Magnani, ibidem). E esses contextos foram surgindo, a rua, o largo, o jardim, a igreja, as arcadas, como espaços de sociabilidade e alteridade, donde é possível focalizar mais adequadamente estes contextos. Começa-se então, nesta fase a desenvolver o trabalho de campo fora do contexto das equipas de rua, centrando-o também nas pequenas vizinhanças de rua, em suportes de micro escala.

No quotidiano da rua

O tempo de trabalho de campo permite já algumas reflexões, decerto susceptíveis de virem a ser modificadas. Serão contudo contributos para interpretações futuras, feitas à luz dos interesses teóricos sobre a marginalização enquanto fenómeno social. Existem alguns eixos que retomo das questões de partida, permitindo fazer algumas considerações sobre a cidade que se foi conhecendo, que é também a cidade de quem vive na rua, e que, sobretudo, a noite trás visibilidade. À noite, nos lugares que não imaginamos, alguém vai acomodar o seu abrigo, num vão de loja, num vão de escada, de serviços, sob o banco do jardim. À noite “ faz-se a cama” e os passeios, arcadas, alpendres, igrejas, preenchem-se de outros homens e mulheres que durante o dia percorreram a cidade e que agora voltam. Sabem que cedo, bem cedo pela madrugada, tem de se erguer, antes de chegar os primeiros movimentos da manhã, uns procurando que não se apercebam da sua presença nocturna, outros, fazendo “ negociações” com seguranças, funcionários, comerciantes. Levantar cedo, não deixar vestígios, dobrar, arrumar e partir para as horas do dia, preenchidas a arrumar carros ou noutros pequenos trabalhos, deambulando. Os seus haveres, poucos, carregam-nos consigo ou com sorte encontram um sítio onde os guardar. Quem vive na rua tem de obedecer a inúmeras regras e descobrir um conjunto de suportes, de rotinas que lhe permite a sobrevivência. Aprender a gerir os horários na rua, que são múltiplos, sejam das carrinhas que trazem alimentos, roupa ou agasalhos, de intervenção das autoridades, ou dos serviços municipais. Encontra-se vários contextos de relação com outros utilizadores do espaço, gente que passa todos os dias, que trabalha perto, que vive perto. Mas a ambivalência entre a ajuda que se quer dar e o incómodo que sente, instaura uma atitude de NIMBY ( Not in my Backyard). Mestrado em Antropologia Urbana Instituto Superior das Ciências do Trabalho e Empresa Lisboa

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A possibilidade de integrar uma equipe de rua do município, de consultar os arquivos relativos às “sinalizações” sobre sem abrigo, que tem origem numa multiplicidade de intervenientes na cidade, tem permitido conhecer a percepção que os outros citadinos, entidades e técnicos tem do sem abrigo e o que entendem que deverá ser feito pelas entidades responsáveis. Diria, numa primeira interpretação das representações, que o sem abrigo é percebido como alguém que causa insalubridade, incomoda, “tem impacto negativo”, sujo, porque trás consigo lixo, cartões e sacos de plástico. A esta percepção corresponde um comportamento e actuação das entidades públicas no sentido de controlar, manter a higiene urbana e pressionarem os sem abrigo a despojarem-se de parte dos seus haveres. Na gestão da cidade a intervenção dos serviços de limpeza é regularmente solicitada para actuar no espaço público. Os pertences do sem abrigo são considerados como quase inexistentes, igual a lixo, e conspurcante do espaço. «A impureza nunca é um fenómeno único, isolado. Onde houver impureza, há sistema. Ela é o subproduto de uma organização e de uma classificação da matéria, na medida em que ordenar pressupõe repelir os elementos não apropriados. Esta interpretação da impureza conduz-nos directamente ao domínio do simbólico». (Douglas, Mary, 1966:50). Sendo a «a impureza uma coisa relativa», o comportamento das entidades públicas corresponde a uma condenação de qualquer objecto susceptível de lançar confusão e desordem. Do ponto de vista de quem está na rua os seus haveres (poucos) são regularmente alvo de “rusgas”, sujeitam-se a serem desapossados dos seus pertences, cobertores, sacos (de plástico na maioria das vezes) com roupas e outros objectos. Encontro com frequência contextos de pequenas vizinhanças, de suportes de sociabilidade. O estereótipo do sem abrigo como alguém, “isolado, fechado e excluído do meio social” não tem correspondido à experiência de rua. Pequenos grupos vivem partilhando espaços, criando laços de entre ajuda, mantendo não para além de relações funcionais, também laços duradouros. Conhecem-se de anos, partilham comida, roupa, agasalhos, constituem-se como grupo de protecção, amigos, irmãos do coração. Mesmo os que já não estão na rua, regressam e mantém formas de suporte regulares.

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No Centro de Abrigo Alargou-se o trabalho de campo, a um Centro de Abrigo. Este centro é o único da cidade que acolhe pessoas que vem directamente da rua, seja através do encaminhamento das equipas de rua ou de outros técnicos que intervêm junto da pessoa sem abrigo. Recordo que o meu âmbito de pesquisa centra-se nos que estão a viver no espaço público mas também nos que se encontram alojados em abrigos de emergência mas obrigados a passar várias horas por dia na rua. Os Centro de Abrigo são equipamentos de iniciativa municipal ou de entidades particulares cujas finalidades estatutárias incluem a promoção da saúde, cabendo-lhes igualmente a respectiva gestão de acordo com a legislação que os cria. (Decreto-Lei n.º 183/2001 de 21 de Junho). No Plano Municipal de Prevenção e Inclusão de Toxicodependentes e Sem Abrigo para 2002-2005 pode-se ler que «o Centro dirige-se a toda a população da cidade, que esteja em situação de sem abrigo, embora seja um Centro especializado para a população com toxicodependência. Efectivamente, o diploma legislativo que cria os centros de acolhimento e de abrigo tem como objectivo a criação de programas e de estruturas sócio-sanitárias destinadas à sensibilização e ao encaminhamento para tratamento de toxicodependentes bem como, à prevenção e redução de atitudes ou comportamentos de risco acrescido e minimização de danos individuais e sociais provocados pela toxicodependência. A estrutura criada, Centro de Abrigo, é definida como espaço de pernoita e destina-se a contribuir para a melhoria das condições de dormida de toxicodependentes sem enquadramento sócio-familiar e para a aproximação destes aos sistemas sociais, procurando o afastamento de meios propícios ao consumo. António Bento já tinha alertado em 2002, que «na situação presente, não encontramos nenhuma legislação específica para os sem abrigo» (Bento, 2002:44) A Lei de Saúde Mental (Lei n.º 36/98, de 24 de Julho), embora não se refira especificamente aos sem-abrigo poderá ter, todavia, algum impacto nestes. Ao regular o internamento compulsivo das pessoas com doença mental com os pressupostos que este “ por força desta (doença mental) crie uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor próprios ou alheios (…) e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico» (art. 12 -1), ou «não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma Mestrado em Antropologia Urbana Instituto Superior das Ciências do Trabalho e Empresa Lisboa

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acentuada o seu estado» (artº12 -2), cria tentações várias, relativamente ao enquadramento de outras situações de saúde mental, que não tendo qualquer acompanhamento, por ser mais uma exclusão, neste caso a do sistema de saúde, ficaria assim sanada. Em Portugal, estamos perante um vazio em termos de legislação neste domínio. A vontade de conhecer o centro e as pessoas que ai pernoitam, não esteve dependente apenas do objectivo da pesquisa, mas reforça-se pelo facto de ser um espaço frequentemente representado negativamente pelas pessoas que vivem na rua, recusando o seu ingresso nos mesmos. Se o centro tem como objectivo «assegurar todos os meios que possam levar à dignificação desta população» (Plano Municipal, 2002:101), quis perceber as condições, estar face a face no espaço institucional, entender as interacções, os usos, os espaços. Os estudos de Goffman sobre o impacto das características de meios institucionais na estruturação da auto imagem e identidade do internado, através do isolamento físico e simbólico do meio de pertença, de processos de mortificação (cerimónias de admissão, degradação da auto-imagem, contaminação e despossesão), coloca em evidência a divergência que existe nos traços constituintes da vida social no interior de certas instituições e aqueles que são entendidos como os seus objectivos oficiais (Bastos, 1997: 27). Concluindo, apesar de existirem alguns esforços no sentido de articular redes de parceiros que actuam junto dos sem abrigo e de muitos voluntários na rua, as respostas em áreas estruturais não correspondem a uma responsabilidade social e distribuição de recursos públicos para ultrapassar a situação actual. A percepção social da situação de sem-abrigo é tida como situação marginal que afecta um pequeno número de pessoas. Numa ironia … “ É um drama individual que não pesa nas estatísticas oficiais, descansa nossas consciências, e não provoca insegurança …. Enfim, desde que eles se mostrem pacíficos, agradecidos e confinados...”

Referências bibliográficas Agier, Michel, 2001, «Distúrbios identitários em tempos de globalização» Mana, 2001:27

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