PHASE 1/: Mente Cheia, Bolsos Vazios.

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Rede Cuca Apresenta

Fortaleza 2019


Contos da Cuca, 2019 by Rede Cuca.

Equipe do Escambau Coordenador e Organizador Wilson Junior Professores do curso de escrita Suellen Lima Moacir Fio Michel Euclides Diagramador Raoni Kachille Revisoras Gisele Jacques Ana Cristina Rodrigues

Equipe do Cuca Diretor dos Direitos Humanos e Cultura Daniel Martins Mamede SecretĂĄrio de Juventude de Fortaleza JĂşlio Brizzi


Sumário Introdução Daniel Martins Mamede | 9

A curiosidade matou o gato Matheus Bonfim | 11

A Ilusão de José Leo Silva | 17

A invenção do Mar Daniel Martins Mamede | 23

A justiça é uma escolha Renata Lima | 25

A liberdade é agridoce Dmitri Gadelha | 57

A Procura de Dignidade Fabiana Nogueira | 65

Aos olhos de Cristo Caio Rennery | 71


As cartas nunca mentem Bruna DeRose | 79

Continue Morto, Oliver Delano Nogueira Amaral | 99

É Hora do Show Kelliany Évelin | 125

Identidade L. Matheus | 131

Luz A. M. Duarte | 137

Malandragem Diplomada Herbert Saboia de Sousa | 141

Molotov Eduarda Ribeiro | 149

No Cash Mente Cheia, Bolsos Vazios Wesjley | 157

No manicômio Daniel Lima | 161

O Espaço de Jangu Rômulo Silva | 165


O Irmão Invisível Nanderson Azevedo | 169

O Livro Vermelho Thiago Campos | 173

O retrato Moacir Fio | 177

O Sexto Dia Michel Euclides | 183

Piratas de Açude Wilson Junior | 189

Sol Nosso Lygia Amador | 197

Sufocados Oziel Herbert | 203

Sonha Alice Wesley Jones | 211



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Introdução

Daniel Martins Mamede No início, escrever um livro sobre o Jangurussu não passava de desejos individuais, percepções alinhavadas pela esperança de que este pequeno espaço, delimitado por linhas imaginárias, merecia ser contado por jovens vozes e lidos por novos olhares. Tinha o Lobisomem e os muitos outros homens que partiram do Gereba em busca de um tal anel perdido na serra de Pacatuba. Tinha até um Campo Estrela onde o tempo parava e as crianças podiam jogar mais um pouco. Eram tantos e tantas, as santas e os santos: Ave-Maria, Santa Filomena, São Cristóvão, até o João e Paulo juntos. Quem sabe um deles não rogava por nós. Não se sabe bem se por pranto, riso ou reza o Jangu, tão violentamente doce, como diria Cortázar, ganhou mais cor com a chegada de um equipamento com nome de personagem de fábula: CUCA. Ela chegou e fez nossa cabeça. Reuniu poetas, bailarinos, loucos, artistas plástico, palhaços, rappers, mágicos, atletas, contistas. Muita gente, gente de verdade. Gente do tipo que se importa com a gente. E, tão natural quanto as flores que brotam do lixão após receber um carinho da chuva, foram brotando livros nas paredes, nas arquibancadas, nos corredores e até nas estruturas de aço do anfiteatro. Pintados, grafitados, pichados, desenhados, escritos, grafados. Como se já estivessem ali para serem descobertos. Alardeavam os outros: Foram estes loucos! Estes poetas! Agora só pensam em fazer sarau! É na biblioteca, no pátio,


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na sombra da caixa d’água, no anfiteatro. Onde vamos parar? E logo paravam um pouco para escrever, enfeitiçados pela literatura. O tempo passou para que o próprio sonho pudesse entender que o Jangurussu tem um jeito próprio de sonhar. Lá só sonha quem sonha junto. Com o rigor e o cuidado do senhor de todos os ritmos, juntos formamos uma turma de jovens escritores, conduzidos por um tal navegador de nome Escambanauta. Foram alguns anos de trocas literárias para que pudéssemos traduzir este sentimento partilhado. Um livro mais para ser escrito do que para ser lido. O livro Contos da Cuca é muito mais do que um apanhado de textos de todos os Cucas. É o desejo em carne viva. Amor pela arte de escrever. É um manifesto. É um grito de PODEMOS! Pois se cada pessoa é um livro e o mundo, uma biblioteca, a periferia também pode ser escritora.


A curiosidade matou o gato Matheus Bonfim

Era mais um dia normal da semana, eu estava voltando da faculdade, já estava pensando nos inúmeros textos que teria que ler e nos trabalhos que tinha que apresentar. Para piorar, o meu telefone tocou. Minha mãe bastante irritada me acusando de ter quebrado a torneira do banheiro. – Eu nem em casa estou, vai encher o saco de outro! Desligo o telefone na cara dela e vou em direção à parada de ônibus, estava agitado por causa da pequena discussão. Então, a ficha cai. Porque falei com ela daquela maneira, quando eu chegar em casa a discussão será um inferno. Na minha mente passam cenas das consequências daquele ato, minhas mãos tremem e as pernas ficam bambas. Meu ônibus já se aproximava da parada quando avistei aquilo. Poderia ser um anão, mas estava todo coberto por uma manta. Curioso, decidi segui-lo, já que não teria nada de bom me esperando em casa mesmo. Para não chamar atenção da vítima da minha bisbilhotice, fui diminuindo o ritmo dos passos. Infelizmente, essa escolha não adiantou, já que, de repente, a coisa acelerou os passos. Depois de uma pequena corrida na tentativa de não perder o rastro daquele ser, acabei encontrando um bar e percebi que não tinha prestado atenção no caminho. Achei estranho por ele estar localizado em um ponto nada conveniente para atrair a clientela. Que tipo de lugar é esse?


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Quando me aproximei da porta, que era de madeira, percebi uma espécie de grifo talhado nela. Conhecia o bicho de um RPG que joguei, não é uma coisa comum de estar no centro da cidade. Entrei. O sujeito estranho tinha ganho minha atenção, agora esse lugar tinha minha curiosidade. O estabelecimento tinha paredes com um verde-escuro que emitiam uma aura de calma, as mesas eram rústicas e nas paredes podia-se observar quadros com imagens de criaturas estranhas. O local estava pouco movimentado e as pessoas ali pareciam desconfiadas, existia um clima de tensão no ar. Resolvi sentar em uma mesa no canto para não chamar a atenção e fiquei intrigado com aquele cardápio, vários pratos e coisas que nunca ouvi falar. Mal tive tempo para divagar se pediria algo, pois os murmúrios e o público iam aumentando. Algo grande parecia estar prestes a acontecer. De repente, um anão subiu no balcão do bar, tinha uma cara carrancuda e os dentes afiados. Sem perder tempo, começou a falar, era uma voz muito estranha para os meus ouvidos. – Acredito que todos estejam sabendo do motivo dessa reunião. Muitos de nós não querem mais viver nas sombras e decidiremos essa noite se devemos ou não nos mostrar para os mundanos. Tomem seus lugares, em breve começaremos. Eu estava olhando para aquela cena embasbacado. Que anão estranho era aquele? Que conversa é essa de mundanos? Me perguntei se aquilo não era uma daquelas live action de RPG ou se, a qualquer momento, o Ivo Holanda apareceria. Meu primeiro pensamento era que eu deveria sair dali, mas outra parte de mim queria ficar. Mas, não importava o que


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eu iria escolher, notei um sujeito com uma corcunda enorme fechando a porta. Procurei em volta e não avistei nenhuma outra saída. Dei um sorriso amarelo, era como se estivesse tentando engolir uma comida que detestava. Após alguns minutos, as pessoas se calaram e algo que aparentava ser uma mulher de cabelos negros, orelhas pontudas e olhos serenos, se aproximou do balcão com andar calmo, olhou para todos os lados e iniciou sua fala: – Meus amigos, estou aqui para tentar convencer vocês que devemos coexistir com os humanos. Sei que eles são criaturas complicadas de lidar, que possuem dificuldade para aceitar o diferente, mas acredito que, com um bom diálogo, poderemos ter algum resultado. Eu continuava impassível, sem acreditar naquela conversa, e tive que controlar a vontade de rir, pois um sujeito com um nariz desproporcional me olhava de esguelha. Com muito esforço, eu me contive e, enquanto estava na minha luta interna, um cara esguio com um cavanhaque se levanta irritado de uma mesa. – Você vem com esse discurso bonito como se fosse tudo fácil assim. Acha que vamos nos apresentar, falar “Oi, tudo bem? Vamos ser amigos!” e ficará tudo bem como naquelas histórias que aqueles dois irmãos xereteiros escreviam? Eles vão nos caçar e nos dizimar! – o sujeito terminou a fala com dedo em riste de frente à mulher. – Você fala como se eu fosse uma estúpida. Sei que teremos problemas, mas, mesmo assim, é preciso tentar. Aposto que todos aqui não suportam mais ter que viver escondidos e ocultar a própria forma. Só estou tentando lutar pela nossa liberdade.


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– É bem provável que os humanos gostem mesmo de você, tendo um sorriso bonito desse fica fácil. Mas, nem todos aqui têm uma aparência agradável para eles. Nós sabemos que os humanos matam por motivos ridículos como aparência e até mesmo por causa de quem o outro ama. Eles vão nos apunhalar na certa! Não se pode confiar nos mundanos! Nesse momento, muitas pessoas concordaram com aquelas palavras e o narigudo pediu para falar e foi concedido: – Séculos atrás, nós éramos caçados – disse com uma voz rasgada, eu estremeci –, assassinados e torturados em rituais. E, com muito esforço, conseguimos ocultar a nossa presença, fazer com que todas aquelas histórias não passassem de fábulas, histórias para assustar as crianças. Acredito que estamos correndo um grande risco de colocar tudo isso em jogo por conta de uma ilusão. Eu apoio que devemos continuar vivendo do jeito que já estamos acostumados, não suportarei perder outra vez quem amo… — E, nesse momento, ele fez uma cara de tristeza e se afastou, recebendo pesares dos outros em volta, enquanto escorria uma meleca proporcional ao nariz em um lenço que eu chamaria de toalha de rosto. Eu me questionei se aquilo era mesmo um jogo ou qualquer coisa do tipo, se era real mesmo. Minha risada morreu. Poderia ser real? – Eu sei que os humanos são cruéis, mas devemos ter em mente que nem todos são assim. Não estaríamos sendo tão ruins quanto eles julgando todos dessa forma? Não é preciso que todos mostrem suas reais formas, podemos fazer isso com cuidado. É preciso ter um primeiro passo, é um risco que estou disposta a correr. Nesse momento, um silêncio sepulcral tomou conta do lugar. Os dois ali em pé hesitaram, era como um jogo de xadrez.


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Porém, alguém em algum ponto grita em tom de humor, como quem quer ver o circo pegando fogo: – E se subjugarmos esses malditos? O homem pareceu concordar com aquilo e a mulher fez uma cara de desagrado, tentando achar quem falou aquilo. Aproveitando o momento, o anão voltou a aparecer e, mesmo sendo baixo, apontava o dedo no peito do homem: – Seu panaca! Acha mesmo que, com essa fala e incentivando esses gritos extremistas, vai resolver alguma coisa? O clima de tensão chegou ao ápice. O homem se irritou, indagando como o anão ousava encostar nele e falar daquela forma. Começou um empurra-empurra, alguém jogou cerveja para cima. Urros, grunhidos e vozes em línguas estranhas se misturavam. E foi nessa hora que me arrependi de ter entrado naquele bar. O anão começou a criar pequenos chifres e foi ficando esverdeado e, enquanto isso, o homem foi crescendo e criando enormes presas. O nanico pulou nele e, então, todo mundo resolveu tomar partido e o show de horrores começou. Diante do caos, parecia que tinha perdido o controle do meu corpo, não conseguia digerir o que estava acontecendo e fui me encolhendo na cadeira e escorreguei para debaixo da mesa. Aos poucos, fui engatinhando e, com o máximo de coragem que tinha, me aproximei da saída. Enquanto eu travava aquela batalha interna com o medo, a bizarrice foi aumentando, as pessoas começaram a se transformar em verdadeiros monstros, alguns com chifres enormes, insetos humanoides, homens-esqueleto e diversas outras bestas que não consigo descrever. Era como se eu estivesse em um dos filmes do Tim Burton.


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Meu coração estava prestes a explodir, minhas pernas não queriam se mexer, uma tontura me dominou. Mesmo assim, eu continuava a andar o mais rápido que conseguia, de quatro no chão coberto de mucos multicoloridos que eu rezava para ser bebida. Com muito esforço, eu venci a distância e estava de frente para a saída daquele inferno. A porta estava fechada Mas, meu instinto de sobrevivência falava mais alto e eu a forçava, empurrava, fazia de tudo para fugir dali. Eu não percebi, mas os rugidos e os sons de coisas quebrando começaram a diminuir. Até que, em um momento, tudo parou e ouvi uma voz que fez a minha espinha gelar: – Ei, quem é aquele?

Matheus Bonfim, 21 anos. Universitário, adora cinema e literatura fantástica. Além de ouvir uma boa música para passar o tempo.


A Ilusão de José Leo Silva

Os raios de sol invadiam o quarto, parecia que tinha passado um furacão por aqui. Eu, deitado no chão ainda acordando, abrindo os olhos aos poucos, cada piscada deixava a imagem mais nítida. Eu via a Raissa jogada no outro lado do quarto, não sei bem o que rolou, mas parece que a noite foi longa. Me levantei para ir ao banheiro. Sentei no vaso, não estava com vontade de nada, fiquei lá um tempo pensando, entediado, olhando para a maçaneta da porta, e ali mesmo adormeci. Ouço umas batidas frenéticas na porta, parecia que iam derrubar. E, aos poucos, eu ouvia as vozes chamando “José, está aí? José?” repetidas vezes. Assustado com as pancadas, respondi “Oi, estou aqui, estou aqui. O que foi?” Girei a maçaneta, o quarto já estava bem iluminado, as janelas estavam abertas, passo a mão nos olhos limpando as remelas. Me assustei ao ver o que estava à minha frente. Raissa não estava mais jogada no canto do quarto, deve ter sido um sonho. O meu quarto estava ali, organizado, e apenas um livro em cima da cama, parecia que nada tinha acontecido. Vesti uma roupa, fui ao banheiro, passei água no rosto e saí. Fui à sala, Raissa estava no sofá deitada, dormindo, e na cozinha estavam meus pais. – O que a Raissa faz aqui? – Também não sabemos, acordamos e a vimos aí. – Você não tinha saído com ela ontem? - perguntou meu pai. – Não, eu nem saí ontem, eu acho.


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Sentei à mesa, peguei um pão e comecei a cortá-lo. Meus pensamentos ecoavam sobre o acontecido da noite, pequenos flashes vinham em minha mente. “Que diabos aconteceu ontem?” A cada rebatida que vinha na mente, me via ao lado de Raissa. Estávamos na esquina com um litro de cerveja na mão, a gente sorria olhando para um ponto fixo. Uma rua que era uma reta gigante fazendo a gente se conectar à lua. Ficamos ali contemplando. Após terminar de comer, fui à sala tentar acordá-la, fazia um tempo que estava ali jogada no sofá, acho que tinha bebido muito nesta noite. Pretendia perguntar a ela sobre a noite anterior, pois esses pequenos flashes em minha mente me perturbavam, como se quisessem me mostrar algo. – Raissa, Raissa – chamei enquanto mexia em sua cabeça tentando acordá-la. Ela se virou, chegou a resmungar, mas queria continuar a dormir. Deixei-a de lado e fui para o quarto, peguei um livro do Bukowski que estava em cima da cama e comecei a ler. Eu tentava, mas apareciam pequenos flashes fazendo com que eu não conseguisse me conectar com a leitura. No fim, eu fiquei mais interessado em saber o que aconteceu. Sentia que tinha algo de estranho. Em minha mente, aparecíamos ali parados na mesma esquina. Raissa agitada, já um pouco embriagada, jogou o litro seco no meio da pista bem na hora que um carro passou, o vidro furo do pneu do carro, ríamos. O dono do carro não saiu, continuou ali parado dentro do veículo. Virei o litrão e também o joguei no chão. Havia um cara nos acompanhando, não o reconhecia, estava sempre ao lado de Raissa e falou alto “É isso mesmo” e sorria. Não entendi.


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Ainda estava tentando ler enquanto meus pensamentos esvoaçados traziam algo sobre a noite passada. Comecei um pouco assombrado por não entender o que rolou. Raissa ainda dormia, comecei a pensar em quem seria aquele cara. Agoniado, apenas deitei e tentei cochilar. Eu não me via mais no meu quarto, parecia uma paranoia. Me sentia-se drogado, porém conseguia ver que realmente estava no local. Estávamos em um bar meio lotado, tinha uma banda tocando o cover do Accept, estavam tocando a música Balls To The Wall, o som invadia meus ouvidos fazendo com que me animasse com a noite. Encontrei Raissa sentada de cabeça baixa sobre a mesa, embriagada, quase dormindo. No local, diversas pessoas conversavam, o ambiente estava dominado pelas vozes enquanto o som alto troava. Tentei animar Raissa para que ela acordasse. A chamei para dar uma volta, já era quase meia-noite. Andávamos pelas ruas do centro tentando nos afastar pouco do local. Aos poucos, Raissa parava. – Pera aí, José – disse com sua voz embargada. Logo depois vomitou. Paramos mais umas três vezes para ela vomitar. Ajudei para que não caísse, a gente andava sem um rumo. Dei água para ela, que bebia aos poucos, e mesmo cambaleante tentava conversar. Falava do cara que estava com a gente, que ele estava curtindo com a gente, e que estava nos esperando em algum lugar. Apenas a ignorei. Chegamos em uma praça no centro da cidade, nos sentamos, estávamos cansados, nem podia falar pela Raissa, pois ela já estava em outro estado. Se ela chegasse a dormir ali, só sairíamos de lá ao amanhecer. Ela se mexia, começando a se sentir melhor. Começou novamente a falar sobre o cara


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que estava com a gente, dizendo que ele usava blusa preta, coturno, cabelo curto e um topete tosco. Eu não lembrava dele, nem do momento em que quebramos os litros de cerveja em meio à estrada. – José, vamos voltar para lá? Preciso de mais água – disse ela com dificuldade. Ajudei a se levantar, andamos pelas ruas calados, olhando para os prédios ao redor. Em minha frente eu vi uma placa de tombamento, era um local histórico, parei e fiquei admirando a estrutura. Ele dava uma volta na esquina e tomava toda a rua. Em cada prédio tinha resquícios quebrados, estava velho, pouco cuidado e se caísse alguma coisa ali tudo ia abaixo. Como os arquitetos conseguiam pensar naquilo? – Bora, José, preciso de água – escutava a voz dela bem no fundo. Fui prestando atenção na voz de Raissa, estava desnorteado por contemplar o monumento. Raissa falava enquanto andávamos. Eu nem ligava para o que ela dizia, estava tentando lembrar de algo. Percebi que poderia estar em casa dormindo, então pensei “onde eu estou nesse momento?” Chegamos novamente ao bar, o som ainda tocava e as conversas aleatórias pareciam um zumbido de abelha. Lembro que Raissa tinha ido comprar água, já se encontrava em uma melhor condição. – Ali ele, ó, vem aqui José – disse ela. Eu fiquei calado, apenas acompanhei. Fiquei andando pra cima e pra baixo, ela conversava e eu apenas observava, já que eu não conseguia prestar atenção nela, então me foquei na banda que tocava. Estava lindo, fazia tempo que eu não curtia. As horas foram passando, percebi que ela tinha saído de perto de mim, mas apenas continuei a curtir o show.


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Já estava acabando, as gritarias eram escutadas de todos os lugares. Apenas saí dali. Fui ao bar, comprei uma cerveja enquanto esperava Raissa. Depois de trinta minutos esperando, imaginei que ela já tinha ido embora. Chamei um táxi e fui para casa. Com o braço encostada na janela do carro, os meus pensamentos traziam à tona algumas coisas da noite, mas estava nublado pelo efeito da bebida. Chegando em minha residência, todas as luzes estavam apagadas, a cozinha um pouco desarrumada, tinha dois litros de água vazios em cima da mesa e um litro de cachaça aberto. Parecia normal para mim, pois eu sempre trazia alguns amigos para cá. Fui para o quarto, nada estava do jeito que deixei, mas a embriaguez fez com que eu ignorasse. Me deitei na cama olhando para o teto enquanto minha cabeça girava e doía. Sentei, ao tentar me inclinar para me ajeitar na cama, cai, não conseguir me levantar. Fiquei lá jogado no chão. Na minha frente, eu vi a Raissa caída. Minha cabeça girava enquanto eu olhava para ela, não consegui pensar em nada. Acordei assustado. O livro estava no chão. Raissa não se encontrava mais no sofá, estava deitada do meu lado. Me levantei, fui ao banheiro, não vinha nada de importante na cabeça, fui à cozinha, bebi um pouco de água e fui preparar algo para comer. Minha cabeça doía, coloquei a água para esquentar, decidi fazer um miojo. Voltei para o quarto, me deitei novamente ao lado de Raissa. Dormi. Meus sonhos se misturavam com as lembranças da noite passada. Quem era o cara que estava com a gente? Para mim, era apenas um daqueles caras que ficam poitam dos outros.


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Vi algumas cenas, Raissa jogada do outro lado, deitada, ainda em estado de embriaguez. Eu indo ao banheiro, sentando para pensar, as batidas frenéticas e assim por diante. Senti um aperto forte no coração. Eu não conseguia me mexer, meus olhos abriam e fechavam, via tudo do meu quarto. Estava paralisado. Tinha algo a mais na visão, o cara desconhecido estava na minha frente. Ao vê-lo indo de um lado para o outro, pensei em gritar, via Raissa jogada do outro lado, deitada, dormindo. A alucinação fez com que eu desmaiasse. Acordei depois de uma hora, suado. Meu livro estava no mesmo canto, o quarto arrumado, o sol ainda raiava e iluminava o quarto. Assustado por causa dos pensamentos estranhos durante essa viagem alucinante, fui ao banheiro, sentei e dormi. Acordo com as batidas frenéticas e a voz entoando “José, está aí? José?” Apenas respondi “Oi, estou aqui, estou aqui. O que foi?”

Leo Silva, 22 anos, morador do Santa Filomena, fotógrafo e escritor e co- autor do livro Saral 2 de Talles Azigon.


A invenção do Mar Daniel Martins Mamede

O pai leva o filho para um passeio no alto de uma duna, a imensidão da vista paralisa e censura qualquer intenção de fala. É preciso calma para se entregar a todo aquele azul. Ungido de medo e espanto o filho quebra o silêncio e pergunta: – Pai, o céu caiu no chão? E o pai contesta: – Não, meu filho. Isso é o mar, espelho do céu. – Por que o Céu precisa de espelho? – Filho, Deus apaixonou-se pela sua própria criação mas o céu deu de ombros, estava perdido em sua imensidão. Sem entender, o menino questiona: – Por que o céu fez isso com Deus? – Porque ninguém se apaixona pelo que é perfeito. Na verdade, nos apaixonamos pelos defeitos dos amados. E Deus não tem defeitos. – Continua.. – Deus, triste, fez o mar como um espelho, reproduzindo a imagem do céu. E enganou sua solidão. – E como que ele fez o mar?


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– Com lágrimas. – É por isso que o mar é molhado? – É. O menino correu e foi banhar-se nas lágrimas salgadas de Deus.

Daniel Martins Mamede, é bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Diretor de Promoção dos Direitos Humanos da Rede Cuca e Secretário Geral do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Escreve por desassossego.


A justiça é uma escolha Renata Lima Jéssica — E aí, posso contar com você? — escreveu Hell25. — Olha, eu queria muito — respondeu Jéssica. — Muito mesmo! Mas, não sei o que minha família vai pensar... — Jéssica, isso é o que todo mundo gostaria de fazer! As pessoas não vão te julgar, elas vão te agradecer. Você vai entrar para a história como a mulher que ajudou a salvar esse país da corrupção. Lembre-se disso! — Eu sei! É fantástico, mas... preciso de tempo para pensar. Não se entra num plano desses assim. — Eu entendo. Mas, não esquece que o prazo tá acabando. Você tem até quinta-feira. — Tudo bem. Terminado o almoço, Jéssica voltou para a pequena loja de aviamentos em que trabalhava. Ela agora tinha um prazo muito curto para pensar na proposta de Hell25. Indecisa, não sabia se seguia o seu coração e aceitava, ou se, pensando ética e moralmente, recusava a oferta. A vontade de aceitar morria de encontro à lembrança da mãe. Mas, pensar nela não era, também, um motivo para dizer sim a Hell25? Dona Rose tinha quarenta e cinco anos,


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mas parecia muito mais velha. Toda uma vida de devoção aos Cordeiro de Moraes, o poderoso clã político, cobrara seu preço. E, mesmo diante de todas as dificuldades, Dona Rose fez questão de ensinar bons valores aos filhos. Isso era mais que suficiente para motivá-la a buscar justiça com as próprias mãos. Como era possível que alguém que se sacrificara tanto tivesse recebido apenas um quartinho para morar com os dois filhos? Teria ela herdado a força da mãe, que viu o marido ser esfaqueado pelo próprio patrão e, mesmo assim, decidiu continuar prestando serviços ao assassino em troca de um lar? Às vezes, Jéssica chegava a pensar que Dona Rose era do tipo sangue frio, mas logo lembrava que essa era outra característica que herdara da pobre trabalhadora. Era preciso muito domínio das próprias emoções para ver o sofrimento de uma pessoa amada e não fazer nada. Era isso, então. Sangue frio e revolta, tudo o que ela precisava para aceitar a proposta de Hell25.

*** Caio A justiça decidiu: João Pedro Cordeiro de Moraes foi absolvido do crime de homicídio doloso. No dia 25 de abril de 2028, o então estudante de medicina João Pedro, bêbado ao volante, atropelou cinco pessoas. Duas das vítimas morreram, dentre elas Raquel Gomes Pereira, uma jovem cheia de vida, que voltava com o namorado de uma confraternização entre amigos.


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Raquel, estudante de Psicologia, estava no nono período da faculdade. Já tinha planos para o TCC, para a carreira profissional e, mesmo que não admitisse para todos, noivar. Mas, seus sonhos foram interrompidos por alguém que jogou o carro cinco vezes em cima de suas vítimas.

*** Dois anos após o atropelamento, Caio ainda tinha sequelas. Andava com dificuldade e trazia uma imensa cicatriz no rosto que começava no lado esquerdo do nariz e terminava um pouco abaixo do lábio inferior. Mas, nenhum destes ferimentos doía mais que o medo, a raiva e o que sofrera. Não era possível perdoar o assassino. Pensando em tudo isso, não hesitou com Hell25. Machucar os políticos de Brasília? Danificar a imagem divina deles? — Eu aceito.

*** Coincidência ou não, João Pedro era filho do implacável presidente do Senado, João Cordeiro de Moraes. O político era conhecido por aprovar propostas que prejudicavam a qualidade de vida dos mais pobres. Despejo de famílias que viviam em área de risco? Sim. E a “Taxa do Locatário”, que contava com altíssimos reajustes anuais e deveria ser paga por qualquer pessoa que dependesse de aluguel para morar e tivesse sua residência em áreas suburbanas. Tudo isso enquanto a família Cordeiro de Moraes desfrutava do privilégio de residir numa das mansões mais caras de Brasília. Movido pelo ódio, Caio quis que aquela família soubesse o que era sofrimento.


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Eu Aceito.

Henrique — Então, Hel, quando finalmente vamos parar de falar de política e fazer algo mais, digamos, interessante? — Vai com calma, garoto — disse Helena, jogando o cabelo ondulado e sorrindo. — Sabe, Henrique, eu adoro essa nossa... química, mas eu acho que a gente não se entende bem nos outros assuntos. — Está querendo terminar. — Não é isso — disse ela, rindo. — É que, às vezes, eu queria que as pessoas que eu adoro me entendessem um pouco. — Mas, a gente se entende! Eu só não concordo com essa sua visão fervorosa da política. Esquece isso, Hel, a gente não tem o poder de mudar a podridão que tá lá no Congresso! — Eu acho que eu nunca te contei o porquê de eu me envolver tanto, né? — disse ela, o rosto sexy passando para um semblante triste — Eu vi meu pai morrer numa fila de hospital público. — Sério? — ele disse, completamente sem jeito, ajeitando-se na cama para ficar à altura de Helena. — Foi o estopim, sabe? Eu sempre fui muito politizada, assim como meu pai. Mas, eu conseguia lidar com todas as notícias ruins sobre política numa boa, no máximo eu compartilhava em alguma rede social com um textão revoltado. — Isso é bem sua cara — disse Henrique, tentando fugir do clima pesado.


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Ela deu um sorrisinho triste. — Eu suportei tudo o que a má política foi capaz de fazer. Mas, no momento que eu olhei para o meu pai, naquele corredor lotado de hospital, e eu percebi que já não tinha mais vida em seu olhar, senti que não dava mais, que aquilo era mais do que eu podia aguentar. Ela limpou a lágrima que descia com um gesto lento. — Eu nem sei o que dizer, meu amor. — Henrique abraçou a linda mulher de lingerie à sua frente, usando seus dedos para acariciar-lhe a pele marrom, como se de alguma forma isso fosse amenizar o sofrimento que ela sentia. Não amenizou. Helena, que sempre fora muito equilibrada, começou a desabafar. Suas palavras eram duras, calorosas e isso transparecia em seu olhar. Era como se, a qualquer momento, faíscas fossem saltar de seus olhos. Henrique achou aquilo muito sexy. Ele já não mais prestava atenção às palavras, apenas aos gestos, ao tom de voz, em como Helena parecia feroz e envolvente ao mesmo tempo. E ele admirou a voracidade daquela mulher. Henrique viu naquele momento que Helena tinha muito mais garra do que ele imaginava, e que aquela mulher estava realmente disposta a mudar a realidade política desse país. Ele só não imaginava como.

Jéssica Era a manhã do dia 12 de outubro de 2030, e ela não conseguia parar de tremer. Enquanto aguardava algum sinal de Hell25, ela imaginava que se sentiria animada quando o momento chegasse.


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Mas, não foi bem isso. Ela estava prestes a cometer um assassinato, e estava com muito medo. Dois meses antes, o senador Carlos Henrique da Cunha foi notícia nos jornais após ter sido acusado de assédio sexual por uma das funcionárias de seu gabinete. A funcionária em questão, Angélica Matias Holanda, não só divulgou o caso de assédio, mas também os esquemas de corrupção nos quais seu agora ex-chefe estaria envolvido. Porém, as coisas não terminaram bem para a servidora pública. Além de perder o emprego estável, Angélica ainda foi processada por calúnia pela esposa do senador e viu sua imagem na lama quando suas acusações foram desacreditadas por alguns jornais, que a definiram como uma mulher desesperada por atenção. A coragem de Angélica era admirável, mas, ainda assim, o medo permanecia. Temia que algo semelhante acontecesse a ela. Lembrou que o fato de morar na mesma casa do presidente do Senado renderia uma polêmica ainda maior. O frio percorreu sua espinha. — E aí? Nervosa? — Hell25 lhe enviara uma mensagem duas horas antes do ato. — Muito. — Foca no que combinamos. O Júlio vai te buscar em casa, vocês vão fingir que são namorados e seguir para a Praça do Compromisso. Lá, vocês vão encontrar a Isabela e o Messias, que estão com o material. Finjam que são um grupo de amigos saindo para curtir o feriado. Voltem para o carro e sigam para os arredores do Motel Fantasy. — Nós vamos cometer o assassinato num motel? — Não é assassinato, é justiça. E, sim, vocês vão encontrar o filho da puta no motel. Ele estará lá com a Vanessa, que é


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amiga de um dos funcionários e já deu um jeito de desligar a câmera do corredor e dos quartos que vocês vão se hospedar. — Mas, e se não der certo? Se o funcionário quiser saber o porquê de desligar as câmeras? — Ele já sabe, o funcionário é irmão da Angélica. Tudo o que ele quer é a cabeça do senador. — Mas, e se as outras pessoas do andar notarem os nossos movimentos? — Sério, Jéssica? Você acha que as pessoas num motel vão reparar na movimentação do corredor? Tentou absorver a segurança do tal Hell25. — Então, vai ter um momento que a Vanessa vai mandar mensagem para algum de vocês, e aí vocês entram em ação. Boa sorte, e lembre-se do nosso lema: a justiça é uma escolha. A justiça é uma escolha. Seus lábios finos repetiram essa frase por diversas vezes até que seu cérebro começasse a acreditar. Não funcionou, mas era tarde demais para recuar.

Caio Ele sempre cumpria dois rituais ao acordar: olhar as fotos da falecida namorada na galeria de imagens do smartphone e checar a caixa de mensagens à espera de Hell25. Assassine João Pedro hoje. — Quando terei o prazer de assassinar um político pela primeira vez? De preferência, um Cordeiro de Moraes? — Daqui a uns dias eu te dou uma resposta. Você tá acompanhando o caso do deputado Mário Jorge?


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— Claro. Matou a mulher... Mas, não é um Cordeiro de Moraes. — Mas é do círculo deles. Você precisa aprender a jogar, rapaz. Você não mira no maioral de primeira, vai derrubando aqueles que o cercam primeiro, e depois... — Tutorial essa altura? Olha, Hell25, de você eu só quero o que me prometeu. — Meu querido, a justiça tarda, mas não falha! Relaxe que, em breve, trarei boas notícias. Então, João Pedro viveria por mais um tempo. Sem problemas, Caio esperaria.

*** Desde que recebeu a mensagem de Hell25, Caio passou a acompanhar as redes sociais de João Pedro todos os dias. Já conhecia seu círculo de amizades, os lugares que frequentava e até detalhes mais intimistas, como os filmes a que assistia e o apelido de infância. Ter tudo isso e não poder ir atrás de seu alvo era muito difícil. Para ajudar a não sucumbir ao desejo de matar, ele cumpria um outro ritual em sua rotina: reler as mensagens de Hell25 do dia 04 de maio de 2030. — Por que eu preciso esperar por um grupo que eu nem conheço para matar a pessoa que me interessa? Eu mesmo posso fazer isso sem ajuda de ninguém. — Você sabe que não é assim tão fácil. Se fosse, a existência de João Pedro já não seria um problema agora. E eu sei que você tem vontade de sair ileso dessa, assim como ele saiu. Aquelas palavras sempre o acalmavam.


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— E quem são vocês? Como eu sei que isso não é uma armadilha? — Você quer uma prova? Procure por Messias Araújo e manda essa mensagem para ele: a justiça é uma escolha. Assim ele fez. A resposta de Messias não tardou. — Matar políticos é uma escolha e foi o que eu quis para mim — digitou o desconhecido. — Não porque sou uma pessoa ruim como eles, mas porque eu desejo algo que me foi tirado: a paz. Essa paz era o que Caio buscava desde a morte de Raquel. Procurou psicólogos, igrejas, grupos de apoio... nada. Seu ódio crescia a cada frustração. Hell25 surgiu na sua vida como um meio de encontrar aquilo a que tanto buscava, mas até agora não tinha visto resultados. Por algum motivo, resolveu dar mais uma chance a Hell25. Buscou mais informações sobre o deputado Mário Jorge e, enquanto o fazia, percebeu que aquilo era o mais próximo de paz que conseguiria alcançar naquele instante.

Henrique — Olha, Hel, eu sei que você não gosta de enrolação, então, lá vai. Quando vamos namorar? — Mas, a gente já faz isso! Ele riu. — Você sabe o que eu quis dizer. Eu quero conhecer sua mãe, te apresentar aos meus pais, viajar aos finais de semana com você... não quero que isso se resuma só a sexo! Helena sorriu e deu-lhe um beijo.


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— Que fofo! Então, você não está satisfeito com nosso relacionamento? Pô, achei que você tava curtindo tanto quanto eu — disse ela, fazendo beicinho. — Maria Helena de Arruda, você sabe do que eu tô falando. Tem algum problema comigo? Você não gosta de algo que eu faço? Acha que a vida seria um tédio a meu lado? — Claro que não, Henrique! — Ela se ajeitou na cama, abandonando o ar descontraído. — Eu adoro ficar com você, conversar... de verdade, você é uma das minhas pessoas favoritas! Mas, acho que agora não é o momento, sabe? Eu tô envolvida num projeto que demanda muito tempo e energia, e não acho que eu seria a melhor das namoradas pra você. — Que projeto é esse? Que eu saiba, você não tem tido muito trabalho. — Ele imaginava que o emprego de auxiliar de TI no Congresso Nacional não tomasse muito tempo da vida de Helena. — É algo pessoal — ela disse, baixando a cabeça. — Tipo o quê? — Enrolou o cabelo dela entre os dedos. — Tipo matar políticos. Ele riu. Mas, no fundo, não sabia se deveria.

Jéssica Quando ela aceitou participar, não esperava que fosse demorar tanto. Se ela soubesse que não seria uma simples execução, mas que haveria uma sessão de tortura antes... Teria aceitado fazer parte? Horas se passaram desde que os justiceiros entraram no quarto onde estava o senador Carlos Henrique.


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Um misto de sensações tomava conta de Jéssica, mas o arrependimento não era uma delas. Seu primeiro ato foi uma aparição como camareira no quarto onde estava o parlamentar. — Com licença, senhor. Fui informada de que está faltando sabonete na suíte. Posso repor? — Hum. — Ela percebeu que o homem lançou-lhe um olhar asqueroso, como se estivesse avaliando seus atributos físicos. — Não senti falta de nada. Vivi, você que é mulher e repara mais nessas coisas, tem sabonete faltando? Vivi era o pseudônimo de Vanessa, a comparsa que facilitaria o acesso. — Sim, amorzinho, tá faltando sabonete. Pode entrar, moça. Jéssica pediu licença e adentrou. Seguiu até a suíte de cabeça baixa e, no meio do percurso, lançou um olhar para Vanessa como se estivesse esperando por um sinal. Vanessa lhe devolveu um sorriso educado. — Desculpem de novo, mas notei que tem um vazamento na suíte. Vocês se importam se eu mandar um funcionário consertar? — É claro que eu me importo, mulher! Eu com uma loirona dessas para foder e vocês querendo consertar porra de vazamento! Não, não, não, que venham depois! — Calma, amorzinho. — Vanessa foi até o homem e falou algo ao seu ouvido que o fez mudar de humor. — Ok, ok... Mande consertar essa merda. — Com licença — disse Jéssica, saindo do quarto. Todos os olhares do cômodo vizinho caíram sobre ela quando abriu a porta.


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— E aí? — quis saber Júlio. — Deu certo. Os quatro trocaram olhares e assentiram. A ação de fato começaria. Decidiram esperar 15 minutos. O que será que eles estavam fazendo enquanto aguardavam? O senador não tinha a mínima ideia de que estava perto de morrer... Aproveitou para, mentalmente, repetir o lema do grupo. Como combinado, Júlio foi até o quarto. Era alto, forte e de feições brutas, o típico encanador. Não chamou atenção nenhuma ao entrar e, imediatamente, aplicou um mata-leão no político. Desmaiado, o senador era apenas um corpo pronto para ser torturado. Os justiceiros o amarraram e, enquanto esperavam o homem acordar, distribuíram plásticos no piso do quarto. — Mas, que vida, hein, senador? Estuprou e assassinou dezenas de mulheres, roubou dinheiro público e achou que sairia ileso, hein? — Júlio disse isso com um sorriso irônico, os dentes tortos saltando da boca. — Quem são vocês? — Nós somos a justiça. — É dinheiro que vocês querem? Sua vagabunda! Isso era uma cilada? — Vociferou para Vanessa. — Você se acha muito esperto, não é, senador? — Vanessa sorriu. — Eu vou acabar com você, sua puta! E com você, sua empregadinha de merda! — Jéssica desviou o olhar. — Talvez nós acabemos com você primeiro — disse Júlio, recebendo a faca das mãos de Messias.


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— Pois bem, senador, vamos fazer assim: a cada hora, cortaremos uma parte do seu corpo e dedicaremos a uma pessoa que você prejudicou. Pelas minhas contas, serão catorze horas de jogo. Então, por favor, não morra antes de a gente terminar. — Mas que porra...? Vocês não vão conseguir me matar! Eu tenho dinheiro e influência, basta eu dizer uma palavra e recebo a cabeça de todos os cinco numa bandeja... — Suas palavras tornaram-se gritos quando a faca afiada fez jorrar sangue do dedão do pé. — Este porquinho é pela Márcia, a mulher que você estuprou e engravidou em 1999, quando vocês estavam na faculdade. Lembra? Pedaço após pedaço, parte após parte: dedos da mão, tufos de cabelo, pele da papada, dedos dos pés, mamilos, orelha, parte do nariz... e, finalmente, o pênis. Tiveram o cuidado de cortar e em seguida fazer um curativo para cada órgão extraído. Ele não poderia morrer antes. Fizeram questão de dedicar cada órgão para uma vítima em ordem cronológica. Cada integrante do grupo tinha o direito de retirar um órgão por vez. Pelo sorteio, Jéssica ficou com o quarto, o oitavo e o décimo segundo pedaço. O mamilo esquerdo, um tufo de cabelo arrancado pela raiz e o dedo mindinho do pé, respectivamente. Não foi fácil para Jéssica. Ela vomitou quando tocou o mamilo do senador, e começou a chorar. Por pouco não saiu correndo, mas se forçou a continuar ali. Em nome da justiça. Ao final das catorze horas, o homem já dava indícios de que não duraria muito. Júlio cortou a garganta do senador e, em seguida, começaram a embalar os pedaços em sacos de lixo.


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Jéssica assistiu a tudo com nojo, vergonha e raiva. Ao final, foi encarregada de registrar o que sobrara do senador e assim fez. Tirou foto de cada detalhe para enviar a Hell25 como forma de provar que a tarefa fora cumprida. Já não suportava mais o peso dos seus olhos, mas ainda tinha trabalho a fazer. Enquanto ajudava a carregar os sacos com os pedaços do que antes era um homem, ela notou que o medo já havia ido embora. Percebeu que o golpe final de Júlio ceifou não só a vida daquele homem, mas também o temor que sentia. Naquele momento ela percebia que o sabor do sangue era tão doce quanto o da justiça que ansiava.

Caio Enquanto vasculhava mais uma vez o perfil de João Pedro, Caio recebeu uma mensagem de Hell25: as coordenadas para a execução do Senador Mário Sérgio. — Eu sei que você está muito focado no João Pedro, mas pense que esse caso é uma oportunidade de aprendizado. Observe como vai se comportar, repare nas suas próprias falhas e use isso para não cometer erros quando chegar a hora que tanto espera. Era difícil admitir, mas Hell25 tinha razão.

*** O dia da execução foi marcado para 29 de agosto, aniversário do senador. Como de costume, o político celebraria num sítio em Minas Gerais. Pelo menos, era o que ele planejava. Seguindo mais um de seus rituais, Mário Sérgio tomaria um voo no dia 27. Mas, dessa vez, ele não estaria sozinho. Dois


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assassinos embarcariam no mesmo avião, sentariam próximos a ele e observariam cada movimento seu. — Indo para Belo Horizonte? — quis saber a moça de cabelos loiros sentada ao lado do senador. — Na verdade, indo para Mariana — Caio poderia jurar que, se não o conhecesse, aquele era apenas um idoso bonzinho e cansado que, depois de se aposentar, vai morar no interior. — Que coincidência! — disse Caio, tão simpático que quase soou falso – O senhor tem família lá? — Não mais. Minha família está toda num daqueles cemiteriozinhos de lá, sabe? — Ele riu. — Estou indo comemorar meu aniversário no sossego do meu sítio. — Imagino que o senhor seja muito ocupado — Vanessa disse, sorrindo. — Sim, minha filha, eu trabalho bastante. Mas, e vocês, o que vão fazer lá naquele fim de mundo? Alguma aventura? Vão explorar a natureza? A conversa fluiu durante os cinquenta minutos restantes do voo. Quando o avião pousou, Caio e Vanessa já haviam recebido o convite para o aniversário do congressista. Porém, eles não esperariam pelo dia 29 para ir ao sítio. — Você está pronto, Caio? A primeira vez não é fácil… — Eu estou pronto há muito tempo. — Vamos repassar: eu puxo a conversa, você injeta o... — Eu já sei. Após uma manhã observando o local, perceberam que o homem estava sozinho. Tocaram a campainha e o próprio Mário Sérgio abriu a porta.


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— Ah, olá, meninos! Isso é para mim? — disse o velho, apanhando o embrulho que traziam. Alguns segundos de conversa do lado de fora foram o suficiente para explicarem a suposta confusão com as datas. O senador, gentil, abriu-lhes a porta. Num dia normal, tomar uns drinques com aquele vovô terminaria numa tarde agradável. Mas, aquele não era um dia normal.

*** Passados alguns minutos, Caio pediu licença para usar o banheiro. No bolso, um sonífero e uma seringa. Quando voltou, enfiou a seringa no pescoço do senador, que caiu no chão sem perceber o que estava acontecendo. Enquanto ele estava desacordado, o casal arrumou todo o cenário. Caio fez questão de buscar o galão de gasolina no carro. — Trouxe o isqueiro? — perguntou à sua colega. — Claro. Você tem certeza que está pronto, Caio? Não prefere ficar só olhando? Da última vez, a garota novata nem conseguiu disfarçar o medo... Ele não respondeu. Passados alguns minutos, Mário Sérgio acordou atordoado. Após entender o que tinha acontecido, uma fúria surpreendente foi revelada. — O que é isso? Quem mandou vocês aqui? Que porra é essa? É dinheiro que... — O homem não teve tempo de terminar a frase, pois engasgou-se com a gasolina jogada em seu rosto. — Vocês sabem com quem estão lidando? Eu sou um dos mais influentes do Senado! Puta que pariu, o que vocês vão fazer? Que porra é essa com esse isqueiro?


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O senador viu o rapaz acender a chama sem dizer uma palavra. — Isso aqui, senador, é em nome de Rosângela Gonçalves Cardoso, sua falecida esposa, assassinada pelas suas mãos — disse Vanessa. — Quem são vocês, caralho? — gritou o velho. — Nós somos a justiça — disse Caio, a expressão tão dura quanto sua face. — E nós o declaramos culpado. Antes que o refém pudesse reagir, Caio jogou o isqueiro em sua direção. Seguiram-se então momentos de agonia: um homem preso a uma cadeira, tentando em vão debater-se contra as chamas, gritando por ajuda num sítio isolado, reduzindo-se a pó um dia antes do próprio aniversário. E, então, os gritos cessaram. — O que foi isso? — Vanessa puxou Caio pelo braço. — Você não me deu nem chance de torturar o cara! Caio nada disse, apenas devolveu um olhar vazio. — Responde, porra! — Eu não quero que eles sofram. Eu quero que eles morram! — Mas, a qual a graça disso, Caio? Eles precisam agonizar! — Minha namorada não agonizou antes de morrer. E então, Vanessa entendeu que o objetivo de Caio era devolver o que sentiu na mesma moeda. Nenhum centavo a mais, nenhum centavo a menos.

Henrique Henrique começava a temer até onde a namorada iria para vingar a morte do pai.


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Helena era do tipo que vivia intensamente. Gostava de experimentar coisas e pessoas. Não tinha medo de andar sozinha. Até mesmo sua profissão, na área da tecnologia, fugia do esperado. E se esses eram os motivos que o faziam admirá-la, era também o que fazia com que a olhasse com mais cautela. — Então, como vai o seu plano de extermínio? — disse Henrique, brincalhão. — Vai bem, obrigada por perguntar. — Ela riu. — Helena, essa história de matar políticos... É séria? — Henrique, você não acha que aqui, agora, sozinhos nesse elevador, não seria o lugar ideal para fazermos coisas mais interessantes do que discutir sobre meus planos secretos? — ela disse, aproximando o rosto do seu. — Sabe o que é? É que agora, enquanto seu namorado, eu sinto que seus planos são meus também. — Hum. Então você exterminaria políticos comigo? Bom saber. — Eu não exterminaria exatamente, eu só seria a pessoa que testemunharia a seu favor. As gargalhadas dela ecoaram alto pelo corredor do décimo andar. — E você acredita que eu vou ser presa? Henrique sentiu que precisava agir. Mesmo que ela recusasse ajuda, deveria protegê-la. No meio de tudo aquilo, não conseguia parar de se perguntar como era possível amar alguém que tinha tanto ódio.


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Jéssica Janeiro de 2032. Oito assassinatos já contavam com a participação de Jéssica. O medo era um sentimento passado. Havia receio, porém. Receio de que a mãe descobrisse no que ela havia se metido. Agora, aos vinte anos, ela já não morava mais no quartinho de empregada. Os três agora viviam num apartamento simples. Volta e meia Dona Rose perguntava de onde ela tirava dinheiro para manter o lugar. Não que ele fosse caro, era um imóvel minúsculo. Não valia muito, mas já era um avanço. — Eu tenho feito alguns trabalhos como designer. A senhora sabe que eu sempre fui boa nessa coisa de computador. Uma meia verdade. Ela havia largado o emprego na loja de aviamentos e seguira a dupla carreira de designer e assassina. Era dali que tirava o dinheiro.

*** Apesar de nunca saber quem era Hell25, confiava nele. — Má notícia, Jéssica. Você vai ter que trabalhar com o Caio — dizia a nova mensagem de Hell25. — Ossos do ofício. Caio era uma figura enigmática. Falava pouco e raramente sorria, mas fazia um bom serviço. A única coisa que sabia sobre aquele homem era que a sua principal motivação era o atropelamento da namorada, cometido pelo filho do patrão de Dona Rose. — Pois é. Vocês vão fazer o que o Caio tanto espera. — Eu vou matar o João Pedro?


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Aquela notícia foi um choque. Apesar de odiar os Cordeiro de Moraes, Jéssica nunca tinha participado do assassinato de um deles. João Pedro era um ser humano desprezível e filho do homem que assassinara seu pai. Representava a oportunidade perfeita de justiça, mas, ao mesmo tempo, era alguém que crescera junto a ela. Não que fossem muito amigos — o racismo dele nunca permitiria tal coisa —, mas habitaram a mesma casa por dezoito anos. De repente, ela se viu pensando que seria como matar o próprio irmão, mas esse pensamento logo se desvaneceu quando se deu conta do quão ridículo soava. Era um insulto comparar seu irmão a um verme. — Você finalmente vai matar um Cordeiro de Moraes. Como se sente? — continuou Hell25. — Não poderia me sentir mais realizada — mentiu.

*** Não conseguiu dormir. Passou a noite pensando no impacto que o desaparecimento e morte de João Pedro causaria na mansão em que sua mãe trabalhava. Era provável que Dona Rose trouxesse esse assunto à mesa após um dia de trabalho. Começou de antemão a pensar em como disfarçaria seu envolvimento nisso. Na manhã seguinte, ela saiu de casa rumo ao fim de João Pedro, com o pensamento distante. O rosto de sua mãe lhe assombrava. Estava tão distraída que não percebeu que estava sendo seguida.


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Caio Quatro anos desde que Raquel fora atropelada. Finalmente, ele se encontrava de novo diante de seu assassino. João Pedro estava assustado, com os olhos vermelhos de tanto chorar, amarrado e amordaçado. A julgar pelo odor do ambiente, teria sujado as calças. O que Caio mais apreciava era estar de pé diante do assassino acocorado. Precisava olhar para baixo para encará-lo. — Senti saudades de olhar para esse seu rostinho de assassino — disse Caio. — Quatro anos desde a última vez que nos encontramos... Pela primeira vez desde que aceitou participar desses crimes, Caio quis falar o mantra do grupo. — Teremos justiça hoje. Em nome de Raquel Gomes Pereira. Em nome de Jéssica. Em nome de Fabrício, Gustavo, Vitória, e em nome de Caio. Naquele momento, era um justiceiro. Percebeu que não estava ali para vingar o que lhe havia acontecido. Quis vingar também todas as outras pessoas que foram feridas por João Pedro. — Eu geralmente não gosto de falar, mas eu vou fazer diferente com você. Acho que merece um tratamento especial. Enquanto falava, desamarrou as mãos do prisioneiro e serrou-lhe dois dedos. Os gritos de João Pedro foram abafados pelo grosso pedaço de pano que entupia sua boca. — Eu sonhei com isso durante muito tempo, sabia? Desde que os médicos disseram que minha namorada não resistiria, eu quis que você soubesse o que é sofrimento. Agora que está acontecendo, eu acho que não é o suficiente. Acredita?


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— disse, enquanto fazia uma cópia da cicatriz que ele próprio carregava na face de João Pedro. — Sabe o que é isso que eu estou desenhando nesse rostinho? É pra você lembrar de mim todas as vezes que se olhar no espelho. Teremos a mesma cicatriz! Feito o corte, ele sacou um espelho de bolso e pôs diante do rosto recém mutilado. — Quer saber de uma curiosidade? O fato de você ter abandonado a medicina para se dedicar à política só adiantou o dia da sua morte. — Usou a faca para arrancar os cílios do olho esquerdo de sua vítima como quem puxa um curativo sem medo da dor. Os olhos verdes do homem no chão denunciavam o horror que sentia. Qualquer outra pessoa teria sentido pena ao encará-los, mas não Caio. — Talvez, se você ainda fosse aquele jovem médico, atendendo no consultório que só conseguiu graças ao peso do sobrenome, não precisasse se preocupar em estancar esse sangramento no seu olho. — Caio riu. — Mas, não, você decidiu seguir os passos do papai e entrar para o Congresso. E a carreira no Congresso te deixou muito mais exposto, não é? — Arrancava agora os cílios do olho direito. — Antes, você cometia crimes sem medo de sofrer represálias. Agora você tem que ser cauteloso, qualquer passo em falso estragaria sua imagem de bom moço. O que diria o povo se soubesse que o deputado federal mais bem votado atropelou cinco pessoas e saiu impune? — disse, enquanto serrava uma das orelhas de João Pedro. Uma poça vermelha começava a se formar. Caio percebeu que sua vítima não parava de olhar para o líquido que jorrava


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de seu corpo. Não seria engraçado se João Pedro, o médico, tivesse medo de sangue? — Fica tranquilo, a outra vai ficar inteira para que me ouça. Então, uma de suas vítimas decidiu ir até o seu gabinete, disposta a divulgar seu crime caso não recebesse uma boa recompensa financeira, não foi? Dias depois, a mesma pessoa morre num... adivinhem? A-tro-pe-la-men-to. Caio falou a palavra sílaba por sílaba. Um dedo da mão de João Pedro era cortado a cada som que saía dos lábios de Caio. Não era um grande apreciador de música, aquele era um bom ritmo. — Confesso que fiquei muito desapontado. Esperava mais de você. Cometer o mesmo crime duas vezes... Que falta de criatividade, hein, meu amigo? Caio não segurou o riso. — Não foi difícil juntar os pontos. Quando soube dessa morte, eu tive certeza que eu estava mais perto de acabar com a sua vida. Ainda mais com a ajuda dos meus amigos aqui. Sabia que eles têm preferência por sangue de políticos, Doutor? — Hum, Caio, eu acho que essa informação foi um pouco demais — sussurrou Jéssica. — É, minha amiga aqui tem razão. Estou falando muito. Foi um prazer revê-lo. Bom, acho que você não vai ter muito tempo de admirar sua nova cicatriz em frente ao espelho, não é mesmo? Quando chegar no inferno, lembre de citar o meu nome como causa mortis. — Sem avisar, Caio abriu um talho na garganta de João Pedro. — A justiça é uma escolha — disse, e assentiu para os colegas. Era o fim da linha para João Pedro Cordeiro de Moraes, mas também era o início do fim da liberdade dos justiceiros.


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Henrique Foi apenas um ano após as investidas de Henrique que Helena decidiu revelar seus segredos. A partir daquele momento, não eram apenas namorados: eram cúmplices. Henrique nunca participou da ação, mas quis ajudar o máximo que podia. A escolha do local, do alvo e dos justiceiros, ele participava de tudo. Não que Helena precisasse, mas ele sentia que, se estivesse ao lado dela, poderia protegê-la melhor. A rede dos justiceiros tinha dois anos de existência. Contava agora com dezesseis membros, tinha cometido dezenove ações e começava a levantar suspeitas sobre sua existência. Deputados e senadores estavam desaparecendo em um intervalo de tempo curto demais. Teorias da conspiração começaram a surgir na internet, e Henrique se sentia desconfortável com isso. — Relaxa, Henrique. Quem sabe esses teóricos da conspiração não acabam se filiando a nós. — Ela sorriu e deu uma piscadela. Helena era corajosa, mas ele temia por ela. Por mais nobres que fossem suas intenções, ele sabia que a justiça comum não seria compreensiva. O sistema injusto se voltaria contra os justiceiros. E foi o que aconteceu.

*** Jéssica foi a primeira a ser presa. E foi a primeira vez que Henrique viu Helena se desesperar. — Mas, ela não sabe quem está por trás de Hell25, meu amor! Ninguém sabe!


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— Eu não sei, Henrique, tem muito político envolvido nisso. Tem delegado que seguiu carreira política e vai mover céus e terras para conseguir encontrar um culpado. As investigações vão andar bem mais rápido e tudo vai cair em cima de mim! E ela estava certa. Três dias após a prisão de Jéssica, os jornais anunciavam a apreensão de Vanessa, Messias e Júlio. O cerco estava se fechando. Agora, a existência dos justiceiros não era apenas uma teoria da conspiração, era realidade. Os noticiários mais importantes do país anunciavam as ações cometidas pela rede de assassinos. Na internet, as opiniões se dividiam. Alguns os condenavam, outros apoiavam. Mas, nada disso importava. A segurança de Helena tirava-lhe o sono. Num ato de desespero, Henrique e Helena mudaram de cidade, mas não fez diferença. A polícia encontrou Helena na cidade de São Lucas do Rio Verde seis meses após o início das investigações. E Henrique desmoronou.

Jéssica — E então, bonitinha? Não vai dizer quem está por trás desse plano? — disse o investigador Garcia, segurando um balde de água na mão direita e um taser na mão esquerda. — Eu não sei, moço. — As palavras saíram com dificuldade entre as lágrimas. — Era um usuário anônimo. — Anônimo? — Largou os objetos que carregava e pressionou o rosto de Jéssica contra a parede. — Você acha que eu acredito nisso, negrinha? Que eu nunca ouvi essa conversinha fiada antes? — Esbofeteou-a. Um filete de sangue escorreu de seu lábio.


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Ela só conseguia pensar na mãe e no irmão. Será que sairia viva dali? Será que teria tempo de explicar porque aceitou participar de um plano assassino? Enquanto pensava nisso, o investigador Garcia começou a arrancar suas roupas. — Hum. O corpo é bonitinho. Uma pena o que terei que fazer com ele. — Sorriu para os colegas enquanto apertava com força os seios de Jéssica. — Então, garota, quem te deu as ordens? Ela sequer conseguia falar. Apenas balançou a cabeça em negativa. Garcia suspirou e jogou a água em Jéssica. — Vou te perguntar mais uma vez, negrinha. Quem te deu as ordens? — Eu não sei! Garcia atirou com a arma de choque. A sensação de ser eletrocutada era ainda pior do que imaginava. Por mais agonizante que fosse, ela entendia que era merecedora daquilo. Se tivesse seguido a vida como vendedora ou designer nada disso teria acontecido. Deveria ter se espelhado no exemplo da mãe, uma pessoa honesta que nunca cogitou a hipótese de vingança. Mas, ela havia escolhido a justiça, e era tarde demais para arrependimentos. O futuro já não estava mais em suas mãos, e a aceitação era a única escolha.

Caio — Hell25 era um usuário anônimo que me mandava as mensagens. Parecia ser o líder — foram as únicas palavras que saíram de seus lábios. Depois disso, ele apenas balançava a cabeça em negativa ou afirmativa.


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Soube que alguns de seus comparsas haviam sido torturados. Imaginou que fosse porque estariam protegendo a imagem do usuário que lhes orientou durante dois anos. Mas, Hell25 não passava de uma ponte entre Caio e João Pedro e o extermínio do médico já estava feito. Caio, finalmente, poderia seguir sua vida. Ou não. Apesar de ter revelado informações sem pestanejar, ele ainda se encontrava privado de liberdade. Mas, no fundo, nada importava. O estilo de vida recluso do sistema prisional não era muito diferente daquele que levava após a morte de Raquel. Aguardar pelo julgamento com acesso a livros, internet e histórias de seus colegas de cela não parecia tão ruim quanto o que costumava ouvir. No fim das contas, Caio se sentia mais confortável na prisão do que em sociedade. Não precisava fingir ser um rapaz comum: todos sabiam que ele era um assassino. Não tinha razões para se envergonhar do motivo que o levara até ali. A justiça é uma escolha. O mantra estava agora marcado em sua pele. Estava, pela primeira vez desde a morte de Raquel, em paz.

Henrique Foram dois anos até o julgamento. Conseguiu contratar um bom advogado para Helena e, por mais impossível que fosse, mantinha a esperança de que ela seria considerada inocente. Arquitetar um plano homicida tendo o falecimento do pai como razão poderia, de alguma forma, comover aos jurados. Mas, tudo foi em vão. No segundo semestre de 2034, a justiça comum decidiu que Helena era culpada. Doze anos de


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reclusão. Ele não suportaria, e suspeitava que Helena também não. Mas, quis acreditar que ela resistiria. Mais uma vez, tudo foi em vão. Recebeu um e-mail dez dias após a sentença. Era o delegado. O texto trazia uma notícia que não quis acreditar. Poderia ser engano, aquele não era o perfil de Helena. Mas, o anexo não deixava dúvidas. Era sua caligrafia, sua assinatura. Helena estava desistindo da vida. Henrique, então, chorou, mas logo se recompôs. Se Helena havia escolhido a justiça, ele faria o mesmo.

Helena Eu sempre fui metade razão e metade paixão. Minhas decisões eram bem pensadas, mas minhas ações eram, em sua maioria, impulsivas. Acredito que foi isso o que me levou a fazer o que fiz. Quando vi meu pai morto, sem condições de pagar por um atendimento decente, abandonado pelos médicos, eu me desesperei. Eu só tinha dezesseis anos, mas entendi a nojeira que havia por trás daquela morte. Meu pai morreu porque não tinha investimento o suficiente em saúde pública. Tudo ia para a corrupção. Desde então, a minha vida foi planejar atos contra a vida de políticos. Eu entrei na faculdade e me formei visando à riqueza. Prestei concurso para trabalhar no Congresso Nacional porque queria, além de estar mais perto da classe política, ter dinheiro e poder para facilitar a vendetta. Arquitetei mil planos, até que, em 2030, eu finalmente tive coragem de tocar um deles. Desenvolvi um software e consegui localizar pessoas de Brasília que tivessem o mesmo


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sentimento de vingança contra um ou mais políticos, assim como eu. Meu software buscava por coisas que as pessoas escreviam e não postavam por medo da opinião alheia. Encontrei vários documentos onde as palavras matar, ódio e políticos se repetiam. Eu só tinha que contatar essas pessoas e convencê-las que meu plano era uma boa ideia. Isso não foi difícil. Sempre fui muito persuasiva, além disso, eu tinha uma quantia de dinheiro que me permitiu comprar o interesse dessas pessoas. Usei um perfil falso e consegui o que queria. Tudo parecia perfeito. Foram dois anos pesquisando e criando diversos métodos de tortura. Nunca participei ativamente de nenhuma execução, mas era eu quem estava por trás de tudo. A cada deputado ou senador assassinado, maior minha satisfação pessoal. Eu sentia como se meu pai estivesse agradecendo por cada morte, mesmo sabendo que ele reprovaria esses meus atos passionais se estivesse vivo. Contei com a ajuda de pessoas tão passionais quanto eu. Messias, Vanessa, Júlio, Jéssica, Caio, e até mesmo Henrique, que nunca desejou nada além de me proteger. Todos estavam cegos demais, fosse por ódio ou por amor. Nenhuma dessas pessoas me repreendeu. Todos acreditavam que a justiça era uma escolha e estavam dispostos a exercê-la a nosso modo. Estávamos errados. No fim, a justiça só é uma escolha para quem tem poder político. Eles escolheram nos prender, nos torturar, e agora estamos reclusos a uma cela, enquanto eles seguem impedindo o desenvolvimento do nosso País. Não conseguirei suportar a isso. Peço perdão a todos aqueles a quem prejudiquei. Especialmente ao Henrique, a pessoa mais importante para mim nos últimos tempos.


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Não tenho razões para continuar viva. Não conseguirei retomar minha carreira profissional, os jornais já cravaram meu rosto no imaginário popular. Também não conseguirei retomar meu relacionamento com Henrique, não teria coragem de olhá-lo nos olhos depois de tudo que o fiz passar. É hora de aceitar o fim. Estou desistindo da vida por vergonha do que fiz e por medo do que ainda serei capaz de fazer. Espero que meus recrutas e meu namorado compreendam e espero, do fundo do coração, que eles possam reconstruir suas vidas. Desejo sorte a vocês. Com amor, Maria Helena de Arruda.

Hell27 — E então, o que acham do plano? — quis saber Hell27, o administrador do grupo. — É arriscado, mas é muito bom. — Nada mais do que justo. Honremos o nome de Hell25! — Sempre admirei a coragem daquela mulher e não acredito que terei a honra de repetir suas ações. A justiça é uma escolha! Como lhe confortavam aquelas palavras! Três pessoas haviam sido recrutadas até então, e todas estavam dispostas a acabar com os envolvidos na prisão e morte de Hell25. Ele havia conseguido recuperar o acesso ao software criado por Helena. As coisas fluíram mais fáceis do que ele esperava. Hell27 sabia que Helena ficaria orgulhosa.


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A cearense Renata Lima é leitora assídua desde que aprendeu a ler. Inevitalmente acabou se apaixonando pela escrita também. Aos 19 anos decidiu fazer um curso de escrita literária para aprimorar as habilidades exigidas pela profissão de publicitária. Só não imaginava que esse mesmo curso lhe proporcionaria publicar seu primeiro conto.



A liberdade é agridoce Dmitri Gadelha

A Cavalgada das Valquírias tocava incessante no despertador e inundava o ambiente. Em circunstâncias normais, o som apoteótico da ópera me inspirava a começar bem o dia. Mas, naquela manhã, eu não queria acordar. Tateando no escuro, dei um safanão no aparelho e enfiei a cabeça debaixo do travesseiro. Tentei voltar a dormir, mas foi em vão. Havia um gosto amargo em minha boca e meu estômago queimava, suplicando por um antiácido. As madrugadas movidas a refrigerante quente e pizza fria enquanto programava meu “jogo perfeito” começavam a cobrar um preço indigesto, mas eu estava disposto a pagar. Quando não me encontrava na faculdade ou no estágio, o que sobrava de tempo era dedicado àquele projeto. Vida social era algo fora da minha lista de prioridades. Minha mãe, preocupada como sempre, dizia o quanto ainda me arrependeria. Eu apenas dava de ombros, colocava os fones de ouvido e retornava aos códigos de programação. – Beto! O café está na mesa, meu filho! – os berros dela ecoavam escada acima todas as manhãs, antes mesmo que eu saísse da cama. Ainda sonolento, atravessei a penumbra do quarto desviando das estantes abarrotadas de publicações geek e da bancada onde o computador esperava para nosso próximo encontro noturno. Esfregando os olhos, encarei minha


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heroína, a protagonista de uma série bem-sucedida de videogames de ação que foi adaptada para os cinemas e se tornou um blockbuster de bilheteria milionária. – Sonhei com você de novo. – Apesar de ser apenas um pôster na parede, ela era minha maior confidente. Comi pouco no café da manhã, a azia ainda incomodava, enquanto minha mãe se repetia pela milésima vez sobre a importância daquela noite. Seria minha formatura, um ciclo que se fecha, blá-blá-blá. Confesso que eu não dava a mínima para o momento. Só tinha aceitado participar porque ela insistiu para ter uma foto do filho único vestido de beca enfeitando a parede da sala. Jamais fui amoroso como ela merecia, mas gostava de vê-la feliz. – Essa vai ser uma noite maravilhosa, mãe. Como havia imaginado, a formatura foi um pé no saco. Os discursos, a chamada dos formandos, a fila para pegar o diploma. Uma verdadeira tortura. Lenta e dolorosa. Mas, o pior foi o que suportei durante os cinco anos de curso: olhares debochados, risinhos no canto da boca e cochichos. Eu não era como os meus “colegas”. Estudei naquela universidade como bolsista, enquanto, em sua maioria, eles haviam nascido em berço de ouro e pagavam uma mensalidade maior que meu salário. Para alguns, isso era motivo de exclusão, para outros, de escárnio. Meu único consolo naquele calvário foi ver o sorriso satisfeito de minha mãe. Ela estava encantada pelo momento e não percebia o abismo que existia entre mim e os outros formandos. Depois da cerimônia, me desvencilhei dela, apesar de sua insistência em me levar para jantar e comemorar. Só queria ficar sozinho e beber algumas cervejas em um desses bares lotados, onde é fácil passar despercebido. Menti para convencê-la, dizendo que teria um encontro com uma garota da faculdade.


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À meia noite, lá estava eu sentado sozinho em uma mesa de canto em um pub no bairro boêmio da cidade. A pouca iluminação, o som alto e o preto que dominava a vestimenta do público contribuíam para me camuflar naquele ambiente. Entre uma cerveja e outra, escutava um episódio do meu podcast favorito, dando pouca importância à agitada vida noturna que me rodeava. Até que meu isolamento foi interrompido. – Camiseta legal. Você curte mais o livro ou o filme? – Uma jovem com cara de patricinha metida a hipster havia notado a estampa meio coberta pela jaqueta. No primeiro momento, pensei que fosse uma brincadeira de mau gosto. Do tipo que os riquinhos cuzões da faculdade não se importariam em pagar, desde que pudessem rir de caras como eu e ganhar likes nas redes sociais. Uma garota daquelas não era o tipo de gente que costumava puxar assunto comigo. Bonita demais. Distante demais. – O livro, é claro. – Me voltei ao smartphone, disposto a encerrar o assunto. Ela não se deu por vencida. – Mas, no filme, as sequências psicodélicas que retratam o inconsciente do protagonista foram transformadas em planos primorosos. Não é à toa que a película ganhou vários prêmios em festivais conceituados. Além disso, o final adaptado deu outro significado à obra. – Puxando a cadeira do outro lado da mesa, sentou-se à minha frente. A garota parecia saber do que estava falando. – Desculpa pela minha falta de educação. Cabeça cheia, sabe? Meu nome é Roberto.


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– Desculpas aceitas, grosseirão. Pode me chamar de Vic. Apertamos as mãos e nosso olhar se cruzou. Então, as coisas ficaram estranhas. Sua voz passou a soar com a harmonia de um canto lírico. O perfume que exalava quando o vento batia em seu cabelo tinha a fragrância de um campo florido na primavera. As feições longilíneas realçadas pela meia-luz tornavam sua beleza digna das epopeias gregas. Eu estava encantado com aquela mulher. Com aquela deusa. Perdi a conta das cervejas que bebi enquanto conversávamos sobre “a vida, o universo e tudo o mais”. Em meio a tantos assuntos aleatórios, desabafei várias intimidades com a estranha. Falei sobre minhas frustrações, reclamei do relacionamento sufocante com minha mãe e divaguei sobre o jogo que estava desenvolvendo. Por diversas vezes, ela parecia antecipar meus pensamentos, ora completando minhas frases, ora dizendo o que eu gostaria de ouvir. Quando menos percebi, Vic me puxou pelo braço até a pista de dança, sem que eu tivesse qualquer chance de escapar. – Adoro essa música! – ela precisava gritar para que eu a ouvisse naquele barulho. – Eu não danço – me desculpei com um sorriso amarelo. – Hoje, você vai! Tentei recusar, mas não surtiu efeito. Logo, eu estava movendo meu corpo ao som daquele indie rock sem saber direito o que fazia. Imaginava que todos ao redor olhavam e riam do meu show de descompasso. Ela dominava a pista, acompanhando o ritmo da música e dançando como se não houvesse amanhã. Liguei o foda-se. Era surreal estar ao seu lado e vê-la se mover de um jeito que parecia mágico.


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De volta à mesa, olhei o celular e notei várias chamadas não atendidas. A caixa de mensagens estava cheia de coisas como “Cadê você?” e “ESTOU PREOCUPADA!”. Era minha mãe. Imaginei o escândalo que faria se eu chegasse bêbado na manhã seguinte, mas ignorei e devolvi o aparelho ao bolso. Estar com Vic era como ganhar na loteria e ninguém ia me tirar o grande prêmio. – Parece que alguém é o filhinho da mamãe, hein? – ela havia notado o conteúdo do celular. Te dou uma carona até em casa, garoto. Vamos. Eu queria ficar. Queria beber. Queria que aquela noite nunca acabasse. Mas, quando ela comandou, obedeci sem protestar. Não me recordo bem do trajeto que fizemos. Já era tarde e o álcool nublara minha mente. Lembro apenas que o carro de Vic parou em frente à minha casa e ela me disse algumas palavras antes do clima esquentar. – Vou te dar um presentinho. Algo que vai agitar essa sua vidinha sem graça. E uma garantia para nos vermos novamente. Aqueles olhos verdes me fitaram em silêncio enquanto a mão de Vic subiu macia do meu braço até minha nuca. O suave arranhar de suas unhas longas fazia meus pelos eriçarem. Eu viajava nas fantasias que poderiam ser realizadas naquela noite. Assim como na pista de dança, ela estava no controle. – Preparado? – Sim. – Então, olhe pra mim... A boca dela estava semiaberta em um sorriso insidioso. Seu olhar estava impregnado de desejo. Não era como alguém


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prestes a realizar fantasias. Havia ali um lampejo animalesco. Parecia o olhar de um predador faminto por sua presa. Um calafrio repentino me subiu pela espinha. Rápida como uma serpente, ela deu um bote em meu pescoço. Sua boca se abriu em um ângulo impossível para a mandíbula humana e caninos pontiagudos recém-crescidos perfuraram a carne sem dificuldade. Sangue teria jorrado da minha jugular, mas a bocarra sugava voraz o líquido vital sem deixar escapar uma gota sequer. No momento da mordida, senti uma dor aguda e o pânico quis me dominar, mas uma sensação de êxtase se sobrepôs ocasionando espasmos de prazer. Após longas goladas a criatura largou meu pescoço e lambeu a ferida, fechando-a de imediato. O mundo se tornou um borrão. Estava prestes a perder os sentidos quando nossas bocas se encontraram. Um líquido quente e ferroso me invadiu garganta adentro. Sangue? Meu ou de Vic? Fiquei enojado e quase vomitei, mas ela segurava minha cabeça com mãos que eram garras, obrigando a engolir. O que inicialmente pareceu-me repugnante, em segundos tornou-se uma iguaria macabra na qual eu me refestelava. Não sei o quanto bebi e só parei quando Vic afastou minha cabeça para trás com um puxão abrupto. Ainda não havia recuperado a consciência por completo quando ela me conduziu a passos trôpegos até a porta de casa, sussurrando em meu ouvido. – Bem-vindo ao mundo real. – O que você fez comigo? – Te libertei. Ela tocou a campainha, retornou em silêncio ao carro e partiu com um sorriso estampado na cara. Fiquei caído na


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calçada me recuperando aos poucos. As luzes amarelas dos postes eram pequenos sóis que ardiam em meus olhos. Minha cabeça doía como na pior das ressacas. Na boca ressequida ainda restava o sabor, agora doce, de sangue. Eu queria mais. Precisava de mais. Ouvi o som da maçaneta girando e a porta se abriu. Aflita, minha mãe correu aos prantos para me socorrer. Ela me abraçou e eu a encarei sedento. Tentei resistir àquele instinto bestial. Era minha mãe, porra! A única pessoa que se importava de verdade comigo. Fraquejei. Então, uma nuvem escarlate dominou tudo. Dmitri Gadelha, 32 anos. Historiador, professor da rede estadual e coordenador escolar. Aficionado pela literatura de fantasia, dedica-se a disseminação de histórias através dos jogos de interpretação (RPG), narração e, mais recentemente, da escrita. Atua desde 2010 difundindo o RPG como incentivo à leitura através de seu projeto Vila do RPG.



A Procura de Dignidade Fabiana Nogueira

Acordou sem saber onde se encontrava, dormira de mau jeito. O sol ainda não havia nascido. Tateando, foi se esgueirando por um dos três cômodos da casa. Percebeu uma grande movimentação. Espremia-se no canto da parede com as mãos nos ouvidos, ouvia gritos de sua mãe e sons de coisas caindo no chão. Estava confuso e sentia uma dor no estômago. Não queria sair dali, suas mãos estavam geladas. Queria gritar por sua mãe e chorar, mas sabia que se chorasse, apanharia. Seus pais brigavam na cozinha. Era sempre a mesma rotina, chegavam em casa cheirados, brigavam, e ela era quase sempre espancada por ele. Em alguns destes dias até Arthur saía com alguns roxos. Neste, não foi diferente. Criou coragem e foi até a cozinha, seu estômago já doía mais que tudo. Foi em busca de algo para comer e de surpresa seu pai lhe desferiu um tapa e disse “Ah um bostinha desse! Com treze anos, eu já estava por aí, trabalhando e comendo umas garotinhas. Você deveria morrer garoto.”. Arthur levou um soco no estômago e soluçou. Não entendeu a razão daquilo; respirou fundo e saiu correndo de casa, ouviu risadas dos dois pelas suas costas e sua mãe disse “Volte com o almoço seu merda!”. Correu com dificuldade, sua respiração irregular não deixava que fosse mais rápido, só queria ir para longe e jurou nunca mais voltar. Quando percebeu, já se encontrava no centro da cidade e o sol já estava nascendo. Não sabia se a dor


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no estômago era do soco ou da fome, nada mais importava, estava longe dos dois. Estava com punhos cerrados. Lágrimas percorrendo seu rosto. Passaram três anos desde a última vez que viu seus pais e se pegava muitas vezes tentando imaginar como estes estavam. “Será que ainda estão vivos ou morreram com tanta droga?”. Se forçava a voltar para a realidade, não queria lembranças ou o que fosse daqueles dois. Tudo era diferente agora, cruel, mas diferente. “Arthur, Arthur! Tá dormindo sentado cara? Vamo ou tu vai passa o dia com fome”. Ele quase agradeceu por ter sido tirado daquele devaneio. Balançou a cabeça em negação e foi com José. Conheceu José no dia da discussão de seus pais; nos três anos com ele aprendeu o que era sobreviver na rua. - Posso ajuda a leva as sacola moça? - Si... Sim! Disse ela com a voz meio embargada do susto. O que pensar de um garoto negro todo esfarrapado? Ela estava tensa, mas foi até o carro com Arthur, ele colocou as compras no porta-malas e recebeu dois reais, agradeceu e voltou para a porta do estabelecimento. Viu um moço com seus vinte e tantos anos, negro, entrando em um carro com suas compras e pensou “Um dia vou poder está saindo daqui com minhas compras como esse cara”. Ele tinha consigo o sonho de vencer na vida e sair daquela realidade, não importava quantas noites passasse em claro e o quanto tivesse de sacrificar. Já passavam das nove horas da noite, a dez horas não comia nada e o dinheiro que conseguiu durante o dia não dava pra se alimentar. Não entendia o porquê de se esforçar tanto se de nada adiantava. Quando notou, já estava dentro do mercado


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com a adrenalina no máximo; não queria mas era isso ou a fome que não lhe abandonava nunca. Andou entre as prateleiras olhando para os dois lados. Infelizmente não era mais novidade; quando não conseguia dinheiro era essa a alternativa que encontrava. Pegou alguns biscoitos e um suco de caixa e pôs por dentro da roupa. Com os dois reais que tinha, comprou um chocolate, passou ileso nos caixas e saiu pra rua. Se encostou no muro do mercado e sentiu que não respirava. Respirou fundo, se equilibrou nas pernas e saiu. Ele disse para si “Não era pra ser assim, isso não tá certo, porra!” Levantou às cinco, junto com todos que dividiam a praça. Já sabia qual era sua direção naquele dia. Pegou o chocolate e foi comendo no caminho. - Como faço pra pegar livros aqui? - Precisamos de um documento com foto, comprovante de residência e uma taxa de três reais, que você pode reaver na devolução do livro. - Moça, tenho um documento. – Tirou a identidade toda amassada do bolso e colocou em cima do balcão. - Então, precisamos de tudo que já lhe falei. - Obrigada então... Mas moça, eu posso ler aqui? Aí não estaria levando. - Neste caso só o documento serve. Entrou na biblioteca, nunca havia visto tanto livro. Pensou “Nunca poderei em todos os anos da minha vida ler tanta coisa.” Quando deu por si já se havia passado mais de duas horas, precisava sair dali e conseguir o dinheiro do almoço.


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Saiu da biblioteca em direção ao supermercado. No caminho, percebeu que já passava do horário do almoço, resolveu então pedir algum dinheiro ou mesmo comida na frente de um restaurante. Parou uma moça que estava saindo e falou: - Moça, você tem algum pra eu comer? - Não... Espera, acredito que tenho moedas aqui. – Procurou na bolsa e o entregou. - Obrigado. Algumas pessoas passaram e lhe deram as sobras do almoço. Enquanto comia, viu chegar a viatura. Não entendeu o porquê, mas talvez estivessem indo almoçar, pensou. Voltou a comer e três policiais chegaram até ele. Um dos policiais disse: - Ei, maluco! O que tu pensa que tá fazendo? - Vim pedir uns trocados pra almoçar, e aí me deram comida e tô aqui. - Você vem com a gente! - Pegou Arthur pelo braço. - Mas não tô fazendo nada! - Você está perturbando, recebemos denúncia, pro camburão agora! - Não fiz nada. Se quiser, vou embora, mas não me coloca ai. - Agora! Entrou no carro e sentiu eles arrancarem. Quando percebeu, estavam muito longe do centro, aquilo ali parecia um interior dentro da cidade. Não havia nada além de mato, tentou achar uma casa que fosse, mas em vão. - Pra onde estão me levando? - Não interessa, verme! - Eu não fiz nada pra tá aqui!


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- Todos dizem isso, agora cala a porra da tua boca, vagabundo! Desceram do carro e o tiraram, truculentos; sentiu que algo ruim iria lhe acontecer. - Desce as calças! A-go-ra! Estava suando frio. Enquanto descia, sentiu suas mãos trêmulas e suadas. Ouviu o policial dizendo “Agora, fica de quatro”. Não acreditou no que ouvira. - Não vou fazer isso. - Não vai? O policial lhe deu um soco que quebrou seu nariz, os outros dois policiais se aproveitaram e prenderam suas mãos às costas. O colocaram de joelhos e o mesmo policial que o socou abaixou as calças e começou a penetrá-lo. Tentou sair dali, resistir, mas recebeu outro soco no estômago. O policial terminou o serviço, se recompôs e foi para o carro. Os outros dois soltaram suas mãos e o amarraram em um poste. As agressões iam de choques elétricos onde Arthur desmaiava, socos e joelhadas. Em um dos momentos antes de desmaiar, lembrou de seus pais, e dos planos que havia feito, tudo era pó agora. Na última vez que recobrou a consciência, uma música do Racionais passou por sua cabeça. “É necessário sempre acreditar que o sonho é possível, que o céu é o limite e você, truta, é imbatível, que o tempo ruim vai passar, é só uma fase.” Não sabia mais o quão imbatível era e até onde o seu sonho ainda poderia existir. Sentia como se a morte batesse na porta e não estava errado, com um único disparo sentiu o calor que emanava do


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seu corpo ir embora, a luz sumiu e sentiu as lรกgrimas correndo em seu rosto. O sonho tinha acabado.

Fabiana Nogueira, 20 anos, escreve por prazer, poetisa/ escritora.


Aos olhos de Cristo Caio Rennery

Jorge sempre olhava para o além, pensativo, e, por diversas vezes, seus pais reclamavam. Ele tentava parar, embora soubesse que a culpa não era sua. Quando menos percebia, sua visão já ia longe, pulando por morros, subindo árvores e pensando na família. Perguntava-se quando iriam se resolver. Quando iria cada um para o seu lugar. Antes, ele não se importava com isso, fingia que nada acontecia. Mesmo sua mãe havia deixado de se importar há anos. Antes, ela reclamava, chorava, comia mal. Hoje, é tranquila, dorme cedo, mesmo quando o marido está fora em suas bebedeiras. Mesmo nessa condição, a mulher sempre se importou bastante com a opinião das pessoas, sempre levou muito a sério o que diziam pelas costas, as coisas que o povo podia cochichar. Além disso, os votos do matrimônio “na saúde e na doença” sempre a perturbavam, pois achava que o marido estava doente. Passava o dia em casa, cozinhando, lavando roupa e banheiro, assistindo TV. Enquanto isso, o pai estava fora, vivendo. Mas, parecia que, ano após ano, aquela condição a degradava e, aos poucos – como uma criança que começa se arrastando pelo chão, depois engatinha e logo, logo está andando, bulindo em tudo –, a mãe queria começar a dar os primeiros passos em direção à liberdade.


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Na noite anterior, ela chegara tarde. Estava na casa de uma amiga, segundo ela, apenas conversando e se divertindo. Claro que o pai de Jorge não engoliu a história. O homem queria a mulher em casa – o lugar dela era ali, varrendo o chão sem ladrilho. Houve briga e Jorge, já acostumado, foi para o alpendre da casa olhar as estrelas que brilhavam forte no céu. Quando seus olhos viajavam pela imensidão da noite, sempre pensava que existia algo além daquilo tudo. Algo maravilhoso. Um mundo escondido. A mãe estava lavando louças. O menino retirou roupas molhadas de cima da cadeira e se sentou. Chove. – E o teu pai, hein? – a mãe perguntou com a voz num tom estranho. – Não sei. Ele disse que chegava cedo hoje. Ela riu. – Cedo? Hoje é quarta, dia de jogo. Jorge deu de ombros. Aquela já era uma rotina para eles. Chegar tarde, bêbado, falar besteiras e, no fim, dormir todo sujo sentado na entrada. O menino levantou e beijou o ombro da mãe. Foi para seu quarto e deitou na cama. Sentia um incômodo. Na parede, numa prateleira, uns brinquedos repousavam. Eram animais feitos de madeira, dados pelo seu avô. Enquanto olhava, o vento balançava as portas de sua janela, que ficava no outro lado do cômodo, de frente para as prateleiras. O menino se levantou para fechá-la, pois a chuva entrava aos poucos. Quando se aproximou, uma lufada de vento quase que o arremessa para trás. Ele se segurou na cama. Algo pareceu


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se agigantar na prateleira, as sombras fracas dos bichos na parede pareceram se tornar mais intensas e maiores, como se preparadas para o engolir. Jorge caiu em cima da cama, arfando, fechou os olhos e pressionou as mãos contra eles. Recuperando a coragem, ele se volta para a prateleira e abre os olhos. As miniaturas parecem normais. Seu coração bate rápido e ele se deita na cama, rezando a Deus. Adormece sem perceber. Ao acordar, levanta rápido e sente vertigem. Escuta pancadas em algum cômodo da casa e corre. Escuta gritos e gemidos. No local, vê sua mãe no chão, o rosto ensanguentado, seu pai com o punho fechado. Jorge corre e o empurra, mas o homem é forte e o esforço do menino é em vão. Seu pai grita para a mulher, que chora. O cheiro de cachaça, os palavrões que doem em Jorge. Os gritos chamam a atenção da vizinhança, pois pessoas batem desesperadas na porta. O pai de Jorge se joga no canto do cômodo, fala alguma coisa e adormece. O menino se agacha e fala com a mãe, o rosto desfigurado, o sangue escorrendo do olho da mulher. As batidas na porta se tornam incômodas e, antes que Jorge vá até lá, ela é arrebentada. Percebe, assustado, que não são apenas moradores, mas a polícia também. Uma vizinha, senhora muito amiga da mãe de Jorge, entra de supetão, desesperada. – Eu ouvi gritos. O que houve? Jorge não é capaz de responder. A mulher vê a vítima caída, agora desacordada. A multidão de vozes e ações faz com que Jorge se sinta atordoado. Num momento, os policiais entraram, em outro, estavam levando seu pai preso, o arrastando pelos braços e


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pernas – um bêbado deplorável. A ambulância estava ali em outro momento, levando a mãe numa maca. A vizinha conversava com Jorge e, em outro momento, entregava-lhe um copo de canja da galinha. Sua mente estava em branco. – Jorge? – ela perguntou – Eu vou para o hospital ficar com sua mãe. Você fica sozinho? O menino olha para o lado e balança a cabeça em afirmação. A mulher sai e, só naquele momento, percebe que passaria a noite sozinho. Não quer ir para o quarto. A imagem das sombras dos brinquedos ainda está forte. Ele pisca os olhos e, na sala, vê seu pai sentado, o rosto inchado de bebida. Pisca de novo e o local está vazio. Fica com raiva de si mesmo, pois sabe que não é mais uma criança, já tem treze anos. Desliga as luzes da sala, pois elas machucam seus olhos, e se senta no chão, encostado na parede. As trevas daquela noite parecem o envolver como um lençol. Sente sono, mas não se atreve a dormir. Seus olhos desesperados vasculham as paredes e ele encontra uma figura estranha no escuro, que a princípio o assusta. Na verdade, ele percebe, é uma figura de Jesus Cristo. Seus pais, muito católicos, deixavam santos em vários cômodos. Queria ter tido força para arremessar o seu pai bem longe. Para descontar nele a fúria que sentia, para proteger sua mãe. Odiava ser apenas uma criança. Ah, como queria ser forte. Olhava para Jesus Cristo na figura, crucificado, os olhos cheios de tristeza, a expressão de dor – e os mandamentos de honrar pai e mãe? Jorge lembrou. Não podia fazer nada contra o pai. Mas ele deveria fazer algo. A imagem na parede agora estava distorcida em sua mente e Jorge sentiu um calafrio, pois conseguia ver os olhos de Jesus,


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dois buracos talhados na madeira cor de bronze. O menino ouviu um ranger de punhos de rede, embora soubesse que não havia ninguém em casa. Espremeu-se na parede, o coração batendo rápido. Não percebeu o correr rápido do relógio e a luz que entrava pela janela anunciava o dia. No mesmo segundo que a luz entrou na sala, alguém bateu na porta. O menino levantou e suas pernas doeram, estivera sentado naquela posição por muito tempo. Andou até a entrada. Era a vizinha. – Meu Deus, você está bem? – ela perguntou. Jorge não quis responder – Olhe, sua mãe vai ficar bem. Os médicos disseram que ainda vão fazer uns exames, mas que provavelmente até amanhã ela voltará para casa. Enquanto isso, venha na minha casa para comer. Ok? Ele apenas balançou a cabeça em resposta. A mulher saiu, ele fechou a porta e voltou ao mesmo local onde estava sentado. Sentia dor de cabeça, os olhos pesados de sono. Agora, ele resmungava baixinho: “Não posso dormir, e se ele bater nela de novo?” Ouviu um barulho e pulou, quase caindo para trás. Era alguém à porta. As pernas de Jorge tremiam ao ouvir a voz de seu pai na calçada. O homem conversava alguma coisa e ria sozinho. Um ódio cresceu dentro do menino e ele fechou o punho à espera da porta ser aberta. Numa risada alta, a voz sumiu. Jorge saiu e viu que não havia ninguém ali. Socou o umbral da porta e machucou seus dedos, que agora sangravam. Voltou para o mesmo local de antes. Riu de si mesmo, estava ouvindo coisas por causa do sono.


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No horário do almoço, as batidas na porta retornaram. Alguém bateu e bateu, mas Jorge não se mexeu. Do fundo de sua alma, ele desejava estar ali para quando sua mãe precisasse. Ele empurraria seu pai o mais forte que pudesse. Não ligava para o mandamento. Era a vizinha que batia. Gritou dizendo que havia deixado o pote com comida no chão perto da porta e disse que tudo ia ficar bem. Jorge lembrava que, uma vez, quando era mais novo, o pai tinha uma amante. A mãe de Jorge descobriu e deu uma confusão. O homem saiu de casa aos choros, alegando que ela estava louca. Quando o homem retornou, tentou esganar a mulher, o cheiro de cachaça forte no bafo. O menino, desesperado, apanhou um sapato de salto alto e tentou machucar o pai para afastá-lo da mulher. Não funcionou. Arranhou e mordeu o pai, mas não funcionou. Era como se o homem fosse uma besta, uma fera desgraçada. Se é assim, Jorge quer derrotar essa coisa. Ele precisa. Não sabe se é a fome, o sono ou a dor emocional, mas sente vontade de arrancar os cabelos. Ele agarra um tufo e algo chama a sua atenção na parede. Olha para o alto e Jesus Cristo parece lhe observar. “Não pode ser, isso é loucura”, pensa. “É apenas uma estátua.” Ao mesmo tempo, alguém bate na porta. As pancadas doíam no coração de Jorge. Ouviu uma risada que ecoou por toda a sua casa. Martelava-lhe na mente o mandamento. Como prometido, a mãe voltou para casa no outro dia. Um curativo no olho, tomando fortes analgésicos. Deveria ficar em repouso por recomendação médica. Jorge sentia-se impotente diante do sofrimento dela.


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Em cada momento que ele passava pela sala, fosse para preparar o almoço, fosse para apenas arrumar a casa, sentia olhos em si, o perseguindo e vigiando. Quando olhava para o alto, lá estava o Cristo. Voltava para o quarto da mãe, assustado. – O que foi, menino? – Nada não, nada não. Ao entrar no próprio quarto, ele tremia e não olhava para os pequenos animais de madeira de forma alguma. O medo se adensava e, às vezes, parecia preencher todo o quarto. Um sentimento estranho que crescia e parecia transbordar, ele sentia medo das próprias mãos. Queria ficar apenas no quarto com a mãe. Ela estava preocupada, pois pedia um copo d’água e o menino negava, dizendo baixinho que tinha medo. Então, ela levantava e ia na geladeira, Jorge sentado no canto do quarto, os olhos opacos. Queria ficar apenas em seu cubículo no quarto dos pais, sentado, olhando para as paredes. De dia, mesmo a sombra da mãe em cima da cama, lendo a Bíblia, o assustava. Ele fabulava massas negras grotescas o engolindo, tomando a gigantesca forma de seu pai. O olhar da coisa como o do homem, caído, bêbado, falando besteiras, se aproximando da mãe. O menino pulava, os punhos em guarda, os olhos esbugalhados. A mãe se assustava e saía do quarto sem entender. O gemido dos armadores de rede, ele perguntava se a mãe ouvia. A mulher ficava pálida, apenas resmungava, dizendo que quem dormia em redes era o pai, que naquele momento estava bem longe dali. O menino estranhou quando um homem apareceu. Era um médico que sua mãe havia contratado para lhe fazer alguns


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exames. Perguntou o que Jorge sentia, se sentia alguma dor, algum desconforto. O menino respondeu: “Preciso protegê-la e honrar os mandamentos”. O homem lançou-lhe um olhar estranho e chamou a mãe para o lado de fora. As sombras de seu pai agora gritavam com ele. O homem bêbado ria sozinho. Cochichava no ouvido do menino palavras que ele não conseguia entender. Seu corpo tremia, sentado no cubículo. A pele sobrando, os olhos negros. Dois dias depois, a mãe fez o almoço, entregou ao filho, preparou também um suco de acerola, o preferido do menino. Ele não comeu, mas bebericou o suco, pois obedecia a mãe, como dizia o mandamento. Um sono forte o arrebatou e ele cochilou no chão. Acordou numa cama estranha. O quarto branco, ele vestido de branco. Olhou assustado e percebeu que não haviam sombras naquele lugar. Aliviado, dormiu. Em casa, a mãe chorava de joelhos diante da parede. No alto, Jesus Cristo a olhava com tristeza. Caio Rennery, 22 anos. Formado em Letras, ama ler e escrever. É criador, editor e colunista do blog Imprensa Cultural. Apaixonado por animações, cultura japonesa, histórias em quadrinhos e fantasia.


As cartas nunca mentem Bruna DeRose

Enganar os outros é fácil. Quase tão fácil quanto respirar. Algumas pessoas têm o dom de jogar futebol ou desenhar, já outras conseguem fazer cálculos avançados de cabeça — como Vinícius —, mas eu tinha a habilidade de mentir como nenhuma outra pessoa que conheci. Mas, até eu tinha valores. Não mentia para amigos nem familiares — na medida do possível. Apenas mentia para clientes. O baixote sentado à minha frente na mesa enxuga sua testa suada com um lenço que, um dia, talvez, tenha sido branco. Ele tira um pequeno pente do bolso do paletó e arruma os poucos fios de cabelo que ainda lhe restam nas laterais da cabeça. Sorrio para não rir. A careca dele brilha quase tanto quanto minha bola de cristal e, por um instante, imagino sua cabeça em cima da mesa no lugar da esfera. Certamente, afastaria muitos clientes, mas traria outros também. Tudo na vida tem seu lado bom e ruim. — Como você disse que era seu nome mesmo? — Madame Esmeralda — digo, mudando um pouco o tom da minha voz para soar mais madura e sensual. Os homens costumam gostar disso. — Você é muito nova pra ser uma madame, não acha? Senhorita Esmeralda, talvez, mas madame, não. — Madame Esmeralda é um título, senhor… – Aponto para ele, para que me diga seu nome.


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— Henrique. — Então, senhor Henrique, é um título passado de mãe para filha. As mulheres da família nascem com o dom e, quando uma morre, a outra assume seu lugar. O encaro enquanto falo porque li em um livro uma vez que as pessoas tendem a acreditar mais facilmente nas outras quando se é mantido contato visual. — Você nem sabia meu nome. — O quê? — Como você pode ter “o dom” se você nem sabia meu nome? Um cético. Tudo bem, posso lidar com isso. Não é a primeira vez que recebo clientes desse tipo e não será a última. Os que acreditam com facilidade se contentam em me visitar uma única vez, muitas vezes movidos apenas por curiosidade ou qualquer outro impulso fútil. Mas os céticos — uma vez que os faço acreditar — viram clientes regulares, e clientes regulares são muito bons para qualquer negócio. — Eu sou um canal para os espíritos. Se o senhor preferir, eu posso entrar em contato com eles pra perguntar seu nome, e o da sua mãe ou o do seu pai. Mas, isso vai ser uma perda de tempo e o senhor também vai ter que pagar mais por isso. Mas, se o senhor insiste… — Não, tudo bem. Só estava fazendo uma pergunta. Ele abaixa a cabeça e encara suas mãos cheias de veias. Percebo a marca de uma aliança e começo a ter uma vaga ideia do motivo de sua visita. Estendo minhas mãos até as deles e as aperto em um gesto de solidariedade.


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— Dizer adeus nunca é fácil, senhor Henrique. Mas, às vezes, é a única coisa que nos resta fazer. Seus olhos se arregalam e ele me encara, com um misto de confusão e angústia. — Do que você está falando? — ele insiste, limpando as lágrimas antes que caiam. Quero revirar os olhos por sua falta de confiança, mas consigo me segurar. Tiro mais alguns segundos para observá-lo antes de responder. Ele parece muito descuidado e fora de forma para ser gay. Então, acho que é seguro afirmar que uma mulher é o motivo de sua visita. — Sua esposa — respondo, usando o sorriso que pratiquei inúmeras vezes na frente do espelho. — Eu sei que as coisas têm sido difíceis pra você. — Como você sabe disso? — Os espíritos, senhor Henrique. Eles falam e eu ouço. — O que mais eles dizem? — Que essa separação não estava planejada. Disso eles têm certeza. — Vejo seus olhos se focarem em mim como um laser e sei que estou no caminho certo. — Um relacionamento de tantos anos simplesmente não pode acabar assim. Ele balança a cabeça, observando o que assumo ser uma foto dentro de sua carteira. — Vinte anos — ele diz. — Vinte anos de felicidade e aí, de repente… puff. Ela morre. Balanço a cabeça e tento conter minha surpresa. Por pouco não falei uma merda bem grande. Sei mentir muito bem, mas, às vezes, a sorte é quem me salva no fim das contas. Nasci virada para a lua, ou assim dizia minha mãe. O observo


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mais uma vez, procurando por outros indícios importantes. Seu terno não é dos mais caros, mas certamente não é um daqueles de menos de cem reais que algumas lojas vendem no centro da cidade. Não cheguei a ver seus sapatos quando ele entrou, mas também não ouvi o barulho irritante de solas de borracha, então, vou assumir que são de couro. Talvez não seja um homem rico, mas deve ganhar o bastante para viver bem. Apesar de não ser lá muito agradável de se olhar, ainda tinha vaidade o suficiente para se preocupar com os cabelos, e também olhou para o meu modesto decote no mínimo cinco vezes desde que se sentou. — O senhor se sente culpado — digo, com os olhos fechados e as duas mãos na bola de cristal. — Ultimamente… ultimamente, sinto que sou observado. Me entende? — Balanço a cabeça. — Sou um homem estudado, Madame Esmeralda, não acredito em qualquer baboseira e, certamente, não acredito no paranormal. Mas, também sou um homem de Deus e sei quando algo não está certo. E, ultimamente, sinto que ela está me observando. Acha que isso é possível? A ironia de suas palavras não escapa aos meus ouvidos. Sempre me impressiono com a capacidade das pessoas de hostilizar o mundo dos espíritos e aqueles que acreditam nele, mas, ainda assim, se ajoelharem diante de uma divindade cuja existência é tão misteriosa e incerta quanto qualquer outra coisa. Mas, a mim, isso pouco importa. Não acredito em nenhum dos dois. Minha única certeza é a morte. — Tenho certeza que sim. Ela nunca o deixou de fato. A diferença é que agora o senhor consegue sentir sua presença. — Isso me assusta. Tenho medo que ela não aprove minhas ações. — Ele tira uma pequena foto da carteira e me entrega.


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O rosto da mulher é agradável e seu sorriso é reconfortante. Não faço a menor ideia do que ela viu nele, e tenho a ligeira impressão de que ele também não sabe. — Quero seguir em frente, mas não quero que ela pense que não me importo mais. Sou um bom pai e ainda a amo, mas me sinto muito sozinho. — O senhor deseja entrar em contato com ela, então? Ele assente e peço licença para ir buscar os aparatos necessários para o contato. Encontro Vinícius jogando videogame em seu quarto e aviso que vou precisar de sua ajuda para concluir a consulta. Hoje em dia, ele raramente se opõe a me ajudar. Vinícius sabe que o dinheiro que ganho nas consultas é a única coisa que nos mantém fora da rua, e tenho certeza que é grato por isso. Afinal, nos resta apenas um ao outro. Retorno à sala de consultas segurando alguns cristais e um grosso ramo seco de sálvia. Peço a ele que escreva o nome de sua mulher no pedaço de papel que entreguei e o observo enquanto escreve. O nome dela é Valéria. Quando ele me entrega o papel, o amasso em uma pequena bola e coloco na boca. Engoli-lo não é muito agradável, mas é tudo em nome da dramaticidade. Dou uma breve e vaga explicação de que engolir o papel com seu nome é como absorver sua essência e ele parece acreditar. — Agora, quero que se concentre em sua esposa. Não importa o que aconteça, não pense em ninguém mais. Entendeu? Senhor Henrique assente enquanto começo a dispor os objetos em minha frente. Para finalizar, queimo as pontas dos ramos de sálvia e deixo o aroma se espalhar pelo ambiente. Digo a ele que a erva ajuda a limpar o ambiente e evitar que os maus espíritos se apoderem do lugar. É uma inverdade, mas não chega a ser uma mentira.


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Respiro profundamente e coloco ambas as mãos na bola de cristal. Esse é o primeiro sinal para Vinícius intervir e ele começa a mexer no dimer instalado fora da área de sessões, fazendo com que a luz oscile diversas vezes. Seguro as mãos trêmulas do meu cliente, mas mantendo os olhos fechados. — Espíritos, ouçam o meu chamado! Tragam Valéria aos portões sagrados de sua morada e deixem que ela se comunique conosco. Vinícius, mais uma vez, faz as luzes oscilarem, mas agora aumentando os intervalos de total escuridão. Sinto as mãos de senhor Henrique ficarem geladas e sei que já é chegada a hora de dar o golpe final. Penso em Valéria, uma mulher simpática e amável de quarenta e poucos anos, que se casou com o primeiro namorado e ficou com ele até o momento de sua morte. Me concentro nesse pensamento e o repito mentalmente como um mantra: sou Valeria, boa mãe, boa esposa e agora prestes a entrar em contato. — Henrique. — Meu tom de voz é mais grave, na tentativa de emular a voz de uma mulher mais velha. — Henrique… Ouço o barulho das luzes ligando e desligando, mas mantenho meus olhos fechados. Tudo faz parte da atuação. — Valéria… é você mesma? — Henrique… onde você está? Não consigo te encontrar. — Eu estou aqui, meu amor. — Ele beija minhas mãos com seus lábios úmidos, mas não sei se por lágrimas ou por saliva. Não importa. — Senti tanto sua falta. Me diga como estão as crianças, Henrique. Quero saber das crianças.


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— Está tudo bem, meu amor. Estamos todos bem. Sentimos sua falta todos os dias, mas estamos aprendendo a viver novamente. Dou uma pausa, enquanto penso no que devo dizer em seguida. — Me fale sobre ela também, Henrique. A mulher. — Ouço um suspiro abafado em sua garganta. — Você a ama? O homem desaba, escondendo o rosto em minhas mãos enquanto suas lágrimas molham as pontas dos meus dedos. — Eu sinto muito, Valéria, eu não queria. Prometi que ia amá-la para sempre, mas não consegui cumprir com minha promessa. Perdoe-me. — Não precisa pedir perdão. — Sorrio, e espero que a ausência de luz não o impeça de perceber minha expressão terna. — Apenas quero que seja feliz, Henrique. Não se feche para o amor nem se sinta culpado quando ele chegar. Antes que ele consiga falar alguma coisa, começo a me tremer como se sofresse de um ataque epilético, e Vinícius coordena as mudanças de luz com meus movimentos até o momento que paro por completo e as luzes voltam ao normal. — Valéria? Você ainda está aí? — Quem é Valéria? — digo, fingindo estar confusa mediante a situação. O homem sorri em retorno, e em seguida me abraça. — Nem sei como lhe agradecer, Madame Esmeralda. Consegui entrar em contato com minha falecida esposa e, finalmente, estou em paz com minhas escolhas. — Fico feliz em poder ajudar. Senhor Henrique abre sua carteira gorda e retira quatro notas de cem reais, uma a uma. Meus olhos se enchem de


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lágrimas de felicidade quando vejo o dinheiro, mas me forço a permanecer neutra diante da quantia. O combinado havia sido 250 reais apenas, mas devo ter subestimado a generosidade de um homem que ouve aquilo que queria ouvir. Ele estende a mão com as notas em minha direção, mas quando a toco sinto como se tivesse sido atingida por um raio bem ali, no meio da sala. Imagens desconexas começam a girar dentro da minha cabeça, me deixando tonta. Vendedores ambulantes oferecendo seus produtos, pessoas caminhando pelas calçadas enquanto desviam umas das outras e carros transitando pela avenida — muitos carros. Mas, não demora e vejo sua figura caminhando pela rua com um enorme sorriso. Ele se abaixa para pegar um cigarro que escapou do maço e é nesse exato momento que um carro o acerta em cheio, e meu mais novo cliente se transforma em um cadáver contorcido no meio da rua. Outro choque. Abro meus olhos e o vejo me encarar com preocupação. Minhas mãos tremem — meu corpo todo treme — e me encosto no vão da porta para não cair no chão. — Está tudo bem Madame Esmeralda? — Sim, eu… eu estou bem. — Quer que eu compre uma água pra você? — Não, não precisa — desconverso, querendo me livrar dele o mais rápido possível. — Tenho que parar de ficar pulando refeições. Só isso. — Ah, um desses regimes da moda, não é? Também estou precisando perder uns quilinhos — ele diz, batendo algumas vezes na parte mais alta da barriga. — Mas, agora preciso ir. Até mais, Madame Esmeralda. Ele se distancia de mim e mais uma vez vejo seu corpo caído no chão. Pessoas começam a rodeá-lo e suas vozes ficam cada


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vez mais altas. Alguns gritam por socorro, outros lamentam pelo estado em que ficou o cadáver. O cadáver. A palavra gruda em meus pensamentos e, mesmo sem saber porque, vou atrás dele. Virando a esquina, o vejo com um maço de cigarros na mão. Exatamente como na minha visão, um deles cai no chão. Sei o que vem depois disso, só não sei como evitar que aconteça. — Senhor Henrique! Minha voz é tão alta que atravessa a multidão que nos separa e o assusta, fazendo com que tombe para o lado da calçada. Nesse mesmo instante um carro passa a centímetros de onde ele está — exatamente onde ele deveria estar caso não tivesse se assustado com meu grito — e ele observa o veículo se distanciar boquiaberto. Corro até ele. — Senhor Henrique… o senhor está bem? Com a ajuda de outra pessoa, o levantamos, e o observo procurando por algum machucado que possa ter ocorrido no momento da queda. Com exceção de um pequeno arranhão no cotovelo, ele aparenta estar bem. — Você… você me salvou! — ele diz, me segurando pelos ombros — Você salvou a minha vida! — Eu… — Ela salvou você, foi? — Uma mulher idosa me interrompe, se aproximando. — Ela salvou minha vida! Madame Esmeralda salvou minha vida! Não demora e uma multidão começa a se formar ao nosso redor. Senhor Henrique grita para quem quiser ouvir que salvei sua vida depois de ter uma premonição, e as pessoas começam a fazer diversas perguntas que não sei — e nem quero — responder. Com muita dificuldade, consigo sair do


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olho do furacão, mas algumas pessoas insistem em me seguir até minha casa. Fecho a porta e respiro aliviada. — Que foi isso aí, Bel? Esse povo todo te seguindo? — Não foi… eu nem sei explicar direito. Eu tava aqui com o cliente, daí eu… eu vi coisas, Vinícius. Imagens na minha cabeça. — Tipo uma visão? — Sim. Dele sendo atropelado, e eu cheguei lá bem na hora de evitar. Depois, se formou essa multidão toda e agora eles acham que eu sou algum tipo de médium. Vinícius sorri, mas não vejo motivo para alegria, então, permaneço séria. — Isso vai ser bom pra gente, Bel. Ninguém mais se importa com esses anúncios em postes, mas isso… isso é real. As pessoas viram quando você salvou aquele cara, e agora elas sabem do que você é capaz. — Como assim? — Você vai ver, vamos ficar cheios de clientes novos. As pessoas confiam em você agora, e vão querer a sua ajuda. Escreve o que eu estou te dizendo. Engulo seco. É exatamente isso que me assusta. A previsão de Vinícius acaba se tornando verdadeira e o número de clientes aumenta ao ponto de termos uma fila do lado de fora da porta em certos dias. Meu irmão ri e diz que, antes, mal éramos uma P.A, mas agora somos uma P.G. Não faço a menor ideia do que ele está falando, então, apenas sorrio em resposta e ele se dá por satisfeito. Vinícius nunca precisou de muito para ficar feliz, e isso é uma das coisas que mais gosto nele. Eu não sou o tipo de pessoa que sabe fazer os outros felizes. Nunca vou ser.


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O que não muda muito é nosso perfil de clientes. Ainda recebemos o mesmo tipo de donas de casa presas em um casamento monótono, exaustas depois de uma jornada dupla, e cinquentões viciados em Viagra, loucos por uma aventura com uma mulher jovem o bastante para ser filha deles. Esses costumam ser os piores. Acho que eles nunca leram Freud. Não que eu tenha lido, mas Vinícius leu e já me falou sobre algumas de suas teorias. Elas explicam muita coisa. Mas, o que Freud não explica é como — ou porque —, diabos, eu consigo fazer o que faço. Ainda assim, evito pensar no assunto e, quando penso, nego qualquer possibilidade que não possa ser explicada de uma forma racional. Dias depois, estou sentada no sofá com meu irmão enquanto contamos o dinheiro obtido com as consultas do dia. Sei que Vinícius e eu somos frutos da mesma árvore quando vejo seus olhos brilharem enquanto ele separa as notas — as de cem, principalmente. Azul é sua cor preferida, ele sempre diz. — Porra, Bel, quanto dinheiro! Eu sei que ainda tem um monte de conta pra pagar e que o cartão esse mês veio muito alto, mas, porra… dois mil reais em um dia! Nem que você fosse a melhor puta da cidade. — Vinícius! Olha como você fala comigo, viu? Vou te deixar sem mesada. — Por favor, não. Vai sair um jogo na próxima semana e eu preciso comprar. — Você e esses seus jogos. Vinícius tem momentos em que é muito mais sábio e responsável que qualquer outro jovem de dezoito anos, intercalados com outros em que seu comportamento é tão infantil ao ponto de envergonhar até um menino dez anos mais novo.


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Mas, é meu irmão — a única família que me resta — e não consigo pensar em uma coisa sequer que não faria por ele. Não sou tão mais velha que ele, mas me sinto muito mais mãe do que irmã. E é esse sentimento que torna a visão dele com uma arma apontada para seu rosto tão devastadora. E o pior, real. Sei que isso acontecerá. Dessa vez, acordo em prantos e corro pelos cômodos da casa à sua procura. Mas, é em vão. Vinícius não está mais lá. Meus dedos tremem enquanto disco seu número e, sem perceber, prendo a respiração, e ela só se normaliza quando ouço sua voz do outro lado da linha. — Onde você tá, Vinícius? Me diz onde é que você está! Por um momento, ele não responde, mas ouço o barulho do trânsito ao seu redor e fico menos nervosa. Ele ainda não chegou no banco. — Tô no ônibus, Bel. Por que esses gritos todos? — Vinícius, eu quero que você volte pra casa agora! Você me entendeu? — Qual o seu problema, Isabella? Eu tenho que ir no banco pra pagar o cartão. Esqueceu? O vencimento é hoje. — Foda-se o pagamento do cartão, Vinícius. Não entre no banco! Você precisa voltar pra casa agora. — Isabella… — Eu tive outro sonho daqueles, Vinícius. Uma premonição. Se você entrar nesse banco, você vai morrer. — Foi só um sonho, Bel. — Ele tenta me acalmar. — Vinícius, eu tô te pedindo. Não, implorando… não vá pro banco. Volta pra casa, por favor. Com muita dificuldade, consigo convencê-lo a voltar, mas a espera até que ele retorne é desesperadora. Pulo de um canal


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para o outro tentando distrair a minha mente, até que vejo uma rua familiar no jornal local e passo a prestar atenção. As imagens são da cobertura — em tempo real — de uma tentativa de assalto. O banco onde pagamos nossas contas. O banco onde Vinícius estaria caso não tivesse conseguido convencê-lo a voltar para casa. Ele retorna bem a tempo de ver a comoção na TV e os gritos. As pessoas correm pela rua e até a jornalista se assusta. Alguns minutos depois, um novo boletim aparece. No meio da confusão, um refém — uma das pessoas que estava no banco quando os bandidos anunciaram o assalto — foi baleado e morreu na hora. A boca de Vinícius fica aberta, mas nenhum som sai dela. Agora, ele também tem certeza. Quando a noite chega, ainda estou muito abalada com o que aconteceu para receber clientes. Então, peço a Vinícius que ligue para àqueles que tinham horário marcado e os transfira para um outro dia. Ouço o barulho do pequeno sino no alto da porta principal e me arrependo de não a ter trancado antes. Provavelmente, algum dos clientes não foi avisado da remarcação de horário. Entro no salão de consultas e me deparo com uma figura vestida de preto dos pés à cabeça. Não sei quem ela é, mas algo me diz que não é uma cliente qualquer. — Em que posso ajudar? A mulher se vira e abre um sorriso. Sua expressão é terna e convidativa. Mesmo assim, um calafrio corre por minha espinha. Minha mente grita para me afastar dela, mas minhas pernas não reconhecem o comando. Me sinto como uma máquina defeituosa, incapaz de realizar qualquer ação por mais simples que seja. — Isabella… — ela diz, serpenteando em minha direção. Engulo seco, como um rato encurralado em uma jaula


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pequena. Ela sabe meu nome. Como ela sabe meu nome? — Finalmente nos conhecemos. Posso me sentar? Balanço a cabeça, ainda com os olhos grudados nela. Mesmo sentada, seu corpo ainda parece uma perfeita linha reta. Lutando contra minhas pernas trêmulas, também me sento. — Seu… seu nome? Os lábios vermelhos me oferecem um sorriso que faz o sangue congelar em minhas veias. Quem é essa mulher? — Tenho muitos nomes, mas nenhum que realmente importe. Olho para a porta que separa o salão de consultas da nossa sala de estar e não encontro nenhum vestígio de Vinícius. Ele já deve ter ido dormir. Estou sozinha com essa mulher misteriosa. Mas, quem, diabos, é ela? As palavras “o que” parecem completar essa frase como a peça que faltava no quebra-cabeças, mas me recuso a acreditar nessa possibilidade. Ela deve ser apenas uma pessoa supersticiosa, como tantas outras, que decidiu marcar uma consulta depois do quase-acidente de Henrique. Ou, então, uma jornalista de algum jornal sem muita importância buscando me desmascarar como uma farsante e estampar sua descoberta na primeira página. — Você já sabe quem sou — ela diz, destruindo toda a minha resolução anterior. — Não sei. — Tem certeza? — O que você quer? Dinheiro? Ela me encara com seus olhos escuros. — Dinheiro não me serve de nada, Isabella.


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— Então, me diga logo o que você quer, que não tenho tempo para esses joguinhos. — Nisso você está certa. — Concordo com a cabeça enquanto tento lembrar de como começar a respirar. — Você se colocou em uma posição muito complicada Isabella. Muito complicada. — O que eu fiz? — Você interrompeu o ciclo da morte. Duas vezes em apenas alguns dias. Ela balança a cabeça, desapontada. — Como você… sabe disso? — Eu sou a Morte, Isabella. Nenhum ser, planta ou átomo sequer deixa esse plano sem que eu saiba. — Isso é impossível. Isso não existe! Ela ri. — A morte não existe? O que você acha que aconteceu com sua mãe e sua avó, então? — Abro a boca para responder, mas ela continua. — E com seu pai? E com aquela sua amiguinha de infância que vivia doente? Como era mesmo o nome dela? Marina? — Não foi isso que eu quis dizer — digo, irritada com seu tom apático. — Eu sei muito bem que eles morreram. Todos eles. Mas, a morte não é uma… pessoa. A morte é uma… — Inevitabilidade? — ela completa — Não é isso que você sempre diz pra si mesma na tentativa de se acostumar com a ideia? Não foi isso que você disse para o seu irmão quando a mãe de vocês morreu? Quero dizer que ela está errada, mas não posso. Acredito que minhas exatas palavras foram “A morte é uma inevitabilidade, Vinícius. Não é preciso ficar triste só porque alguém morreu”. Mas, Vinícius não conhecia o significado de inevitabilidade e, no fim, tive que explicar a situação outras vezes até que ele realmente entendesse.


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Respiro fundo, me preparando para fazer a pergunta que sei que não deveria, mas que farei de qualquer forma. — Você veio por mim, então? Para me levar? Eu vou… escorregar no chão molhado do banheiro e bater a cabeça ou… tropeçar no tapete segurando uma tesoura e acabar me empalando contra o metal? — Ela apenas me olha e sorri, como se minhas angústias fossem uma forma de entretenimento pessoal. Algo se ascende dentro de mim e, finalmente, entendo o propósito de sua visita. Vinícius. — Meu irmão. Você veio por ele. — Eu esperei por ele no banco. — E quanto à outra pessoa que eu salvei? Ele não pode ir em seu lugar? — Cada qual em seu tempo, Isabella. Mas, na verdade, vim lhe fazer uma proposta. — Morte aproxima seu rosto do meu e, agora, iluminado pelas velas, percebo que seus olhos são negros. Nem mesmo a luz alaranjada consegue trazer à tona outros tons. Estou diante da mais absoluta escuridão. — Se você for capaz de adivinhar o meu futuro corretamente, Vinícius ficará a salvo. Caso contrário… — Eu consigo — respondo sem nem piscar. Não tenho outra opção. Embaralho as cartas e entrego em suas mãos. Morte escolhe cinco delas e ela mesma as arruma na formação de cruz. Sorrindo, ela toca a primeira carta com seus dedos alongados. Sem muita cerimonia desviro a carta. — “O Mago” — anuncio. — Você é uma… pessoa perspicaz e extremamente determinada. A sua capacidade de superar adversidades é seu maior atributo e é o que, eventualmente, te move. Morte sorri, parecendo satisfeita com minha análise sobre a carta e sobre ela. Viro a segunda carta e encontro “O


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Enforcado”. Percebo que ela aguarda por minha resposta, mas sou tomada por uma curiosidade quase mórbida de saber alguma coisa — qualquer coisa — sobre essa entidade tão misteriosa sentada à mesa comigo. — Você… essa é mesmo a sua forma? Uma mulher? Ela dá com os ombros. — Mulheres são responsáveis pela vida. Me parece justo que elas sejam responsáveis também pela morte. Não acha? — Não sei. Talvez. Acho que já colocam a culpa de coisas demais nos nossos ombros. Não precisamos de mais nenhuma. — Eu nunca usei a palavra culpa — ela se explica. — Culpa implica em alguma ação danosa. A morte é uma responsabilidade. Nada mais. Agora, me fale da outra carta. — Essa carta em si não é ruim, mas, nessa colocação, significa que suas ações, boas ou ruins, foram responsáveis por te trazer até aqui. E é um caminho sem volta. — Interessante. E o que mais? — “A Justiça”. Essa carta faz uma referência direta à anterior. Cada ação tem uma reação, e as suas foram determinantes para decidir o seu futuro. Morte bate as longas unhas translúcidas na madeira velha da minha mesa. — E isso é bom ou ruim? Pondero antes de dar minha resposta. A vida de Vinícius está em jogo. — Depende se você foi boa ou se foi má. — A Morte não escolhe lados, Isabella. Não sou boa nem má.


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— A quarta carta é “A Roda da Fortuna”. Essa carta faz referência às inconstâncias da vida. Nesse contexto, indica que você terá uma mudança de fortuna, mas é importante lembrar que ninguém tem controle sobre a sorte. Morte me encara e sinto a necessidade de desviar o olhar. Normalmente eu seria a pessoa que sempre faz contato visual, mas, de alguma forma, me parece desrespeitoso encará-la. E perigoso. Como um eclipse acontecendo no meio da sala de estar, mas você não tem óculos de proteção. — Posso perguntar uma coisa? — Morte apenas sorri, então considero sua resposta como sendo positiva. — Como você mata as pessoas? — Eu não mato ninguém, Isabella. Eu apenas… espero. Desde que a primeira criatura apareceu na Terra, eu já estava lá. Esperando. — Quem é responsável pelas mortes, então? — Insisto. — O Tempo. As circunstâncias. — E o tempo… também é uma mulher? — Tempo não tem forma. É impossível confinar os segundos enquanto passam. Tempo é imaterial. — E as circunstâncias? — continuo, ainda não satisfeita com suas respostas. Ela aponta o dedo em minha direção. — São vocês. Quando você decide ficar cinco minutos a mais na cama pela manhã ou pegar um táxi em vez do ônibus, você está criando circunstâncias que vão te garantir mais um dia na Terra ou vão te trazer até mim. Essa é a mágica do livre arbítrio, Isabella. Tudo que eu preciso fazer é esperar. Morte olha para a carta no centro da formação e, instintivamente, faço o mesmo. O olho semiaberto desenhado na parte


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traseira da carta parece me encarar. Engulo seco, imaginando o destino cruel de Vinícius caso ela decida que minha leitura não foi satisfatória. Faço menção de pegar a carta, mas Morte segura minha mão, me impedindo. Ela se levanta — juiz e carrasco — e me preparo para ouvir a sentença. Para minha surpresa, ela apanha a carta central e a observa. Um leve sorriso estampa seu rosto pálido, mas logo depois desaparece. Sinto que algo se esconde por trás de sua expressão imóvel, mas não ouso imaginar o que seja. — Ninguém escapa dos desígnios da Morte, Isabella. Nem mesmo eu. — Ela me devolve a carta, e a coloco no lugar ainda virada. — Você cumpriu com sua promessa, então, também cumprirei a minha. Durma em paz, Isabella. Seu irmão ainda tem muitos anos pela frente. Antes que eu possa dizer qualquer coisa, Morte se vira e vai embora. Não sei por quanto tempo mais fico imóvel, olhando para a porta fechada. Começo a guardar o deck quando lembro da última carta e a desviro. Vejo “O Diabo”. A ilustração na carta mostra um emaranhado de vigas e árvores que formam um caminho do qual não se pode sair, e é esse seu significado. Em essência, a carta indica que é impossível escapar do seu destino, não importa quanto você tente. No fim, fico sem saber qual é o destino da Morte — aquilo do qual nem ela pode escapar —, mas, talvez, isso não tenha importância. Certamente, não agora que Vinícius está dormindo como se nada tivesse acontecido e ela me garantiu que ele está a salvo. Lutando contra minhas pálpebras cansadas, continuo acordada. Não me sinto segura o bastante para dormir imersa na escuridão. Então, abro um livro qualquer e tento ler algumas passagens. Devo ter subestimado minha exaustão física, pois não demora e as páginas do livro desaparecem da minha


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vista. Só vejo o nada por trás das minhas pálpebras fechadas. Meu corpo começa a relaxar e mudo para uma posição mais confortável na cama. Ainda com os olhos fechados, mas sem força nenhuma para abri-los, sinto o ar ao meu redor ficar gelado. Os pelos do meu braço levantam como se comandados por uma força externa. Quero me cobrir com uma manta grossa para me proteger do frio, mas meu corpo não obedece. Sou um peso morto na cama, incapaz de me mover. Não preciso abrir os olhos para saber que ela está sentada ao meu lado. Me observando. Esperando. A onda de ar frio fica ainda mais próxima de mim. Sinto como se solidificasse o ar dentro dos meus pulmões e, por um instante, não consigo respirar. Me desespero, mas uma mão afaga meus cachos e sou tomada por uma reconfortante certeza de que tudo ficará bem. Não há nada a temer. Vinícius está a salvo, e eu também. Posso dormir em paz. Seus lábios gelados nos meus são a última coisa que sinto. Nascida no interior do Ceará, Bruna DeRose, é uma roteirista que gosta de escrever em prosa nas horas vagas. É bacharel em Audiovisual pela Universidade de Fortaleza (Unifor), e também atua como produtora de conteúdo no coletivo de arte e cultura “Escambau”, em Fortaleza(CE).


Continue Morto, Oliver Delano Nogueira Amaral

O automóvel balançava pela estrada acidentada há horas, fazendo parecer que nunca chegaria. Pelo barulho que o carro fazia, a impressão é de que se despedaçaria a qualquer momento, mas ainda era possível ouvir o som do vento. Não lembrava a última vez que havia visto uma casa. Para alguém criado na cidade, isso era um grande incômodo. — Então, você foi a única que teve coragem de aceitar trabalhar aqui – disse o motorista, apertando os olhos para ver Alice. — Eu preciso viver — ela disse. — E o salário é bom. — Eu imagino que sim — falou o senhor grisalho, rindo. — Mas, aqui não é exatamente o melhor lugar para você sobreviver. Aquela gargalhada cansada não merecia retribuição, pensou Alice. Não naquele dia. Ela não precisava daquilo. Alice ainda trazia consigo o jornal, por insistência da mãe. “Leia, releia e leia de novo”, dissera ela. Na manchete, nada de novo: a guerra não fazia vencedores, e ambos os lados acumulavam muitas perdas. Continuar em casa não era uma opção: o ambiente religioso-militar, as normas e dogmas estúpidos... Precisava sair de sua zona de não-conforto e ganhar o mundo. Precisava de liberdade.


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Na estrada, vez ou outra, caminhões transitavam carregando soldados feridos. A guerra, infelizmente, chegara nas colinas mais ao norte. Eram muitos e mal cabiam nos veículos: vinham amontoados, pendurados, mutilados... Em alguns, a expressão era até mais assustadora que um ferimento grave. “Onde eu fui me meter”, pensou Alice, sentindo as mãos gelarem. Mais à frente estava uma mansão sobre uma grande colina. Na grande área gramada diante da casa jaziam várias pessoas, a maioria crianças. Todos observavam de longe o regresso dos soldados que, aparentemente, não tinham permissão para visitar o orfanato. Para os ingênuos, parecia um desfile militar de baixo orçamento; para os adultos, o medo da guerra batia à porta. Quando o carro finalmente conseguiu subir a colina, Alice pôde contemplar os portões cobertos por trepadeiras que quase escondiam o nome da instituição: Orfanato Colinas Primavera.

*** — Tu ficarás na ala de crianças especiais — disse a diretora, tossindo muito. Ela estava sentada em sua enorme cadeira de couro – Garotas novas são as que têm saúde para cuidar daqueles monstrinhos, não é mesmo? Bem, boa sorte. Já sabes onde será o teu quarto? O orfanato era tão longe da civilização que parecia estar uns cinquenta anos atrasado do resto do mundo. As roupas da diretora, por exemplo, cheias de babados e detalhes em crochê branco... mesmo assim, o fardamento que a senhora trazia dobrado no braço conseguia ser ainda mais bizarro. — Eu posso encontrar, não se preocupe, senhora Diretora — respondeu Alice, percebendo que havia se distraído olhando para o fardamento da mulher.


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— Ótimo — disse a diretora com um sorriso amarelado. — Agora, vá, temos muito que fazer. Ao passar pelos vários corredores, finalmente avistou o informativo sobre a ala de crianças especiais. Alice podia escutar os gritos de longe, vozes de crianças, conversas ininteligíveis. Era isolado dos outros pavilhões do orfanato. No meio da cacofonia, o único nome que ela conseguia entender era “Oliver”. Mas, ela não via nenhum homem por ali. — Oba, finalmente ela chegou! – disse uma mulher de meia-idade que tinha os cabelos negros encaracolados puxados pela criança que estava em seu colo – Crianças, deem as boas-vindas para Alice! Ela vai ajudar a mim e Rosana a cuidar de vocês. — Bem-vinda! – disse um garoto de claros cabelos cacheados – Meu nome é Oliver, eu tenho sete anos! Alice não respondeu. Todos pareciam estar vestidos como se fossem parte da exposição de um museu. As meninas se vestiam como as enfermeiras, usavam outras cores além de bege; os meninos pareciam pequenos adultos. As roupas das crianças eram velhas, algumas mais gastas, mas bem limpas. As outras crianças chegaram a fitar Alice, mas logo ignoraram sua presença. Naquele momento, era melhor assim. — Boa sorte, novata — disse Rosana, a outra enfermeira, sentada em uma cadeira próxima à janela, fumando. – Ou você pode desistir. Ainda dá tempo. Acho que ela não deveria estar fumando no horário de trabalho, pensou Alice. — Deixe de besteiras, Rosana — falou a outra que a havia recebido. — Seja bem-vinda, minha filha. Meu nome é Milena. Eu sou Alice. – disse, observando as crianças correndo e gritando pelo salão. Pareciam macacos.


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— Você é da cidade? — perguntou Rosana enquanto batia a cinza na janela. — Sim — disse Alice, fazendo cabo de guerra com um menino que puxava sua mala. — Não fique se achando melhor do que nós — disse Rosana, mas não parecia segura do que dizia. Ser da cidade parecia ser importante ali.

*** A maioria das crianças tinha necessidades que pareciam ir além das capacidades de Alice. Afinal, ela não se tornara enfermeira após fracassar várias vezes ao tentar entrar na medicina? Ao longo da primeira semana, repetia dezenas de vezes para si mesma ao longo dos dias: “lembre-se do bom salário”. Para a sua sorte, Oliver, que parecia ser bem normal, ajudava bastante nos cuidados com os mais difíceis: crianças hiperativas, energéticas e destruidoras, que poderiam tocar fogo na ala inteira caso passassem alguns segundos sem supervisão. Todas as tardes, por volta das quinze horas, havia a hora de paz: Oliver contava mais uma de suas histórias. — Eu acho estranho que vocês não comentem sobre a guerra — comentou Alice, observando Oliver entreter as crianças. Os outros meninos nem piscavam — Estamos tão perto da... vocês sabem. Eu não consigo dormir, cada ronco ou estouro que dá lá fora eu já penso que é um bombardeio, ou... — Você se acostuma — respondeu Rosana, escondendo o cigarro quando a diretora atravessou o salão. — Além disso, não é tão perto assim. Como assim não era tão perto? Se ela olhasse da janela, podia ver os caminhões passando, carregados de armas ou soldados feridos, ou corpos...


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— Então... De quanto em quanto tempo vocês voltam para casa? — perguntou Alice, tentando fazer o tempo passar mais depressa — Todos que trabalham nesse fim de mundo moram aqui? — A menos que tu tenhas um ótimo automóvel, querida, é começar a pensar neste “fim de mundo” como a tua casa — disse Rosana, soltando a fumaça pela boca. — Para trabalhar nesse inferno, das duas uma: ou você não tem família, ou você não se importa com ela. Alice ponderou por alguns segundos em qual das opções ela se encaixaria. Talvez, na segunda. Mas não, não é que ela não se importasse... Era mais ressentimento, ou talvez a sensação de não fazer parte daquele lugar, de não comungar com os objetivos daquelas pessoas. E, no fim de tudo, ela só queria saber quem ela era e onde se encaixaria. — Como você veio parar aqui? – perguntou Alice — E, mais importante ainda, por quê? Rosana deu um risinho, como se considerasse que aquela fosse uma pergunta estúpida. — Eu sei que eles pagam bem — continuou Alice, respondendo à sua própria pergunta. — Mas, a Milena, por exemplo... ela parece gostar de... — A Milena não conta — respondeu Rosana, voltando a esconder o cigarro, com medo que a diretora a visse. — Ela realmente acha que pode mudar o mundo cuidando dessas pestes. Mesmo sem tanto tempo de convívio, ela podia perceber, observando Milena, que ela era realmente diferente. Parecia conhecer cada criança, saber quando mentiam, o que precisavam, mesmo quando não conseguiam falar. E Oliver? Ele era a criança perfeita. Ajudava em tudo e com todos, sempre sorridente, sempre atencioso...


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Definitivamente, Alice não entendia aquele lugar.

*** O dia que mudaria a vida de todos havia chegado. Quando Alice entrou em sua ala, logo após o café da manhã, observou que o dia começara mais monótono que o habitual. Não apenas pelo céu cinzento e pesado. Não. Havia algo mais. Milena estava sentada em uma cadeira de balanço, as crianças estavam todas dormindo, e a luz do sol se recusava a entrar pelas janelas. — Bom dia, querida — disse Milena. — Espero que tenhas dormido bem. — Bom dia — respondeu Alice. — Está tudo bem? —Não, nada bem — respondeu Rosana saindo do banheiro, os olhos vermelhos e inchados. — Nós fomos enganadas! — Desculpe? — perguntou Alice, confusa. — Não fomos enganadas, Rosana — respondeu Milena, olhando para o chão, concentrada, a voz estava vacilante. — A diretora não teve escolha. Se os boatos escapassem... — Nós trabalhamos aqui! — disse Rosana, talvez um pouco mais alto do que deveria — Eles deviam ter nos contado! — Contado o quê? — Alice voltou a perguntar. — Ela tinha medo que a informação escapasse, Rosana... ela não podia correr o risco de assustar as crianças... — disse Milena, com a voz fanha. — Mesmo assim, não podemos ser ... — Pessoal! — disse Alice, interrompendo Rosana, quando viu Oliver parado em frente à porta que dava para o corredor


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principal. O garoto estava com uma pequena mala ao seu lado e, aparentemente, vestia a roupa que usava nas festas. — Vocês precisam falar mais baixo, ou vão acabar acordando os outros — disse Oliver. Sua voz estava rouca, dando à frase que deveria ter soado sensata e madura um tom de ingenuidade e pureza. Alice sentiu vontade de rir, mas só então entendeu o que estava acontecendo. Rosana apanhou uma caixa de cigarros numa gaveta e saiu. Milena abriu os braços e Oliver veio caminhando em sua direção. Parecia que até mesmo a dura e seca Rosana fora conquistada pelo pequeno, e não conseguiria ficar ali. — Prometa que vai ser o nosso bom garoto — disse Milena, abraçando-o com força, sem conseguir conter as lágrimas. — Não se esqueça de estudar, escovar os dentes e fazer a cama. O garoto assentiu com a cabeça. — Vamos Oliver, eles chegaram. – Alice virou assustada quando ouviu a voz da diretora, ela estava esperando-o na porta. — Não podemos deixá-los esperando.

*** Oliver seguiu a diretora ainda segurando a mão de Milena, que tentava limpar o rosto com a outra mão. Alice acompanhou, seguindo logo atrás, a despedida travando sua garganta. Naquela cena simples havia mais amor do que ela jamais presenciara em toda sua vida. Não, Milena não era uma “anormal”. Ela amava verdadeiramente cada uma daquelas crianças. De todas as crianças bonitas e saudáveis deste orfanato, eles tinham que adotar justo o único que se importava com os


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outros, os diferentes, os que ninguém mais amava? Sim, isso era egoísta, pensou Alice, mas ela não conseguia desfazer o sabor de injustiça que estava em sua boca. Todos os funcionários esperavam, enfileirados, no jardim da frente: cozinheiros, a equipe de limpeza, pedagogas, enfermeiras e outros que Alice nem conhecia ainda. Os novos pais do garoto o esperavam junto ao portão enferrujado, perto de um carro enorme e vermelho. Oliver caminhava devagar, vez por outra olhando para trás. Quando ele finalmente acenou, não era apenas Milena quem estava chorando.

*** A partir desse dia, a ala onde Alice trabalhava virou um caos. Duas enfermeiras e uma pedagoga foram emprestadas de outras alas para auxiliar Alice, Milena e Rosana, mas não fez muita diferença. No início, dizer que Oliver voltaria logo ajudou a acalmar as crianças, mas não demorou para que o tumulto reinasse: gritos, berros, choro e secreções. Muitos dos meninos começaram a urinar e defecar sem controle, e a hora de dormir era a mais complicada do dia. Não demorou para que as crianças fossem amarradas e começassem a apanhar. O orfanato havia se transformado num hospício. Milena se afastou da ala por uma semana, sem conseguir olhar para o que acontecia. Até Rosana, que tinha fama de insensível, sentia-se mal com o tratamento aplicado — embora não parasse de reclamar do afastamento de Milena. — Ela pensa que fica mais fácil sem ela aqui, aquela egoísta — dizia, sem saber disfarçar que sentia falta da parceira. Alguns dias seguindo as novas metodologias, porém,


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criaram uma rotina. Logo, as crianças passaram a reagir às ameaças e pancadas, e uma nova ordem começou a se formar. — Você está ficando mole igual a Milena — disse uma das enfermeiras emprestadas à ala quando Alice negou-se a amarrar uma das crianças. — Se continuar assim, elas podem voltar a ser como era antes. Elas não sabiam, mas ser “mole com a Milena” era um elogio. Tinha orgulho de não ter praticado metade das barbaridades que aconteciam ali, mas ainda precisava mostrar serviço. Não tinha como ficar de mãos limpas o tempo todo. Aos poucos, com o passar dos dias, a ala das crianças especiais voltou a ter apenas Rosana, Alice, Milena e as crianças. Quando uma delas começava com algum comportamento fora do normal, bastava apontar para os quartinhos de isolamento, ou para as cordas, e elas se aquietavam. Mas, aquela rotina incomodava as três enfermeiras e feria as crianças. Não havia mais alegria ali, apenas um grupo de coisas semivivas que pareciam crianças. — Eu me sinto como se fosse um monstro — comentou Rosana, que agora fumava o dobro de cigarros todo dia. — Nós somos – respondeu Milena, trocando a roupa de uma criança. Ninguém disse mais nada naquela tarde. Alice, sem conseguir aguentar, entrou num dos quartinhos de isolamento e chorou.

*** Os dias seguiam monótonos e repetitivos. A vida de Alice tornou-se menos interessante que um comercial que passava durante as madrugadas.


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Ah, e como ela sentia falta de uma TV durante as noites de insônia... Ali no orfanato, tudo o que podia fazer era perambular sem rumo pelos corredores e alas. No início, fora um pouco assustador, pois era bastante escuro, havia o barulho das corujas; mas nas noites de lua cheia, até que tudo ficava bonito. E como ela esperava por esses raros momentos. Quando finalmente uma noite de lua cheia chegou, Alice se sentiu confortável para andar pelo gramado e ser abraçada pela luz mórbida e esbranquiçada do luar. Estava frio. O cheiro forte de terra molhada e folhas mortas enchia seus pulmões e fazia com que ela se sentisse menos tensa. Alice, então, deitou na grama, abriu os braços e encheu os olhos de estrelas. Não me lembro de ver isso na cidade grande, pensou Alice, sorrindo. Parece coisa de cinema. Fechou os olhos e se concentrou na respiração, na umidade do orvalho, no pinicar da grama em sua pele… E então, o caos começou. Alice sentou, assustada com o som de uma explosão abafada. Olhou para leste e viu a enorme mancha alaranjada crescer no céu, criando uma espessa cortina de fumaça e fogo. Podia ver os aviões passando, um zunido quase imperceptível, luzes distantes e velozes. Com os lábios e as mãos trêmulos, muda, ficou de pé, mas não conseguiu sair do lugar. A coluna de chamas crescia à medida que mais e mais aviões iam passando. Alice não percebeu quando começou a chorar, mas lembrou de cada um dos soldados que passavam pelas estradas e das frases de confiança dos funcionários do orfanato: “a guerra não chegará aqui”. Finalmente, conseguiu se mover e correu para o seu quarto, deixando os sapatos


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para trás. A guerra é real, pensou, escondendo-se embaixo da cama, rezando até adormecer de exaustão.

*** Alice acordou com a batida de uma porta. Lembrou de uma frase que o pai dizia: “Não há ateus na hora da morte”, e saiu debaixo de seu esconderijo. Queria poder alertar a todos do perigo, mas quando abriu a porta e viu Milena aos prantos, voltou a ficar sem reação. Chegou a pensar que o que vira na noite passada fosse um sonho, mas a manchete no jornal levemente úmido nas mãos da amiga lhe roubou as esperanças. PEDRA VERMELHA É BOMBARDEADA NA MADRUGADA DE HOJE Abraçou a amiga e, sem saber o porquê, murmurou frases de consolo, apesar de nunca ter sido muito boa nisso. Alice sentiu um grande alívio pela guerra não ter chegado ao orfanato, mas também se sentia mal por seu pensamento egoísta. Uma cidade inteira ainda tinha sido destruída e várias pessoas morreram. O que Milena fez comigo?, pensou. Todos que ficam perto dela tornavam-se mais humanos? — Oliver – disse Milena com esforço entre o intervalo de soluços. — Oliver? — Ele estava morando lá... E então ambas desmoronaram.

*** A ordem da diretoria era que ninguém tocasse no assunto. Afinal, o orfanato não era tão diferente de sua casa.


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— Milena não está bem, não vai conseguir ajudar vocês hoje — disse a diretora, durante a visita à ala dos “especiais”. — Não precisamos de ajuda — disse Alice, sem pensar direito. — Nós damos conta de nossas crianças. Sou uma anormal, pensou. Estava ali toda orgulhosa, mas apaixonara-se pelas crianças. Eles pulavam, gritavam, brigavam, mas o que antes era motivo de tensão, agora a fazia sorrir. Apesar disso, o regime do medo ainda imperava. Rosana dizia que era melhor daquela forma, mas Alice sabia que ela estava mentindo, pois fazia de tudo para evitar usar os “comandos”. Os dias seguiam iguais. Milena continuava triste e desestimulada, Rosana mantinha sua rabugice e Alice continuava sendo Alice. Por trás disso, uma sombra negra e densa pesava sobre o orfanato e, às vezes, para melhorar o astral, Alice se pegava pensando no que Milena faria ou diria se estivesse normal. No meio desse longo comercial de madrugada que a vida havia se tornado, outra explosão aconteceu. Alice mal teve tempo de tomar café da manhã. As auxiliares de corredor alertaram-na diversas vezes que ela precisava ir para a sua ala. Quando chegou, viu as crianças pulando em suas camas, diálogos inteligíveis aos berros por todos os lugares. Rosana chegou quase que em seu encalço. — Mas que porra é essa?! — Ouviu a amiga dizer, mas com um estranho sorriso. Um travesseiro explodiu em penas, os berros de alegria eram insuportáveis. — Vocês precisam de ajuda aí? — perguntaram as auxiliares, com cordas nas mãos.


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— Não, obrigada — disse Rosana, fechando a porta num estouro de violência. Demorou até que as três amigas fizessem com que a ordem fosse estabelecida, pois não queriam usar os Comandos da Violência. — Certo, Paulo, quem começou a bagunça? — perguntou Milena enquanto ela e Alice davam banho no garoto. Paulo tinha quatorze anos, mas era como se tivesse cinco. Mas, mesmo sendo ele um dos que melhor sabia falar, respondeu apenas com um sorriso. Depois de muita insistência, quando estavam ajudando o garoto a vestir-se, Alice perdeu a paciência. — Paulo, você quer uma tia boa ou uma tia má? — perguntou apontando para uma corda distante, arrependeu-se no mesmo instante, questionou-se se era necessário. — Alice! — disse Milena, abraçando a criança. Alice respirou fundo, fechando os olhos de vergonha. — Ah, gente, me desc... — Oliver — disse o garoto, sorrindo. Alice sentiu um frio na espinha quando fitou rapidamente Milena, que a olhava boquiaberta. — Que história é essa, Paulo?! — disse Milena, afastando o garoto, com os olhos arregalados — Conte essa história direito! O garoto apenas riu, levando os dedos a boca. — Paulo... — tentou dizer Milena, levantando a mão, mas Alice bateu em seu braço, impedindo a amiga de fazer o gesto. — Certo, vamos nos acalmar.


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— Oliver — disse o menino, encolhendo-se de medo diante das enfermeiras. — Oliver conta histórias... Nenhuma delas teve coragem de fazer mais perguntas, tampouco comentar algo com Rosana. Para o alívio das amigas, depois de um dia tão cansativo, as crianças não deram tanto trabalho para ir à cama. — Alice, não pense muito nisso — dissera Milena antes de ir para o quarto. — Eles só... sentem saudade. Alice queria seguir o conselho de Milena, mas a insônia não lhe dava paz. E ela nem poderia dar uma volta, pois era noite de lua nova. Oliver conta histórias. — Por favor, agora não! — sussurrou – Me deixe dormir! E então seu pedido de paz foi por água abaixo quando ela ouviu as risadinhas que vinham do corredor.

*** Alice caiu de joelhos ao tentar sair da cama com um pulo. Ainda ajoelhada, moveu-se até a porta e a trancou. Buscou na semiescuridão do quarto algo com que pudesse se defender, mas, tão repentinamente como haviam começado, as risadas cessaram. Devo estar alucinando de sono, pensou, pondo a mão no peito e sorrindo. É isso, é só uma alucina... As risadas começaram de novo. — Ah, não... — murmurou. Agarrou um lampião e pensou em acendê-lo, mas aquilo iria chamar a atenção de quem estivesse lá fora. Sentiu, no peso, a segurança da arma improvisada, e aguardou ao lado da porta.


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E então, aguardou um pouco mais. Estava cansada. Queria sentar, mas aquilo a deixaria numa posição vulnerável… Então, ela percebeu que o quarto não estava mais tão escuro. Demorou o dobro de tempo para vestir o uniforme, pois o sono chegara com força. Chegou a cochilar sentada na cama, enquanto vestia a meia-calça. Por muito pouco não perdeu o horário para o café da manhã, mas antes de ir a sua ala, Alice se dirigiu até a diretoria. — Gostaria de fazer uma reclamação. Ontem à noite, de madrugada, havia vândalos correndo pelos corredores — mentiu Alice, fitando a diretora nos olhos, sentada em uma cadeira que, no passado, parecia ser mais confortável. – Onde estavam os seguranças daqui? — Acalme-se, Alice, tenho certeza de que deve haver algum mal-entendido. — Tenho certeza que não. — Pois, vamos investigar a sua queixa — disse a diretora. Não demorou muito e o motorista que trouxera Alice até o orfanato entrou na sala, junto a ele havia dois homens bem jovens. — Este é o senhor Bartenes. Ele nos auxilia com pequenos afazeres, além de ser o responsável pela segurança deste nosso orfanato. — Srta. Alice — disse o senhor, tirando seu chapéu. – Em que posso servi-la? — Ontem à noite, havia vândalos pelos corredores. Eles estavam perto do meu quarto, gostaria de saber o que tem a dizer a respeito.


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Percebeu que estava sendo tola tarde demais. Puxou todo o ar que pôde para dentro dos pulmões quando percebeu o sobrenome no crachá que havia no peito do idoso e, então, analisou o quão parecido os dois jovens ao seu lado eram com ele e com a diretora. Tudo em família, não é mesmo? — ... entende, Srta. Alice? – disse o homem mais velho. — Sim — respondeu, com raiva por não ter prestado atenção ao que disseram antes. — Não tens porque te preocupar – respondeu a diretora. – Está tudo bem. Às vezes, essas coisas acontecem. — Claro, Sr. e Sra. Floreto – disse Alice, fitando a diretora com um sorriso nada natural. – Peço desculpas e agradeço pelos esclarecimentos. Tenham um bom dia. Correu até a ala das crianças especiais, sentindo o rosto quente e a respiração ofegante, mas não pelo cansaço. Quando entrou na sala, viu que a maioria das crianças brincava com uma energia que não via há muito tempo. — Tu estás parecendo uma morta-viva. – disse Rosana, acendendo um cigarro. — Não tem graça, Rosana. Sinceramente... — respondeu Alice, respirando ofegante. — O quê? — disse Rosana, confusa – Olha o estado do seu cabelo e essas olhei... — Milena — disse Alice para a colega, que observava as crianças brincando. —Precisamos conversar. — Aconteceu alguma coisa? — disse Milena, aflita. — Precisamos conversar com Paulo — disse Alice, mais alto do que gostaria.


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— Certo, o que está acontecendo, hein? Vocês duas estão de segredinhos agora, é? — disse Rosana, após uma tragada. — Prestem atenção como falam comigo, moças! — disse Milena, pondo-se de pé – As crianças estão olhando! — Quem de vocês correu pelo meu quarto ontem à noite? — disse Alice, dirigindo-se para as crianças. — O quê?! — disse Milena. Alice correu até uma das cordas penduradas e, segurando-a como se fosse um chicote, gritou: — Quem de vocês? Quem? Quem? As crianças recuaram. Algumas começaram a chorar. — O que é isso, Alice? — disse Milena, pulando sobre a outra. — Controle-se! — Ei, vocês duas! — disse Rosana, separando-as — Parem com isso! Alice, como se despertasse, colocou a mão na cabeça e começou a chorar. — Vá para o seu quarto e recomponha-se, menina — disse Milena, apontando para Alice. — Eu só queria... — Vá agora para a merda do seu quarto, Alice! Não duvide da fúria de uma pessoa gentil, lembrou Alice. Quando olhou para Rosana, encontrou a amiga boquiaberta, o cigarro caído no chão. Saiu do salão em meio a um silêncio anormal, e informou aos seus superiores que estava indisposta, as olheiras, a feição cansada e o cabelo bagunçado confirmando a história. É claro que eles entendiam, não era possível cuidar de uma ala tão problemática e não sentir nada.


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— Vá para o seu quarto, filha, descanse — disse a supervisora. No meio da confusão e da exaustão, Alice adormeceu.

*** Alice acordou com batidas na porta. — Só um instante — disse, levantando da cama. Era Rosana. A enfermeira parecia exausta. — Precisamos conversar, Alice. Você dormiu o dia inteiro. — Não tenho o que falar. — Mas, eu tenho! — disse Rosana, subindo o tom de voz — O que foi aquilo? — O quê? — Por que você está estranha assim? Você nunca maltratou os meninos! — Você não sabe o que eu vi! — Então, fala! Alice ficou em silêncio por alguns segundos. — Paulo disse que Oliver conta histórias — disse Alice, tentando parecer calma. — Como você explica que essas crianças melhoraram o humor da noite para o dia, e passaram a madrugada inteira rindo no corredor? — Você acha que... elas viram o Oliver? Você viu o Oliver? — Eu não sei! — Eu pensei que você fosse ateia, Alice! — Deus não cabe nessa conversa!


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— Por quê não? — Porque Ele não existe! — Se Deus não existe, como você pode afirmar que viu um fantasma? — Não fui eu quem falei sobre o Oliver, Rosana! Eles falaram! Eles que foram fazer barulho no meu quarto! — Eles ficam trancados aqui, Alice, e você sabe disso. — Eles saíram! — Como? — Eu não sei! — Eles não conseguem vestir uma camisa sozinhos, e você acredita que eles fugiram de uma ala trancada? Alice sentou na cama e levou a mão à cabeça. Rosana fez uma pausa antes de continuar. — Só não faça nenhuma burrice. Nós todos gostamos de você. Não queremos que seja expulsa daqui. — Então, ela jogou um maço de cigarros na cama. — E tente relaxar. Rosana saiu do quarto, batendo a porta atrás de si.

*** Após o jantar, Alice escondeu nas roupas uma faca de cozinha e subiu para seu quarto. Quando todas as luzes se apagaram, acendeu o lampião e saiu. Vamos descobrir que merda está acontecendo. Estava frio, trajava a parte superior da farda sobre o pijama de tecido fino. Enquanto andava pelos corredores, pensava nas desculpas que daria caso fosse descoberta.


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Andou por todos os corredores com cuidado, como se fosse uma espiã, ou uma ladra. Tudo a assustava: o vento forte que soprava fazendo assovios entre os corredores, a batida de janelas abertas e os estalos estranhos do casarão. Fosse um dia comum, nada daquilo a assustaria. Demorou muito até que checasse todas as alas, todos os corredores. Chegou, finalmente, à ala das crianças “especiais”. Aproximou-se da maçaneta, respirou fundo e girou o trinco. Trancada. Forçou a porta mais algumas vezes, mas parou quando percebeu que estava fazendo muito barulho. Não sabia se sentia alívio, tranquilidade ou felicidade. Fiz papel de idiota, pensou. Elas não tinham como descer por fora estando no terceiro andar, e estava mesmo tudo trancado. Estava ficando louca.

*** Quando trancou a porta de seu quarto atrás de si, ouviu, novamente, as risadas da outra noite. — Não, não, não... Ela deixou cair o lampião. Agarrou o cabo da faca com força. Abandonou as pantufas. Mesmo de meias, sentiu o chão gélido, tão frio quanto suas mãos. Apanhou novamente o lampião e caminhou sorrateiramente em direção ao dormitório que acabara de visitar, mas os barulhos agora vinham do outro lado. Deu meia volta e, quando dobrou o corredor, viu que uma das cordas usadas


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para amarrar as crianças jazia sobre o chão. Percebendo que estava respirando pela boca, esperou alguns momentos até que finalmente se aproximou do objeto de tortura. Os olhos lacrimejavam, não teve coragem de tocar na corda. Os risos continuavam vindo do próximo corredor. Quando chegou mais perto da origem do barulho, viu mais cordas, e palmatórias de ferro, alicates e outras ferramentas espalhadas pelo chão. Não me machuque. Era a voz de Oliver! Tentou respirar e não conseguiu. A faca caiu de sua mão com um barulho seco de metal quando ela viu uma sombra de criança no fim do corredor. Seu ceticismo tinha perdido todas as forças. Pela fraca luz do luar, ela pôde contemplar os traços suaves de um menino loiro. Não percebeu quando começou a caminhar, nem quando começou a correr. Ela nem sabia porque estava seguindo o garoto. Mas, tudo aquilo em que acreditava, ou que deixara de acreditar, dependia daquele momento. Quando chegou à outra esquina, viu o garoto parado como uma estátua. As mãos de Oliver agarravam a ponta de uma toalha que arrastava no chão, puxando a velha caixa de brinquedos. Alice se aproximou e, dentro da caixa, viu as ferramentas que eram usadas para disciplinar as crianças. — O que está fazendo, Oliver? — sussurrou Alice. — Eu vou sumir com o Medo — ele disse. — Mas, Oliver... você morreu! — Eu morri?


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Alice se aproximou devagar e tocou os cabelos do menino. Sujos, cheios de cinza, mas ainda macios. — Eu consigo sentir sua mão, tia. Você também está morta? — Eu espero que não, Oliver. Som de passos no corredor. Oliver levou o dedo indicador aos lábios e puxou Alice pelo seu vestido. Ela o seguiu, iluminando o caminho com o lampião. Chegando a uma sala próxima à cozinha, Oliver revelou uma passagem de ventilação atrás de um portãozinho de ferro. Alice, com um pouco de esforço, poderia entrar na tubulação. Assim que começou a se abaixar, viu um dos filhos da diretora passar pelos corredores. O homem levou uma das mãos a boca e deu um bocejo alto. Apesar de estar usando um uniforme que lembrava o do exército, tudo nele indicava que estava dormindo muito bem. Desgraçado, pensou Alice. Ela entrou na tubulação com Oliver e, graças às meias, não fez tanto barulho. O garoto colocou a grande no lugar com bastante perícia. Alice acendeu o lampião novamente, mas deixou-o com fogo baixo. — Como sobreviveu ao ataque em Pedra Vermelha? — perguntou Alice, após um longo silêncio olhando o garoto — Seus novos pais eram de lá, certo? — Sim... — Então? — Eu corri. — Correu? É isso?! — Acho que sim.


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— E voltou pra cá? — Pra onde mais eu iria? Alice não sabia como responder. — As pessoas que você ama, o local que você tanto gosta... ninguém é muito normal por aqui. — Eu sei — disse Oliver, com um sorriso terno. — Não, Oliver. É difícil dizer, mas... São pessoas doentes. — Doentes? — Sim, eles têm problemas para pensar e tem grande dificuldade de fazer as coisas certas. — Igual aos homens de farda? — Homens de farda? Os soldados? — Sim. — Não, eles não estão doentes. As pessoas que ficam lá fora são pessoas normais, aqui nós cuidamos das pessoas doentes. — Acho que você está errada. — Oliver, eu sei o que estou falando. — Eu fui lá fora e vi o que os soldados fazem. Alice tentou dizer algo, mas não conseguiu. — Eu vi o que eles fazem, eu vi... — o garoto segurou o choro — Eles, sim, têm dificuldades para fazer o que é certo, Senhora Alice. Eles que não estão pensando direito. — Oliver... — Se lá fora estão as pessoas normais, eu prefiro ficar aqui. — O garoto fechou o punho. — Algo está muito errado no mundo das pessoas normais.


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Alice o abraçou e eles começaram a chorar. Oliver estava magro e tinha arranhões por todo o corpo. “Somos especiais”, repetia o garoto, sussurrando “Sou especial também, quero ser especial também, nunca fiz mal a ninguém.” A jovem enfermeira não sabia o que dizer, apenas o abraçava com mais força. Depois de algum tempo, ele parou de sussurrar. — Senhora Alice? Eles estão vindo... — Quem, Oliver? Quem está vindo? Quando percebeu o assovio, era tarde demais. Logo, um barulho infernal tomou conta de tudo, e Alice, num reflexo, se jogou no chão abraçada a Oliver. O chão tremia e as explosões ficaram ainda mais fortes, tão intensas que Alice desmaiou.

*** — Eles nos encontraram tempos depois, mas não sei dizer quanto tempo — disse Oliver, ajeitando a gravata torta. – Eles não eram do nosso exército. Estavam caçando os sobreviventes e... matando eles. — Deve ter sido horrível. — Sim... No meio do silêncio depois das explosões, a gente podia ouvir alguns tiros e gritos. Na época, eu não sabia que era judeu, mas... – Oliver deu os ombros. – Eu não estaria aqui se tivessem me pegado. — Você se escondeu bem — disse o entrevistador. — Para uma criança, fugir de dois grandes bombardeios... — Minha mãe que observava os guardas. Ela colocava parte do corpo sobre mim, como uma armadura, e sempre que podia dizia baixinho em meu ouvido: “Continue morto, Oliver. Não se mexa. Continue morto.”


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— Quantas horas ficou “morto”? —Eu não sei... Mas, para uma criança, com certeza, foram muitas eternidades. Quando eles foram embora nós fugimos para a floresta e, depois de alguns dias de caminhada, eu e minha mãe encontramos alguns soldados aliados. Só então ficamos sabendo que havia restado poucos de nós. — Alice, com certeza, foi uma mulher de fibra, uma inspiração para muitos. — Sim. — Senhoras e senhores, nós conversamos aqui com o Doutor em Psicanálise Infantil, Oliver Nunes, o criador do Instituto Três Irmãs para Crianças Especiais — disse o apresentador, e a plateia lamentou em coro. — Eu sei, eu sei. Aqui está o seu sétimo livro. Desta vez, uma autobiografia do doutor sobre os dias em que teve que sobreviver com sua mãe em plena Segunda Guerra Mundial. Muito obrigado pela audiência e por sua paciência! Até a próxima! Delano Nogueira Amaral, Cursa Mestrado em Geografia (UECE), Licenciatura em Geografia pela UFC e é Bacharel pela UECE na mesma área. É colecionador de cursos de áudio visual, fotografia, cinema e roteiro por toda Fortaleza e um amamente da sétima Arte. Produz críticas de cinema pelo Blog Quarto Ato e Callango Nerd.; Palestrante sobre temáticas cinematográfica. Nos tempos livres, participa de produções no Coletivo Chá - Clube de Histórias Aleatórias - grupo o qual ele é um dos fundadores.



É Hora do Show Kelliany Évelin

Amanheceu... abri lentamente os olhos e um bocejo. Sentei na cama e dei uma alongada nos braços, esticando-os bem. Deitei novamente e fiquei olhando para as telhas do quarto. Viajei, procurando colocar minhas ideias no lugar para me manter calma, pois aquele dia me reservava acontecimentos que ficariam na história. Ainda deitada, procurei o celular para ver a hora, e se havia algum recado. Não tinha mensagens. Queria continuar sem fazer nada! Pulei da cama. Em segundos já estava de pé. Escorreguei no tapete, quase bati a cabeça na penteadeira que ficava perto da cabeceira. Se tivesse me machucado, iria com um galo enorme no meio da testa. Saí do quarto rindo do que havia acabado de acontecer, fui até o banheiro escovar os dentes. E, com alguns passos, cheguei na cozinha para preparar o café da manhã. Sentei e comi tudo que me deu vontade. Fui para sala, sentei em uma cadeira de plástico. Procurei descobrir como seria aquela noite. Imaginei o que aconteceria quando chegasse ou como me receberiam e se tudo terminaria bem. Cansada de ficar sentada, ajudei minha mãe no preparo do almoço, cortei as verduras, separei os temperos para o cozimento. Logo, peguei a vassoura para limpar a casa. Ao terminar a faxina, vi o almoço que estava com uma cara ótima. O dia passou depressa apesar da minha ansiedade, quando notei já tinha escurecido. Precisei levantar para tomar um banho. No banheiro, pus a música no celular e comecei a ensaiar


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no chuveiro. A garrafa de shampoo era o microfone. Saí às pressas para o quarto. Abri a porta do guarda-roupa e encontrei um grande problema... Qual seria o traje para ir ao Maloca Dragão? Estava uma bagunça! Mergulhei com tudo, e o guarda-roupa balançava. Enfim, encontrei algo que servisse. Vesti minha camiseta preta, short cintura alta preto e a jaqueta jeans que amarrei na cintura. Calcei um tênis. Estava vestida como queria e a cara do evento. Depois de umas duas horas, me maquiei, dei um trato no cabelo, tinha feito um penteado modelo rabo de cavalo. Tinha que terminar tudo com antecedência para não perder o horário. Assim que cheguei, senti que seria uma noite cheia de surpresas. Após umas fotos com alguns colegas, falávamos bobagens que nos fizeram rir e pulávamos juntos e de maneira estranha com a batida da base que outros grupos estavam apresentando. Era possível ver a música. Bastava fechar os olhos que sentia que te tocava. Havia sempre algo a refletir ao ouvir aquele som. Chegava a arrepiar, até mesmo nos fazer presentes em algum outro lugar. A melodia ecoava por todos os lados. Percebi a reação do público ao entender a mensagem. Olhares se voltavam para quem estivesse do lado, em vibração, pareciam ser tocados. Crescia uma onda que arrastavam as emoções de todos que ali estavam. Depois de prestigiar todos os convidados do evento, o grupo do qual faço parte foi convidado a subir no palco. Estava um pouco ansiosa. Mãos suadas e trêmulas. Antes mesmo de subir a escada que me levava ao palco, dei um último suspiro e pensei agora é a hora de mostrar o motivo que me trouxe até aqui.


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Subi as escadas lentamente, e com o pé direito entrei no palco. As pernas bambas e o coração que quase saía pela boca. Desejei boa sorte para meus companheiros do grupo. Manuseei o mic, cruzei os dedos e fui. Fiquei à direita do palco, pensei em como disfarçar as pernas que não paravam de tremer. Vi que havia pessoas que me olhavam de forma curiosa, talvez querendo saber o que faria de fato, qual seria meu papel ali; outras me olhavam já sabendo que faria um belo show. Fizeram até sinais de “Joia” com a mão para me tranquilizar. O apoio me fez sentir um pouco mais tranquila. Mesmo assim, estava cada vez mais ofegante e não sabia para onde olhar e nem para que lado me mexer, os movimentos eram duros. Ansiedade e insegurança tomavam conta do lado emocional naquele momento. Então, com o passar dos minutos, no decorrer da apresentação, tinha conseguido com muito esforço disfarçar o estado de tremelique. Precisaria soltar a voz e mostrar segurança. Com caras e bocas, voz e movimentos, interpretei aquela música e consegui passar meu recado. As fortes luzes coloridas iluminavam nossa apresentação. As caixas de som davam a sensação de forte vibração. As mensagens eram “Mexam-se, não fiquem aí parados. Levantem a cabeça, não esperem serem atacados. Avante! Não fiquem calados. Quer algo? Lute! Não vão conseguir se esperarem sentados.” Tudo estava certo. Não cometemos erros no andamento da apresentação. Conseguimos lidar com as rápidas palpitações, os corações estavam acelerados de fortes emoções. Me enchi de sorrisos por mais essa conquista. Antes de sairmos, cumprimentamos o DJ e descemos do palco com a sensação de dever cumprido.


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Faltava pouco para as vinte e três horas, curtíamos um som de boa, relaxando após a apresentação. Algumas pessoas que estavam próximas, no lado esquerdo, correram. Não entendi o motivo, fiquei procurando algo que poderia ter feito com que agissem dessa maneira. Mas, com o tumulto, ficou difícil. Então, me aproximei. Já exaltada, grito pelo nome de uma amiga que estava com uma garrafa na mão, que ameaçava arremessar contra um policial da cavalaria que tinha chegado para nos reprimir. Na verdade, estavam nos observando e procurando algo para punir qualquer um que estivesse por perto e os quisesse contrariar. Pedi para que minha amiga saísse de perto deles, pois estava falando coisas que poderiam entender como desacato. Estava com os olhos arregalados e com os nervos à flor da pele. Tentei acalmá-la, mas ela continuava a gritar com o policial que queria agredi-la impulsionando o cavalo. Tirei-a dali. Mas, não foi suficiente. Quando a procurei, havia sumido na multidão. Alguns minutos depois, aumentam o número de policiais no local. Pareciam rir e se divertir com aquela situação. Um dos policiais teria descido do cavalo para revistar um colega que estava com os amigos conversando. Então, decidiu levá-lo preso. Sem motivo algum. Todos resolvem se juntar e pedir para que soltassem o rapaz; minha amiga apareceu e disse “Tudo vai ficar bem, vamos nos unir”. O cara do palco falou “Olha, vocês não têm o direito de chegar aqui e acabar com a nossa noite cultural autorizada pelo governo. Não estamos fazendo nada de errado. Então, por favor, parem! Estamos em um evento importante e no nosso horário”. Depois de muita pressão das pessoas, a polícia decidiu ceder. Mas, estavam com raiva por todos tentarem se unir para soltar o rapaz.


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Fiquei frustrada. Suava frio de tanta preocupação, andava de um lado para o outro, sem saber o que fazer. Mas, depois de tudo isso, a cavalaria tinha recuado, permanecia apenas um carro de polícia distante observando a movimentação. Aos poucos, as pessoas tentavam se reanimar, mas era difícil depois de todo aquele clima. Parecia que não tinha jeito, aos poucos as pessoas foram embora. Algumas foram sorrindo por ter conseguido a soltura do colega. Já outras foram com expressões fechadas, olhos baixos e seriedade no rosto. Pareciam envergonhados, saíam de cabeça baixa, arrasados pelo constrangimento em uma noite tão importante. Pelo menos, quando chegassem em suas casas e alguém perguntasse como tinha sido aquela noite, teriam muita coisa para contar! Kelliany Évelin, é escritora, amante de poemas, mas busca aprofundar conhecimentos para abranger novos horizontes como a escrita de contos e crônicas. Admira artes como grafite, desenhos, dança e gosta de cantar. Procura através da leitura aprimorar sua escrita, através do curso de literatura no Cuca Jangurussu, criação literária descobriu o apreço pela literatura.



Identidade L. Matheus

Encosto a mão ensanguentada na parede úmida. Não consigo mais correr, minhas pernas doem e o corte em minha coxa não para de latejar. Olho em volta, mas não vejo uma alma viva na rua. Quem estaria fora de casa uma hora dessas? Sinto um desespero clandestino, tal qual nunca senti na vida. É uma sensação de pavor que invade minhas entranhas e sobe pelo meu estômago. Não consigo respirar direito, parte porque o cansaço me domina e parte por causa dessa terrível sensação. Não sei o que posso fazer, não há o que fazer. A pancada na parte de trás de minha cabeça me faz cair. Meu rosto afunda em uma poça que é um misto de água, areia, lixo e bosta. A queda me transporta a um tempo distante em que eu era apenas uma criança. Já havia corrido bastante dos moleques encrenqueiros do bairro. Queriam me pegar pelo simples fato de eu não dar a devida atenção a nenhum deles. Nenhum deles merecia sequer uma olhadela. Perseguiram-me e quando, finalmente, conseguiram me alcançar, afundaram minha cabeça em uma poça de água que a chuva deixara na noite passada. Retorno ao presente e os trogloditas se aproximam. Como não percebi esses malditos a tempo? São quatro. Sinto um gosto metálico, não sei dizer se é pelo sangue ou pela poça. Não tenho chance de me mover, pois um deles se põe à frente da minha cabeça e puxa meus braços em sua


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direção, impedindo-me de fazer qualquer movimento. Outro já chega por trás e arranca minha minissaia do corpo. Minha calcinha é a próxima e consigo escutar o som do pano sendo rompido e o barulho gera um frio na barriga que me congela e me consome. Tento me debater, mas meu corpo está imobilizado e, por pouco, não me afogo na poça imunda. Quero pedir socorro, mas, se abro a boca, engulo mais daquela mistura azeda que preenche o buraco no chão. Vejo meu eu novamente refletido no passado. A festa de aniversário de minha irmã terminara não fazia tanto tempo. Eu brincava no jardim com uma de suas bonecas, que havia pegado do meio de seus presentes. Adorava bonecas e não resisti quando vi aquelas várias no meio de papéis de presente rasgados. Meu pai me encontrou e já se aproximou desfivelando seu cinto. O barulho é o mesmo. Um dos homens baixa suas calças e não mostra piedade alguma quando invade meu corpo, rasga minhas carnes, quebra meu ser. Parece que estou queimando dentro de uma fogueira e não consigo me libertar de suas chamas carcerárias. Meu corpo é invadido debaixo de um viaduto, às quatro horas da manhã, enquanto minha cara é afundada na fossa. Lágrimas saem pelos meus olhos, mas acabam desaparecendo em meio ao esgoto. É estranho, pois chorar não faz parte da minha rotina. Quando meu pai me batia, muitas vezes sem motivo, não podia chorar, pois quanto mais lágrimas eu derramava, mais meu corpo sofria. Aprendi com o tempo que devo suportar todos os tipos de dores sem questionar, sem reclamar, sem sofrer. Os homens me xingam, mas comentários dessa natureza não são nenhuma novidade para mim. “Puta.” “Gosta de dar.” “Faz isso porque quer.” “Vagabunda.” Todos fazem parte de


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um dicionário pessoal que guardo em minha memória. São palavras que escuto com tanta frequência que aprendi a dar a elas um significado vazio. No começo, me machucavam, hoje, nem tanto. Aprendi desde cedo a gerenciar minhas dores, físicas e emocionais, e deixá-las esvaziadas de significado, pois, dessa forma, elas se tornam ínfimas, quase sem valor. O primeiro termina seu serviço, mas o outro já está ali, pronto para continuar o trabalho. Sinto vontade de morrer, de me afogar ali mesmo naquela poça de merda. Será que não sou ser humano o suficiente para merecer um mínimo de respeito, ou será que o único ser humano nesse lugar sou eu? Certa vez, tentei tirar minha própria vida, mas a covardia, ou coragem, me impediu de colocar a corda em volta do pescoço, de subir no banco, de pular no abismo sem fim e desconhecido que me esperava. O segundo homem termina mais rápido que o primeiro. Nem pisco direito e o terceiro já está lá. Esse faz doer mais forte e mais rápido e chega a me afogar em alguns momentos. Um deles precisa segurar meus braços para que o quarto possa sentir prazer também. A essa altura do campeonato, não conseguiria me defender nem se quisesse. Será que mereço tudo isso? Após todos se satisfazerem, meu corpo se liberta para expulsar os rastros de violência que foram deixados dentro de mim. O líquido quente escorre pelas minhas coxas e tudo o que consigo sentir é vergonha. Quando penso que tudo acabou, a seção de pancadas começa. São socos e pontapés capazes de deixar meu corpo ainda mais deformado. Giro em todas as direções e posso ver meu sangue pintando todo o ambiente. A dor da alma se intensifica ao passo que a dor do corpo se torna cada vez mais insuportável.


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Sempre apanhei por ser quem eu sou. Aquela situação apenas refresca minha memória e me mostra que meu lugar no mundo é em lugar nenhum. Não sou nada, não sou ninguém. A pancadaria termina. Eles vão embora. Deixam-me no chão como se fosse um saco de lixo qualquer. Eu sou um saco de lixo qualquer! Levantar meu corpo depois do que aconteceu é quase uma tarefa impossível, mas preciso terminar o que aqueles covardes começaram. Começo a caminhar em direção à rua que dá acesso ao viaduto. Tiro minhas luvas de couro e as deixo ali mesmo no chão. O sol começa a surgir no horizonte e algumas pessoas começam a sair de suas casas para iniciarem suas rotinas diárias. Algumas delas nem sequer olham para mim, mas não são piores que aquelas que me veem e se afastam com medo ou com nojo. Isso também não é nenhuma novidade. Ir à polícia até passa pela minha cabeça, mas não quero correr o risco de ser alvo de mais humilhações. Tiro minhas joias e vou deixando-as pelo caminho, assim como um dia João e Maria deixaram as migalhas de pão pela floresta. Lembrar-me dessa história me transporta a um tempo em que era apenas uma criança e não precisava me preocupar com nada. Um tempo em que meus pais me aceitavam dentro de casa e não precisava vender meu corpo à noite para ter o que comer pela manhã. Será que esse tempo era tão bom mesmo? A dúvida, a confusão, a opressão. Coisas que sempre vivi dentro de casa quando criança. Essa época não era boa, isso é apenas uma ilusão da minha mente tentando me fazer mudar de ideia. Um carro passa ao meu lado e a mulher que dirige grita para que eu volte ao circo de onde saí. Aquilo não deveria me atingir, mas atinge e me dá forças para continuar.


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Arranco meus cabelos ruivos, que na verdade nem são meus, e os jogo para longe. Tiro minha blusa e, logo depois, meu sutiã. Os enchimentos caem. Aquele é meu verdadeiro corpo. Mas, será que é meu mesmo? Ou dos vários homens que já o possuíram ou desses últimos que me invadiram sem permissão? De quem é o meu corpo? Chego ao viaduto do jeito que vim ao mundo, sem roupas. Caminho pela rua e percebo que, naquele mesmo local, muitos anos atrás, estive ali com minha mãe enquanto observávamos o sol nascer. Foi uma das únicas vezes que provei um pedaço de felicidade. O nascer do sol que encaro agora tem um significado diferente. Estou no meio do viaduto, olhando para as ruas desertas e esperando que alguém apareça para me impedir, mas sei que isso não vai acontecer, ninguém liga. Pulo o parapeito e me seguro nele para não cair. Respiro fundo e sinto a brisa gelada do fim da madrugada atravessar meu corpo. O que sou? As lágrimas escorrem pelo meu rosto e sinto uma espécie de liberdade nunca sentida antes. Agora posso ser quem eu quiser. Suspiro e me solto, sabendo que aquela ação não fará diferença na vida de ninguém. L. Matheus, 24 anos é escritor dos romances ‹No Domínio do Mal›, ‹A Queda dos Nove› e ‹O Coração da Mata›, além de seus contos estarem presentes em várias antologias. É criador, editor e colunista do blog Imprensa Cultural. É apaixonado pela literatura e amante de cinema com a música conectada às veias.



Luz

A. M. Duarte Vagando na escuridão, não importa em que direção siga, não encontro um só ser vivente que possa me fazer companhia. Deparo-me sempre com um obstáculo, sempre o mesmo obstáculo: uma parede feita com pedras grandes, ásperas e frias. Onde estou e como cheguei aqui? Encosto uma das mãos na parede e sigo paralelo a ela. Enquanto caminho, sinto o chão macio de terra úmida sob meus pés nus. Frio, úmido e escuro, até onde consigo perceber, é tudo que define esse lugar. Tento medir a distância que percorro, conto as frestas que ficam entre as pedras. Mas, depois de algum tempo, acabo perdendo a conta. A parede não tem nenhuma passagem, segue íntegra e intransponível. A experiência me revela uma curva. Então, percebo que a tal parede me circunda, enclausura-me. Como poderei sair daqui? Sinto a fadiga nos músculos. As forças se esvaem, o corpo pesa e vou de encontro ao chão. Enquanto meu corpo se recupera, sinto-me entorpecido. É intrigante. Mesmo nessa situação, não me sinto abalado pelo medo. Percebo que, acima de mim, não muito distante, há luz. Está sob uma forma ampla e circular. É forte e cálida, mas incapaz de adentrar a escuridão que me cerca. De alguma forma que não sei explicar, essa luz me invade, reverbera em mim. Por um momento, tudo é luz. E, então, quando volto a mim, vejo-me no aniversário de um primo


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dando gargalhadas enquanto alguém conta piadas. Outro flash e estou competindo com os amigos para saber quem consegue atravessar primeiro o açude onde costumávamos nadar, e, depois do próximo clarão, sentado na calçada com os vizinhos enquanto decidíamos se o filme que estava em cartaz valia ou não o investimento da entrada no cinema. Foram momentos bons, felizes. As lembranças me afagam a alma. Mais uma lembrança. Uma fogueira e uma roda de amigos na praia. Compartilhávamos alguns de nossos momentos constrangedores e dávamos muitas risadas. Mas, ali, sentia-me diferente. Como um membro que não faz parte do conjunto. Podia vê-los, tocá-los, ouvi-los, mas estava distante deles. A lembrança me deixa angustiado, abatido. Não quero mais ficar aqui! Fecho os olhos e respiro fundo. Percebo um brilho através das pálpebras. Será que foi a luz que passou outra vez!? Volto a abrir os olhos e me deparo com uma cena diferente. Um casamento. Estava vestido em um daqueles trajes tradicionais que obrigam a gente a usar em festas a rigor. Havia muita gente na celebração. Não conhecia metade deles. Estava sentado à mesa com uns poucos conhecidos. Quando foi que parei de chamá-los de amigos? Em parte, a festa era agradável, em parte, insuportável. A hora no telefone me informa que a festa ainda estava no começo, mas a frequência com a qual sou acometido pelo mal-estar de estar naquele lugar faz com que eu deseje fugir. Invento uma desculpa e me afasto dali. Escondo-me atrás de uma parede quase desesperado. Agacho-me, fecho os olhos e respiro fundo. Fico ali, imóvel,


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espero o sentimento passar. Os segundos se estendem e, quando me dou conta, se passaram muitos minutos. O próximo flash foi demorado e pareceu mais distante ou, pelo menos, mais fraco. Agora estou no meu quarto. Lar doce lar. Estendido na cama, examinando as estantes com meus livros favoritos e o computador na escrivaninha com uma mensagem em letras garrafais. É um convite para o reencontro da turma do colégio. Sinto saudade de muitos deles. Estou relutante. O evento foi marcado para daqui a poucos minutos, mas ainda não consegui sair. Pego o telefone e navego até o grupo do encontro e envio: “Desculpem. Aconteceu um imprevisto e não vou poder comparecer. Fica para uma outra oportunidade”. Já faz muito tempo que estou assim. O que está acontecendo comigo? Estava esperando melhorar, mas a espera não ajuda. O tempo não cura as feridas, só as amargura, intensifica a ausência. Desejo de corpo e alma me livrar desse sentimento horrível e aproveitar o aconchego da presença dos amigos. Mas, sempre que penso em sair, sou atacado por ele, que acaba me obrigando a desistir. As lembranças dos momentos felizes agora me mutilam. É cada vez mais difícil fazer essa dor parar. Saudade e pesar atravessam meu coração. Onde aquelas pessoas estão? O vazio no peito tenta me sufocar. Junto todas as minhas forças. Respiro fundo e fecho olhos. Quando me sinto em paz, abro os olhos. Não há mais nada. Estou mergulhado na escuridão e sozinho. Questiono-me sobre coisas do destino, mas, deste lugar, não consigo enxergar nenhum futuro. De pé, contemplando aquela luz que insiste em não entrar no meu recinto, sou invadido por um vazio. A solidão me


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abraça e a desesperança me empurra. Meu corpo encontra novamente o chão. Fito a luz mais uma vez. Por que trouxe esse sentimento de volta? Eu estava em paz aqui no fundo! Abraço a terra e sinto os dedos penetrá-la. Arranco um punhado do solo, depois outro e mais outro e mais outro. É um trabalho pesaroso, mas, aos poucos, vou afundando e me distanciando de tudo aquilo.

A. M. Duarte, 29 anos. Nascido e criado na cidade de Fortaleza, graduando no curso Biblioteconomia. Buscando na literatura uma forma de expressão.


Malandragem Diplomada Herbert Saboia de Sousa

Escovei os dentes mais rápido que o normal. No espelho, um olhar cansado de raiva... uma cuspida! Antes de partir com mais de mil, uma última olhada no look. Sandália de couro a lá Jesus, calça larga bege, camisa preta dos Racionais ostentando um crucifixo, a barba por fazer, a cara de mau, a língua atrevida. Aleluiaaaaa... Formou! De casa para a escola levava uns quinze minutos. Tempo suficiente para refletir sobre os últimos detalhes da aula. Cristianismo primitivo, para uma sala repleta de fundamentalistas cristãos. De um lado, os crentes malucos, do outro, os bonitinhos da renovação carismática. Almoço ainda entalado, uma nova cuspida. Liguei o som do carro para buscar inspiração. Random... King Diammond! Give me your soul! Lembrei-me de todo desgaste acumulado daquele ano letivo. O salário incapaz de adquirir livros, a sala de aula superlotada e, agora, as tentativas de provar cientificamente a teoria da criação ou o cajado mágico de Moisés. As mulheres devem ser submissas aos seus maridos! Os africanos foram amaldiçoados, os gays são uma abominação, os judeus mataram Jesus... blá blá blá. Todas as pérolas ecoadas por alunos que não faziam suas atividades e nem tiravam boas notas nas provas, mas acreditavam que Deus falava por suas línguas de metrô.


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Porém, naquele dia, seria diferente. Fechei os vidros do veículo e liguei o ar. Envolvendo-me com a canção, fui trabalhando a ansiedade para não me esquecer de nada. Era preciso ensaiar: “Galera massa, boa tarde. Sabe aquelas pessoas com quem suas mães não deixam vocês andarem? Então... Jesus só andava com elas. Isso mesmo! Com aquelas prostitutas da esquina que vocês desprezam. Com os bandidos que vocês querem mortos. Racionais disse: Eu acredito na palavra de um homem de pele escura, de cabelo crespo, que andava entre mendigos e leprosos pregando a igualdade. Querem ser espertos? Escutem racionais!” A sala curvaria a cabeça para o lado em uma saudação à curiosidade. “E não é só isso, hein! Jesus não era careta, não. Viu? Ele mul-ti-pli-cou o vinho. Por isso não era sisudo, gostava de tirar uma onda junto à malandragem. Não andava com playboy, era maloqueiro, sofredor e, se duvidar, vai voltar com a camisa do Corinthians indagando Lembra de mim, mano?” As risadas tomariam conta, seria preciso recuperar o fôlego e seguir mandando a real. “Nas primeiras comunidades cristãs não tinha essa parada de dízimo. A galera tinha que compartilhar era tudo, menos as mulheres. Estas tinham a mesma moral que cada elemento da comunidade. E é claro, os homossexuais também chegavam junto. São Paulo, São João, São Francisco, São Sebastião gostavam de meninos e meninas como o Renato Russo. Deus está onde existe amor! Tá na Bíblia, pura poesia!” As caras se fechariam em espanto. “Jesus era considerado! Vocês estão entendendo? Quando os porcos de farda chegavam para grampeá-lo, ele se misturava com a multidão. Porque ele se parecia com a multidão, com os mendigos e leprosos, não com um galã sem sal da novela global. Jesus era negão, meu chapa!”


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Sorri imaginando a cara dos moleques boquiabertos. Estacionei. Primeiro C, aí vou eu. Acessar a arquitetura da Escola de Ensino Fundamental e Médio 2 de Maio era mergulhar no processo histórico. A velha casa de detenção para adolescentes havia se transformado em um estabelecimento de ensino devido à luta dos ancestrais. Logo na entrada havia o espaço Dona Maria das Dores, a mulher negra da favela que construiu uma fala para o mundo, fazendo as comunidades se unirem e se levantarem por seus direitos. Diante da tropa choque, desempregados organizados sem nada a perder, domésticas que saíram de suas casas com a louça por lavar para protestar sob o Sol escaldante da cidade da luz, crianças nos braços de suas mães observando seu futuro em disputa em meio à atmosfera tensa. Todas as Dores partilhando as forças. Só a resistência juntando superação. A vitória popular daqueles heróis anônimos se eternizou. Dessa vez, a escola não teria nome de bandido, de político torturador, nem de nenhum nazista disfarçado de escritor da literatura infantil. Teria o nome da data épica! 2 de maio! E a conquista seria esfregada diariamente na cara das elites. Contudo, o presídio ainda estava ali. No calor infernal, nos uniformes, sirenes e grades. No parapeito em que os detentos comiam seu rango azedo. Na escuridão das salas de aula cavernosas com lâmpadas queimadas, nos ventiladores quebrados. Naquela merenda de qualidade duvidosa. No caminho de pedras que atravessava a lagoa existente na entrada frontal do prédio. E, sobretudo, nas cabeças traumatizadas dos menores que ecoavam as torturas e o sofrimento das almas daqueles que ali morreram. O vigilante noturno confirmava: Os espíritos ainda estão por aqui.


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O corredor central era quase uma rampa em declínio ao melhor estilo calabouço. A malandragem se encostava nas paredes para falar de treta, tiro, para contabilizar os mortos do fim de semana, também debater o noticiário esportivo e, é claro, para observar as Dandaras da quebrada transitando. Sempre era notado quando eu adentrava o calabouço. Oh, o Moita! E aí, malandragem, firmeza total? Os caps afundados acompanhavam meus passos, se movendo seguidamente de cima a baixo, balançando a cabeça em positivo. Os olhos cobertos me observavam em sinal de respeito. Todos os dias isso me lembrava de que há coisas que o dinheiro não pode comprar. O calor da molecada me passou a segurança que eu precisava. Apertei o passo em direção ao meu destino. Boa tarde, galera massa! A resposta foi quase silenciosa. Apenas metade da turma estava presente. Onde estão os demais irmãozinhos? A réplica foi surpreendente: Estão no auditório com a professora Elvira em um trabalho de evangelização. – Como é que é? Fazendo o quê? Rezando? Mas, isso aqui não é uma igreja, isso aqui é uma escola! Alguns ficaram temerosos com a confusão que se anunciava, outros arregalaram os olhos de expectativa. Queriam me seguir até o auditório como se fossem acompanhar uma briga entre alunos na saída da aula. Paparazzi já sacavam suas câmeras. – Ninguém se mexe! Fiquem aí de boa que eu já volto. Fui respirando fundo, contando até dez. Meus passos não se acalmavam. Isso era uma afronta! E o Estado laico? Já não basta proibirem o kit gay? Já não bastam seus projetos genocidas de redução da maioridade penal? Agora querem


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implementar o Escola Sem Partido na tora? Evangelizando os irmãozinhos no meio da aula de história? Esse povo não almoça não, hein? Abri a porta de forma abrupta. Quase ninguém me notou. Adentrei o auditório na mesma intensidade de passos. É quando sou golpeado por uma onda sonora que me faz diminuir o ritmo. Preferi continuar sem ser notado. Precisava me localizar no tempo e no espaço. Ou meus olhos estão enfeitiçados ou aquela é a professora Elvira arrepiando na bateria? E o baixão? Que groove é esse, maluco? Ainda de cara amarrada, me sentei para refletir, ou melhor, para sentir o swing do wuawua da guitarra. Nesse momento, uma irmãzinha, que imaginava ser quase muda, soltou a voz fazendo o meu queixo cair. A pretinha não tinha nem tamanho direito, mas logo se agigantava sobre a minha cara assustada. Uma rufada na caixa, uma virada nos tambores, um ataque nos pratos e... Oh, o Moita! A professora Elvira me fez ser notado. Logo acionei as melhores técnicas da diplomacia aprendidas na escola da malandragem. Abri o sorriso e larguei: –Vim saber o que estava acontecendo aqui. –A gente tá aqui tirando um som pra alegrar o espírito. –Pode ter certeza que os antigos espíritos estão curtindo esse som aí que vocês estão tirando. –Bora, manda logo teu rap aí. –Mas, e a aula? –A aula hoje é no palco, Moita. –Possa crer, agora eu vi malandragem mesmo. Posso chamar o resto da galera massa?


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–Oxe, chame lá que vai rolar é um culto ecumênico agora. Entre sorrisos, voltei até ao Primeiro C. –Galera massa, vocês poderiam se dirigir ao auditório? –Diabé isso, Moita? Arregou? –Não, irmãzinha. Vai rolar uma interdisciplinaridade hoje – piscando o olho esquerdo, convoquei-os. – Sigam-me os bons! A gangue dos garotos laicos foi se misturando com a gangue dos irmãozinhos do senhor. A arte é mestra na diplomacia. Um moleque subiu, pegou o microfone e soltou logo um importante é nois aqui junto no que vem. Querem ser espertos? Escutem Racionais! Os versos ritmados foram se infiltrando nos cânticos religiosos. Diferentes formas de expressar o velho mandamento do Hip Hop. Só Deus pode me julgar! Sempre entoado ao lado da velha profecia de favela. Os humilhados serão exaltados. Reparava nos detalhes. Observava cada um. Sincretizar ao máximo aquele encontro. Espada no dragão! Saravá, São Jorge! Ogum, seja meu guia! Calculava qual seria o próximo MC, o próximo cantor. Para qual mana iria emprestar qual livro? Para qual moleque iria passar aquele som? O reino do Senhor invadira meu solo sagrado. Deixe que entre. Tente me salvar, ou melhor, me agarrar. Nada temerei! Meus pensamentos me faziam sorrir para todos. Astuto como uma cobra sorrateira, me esquivava das armadilhas do tribunal do juízo final. Agora eu era o infiltrado. Meus planos eram ladinos! Ali já planejava a aula da semana que vem. Um Frei Tito de Alencar talvez me seja útil. Não é possível ser cristão sem ser rebelde. Talvez o salmo 109 lhes dê o ódio de classe


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fundamental. Que não haja um que tenha compaixão dos seus órfãos. Give me your soul...

Herbert Saboia de Sousa, "Moita". Professor de História da rede estadual de ensino. Militante do Movimento Hip Hop Nós Por Nós. Mc do grupo de rap Convicção Ancestral.



Molotov Eduarda Ribeiro

Molotovs eram atirados ao mais alto céu, assim acertaríamos os mais longínquos alvos. Éramos tantos que as mais largas ruas se tornavam estreitas, estávamos em uma manifestação... digamos “não pacífica”; nossos confrontos com a polícia nunca haviam sido violentos a esse extremo. Pessoas queimavam carros enquanto balas de borracha, bombas, pedras e barras de ferro eram arremessadas de todos os lados. Era difícil ver à nossa frente por conta da espessa fumaça das chamas e de bombas. Fazíamos barricadas com carros, placas, madeiras e tudo que víamos pela frente. A cidade parecia o próprio inferno, nada nos intimidava, nossas máscaras de gás nunca foram tão bem usadas. Vivíamos em uma época de terror, com perseguições e mortes sem explicação; não podíamos opinar, muitos menos protestar. Mesmo assim, conseguíamos deixar a cidade um caos com nossas próprias mãos. Eram tempos sombrios. Chamavam-nos de loucos sem leis, mas loucura era não agir diante de tudo aquilo. No meio de toda a confusão e correria, vi meu companheiro sendo encurralado por policiais; batiam nele com murros e pontapés. Ele permanecia parado, deitado com as mãos na cabeça, indefeso. Sabia que se não fizesse algo, nunca mais o veria. Temi a gravidade de seus ferimentos, e se ele aguentaria por mais tempo. Mas com certeza naquela hora eu não duvidaria dos boatos: quem era pego nunca mais voltava. Eu precisava fazer algo.


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Desesperado, penso em lançar meu único rojão para os dispersar. Senti que pela violência dos golpes que recebia na cabeça ele não aguentaria por muito tempo. Temendo que o pior acontecesse, acendo aquele pequeno pavio e jogo bem em cima dos malditos policiais, que por sorte minha estavam desprotegidos. As fortes faíscas os queimaram. Assustados eles correram, libertando meu amigo. Percebendo uma calmaria, corri na direção de meu colega. Enquanto corria, senti uma enorme dor em minha perna direita que me fez cair, bati minha cabeça no asfalto. No mesmo instante senti alguém me arrastando pelos braços. Virei e vi um policial com um sorriso assustador, que me mirava com olhos ameaçadores. No meio da tontura e da vista embaçada olhei para frente na expectativa de ver meu amigo. O vejo ainda caído pelos ferimentos. Ele estava com as mãos na cabeça, assustado, me olhando e não conseguindo ter nenhuma reação de me ajudar ou sequer se levantar. A embaçada imagem que tinha dele foi bloqueada por um forte soco no olho. Me algemaram e me espancaram a ponto de me fazer perder a consciência por alguns segundos, nunca havia visto tanta revolta e ódio com um pobre infeliz. O ferro que havia na ponta de suas botas era a pior parte, creio que ainda sinto o horrível gosto do metal. Arrastaram e jogaram meu corpo dentro de uma van que saiu em disparada. Era escuro, mas pude ver dois homens encapuzados e de armas na mão. O balanço do carro e uma estrada irregular faziam doer ainda mais os ferimentos. Ouvia vozes; - Este maldito mal sabe o que irá sofrer! - enquanto riam. - Com sorte o deixarão morrer.


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O constante balanço me enjoava e senti que poderia vomitar. O sangue escorria de minha boca e junto com o sangue dos cortes sujou todo o pequeno espaço. O medo era inevitável, me sentia inútil sem sequer conseguir me mover. As algemas em minha mão estavam tão apertadas que causaram uma pressão desesperadora. Tudo em mim doía cada vez mais. Ah, como queria que fosse apenas alguma rebordosa; o cansaço e a tontura vieram e tudo se apagou. Quando acordei, me vi em um pequeno cômodo cheio de mofo e marcas de sangue; o chão duro, manchado e cinzento daquele lugar dava arrepios. O forte cheiro de urina e fezes me fez sobressaltar, uma pequena e fraca lâmpada suspensa no meio do alto teto iluminava o lugar. Pensei, sentindo um pequeno alívio, que o lado bom era não estar mais naquela maldita van. Os flashes do que acontecera retornavam, não sabia onde estava, nem o que havia ocorrido com meus companheiros. Apenas fiquei ali, paralisado, sem saber o que fazer ou se, pelo menos, ainda teria alguma chance de sobreviver. Os cortes e as manchas roxo-esverdeadas em meu corpo ainda doíam, mas, o que mais estranhava, era os enormes e malfeitos pontos dados em meu braço. Qual o motivo do curativo? Porque ainda não me mataram? A dúvida já me enlouquecia. -Será que tive a sorte que aquele policial infeliz falou? Depois de horas de pressão, senti minha audição voltar aos poucos. Ouvia passos, gritos e de vez em quando um tilintar de chaves; acreditei que a chave da sela estava naquele molho. O medo e a expectativa de virem abrir minha porta me consumia. Se abrissem aquela porta poderiam atirar em mim, talvez viessem deixar comida ou água ou me bater novamente. Estava tudo muito confuso. Qualquer coisa seria melhor que aquela ansiedade enlouquecedora que doía a cabeça.


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A fome corroía meu estômago. O fato de não saber se era dia ou noite me atormentava, não fazia ideia de a quantos dias estava ali. Durante algum tempo somente dormia e acordava. Pensava no que poderia ter ocorrido com meu companheiro, O que eles pretendiam fazer comigo? Sabia que cedo ou tarde minha hora com eles iria chegar. Ficava o tempo todo a imaginar se alguém de nossa organização estaria ali também, talvez alguns desses gritos poderiam ser de algum conhecido meu. Me preocupava, mesmo não tendo a certeza de que conhecia quem estava ali a gritar. Eram companheiros de lutas que estavam muito perto da morte, e minha vez estava próxima. Depois de tanto tempo naquele inferno comecei a delirar com a confusão dos gritos e vozes afora, pensava em minha família, se ainda estavam vivos. Imaginava se meus companheiros viriam me resgatar. Estava num verdadeiro inferno de pensamentos e emoções que me fez arrancar os cabelos. Minha única esperança era o som daquele maldito tilintar de chaves. Apesar de achar que estava dias a fio naquele enorme sofrimento, ainda havia esperança de que eles entrariam frenéticos naquela maldita sala e atirariam em mim sem piedade, e eu mal podia esperar por esse dia. Qualquer coisa seria melhor que continuar ali, ouvindo o tilintar. Lembro-me bem de ser interrompido de meus pensamentos por gritos desesperados que me faziam chorar. O barulho daquelas malditas chaves que me davam frio na barriga, a ansiedade e o medo misturavam-se com a depressão. Certa vez, tentei comer minhas unhas para matar a fome, deixando elas a ponto de sangrar, então ouvi as chaves novamente, mas, desta vez, o barulho estava mais alto e do nada o som é interrompido. Ouço a fechadura abrir e com um brusco movimento empurram a porta.


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Dois homens altos e fortes dão uma risada sarcástica para minha feição assustada, fui jogado no chão; sem energia alguma para reagir, apenas me conformei. Arrastaram-me pelas pernas como um corpo sem vida. Fui levado por corredor sujo, porém com bastante claridade. Aquela era a primeira visão que tive depois de muito tempo dentro daquele quarto. O corredor tinha um teto alto, com luzes fortes. Como era bom ver qualquer tipo de claridade, mas depois de tanto tempo no escuro meus olhos ardiam com a luz. A dor em meus olhos foi a melhor sensação que tive. Aquele lugar era cercado de celas, o que me fazia pensar onde eu tinha ido parar e para onde estava indo agora. Homens pediam ajuda com gritos de suas celas, tão altos que me doía os tímpanos. - Socorro, estou cercado de psicopatas. - Gritava um. Ao ouvir aqueles lamentos, me senti sem esperanças. Enquanto me arrastavam, em direção ao fundo do corredor, tentei olhar para os homens. Estavam mascarados, olhavam fixo para frente, ignorando aquele sofrimento ao seu redor, e continuaram a me puxar até uma sala com uma discreta porta. Fui jogado e amarrado em uma cadeira de madeira. A sala era ainda pior que a anterior, grande e com estranhos objetos; havia ferros, pedaços de pau, fios, muitos baldes com água e cordas. As primeiras “sessões” foram as piores, juro que a todo momento pedia a morte. Eles perguntavam sobre os planos, ou o quem era o chefe de todo movimento. - Fale logo seu desgraçado ou juro que iremos te matar! Terríveis sessões eram aplicadas todo santo dia, arrancavam minha pele, me davam choques e murros até tudo se apagar, e como sempre acordava na pequena sala.


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Aplicavam todo tipo de tortura que se possa imaginar; “geladeira”, “cadeira do dragão”, “pimentinha”, “choque elétrico” e “pau-de-arara” eram os menos dolorosos. Os choques eram extremos a ponto de me fazer delirar e em meus pensamentos implorar a morte. A parte mais feliz do meu dia eram os poucos segundos passando por aquele corredor, o único lugar em, paz e seguro, onde podia suspirar e me acalmar. Enquanto era arrastado podia fechar os olhos e me imaginar em casa ou em qualquer outro lugar calmo e belo, eram o paraíso depois de ter ido parar naquele inferno. Meus olhos brilhavam com a ilusão de que aquilo poderia ser um sonho, muitas vezes olhava fixamente para as luzes até meus olhos arderem, pensando que poderia ser a luz do bom Deus vindo, finalmente, me buscar. Em nossa organização havíamos sido alertados sobre o que deveria ser feito, mas naquela altura já quase não conseguia manter o silêncio: às vezes acreditava que não falaria nada, e minutos depois pensava em mandar todos se foderem e os entregar. Mas sempre sabia que poderia aguentar um pouco mais. Esperava por um milagre. Então, disseram que haviam conseguido informações sobre mim, minha família, meus amigos, e que tinham tudo arquivado. Gritavam que haviam feito coisas horríveis com meus amigos, o ódio me subia à cabeça, a dúvida e o medo de falar ou não era cada vez maior. Na última sessão que me vem à cabeça, eles estavam eufóricos, loucos e descontrolados. Seus olhos estavam vermelhos e me assustavam. Fui espancado e deram choque em todas as partes de meu corpo até desmaiar e mais uma vez acordar no mesmo local de sempre. Acho que se passaram dias sem “visitas”, estranhei porque creio que todos os dias tinha hora marcada com eles, era difícil ter um dia sequer de paz, fui ficando ali esquecido e


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abandonado, “entregue às baratas”, não sabia o que sentir. O medo e o alívio vinham até mim, além da desconfiança que sempre invadia meus pensamentos. Com certeza eles deviam armar alguma coisa. Escutei uma enorme correria, gritos e tiros. Não sei bem o que houve, mas sei que a coisa estava feia. Minha ação foi de somente ficar encolhido no canto da sala tapando os ouvidos. Acho que fiquei daquela forma por dias. Depois de muito medo e insegurança, olhei para minha porta e a vi entreaberta. Sequer ousei ir até lá fora, com certeza era uma armadilha. Após um tempo, vi que tinha que tomar coragem, sair dali e ver o que tinha acontecido, se haviam me libertado ou se iriam me fuzilar assim que passasse por aquela porta. Andei vagarosamente até a calma e confortante luz do corredor. Lá não havia nada, além de silêncio e paz. Só Deus sabe o quanto meus olhos brilharam diante daquele paraíso. Hoje me deixam andar livremente, não sentem minha falta ou sequer me veem passando entre eles, nem olham em meus olhos. As vezes queria apenas ver meus amigos e minha família, correr daqui onde tive tanto sofrimento, poderia sair e seguir minha vida. Mas sinto uma enorme afeição por este corredor. Eduarda Ribeiro tem 20 anos mora no Jangurussu e cursa História, participa do coletivo PrograM@nas, trabalha com comunicação e programação, escreve poesias e textos aleatórios. Já participou de diversas iniciativas sociais de educação e pesquisa ligadas à comunidade.



No Cash

Mente Cheia, Bolsos Vazios Wesjley 24 de dezembro de 1998, data em que sabotei minha vida. Se pudesse voltar no tempo, jamais teria tomado certas atitudes que destruíram minha vida. Um sobrinho pra criar, uma mãe pra cuidar e eu tentando sobreviver na miséria. Só com água na geladeira e tentando salvar minha família. A falta do dinheiro me fez um cara sem esperança e revoltado, nada me deixava mas triste que ver minha família pedindo ajuda sem poder ajudar. Se tivesse estudo, talvez seria outro cara e teria uma vida melhor, mas a oportunidade e a sorte nunca andaram de mão dadas comigo. Nasci num esgoto aberto e cresci ignorado pelo estado. Não só eu, mas como toda a vizinhança de uma pobre comunidade marginalizada e desvalorizada onde morava. As escolas eram afastadas da nossa periferia. Apesar de todas as dificuldades, dava meus jeitos para conseguir qualquer grana, desde grafitagem a vendedor de cheiro verde. Mas, no final do dia, aquele dinheiro não era o suficiente. A vinda do meu sobrinho agravou tudo, depois que a minha irmã pariu e deixou com minha avó. Aquela vagabunda nos deixou e nunca deu nenhuma satisfação. Bem que eu poderia ter feito o mesmo, mas me veio na cabeça que talvez pudesse dar a vida que eu sempre quis pro meu sobrinho. Então, me responsabilizei por ele mesmo sem dinheiro. Não ter dinheiro é o inferno. Uma doença causada


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pelo capitalismo, onde o governo trabalha pra si próprio, que te destrói aos pouco, enfraquece a mente, amolece o corpo, rouba tua autoestima, e abre portas pra depressão. É preciso desviar de tudo isso e ainda manter a fé. As coisas apertaram e o desespero bateu forte na porta. Que poderia fazer pra ganhar dinheiro mais rápido? Minha mente cheia de ideias e paranoias, logo me fez acreditar que as drogas seriam a única solução. E quem nunca ouviu essa história? Estava decidido e já esperto do que poderia acontecer, mas a vontade de ser um herói pra minha família me fazia acreditar que tudo daria certo, e que pararia quando chegasse em certa condição. Meu mano, Gato Preto, era em quem eu me apoiaria, o maior traficante do bairro. Tava tudo decidido. Perguntei como poderia contribuir nas vendas das drogas, ele me passou outro tipo de trabalho, embora fosse mais arriscado, o dinheiro era alto. Aceitei, porque eu acreditava nele. Se o dinheiro era alto, seria mais rápido para eu sair. O Gato Preto tinha um irmão, Robertim, ele tava preso há mais de cinco anos, mas isso tudo ia mudar. Ele, da cadeia, juntou dez caras em uma mesa de mármore, separou o dinheiro e perguntou: quem tá dentro? Todos aceitaram, só de olhar toda aquela grana era satisfatório. O dia foi 24 de dezembro, véspera de natal, escolhido a dedo porque o Gato Preto sabia que tinha redução de vigilantes no presídio. Tava tudo resolvido, cada um sabia o que ia fazer. Confesso que pensei em desistir, mas pensei na grana e no meu sobrinho e continuei no plano. O dia chegou. Era noite, às vinte e três em ponto, dois carros, cinco em cada. Sentando no banco de trás do primeiro carro, com os olhos vermelhos e a visão embaraçada, minha mente adormece. As minhas pálpebras começam a pesar, minhas


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palavras são lentas, a sensação é que nas costas carrego todo peso do mundo, e a vontade que aquela noite passasse era o que me fazia continuar. Cinco vai. Cinco fica. Cinco metros de distância, atrás de uma árvore cheia. Esperei junto com quatro caras enquanto o Gato Preto e os parceiros foram fazer o primeiro serviço. O tempo congelou meus movimentos, a espera era infinita. Um, dois, três, quatro tiros rasgavam meus ouvidos enquanto os pássaros faziam barulhos fugindo da árvore. O desespero chegou. Algo deu errado. O combinado era sem barulho e sem tiros. Corremos e ficamos dentro do carro esperando os demais recuarem. Se não voltassem, íamos embora como no combinado. “Alguém vai verificar.” Um deles falou olhando para mim, o novato. Desci do carro e andei uns metros em direção às árvores, sozinho. Escuto o barulho do motor e percebo que os caras armaram pra mim. Me deixando para trás apenas com um 38 na bolsa e tudo aquilo a enfrentar. Não soube o que fazer, então, corri. Mas, os sinalizadores de luz me acertaram. Sabia que, se corresse, eles atirariam pra matar. Vi o policial andando em minha direção, apontando uma arma. As minhas palavras sumiram e estava certo que morreria. Na esperança de sair dali, pensei em pegar a arma. E foi o que eu fiz. Corri. Ele atirou, saquei a arma e revidei. As sirenes aumentaram e eu sentia o alvoroço tomando o lugar. Sabia que não tinha só aquele policial me seguindo, mas continuei correndo. Percebi que tinha arruinado tudo, as lágrimas escorriam como esgoto a céu aberto. Atirei pra todos os lados e o mesmo polícia que corria atrás de mim foi acertado com um dos meus


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tiros. Chorei mais, agora não tinha só arruinado minha vida, minha família, mas a de outra pessoa, era o fim. Fui pego cinco quilômetros depois. Sou um desgraçado mesmo, mereci, e comigo os art.10 e o 121, uns vinte e sete anos preso. Deixei meu sobrinho e minha mãe na mão, sendo que a intenção era outra. Quando a gente cai no crime, a intenção é sempre outra. Dezoito anos se passaram e essa carta é para você, meu sobrinho. Espero que leia tudo isso. Deve tá numa idade parecida com a minha quando cheguei nesse inferno, talvez com uma vida tão fodida quanto, mas o crime não é saída. Então, anda reto, porque só quero ver tua cara daqui a dez anos, quando sair. Com carinho, seu tio Iscariote. Wesjley, 20 anos, Fotógrafo e estudante de cinema e audiovisual. Criador do projeto chamado Nø Ca$h, onde une diversos tipos de artes urbana que influenciam e são influenciados pelo Skate. O grafiti, desenho, audiovisual, música, fotografia e a literatura.


No manicômio Daniel Lima

Hospital São Vicente, Irmandade Beneficente da Santa Casa da Misericórdia de Fortaleza, instituição filantrópica, mantida por doações. Homens e mulheres como pacientes, divididos por setores distintos. Ao chegar, me identifiquei, observando os outros parentes que também entrariam para a visita de seus entes. Ao ver minha avó atrás das grades daquele portão, não aguentei a carga de emoção, chorei, chorei muito, como um menino. Na memória, outras experiências somadas ao ato presente afetando meu emocional. Mero ser frágil diante de tudo aquilo. Lágrimas muitas junto à saudade que sentia. Não era sentimento qualquer e me atingiu fortemente. Pessoa importante para mim, condição difícil, ambiente opressor, que arranca qualquer noção que se possua de liberdade. Falas e abraços, mais lágrimas. Lembrei Foucault, Lima Barreto. Estranho. Diálogos feitos, ela afetada pelos medicamentos, entorpecentes, sussurros. Lembranças e histórias para contar. Outras pacientes mulheres ao nosso redor, cada qual com sua trajetória. Situação cruel, prisão, grades, muros, seguranças, dopagens. Tudo errado, porém, executado. Reclusão, aprisionam pessoas que fogem do padrão social, nomeando de loucura, doença, com a consequente expulsão do meio social, jogando ao isolamento. Nesse presente que redijo, o estágio frio e mesquinho da civilização não fora reconhecido, pois utilizam os mesmos métodos e técnicas de séculos anteriores. Não conseguem aprender de fato, repetindo a história como farsa, como injustiça, como pobreza de espírito.


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Dor estranha, peculiar. Pessoas comuns com outros padrões de pensamentos, outras dimensões psicológicas, pensamentos outros, projetos de vida e convivência. Vivem. Empatia forçada. Cigarros parecem pirulitos em mãos de crianças para favorecer a calma. Talvez, esse meio seja o único para sustentar aquelas pessoas na existência, no caótico mundo vivido. Algumas com crenças. A droga como uma promessa, uma morfina. Trajetórias, histórias, cada uma com as suas. Modelo de uma casa de detenção. Visitas e suas formulações, afeta mesmo, e a mente trabalha, estimula os pensamentos. Experiências. Horror contado e imaginado. E minha avó relatava: a palavra da gente não vale nada, só quem nos interna aqui tem razão. Hegemonia de discursos, análise da dominação, e sua inteligência suspendia as demais, arrepiava-me com seus questionamentos coesos e lógicos, dopada com os remédios injetados. Voltava a exercitar as pálpebras, bastava nada, um caos me dominava, entrega de si. Ao passo que dávamos os passos, ela me apresentava suas colegas e enfermeiras, denominava-me professor de faculdade, mostrava que sentia orgulho de mim. Missão cumprida, vó, com certeza. Mais emoção. Relatava a dor quando a tarde passava. Estupros, drogas, cigarros acesos, tentativas de esquecimentos, ainda que passageiras. O real tortura bastante. Oração forte ela tinha, as demais confiavam no poder da espiritualidade. Caminhos incertos, insanos, onde Deus despreza. Falar tão cru do mundo requer prática. Maus-tratos das colegas de quarto, cenas horríveis, maus-tratos das enfermeiras, da instituição em si. Comida às vezes nem tinha. Com tamanha loucura, qualquer são se torna mais um, e qualquer louco se especializa. Percurso já trilhado. Messejana, Mira Y Lópes, São Vicente. Cada relato que custava acreditar, mas que existia, era fato. Um pedaço denso de tarde, fui embora. Abraço, beijos, despedida, oração.


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Lá fora, mais chuvas em olhos. Lembrava, tímido, comigo, eu e meus restos líquidos e salgados, abraços e prantos em combate com minha fraqueza. Cenas que passam e que ficam. Uma rebelião dos loucos seria necessário. Meu interior já falava demais por si.

*** No manicômio é tudo lúgubre. Tudo acontece e nada acontece. Só há espaço, escapa o tempo. Paradoxo do absurdo. Há quem enxergue isso, porém, tudo é recalcado para a responsabilidade. Exala tudo daqueles muros, e ao mesmo tempo nada, pois os gritos da liberdade não incomodam os seres humanos em geral. A revolta se manifesta. Várias idades. Idosos, tatuados, evangélicos ou não, desocupados, donas de casa, mulheres. Distantes da família, dançam, cantam, brincam, fumam. Jovens e adolescentes. Preocupante ou não, a civilização moderna e seus trágicos efeitos. Acontece, simplesmente. Corriqueiro. Energia densa, pensamentos se unificam em torno de algo indecifrável que apenas quem participa compreende, elaborados no instante. Conflitos mínimos entre si, logo estabelecidos, resolvidos, portanto. Do lado externo e hegemônico, toda uma série de medidas para o fim proposto pela instituição. Regras e regulamentos. Enfermeiras e enfermeiros, seguranças, muros altos, salas, pátio, refeitórios, doutores e clínicos. Controle, dominação, poder, domínio, imposição, tudo isso regido pela moralidade. A sensação de gritos pela liberdade, ética e moral, psicológica e cultural. O espírito raro da loucura se expressa em várias artes músicas, pinturas, escrita, etc. No entanto, atrás das grades é apenas quantidade, volume. Devo estar lendo muito Epicuro e Kierkegaard, na ótica da revolta evoco Camus e Nietzsche, mas


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observo aquele teatro mágico e trágico que, aos olhos e à alma, apenas paralisa, oferecendo contemplação e angústia profunda. Concentração diferente da comum, outro plano, outra moral, dentro de uma mais arquitetada e sólida. Minha avó me entregara um colar artesanal feito por ela, quanta criação. E essa fé que me atormenta com sua ausência é a mesma que me afeta com sua presença. Visão de séculos, moral tola. Quando o vosso leitor conversar com qualquer louco, contenha-se. Fale pouco, ou quase nada, apenas e, sobretudo, ouça e repouse. Instituição bruta e profunda essa, persegue e prende quem tem revolta. E aquelas outras duas almas que eu reencontrava tocavam-me como surpresa boa, que contaminou meu ser de alegria, dor e reflexão. Com espanto, sem pranto, aquilo acontecia às minhas percepções. Daniel Lima, conhecido como Dali, morador do Conjunto Palmeiras, tem 23 anos, é cantor de Rap e escritor. Na sua escrita consta o amor, a resistência e a revolta, as contradições da vida cotidiana da periferia e do homem no mundo em caos.


O Espaço de Jangu Rômulo Silva

Jangu fitou os olhos na avenida fronteiriça. Dois rios paralelos e barulhentos. Um deságua sentido Bom Jardim – parente próximo de Jangu, o outro corre para os braços do irmão Curió – sangue latino e ainda por cima cantor. Embora ambos sejam conhecidos como “Perimetral” – estamos no perímetro, que alguém teve a ousadia, covardia aliás, de batizá-los de “Presidente Costa e Silva”. Até hoje o AI 5 elimina as liberdades públicas e democráticas (palavrões para o jovem negro Jangu). “Querem ressuscitar Costa e Silva? Desejam oficializar o que nunca acabou?”, não foram estas as perguntas de Jangu. Do concreto do rio se dissolve e evapora possibilidades, entre fluxos de vida ou de morte – termos que Jangu não faz distinção, nada para jovens como ele é ensaio, tudo é valendo, intenso. Vem um sonho e um desejo, ambos são atravessados pelas condições materiais, pelo preço que se pode pagar. Do outro lado do rio tem um Anfiteatro e nele está escrito a palavra “União” – esta palavra está picotada por recados outros, desejos outros, inquietações outras – rebeldia e autonomia, vontade de potência! O ninho utópico que Jangu visita, habita inclusive, é marcado pelos abraços demorados; rede tecida por fios [in] visíveis, um emaranhado de conexões conectadas por nós


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(nós?) da Tribo. Jangu para por um instante e pergunta-se: “que Tribo é esta?”. Ela parece não ter nome e talvez não queira, mas está lá, existe porque Jangu existe. Ele, vez ou outra, navega por mares pouco desbravados; viagem sem malas prontas. Não é o único jovem a desejar conhecer mundos outros, experimentar e sair de si mesmo, alcançar o que chamamos genericamente de liberdade. O jovem Jangu prova e sente na pele e no estômago a força do deus Capital. Sobre este nada sabemos, poderia ser um velhinho que possui barba branca? Ou um homem de meia idade burocrata, talvez um bicho sanguessuga?! Analisar do que é feito esse bicho não importa. O que conta é a rara oportunidade dada. De onde ela vem, o que proporciona? Mata o filho negro do Capital chamado Fome? Entre promessas e filas, a oportunidade vem através do “corre do louco” empregatício [in]visível - o preço do sangue que escorre arquibancadas. Jangu vive! Salve, salve! Jangu, sem saber, cospe na cara da hipocrisia religiosa e quebra os códigos morais e hierárquicos das Fortalezas. Quem disse que alimento pra cabeça não mata a fome de ninguém? O ninho utópico existe dentro e fora da mente de Jangu. Pode ser a bela vista, ou o nascer e pôr do sol: a soma dos abraços esperançosos, do racha improvisado em círculos. Quem sabe, palco da noite ensolarada: razão dos bailes autônomos. “- Chega aê no rolezinho ou no reggae pra dançar agarradinho.” Arena das resistências, por vezes planejadas, o espaço outro onde somos lançados para fora de nós mesmos. Jangu carrega consigo sorrisos espontâneos e gestos aleatórios, [in]definidos em si. Beija na boca do garoto e da garota e celebra o amor. O corpo castigado, criminalizado, é


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também uma festa intensa. Dele transborda sentimentos que não cabem dentro de si - não cabem em um poema ou prosa; contudo, podem ser vistos na lágrima incontida e compartilhada, no repartir do pão das memórias feitas do concreto [dos afetos]. Jan [janelas] / gu [guris] / ru [rua] / ssu [suave]. Rômulo Silva, 32 anos. Morador do Pantanal. Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (PPGS-UECE) e Bacharel em Comunicação Social, Jornalismo pela Estácio FIC. Tem interesses nas áreas de Sociologia e Antropologia da Literatura, Escrita, Performance e Oralidade; Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Trabalhou como Educador Social no CUCA Jangurussu, como Professor no Centro Cultural do Grande Bom Jardim (CCGBJ), foi um dos diretores da ONG Zinco – Centro de Estudo, Produção e Documentação em Mídia Alternativa e escreve a zine “Máquina de Escrever”.



O Irmão Invisível Nanderson Azevedo

Chego ao terminal e encontro um mendigo na calçada que pede esmola. As pessoas que passam o ignoram como se não existisse. Eu fico observando e percebo seu desapontamento com sua exclusão. Compro um lanche. Vou ao local onde ele está, lhe ofereço a comida e ele aceita. Sento ao seu lado e pergunto-lhe por que, sendo tão jovem, está nesta vida. Observo a presença de garrafas de pinga que se encontram vazias perto dele. “Doutor, eu fui arrastado para esse mundo do vício da bebida por imaginar que, na pinga, poderia afogar minhas mágoas e esquecer os problemas.” “Meu nome é Carlos e gostaria de lhe ajudar.” Eu lhe disse. “Como se chama?” “Aqui sou conhecido como Maneco, mas meu nome é Manuel. Agradeço pelo lanche e pela atenção que o senhor está me dispensando, mas não vá perder tempo comigo. Sou um caso perdido.” “Não diga isso! Para que se anular? Todos nós merecemos uma nova chance. Acredite que você vai superar esse problema com ajuda de Deus e o apoio do AA, pois esse grupo já recuperou e salvou muitas vidas.” “Quero lhe convidar para ir junto comigo visitar uma palestra de um grupo AA que se localiza aqui perto do terminal. Aceita?” “Aceito.” “Amanhã passarei aqui para irmos à reunião.” No dia seguinte, nos dirigimos até o local da palestra. Começou a reunião e ele começou a ficar inquieto, dando a entender que não queria continuar. O coordenador perguntou se algum dos presentes gostaria de usar da palavra. Levantei a mão, fui até a mesa e comecei a falar:


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“Bom dia a todos os presentes. Estou aqui para lhes dar o meu depoimento. Há 10 anos, cheguei aqui em busca de ajuda para tentar abandonar o vício do álcool e, se não fosse a ajuda dos companheiros do AA, eu não teria conseguido sozinho. Essa dependência me levou ao fundo do poço. Então, todos que estão aqui precisam desta corrente que salva vidas. Vamos se agarrar nela e dar um rumo novo para nossas vidas.” Notei que o Manuel voltou a se sentar e prestar atenção à reunião. No fim do evento, ele me prometeu que iria participar de outras palestras. Me despedi, desejando boa sorte. Após duas semanas, resolvi retornar ao local onde ele costumava ficar e não foi surpresa descobrir que ele havia sofrido uma recaída. Bebeu muito e teve que ser internado às pressas. Descobri o hospital e fui fazer uma visita. Estava tomando soro na veia. Procurei falar com a enfermeira que o acompanhava, que me informou que ele ficaria uns três dias em observação. Agradeci pela informação. Algum tempo depois, passo no mesmo local e vejo Maneco na mesma situação, pedindo esmola e com a companhia das garrafas de pinga. Aproximo-me e o convido para um encontro com um amigo meu, psiquiatra, que já livrou muitos do vício do álcool. Houve uma certa resistência, mas acabou indo. Apresento-o ao psiquiatra e eles ficaram conversando. Depois que terminaram a conversa, eu perguntei ao psiquiatra o que achou do caso dele. Me respondeu que deveria ser encaminhado para uma casa de tratamento para dependentes químicos. Concordei e agradeci pela atenção. Conversei longamente com o meu amigo viciado e prometi que iria procurar uma vaga através de amigos meus. Demorou quase um mês, mas recebi o comunicado que, finalmente, tinha surgido uma vaga. Procurei Maneco para


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lhe contar que tinha conseguido a vaga. Porém, ele não estava mais lá. Passou mais um mês. Estava folheando o jornal quando vejo uma notícia na página policial, Manoel estava preso por ter agredido um cidadão. Resolvi que era hora de deixar essa coisa de lado. Muito tempo tinha passado quando, andando pelo centro da cidade, cruzo com ele em uma esquina, mais uma vez estava pedindo esmola. “Oi, Maneco. Tá sumido?” “Não, estive viajando.” “Tudo bem. Te procurei, pois tinha conseguido vaga para você se tratar e não o localizei. Ainda está interessado em se livrar do vício do álcool?” “Sim.” “Vou ver o que consigo arrumar. Depois lhe dou retorno.” “O senhor pode voltar a me procurar no mesmo local de antes que estarei lá.” Me despedi e segui meu caminho. Contatei diversas instituições e, após ter recebido várias negativas, consegui, finalmente, arrumar uma vaga. Fui ao seu encontro e ele estava no local combinado. Contei-lhe que deveria se apresentar na clínica amanhã. “Vou me recuperar mesmo!” Falou com um sorriso largo. “Vai, sim! Passo amanhã pra te levar.” No dia combinado, me desloquei em uma Kombi da instituição e ele estava aguardando. “Agora é questão de tempo e força de vontade, Manoel” Foi tudo o que lhe disse ao deixá-lo no local. Na véspera de Natal, comprei uma camisa para ele. Fui visitá-lo e notei que estava diferente, melhorou aparência e também estava mais sociável. Conversei com o psicólogo, que me disse que ele estava evoluindo e que, se continuasse assim, logo teria alta.


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Encontrei-o lendo um livro no jardim. “Bom dia, Manuel! Tudo bem contigo?” “Tudo na paz.” “Tome, é pra você! Se não for o seu número, eu troco.” Ele agradeceu pelo presente e eu fiquei de voltar dali a quinze dias para conversar novamente. No prazo prometido, regressei à clínica. Falei com o encarregado, que me disse que, hoje, ele teria alta. Estava só aguardando o médico liberar. Agradeci e fui ao encontro do Maneco. Ele estava jogando bola. Esperei terminar o jogo. “E aí? Você está bem! Fez até um gol. Se continuar, vira um craque do futebol.”. Ele deu uma gargalhada e respondeu “Que nada! Tenho que ralar muito.” “Você, provavelmente, saí hoje. Gostou da boa nova?” “Gostei, sim.” Estou querendo rever meus familiares, que não vejo há muito tempo. Tenha fé que vai dar certo. Já se passaram dois anos e qual não foi minha surpresa. Atravessei o viaduto e quem eu vejo? O Manuel. Mas, agora não era mais o único a vê-lo. Nanderson Azevedo, nascido no dia 06 de dezembro de 1957, na cidade de Campina Grande, estado da Paraíba. Desde pequeno gostava de ler e escrever. Aos 8 anos de idade fui morar em Fortaleza e iniciei os estudos. Com quinze anos aflorou em mim o estilo romântico e comecei a criar versos. Casei aos 21 anos e continuo com a minha companheira, onde esta união já dura 41 anos, onde nasceram quatro filhos. Atualmente me dedico a temas voltados para estudos da dinâmica social onde nos meus livros que estou escrevendo procuro entender o ser humano a forma que ele se relaciona com seus semelhantes e as dificuldades que ele supera e procura corrigir suas falhas, buscando equalizar as forças que atuam no contexto social.


O Livro Vermelho Thiago Campos

Eis que os moradores de Austwell, no condado de Refugio, Texas, ouviram seus próprios medos pela primeira e última vez em suas vidas miseráveis, antes mesmo que o primeiro trovão castigasse aquela terra amaldiçoada. Eu seguia John Collier a pouco mais de quatro meses, e mesmo assim não conseguia me acostumar com tantas atrocidades; não podia fugir, é claro, já havia tentando várias vezes, mas nunca consegui ir além de algumas poucas léguas, é como se ele tivesse me enfeitiçado, ou algo do tipo. No começo não conseguia dormir ou comer, esperando o momento onde se ergueria da escuridão e me mataria, mas as noites foram passando e acabei fazendo parte daquela canção. Porque ele me escolheu? Eu não sei, e duvido que algum dia obtenha quaisquer respostas. Qual é a história dele? É também uma incógnita, mas lembro bem da primeira vez que nos encontramos, acho que nunca esquecerei. Chegava próximo ao meio dia, o calor deixava isso bem claro. Ouvia-se muitas vozes do lado de fora da delegacia, o que indicava que muita gente estava chegando para presenciar aquele fim trágico. O bom xerife, Bob Adams, na casa dos seus 40 anos, acabara de chegar a delegacia depois de uma noite totalmente imersa em pesadelos e suor frio, somada a uma manhã ainda mais cansativa de perseguição a dois assaltantes de banco, que se mostraram bastantes ágeis em fugir e se esconder nas poucas casas velhas no arredor da cidade. Bob olhava agora fixamente para a silhueta do que parecia um homem esquecido por Deus, o que, ao se aproximar


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um pouco mais, mostrou ser um ótimo palpite. O homem que estava ali no chão ao fundo da cela tratava-se de John Macfort, ou o que sobrou dele após dias de incessantes interrogatórios, fome e sede. Ele parecia um cadáver estendido no chão, senão pelos dedos da mão que brincavam com o que parecia ser um rato morto a dias. Caminhando até sua cadeira, Bob vasculhava em sua memória todas as acusações sobre aquele miserável homem e toda sua complexidade. Macfort estava sendo acusado de todos os tipos hediondos de crimes, sendo os mais graves múltiplos assassinatos, torturas, incêndios e bruxaria. Chegava a ser impensável como aquele pobre homem sozinho teria cometido tais atrocidades. E havia algo mais, a forma com que ele havia agido fazia lembrar da história que ouvira em sua infância sobre um demônio sanguinário que andava sobre o deserto e que respondia pela alcunha de “John” mas não poderia ser este que encontrava-se quase morto ao chão o mesmo, ou poderia? O xerife Bob Adams nunca mais pode completar seus pensamentos, pois foi naquele mesmo instante em que John Collier surgiu pela primeira vez na vida de John Macfort, e desde então um livro vermelho é escrito sobre aquelas areias escaldantes.

* Estava frio, John Collier acabara de acender seu primeiro cigarro naquela cidade, e olhando para todos aqueles corpos mutilados de homens e mulheres seminus, misturando-se com várias garrafas de bebida quebradas ao chão, me encarou e sorriu. Aquela cena bizarra parecia divertir-lhe. Logo um pensamento novo surgiu em sua cabeça e que o deixou bastante entusiasmado. Ele apanhou seu chapéu encardido e sua bolsa velha e caminhou para fora da taberna.


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Um relinchar de cavalo, seguido de um suave trote parecia vir de algum lugar daquela escuridão. A noite fria e perversa parecia lhe engolir por inteiro, e pouco a pouco essa imagem, que mais parecia um agouro, se revelou sombria aos últimos sete moradores da cidade que se esconderam nas minas. John surgiu silencioso como que vindo das sombras, mas seu olhar revelava intenções maníacas. Não tardou a começar sua dança letal com as lâminas, e a primeira nota de sangue soou desafinada após a garganta que a soprou ser retalhada. Sangue tornou-se parte daquelas paredes de pedras quando a primeira cabeça foi decapitada; havia muita habilidade naquele movimento, era como se houvesse uma perícia médica em um açougueiro. Horror era o que fluía nos rostos das outras seis pessoas que se viam encurraladas como cordeiros frente ao lobo. Um homem gordo e de barba espessa tentou atirar em John com seu revólver quando saiu do estado de choque, no total foram disparadas quatro balas contra o rosto de John, mas balas pareciam não o ferir. Ele caminhou contra o homem, que tropeçou ao ver o súbito avanço. John se abaixou sobre o homem ainda no chão, muitos gritos cortaram a noite, naquela posição ninguém podia ver exatamente o que assassino estava fazendo, mas eu sabia muito bem. Estava abrindo a barriga daquele homem devagar, mesmo com toda a resistência e os murros, John expunha pouco a pouco as tripas do pobre homem até que só silêncio cobria o cadáver. Eu podia imaginar seu crescente sorriso manchado de sangue. Já no final dos gritos, com o penúltimo cadáver se debatendo ao chão, mostrando ser capaz de ejetar uma quantia surpreendente de sangue, algo aconteceu. John limpava sua lâmina no casaco sujo daquele corpo, com suas tripas ainda provando seu valor a terra. Ele caminhou em direção a sua última vítima daquela noite, uma menininha


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loira, suja e de olhos cinzentos, ela o aguardava de pé sem qualquer emoção, quando John se aproximou, seus olhares se cruzaram. Aquela não era só uma menininha indefesa, não... havia algo naquele olhar, algo que só se comparava com o seu próprio olhar, algo que não poderia ser chamado de alma, que o confrontava mostrando suas pequenas garras. Aqueles pequenos olhos que para muitos eram sinal de inocência, escondiam algo que John conhecia muito bem, era a ânsia por aço e sangue que o encarava. Quem não conhecesse bem John Collier diria pela sua expressão que um sentimento quase humano estava a invadi-lo, que, se fosse real, o deixaria com náuseas. Mas não, aquilo era diferente. John se flagrou maravilhado com aquela coisinha loira, ele já havia presenciado aquela cena, inúmeras vezes, durante eras, ainda sim aquilo o deixava confuso, apesar disso era bastante divertido. Na manhã seguinte, antes que o primeiro raio de sol surgisse, deixamos a cidade. John parecia ainda mais enigmático. Ele olhava fixo para o horizonte enevoado, ao mesmo tempo em que acariciava um embrulho ensopado de sangue contendo uma cabeça e muitas mechas de cabelos loiros. Thiago Campos, 25 anos, é cineasta, escritor e mochileiro. Estuda atualmente filosofia na Universidade Federal do Ceará. É escritor e administrador da página virtual-literária Contos da Val Paraiso. Entre um livro e outro, ou ainda, entre uma produção audiovisual e outra, encontra tempo para seu incessante trabalho de dar formas, cores, vida e vazio à tantos mundos literários quanto for capaz, e destruí-los, tal como fazem as divindades.


O retrato Moacir Fio

Não havia proibição declarada de falar sobre Telma; como um acordo tácito, um sentimento que se apreende no ar, sabíamos todos que deveríamos evitá-la. Não se falava de Telma sequer para proibir que se falasse de Telma. Uma visita inconsequente talvez a mencionasse, um parente distante talvez relembrasse alguma história, mas, naturalmente, a conversa mudava de rumo e Telma retornava para o limbo. De certo modo, creio eu, nossos ouvidos se acostumaram a ignorar o seu nome. Não foi sempre assim; no começo, ainda sentia-se um mal-estar, uma inquietação. Eu, criança ainda, perguntava por ela. Às vezes, a palavra vinha à mente sem ser convidada e, quando me dava conta, ela estava na ponta da língua, as sílabas coçando-me os lábios. Mas, aprendi com o tempo, com as reticências, com os olhares enviesados. Aos poucos, esqueci-me que tinha irmã, e Telma desapareceu. Até o dia em que encontrei o retrato. Mantinha-o em segredo desde que o roubara da cômoda de vovó. Nem lembro o que fazia remexendo nas camisolas de naftalina, talvez procurasse o controle da televisão que ela sempre acabava levando para o quarto. O que sei é que deparei com uma fotografia desgastada, dobrada em quatro partes, as bordas meio rasgadas. Há quantos anos esquecida na gaveta? No canto esquerdo, escrito em grafia trêmula, “Telma, 1979”. Tomei um susto. Em pensamento, falei o nome proibido.


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Meti o retrato no bolso e só fui admirá-lo mais tarde, trancado em meu quarto. Debaixo da cama, desdobrei o pequeno tesouro e lá estava ela: pequena, rechonchuda, metida num macacão amarelo, encolhida nos braços de papai. Não sorria, tampouco parecia triste; seu rosto redondo tinha certa expressão intrigada, seus olhos miúdos fitavam a câmera com curiosidade. Naquele instante, fixou-se em mim a imagem da criança inteligente, ousada, que anseia decifrar o mundo. Atravessei a noite mergulhado nos olhos de Telma. Acordei na manhã seguinte disposto a revelar meu achado. Pulei da cama cheio de ansiedade. Acreditava que, quando vissem a fotografia, papai, mamãe e vovó ficariam tão encantados que Telma voltaria a existir para nós, e de minha irmã eu saberia algo além do silêncio. Meus planos acabaram frustrados pela ausência de vovó no café que, indisposta, não saíra do quarto aquela manhã. Adiei a revelação; o impacto pretendido só seria alcançado se todos vissem o retrato ao mesmo tempo. A oportunidade que eu desejava só apareceu no jantar, quando a família se reuniu novamente à mesa. Papai na cabeceira, vovó de um lado, mamãe do outro. E eu encolhido no meu canto, a mão molhada de suor. Tomava coragem, a comida esfriando na minha frente. — Está tudo bem? Não tocou no prato — a voz de mamãe me despertou. Levei a mão ao bolso. Apertei a foto. Quando ergui os olhos, pronto para revelar a esquecida fotografia de Telma que achara, percebi que mamãe não olhava para mim. Ela e papai fitavam vovó, que segurava o garfo com a mão trêmula e a expressão perdida. Eu tinha a fotografia encerrada entre meus dedos, a


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boca aberta, prestes a dizer o nome, aquele nome, mas vovó levantou-se e nos desejou boa noite. Telma voltou para o meu bolso, terminamos a refeição em silêncio e desisti de esperar por vovó. Mostraria o retrato ao menos para papai e mamãe. Mais tarde, aconcheguei-me entre os dois no sofá da sala. Passava a novela na televisão, mas eu só pensava em como apresentar o retrato aos meus pais. Nervoso, procurei algo para me distrair e pôr os pensamentos em ordem; dei com as cortinas da janela. Na brisa noturna, dançavam como se estivessem vivas. Todo o tecido se agitava, mas as extremidades erguiam-se mais altas, lançando-se de um lado a outro, enquanto o topo se mantinha quase quieto. O movimento, porém, começava lá em cima, e as ondas desciam, crescendo em uma trama de pequenas oscilações até chegar às pontas bailarinas. A mais leve flutuação lá em cima era capaz de dar à cortina formas inesperadas. — Tenho uma coisa pra mostrar. — Já é o boletim? — papai riu. Sorri amarelo. Telma ali, tão próxima de nós, e eu estava tão feliz em tê-la comigo que sentia a necessidade de compartilhar aquele sentimento. Papai encarava-me, sorrindo, pensando ser alguma brincadeira minha. Desviei o olhar para a televisão. Começava um filme, os letreiros amarelos surgindo na tela preta, uma guitarra soando ao fundo. E, então, apareceu o nome dela e a voz do dublador ecoou em nossos ouvidos: “Thelma e Louise”. A televisão apagou-se de imediato. — O que você queria nos mostrar? — mamãe perguntou, o controle remoto ainda na mão. Desconversei. Não revelei a fotografia naquele dia, nem no dia seguinte; resolvi guardá-la para mim, apreciando-a


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em segredo, decorando cada detalhe. Naquela noite, porém, descobri onde poderia ouvir o nome dela. Fascinado, guardei dinheiro do lanche por quase um mês até comprar o filme. Quando todos dormiam, eu me arrastava em segredo para a sala, enfiava a fita no VHS e vibrava em silêncio sempre que o nome proibido era dito. Quarenta e nove vezes. Passei a ver “Thelma & Louise” quase todas as noites desde então. Convenci-me de que a pequena garotinha da foto crescera tomando a forma da Genna Davis. Por mais que ninguém na família ostentasse os cabelos meio loiros meio ruivos da atriz, aquele sorriso fácil, aquela ingenuidade e, principalmente, aquela voracidade com que ela queria viver — a personagem, não Geena, mas tanto fazia para mim — condiziam perfeitamente com o futuro que eu imaginava para a criança curiosa e aventureira que Telma havia sido. E quando o mundo lhe domou, porque todos nós cedo ou tarde abdicamos de parte da nossa essência para nos misturarmos ao caldeirão de rostos acomodados, ela conseguiu se libertar. Essa ideia foi crescendo em mim, e sempre que rebobinava o VHS eu acreditava mais nela. Já não sabia tão pouco de Telma: via o seu rosto, ouvia sua voz, conhecia o seu temperamento. Aventureira, obstinada, livre, espontânea. Cresci com a sua presença aconselhando-me, apoiando-me e, aos poucos, fui me afastando da família, onde Telma não podia existir. Até mesmo de vovó eu me distanciei, evitando sua tristeza e alheamento cada vez maiores. Trancava-me no quarto com Telma e, juntos, atravessávamos as noites. Quando tomei coragem, saí de casa. Não podia mais confinar minha irmã a um quarto apertado; os olhinhos curiosos da fotografia precisavam de largos horizontes. Guiado por eles, deixei a cidade, o estado e vaguei sem rumo, vivendo de


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bicos. Nunca me estabeleci em lugar algum, nunca arrumei emprego fixo, nunca me casei. Telma não deixava me alcançar a poeira da vida média. Estava a centenas de quilômetros de casa quando decidi voltar. Não como um filho pródigo, mas para uma despedida: decidira atravessar a fronteira e percorrer os caminhos do mundo. Apesar de tudo, eu devia aquele adeus à minha família. Fui tomado por uma profunda felicidade quando vi, de longe ainda, meus pais esperando-me na calçada de casa, ainda que meu peito se apertasse ao lembrar que Telma não poderia entrar comigo. O pacto devia ser respeitado. Mamãe tinha os olhos fundos e papai perdera o que lhe restava de cabelo, mas pareceu-me que tempo algum havia se passado. Perguntei de vovó. — Está pior — o sorriso abandonou o rosto de papai. — Não nos reconhece mais. Vovó repousava na sala, em sua antiga cadeira de balanço, magra, miúda, alquebrada. Pedi a meus pais que nos deixassem a sós. Vovó tremia de leve, mirando a televisão desligada com uma expressão diligente. Na testa, os vincos de quem tenta enxergar algo impossível. Disse-lhe algumas palavras, acarinhei-lhe o rosto, mas ela estava distante, inalcançável. Senti uma brisa lamber-me o pescoço. Novas cortinas dançavam ao vento, a mesma dança que me distraiu em uma noite distante, a mesma fluidez, a mesma maré que se avolumava por toda a extensão do tecido. Em que ponto da cortina eu estava agora? Quantas ondas eu produzira? Finalmente, dei-me conta. Levei a mão ao bolso da camisa, onde guardava o retrato que, agora percebia, vovó conseguira salvar do esquecimento. Desdobrei-o com cuidado e, quando a pequenina


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Telma surgiu, não pude deixar de sorrir. De joelhos, tomei a mão frágil de vovó entre as minhas e depositei o retrato, apertando seus dedos, as lágrimas me banhando a face. Vovó me encarava, indiferente e perdida. Beijei-lhe a testa e me despedi do retrato. Ao me virar, ouvi pela última vez a voz de minha avó. Em um sussurro rouco e vacilante, o nome proibido voltava para casa. E, então, percebi que nunca houve Telma para mim. Moacir Fio é escritor, poeta, músico e quadrinista nas horas vagas. Possui contos e poemas publicados em revistas, antologias e concursos, dedicando-se também à função de editor no Escambau, portal dedicado a publicar e divulgar os trabalhos do coletivo cultural Escambanautas


O Sexto Dia Michel Euclides Semana 03, dia 04. O indivíduo apresenta considerável desenvolvimento cognitivo. Em menos de um mês, dominou a linguagem básica de sinais. Estimo que ele possua agora o domínio sobre mais de cento e cinquenta palavras, possibilitando uma comunicação rudimentar, porém, eficaz. Pode-se perceber, também, uma relação de confiança crescente entre ele e Soya. O indivíduo reage melhor às punições, e demonstra estar menos ansioso em relação às recompensas. Apesar disso, aconselho cautela, pois o indivíduo pode estar demonstrando indícios de inteligência mais profunda. Faz-se necessária uma observação mais demorada, e mais testes, antes de qualquer conclusão.

— Manipulação, você diz? Manipulação mental? — Nada tão dramático, Soya — respondeu Arva. — Manipulação emocional. Simples. Como um cachorro que abana o rabo, ou um gato roçando em suas pernas. — Mas, ele é tão... superior a esses outros animais! Não acho que a comparação seja válida. — É por isso que eu sou o mentestador da equipe, Soya, e não você. Soya recuou, as mãos levantadas. — Desculpe — ele disse. — Isso não deveria ter saído assim.


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— Mas, saiu, e não é a primeira vez — respondeu Soya. — Eu entendo que sua graduação seja a mais alta entre nós, mas isso não é motivo para que você esteja o tempo inteiro me diminuindo. Arva colocou a mão direita sobre o peito. — Peço perdão — ele disse. — Não há justificativas para meu comportamento. Ele esticou os braços em direção a ela. Soya tentou resistir, mas acabou se aproximando e deixando-se ser abraçada. — Mais uma vez, eu o perdoo. Esse isolamento... não é fácil. Ela se afastou com um leve empurrão, agora com um sorriso, embora com os olhos ainda úmidos. Mas, ele já não prestava atenção a ela. Arva dirigia-se à jaula do H-4. O indivíduo estudava as próprias mãos com muita atenção, esquecido de tudo o que lhe rodeava. — Ei — disse Arva, sacudindo as grades de metal. — Ei! Olhe para mim, animal idiota! O indivíduo virou a cabeça, mas seus olhos estavam desfocados. Demorou um instante até parecer compreender o que se passava, então sorriu e fez, com as mãos, o sinal para “Olá”. — O que está acontecendo, Arva? O mentestador se afastou da jaula. — Ele estava olhando para nós, Soya! Você precisava ver os olhos dele! — E qual o problema? Ele não entende o que... — Foi como ele olhou, Soya! — disse, sacudindo-a pelos ombros — Ele parecia... ele estava sorrindo!


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Soya soltou-se dele e recuou dois passos. Passava as mãos onde ele a apertara. — Acho que você está imaginando coisas, Arva. Estamos acordados há muito tempo... Você sabe, o excitador, depois de um tempo, tende a causar... — Não ouse dizer que estou alucinando, Soya! Não ouse! Ela lhe virou as costas, tirou as luvas e o jaleco e saiu da sala. Arva sentou e colocou as mãos na cabeça. Só então percebeu como estava exausto. Dois dias inteiros sem dormir... ela tinha razão. Ele poderia ter imaginado. Retirou o excitador do plugue atrás da cabeça e sentiu o baque de seu metabolismo desacelerando. Tinha cinco, no máximo dez minutos antes de desmaiar de cansaço. Levantou-se, as pernas pesadas e doloridas, e caminhou até a jaula do H-4. — O que você está escondendo? — perguntou. H-4 fez o sinal de “Olá” e sorriu.

*** Semana 03, dia 06. Os resultados dos exames mostram um crescimento neural que não justifica minhas suspeitas. O cérebro de H-4 ainda é, de certa forma, infantil. Em algumas estruturas, pode-se notar também a formação de novas sinapses, mas isso não é inesperado, dado o trabalho com drogas e estimulação direta. Mesmo assim, sugiro uma observação mais atenta e a implantação de um sistema de monitoramento mais rígido.


Contos da Cuca | 186 Soya ainda acha que estou obcecado, mas sei que há algo de errado com esse... essa coisa que criamos. E provarei a ela que tenho razão. Nem que eu tenha que morrer para isso.

O lado de Arva na cama já estava frio quando ela levantou. Com certeza, a esta hora, ele estaria no laboratório, observando e testando o H-4, sua obsessão. Após um banho demorado, tomou o café da manhã — sozinha, mais uma vez — e foi até o Lab4. Ao chegar lá, encontrou a porta entreaberta. À exceção do display holográfico piscando no canto, estava tudo escuro e silencioso. Cheiro de éter. Cheiro de... Sangue? Empurrou a porta. — Arva? Podia ver, graças à luz fraca do display, frascos e armários quebrados sobre as bancadas. O braço robótico estava preso num ciclo de repetição, e ela trincou os dentes com o barulho que fazia ao subir e descer sem parar. — Arva, você está b... Soya escorregou e caiu de quatro no chão. Sentou-se e, com as mãos diante do rosto, compreendeu o que era aquele líquido escuro. — Arva? Arva, meu amor, eu estou ficando assustada... Ela tentou ficar de pé e, ao apoiar-se na grade da jaula, percebeu-a aberta. — Meu Deus! O H-4! Arv... Uma mão forte tapou-lhe a boca e ela sentiu algo pontiagudo a espetá-la nas costas.


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— Não gritar. Só nós agora. Vir comigo, So-Ya. Uma voz grave, gutural, mas articulada e compreensível. Ela sentiu a respiração quente ao lado de sua orelha e seu corpo foi inundado pela química do medo. Soya tentou se soltar, mas sentiu a ponta afiada penetrar-lhe na carne logo acima da cintura. — Não mexer, não gritar, So-Ya. Não querer fazer mal. Prometer se comportar, soltar So-Ya. Ela fez que sim com a cabeça, e sentiu o aperto relaxar. Ela se afastou e viu que ele segurava um estilete de grafocarbono. — Onde está Arva? — Morto — disse H-4. — Ar-Va mau. So-Ya não mau. So-Ya ensinar H-4 a falar. H-4 gostar de So-Ya. Ela sentiu as pernas falharem e caiu, mais uma vez, sentada no chão, sobre a poça de sangue. Sua visão ficou turva e ela sentiu que H-4 a punha nos ombros. Depois, a escuridão.

*** Semana 28. Dia 07. H-4 agora é, claramente, mais inteligente que eu. Seu domínio da linguagem é assustador. Hábil, usa seu polegar opositor como nunca nenhum de nós conseguiu. É vaidoso e muito consciente de sua sagacidade. Todos os dias, utiliza um bisturi laser alterado para raspar os pelos do rosto. “Não quero parecer com um de vocês”, diz. Ele adotou para si um nome: Ada-Oh. Em nossa língua, tanto pode significar “O Primeiro” como “Feito à imagem e semelhança do criador”. H-4... não, Ada-Oh ri da dubiedade de seu nome e fica extremamente agressivo quando não rio com ele.


Contos da Cuca | 188 Seu apetite sexual é insaciável, e ele parece não se importar com nossas... diferenças fisiológicas. Quando não está lendo ou estudando, não sai de cima de mim. Literalmente. Eu ainda não tive coragem para dizer que estou grávida, mas acredito que ele já saiba. Minhas mamas estão um pouco maiores e mais sensíveis, e meu pelo está mais sedoso. Mas, eu acho que ele se diverte quando me faz pensar que eu tenho segredos. Às vezes, eu acordo no meio da noite e me pergunto: Eu e Ada-Oh somos tão diferentes... como será esse... filhote? Será ele fértil? Olhará para mim com amor? Estou tão angustiada. Eu nunca tive tanto medo do futuro..

Michel Euclides nasceu em 1982, em Fortaleza, no Ceará. Escreve desde os doze anos, mas só aos trinta e quatro começou a se ver como escritor. Publicado em algumas antologias, é autor do site O Ladrão de Almas, e colaborador do coletivo Escambau. Fica confortável tanto na poesia quanto na literatura de horror e de ficção científica, e está quase finalizando seu primeiro livro.


Piratas de Açude Wilson Junior

Foi aos dez anos que me apaixonei por histórias de pirata. Duelos de espada e pistola, bandeiras negras flamulando, disparos de canhão e a incessante busca de terras desconhecidas. Mas uma coisa dentro das várias obras que li me intrigava. Por que o capitão sempre afundava com o navio? Fosse um intrépido e honrado capitão da Marinha Real Britânica ou um perverso e aventureiro pirata ostentado sua jolly roger, quando derrotado, seus homens escapavam a nado ou em botes, mas não o capitão. Ele ficava de pé no convés, segurando o timão enquanto a navio ia a pique, deslizando para o fundo do oceano. Meu avô dizia que era por honra e respeito às velhas tradições. Acho que ele não sabia, deu uma desculpa qualquer. Fosse eu o capitão, poderia até sair por último, garantindo a segurança dos meus homens, mas não era bobo de ficar para trás. O navio era feito de madeira, faz-se outro. Não viraria comida de peixe por causa de umas tábuas e pregos. Vovô disse que eu era jovem demais para entender aquelas coisas e me mandou brincar. Meus comparsas iam passando na porta da mercearia e gritavam meu nome. Éramos os quatro temíveis! João era bom de briga; Joaquim, o magrelo, mas corria feito uma caipora; Tiago, meu melhor amigo e primeiro imediato. Eram meus piratas e eu seu capitão. Os piratas do Açude Gordo. Conquistei minha posição numa acirrada disputa de nado. — Qual a missão de hoje, Capitão? — perguntou Tiago.


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— Vamos na casa do Tonho, ele me deve umas bilas e anda espalhando que venceu João numa queda de braço! — respondi. — Que desaforo é esse daquele cabeçudo? — disse João, já erguendo as mangas como se fosse brigar comigo. — Isso que você ouviu. A molecada da rua da Igreja disse que o novo brigador é o Tonho e que o seu reinado acabou! — Mas, não vai ficar por isso — respondeu e correu rua acima, deixando o grupo para trás. Não perdemos tempo e seguimos. Coloquei as havaianas nas mãos para facilitar a corrida e poder alcançar o garrote desembestado. As orelhas de João estavam vermelhas e os punhos cerrados quando chegamos à casa de Tonho. — Deixa que eu falo, João, senão tu assusta ele e perco minhas bilas. Gritei pelo menino cabeçudo, mas quem saiu foi dona Amelia, sua mãe. — Que que vocês querem? — Falar com o Tonho, dona Amelia, vim buscar umas bilas que deixei com ele. — Tonho, ô Tonho, venha aqui que seus amigos tão chamando. Mas, não demore que tem que fazer o dever de casa. Alguns segundos depois, o garoto apareceu. Assim que botou a cabeça para fora, esbugalhou os olhos ao ver João. Vi a culpa estampada na cara e soube que os boatos eram verdadeiros. — Vim buscar minhas bilas.


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— Que bilas? — perguntou, sonso. — As cem que você vai dar, para o João não te dar uma surra pelas mentiras que você espalhou! — Que mentiras? — Que você me ganhou no braço de ferro, cabeça-de-nós-todos! — disse João dando um passo à frente. — Eita, Tonho, te chamou de mentiroso. Vai deixar? — disse Joaquim. — Mentira nada, ganhei sim, na venda do Velho Chico! — Você me deu uma raia para eu fingir que perdi porque Dorinha tava perto. Ainda saiu me chamando de bom amigo, seu cabeça de jumento! — Cabeça de jumento! Eu não deixava! — dessa vez foi Thiago, o instigador. Não resistindo às ofensas e acreditando na lenda que criou para si mesmo, Tonho atacou João. Os dois foram ao chão, levantando poeira. Nenhum de nós se meteu: as regras do combate estipulavam um contra um. Apesar da desvantagem do ataque surpresa, João ganhou a posição e imobilizou o cabeçudo com facilidade, fazendo-o comer areia quente pedindo arrego. — O tesouro aos campeões. E serão duzentas agora, porque você resistiu. Ele entrou em casa cabisbaixo. Acompanhei apoiado na janela para ver se não contaria a dona Amelia. Não tardou e Tonho voltava, mas nas mãos não tinha a garrafa com as bilas e sim uma carabina que era quase do seu tamanho. — Corre, negrada, que o cabeçudo ficou doido! — gritei para a tripulação.


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Já estávamos no meio dos cajueiros do Seu Tadeu quando o cabeça de jumento saiu com arma pesada nos braços. Não que achássemos que ele fosse atirar de fato, mas prevenir é melhor que remediar. Seguros entre as árvores, sinto uma pancada macia em minhas costas. Quando olho para o chão, vejo um caju todo amassado e Thiago mastigando. — Eguá má! Caju não, vai pegar noda, seu baitola. Minha vó me mata! — Vamos pro açude lavar? — perguntou o primeiro imediato, culpado, mas sorrindo. — É o jeito, né? — respondi. — Quem chegar por último é a mulher do padre! — disse Joaquim e saiu correndo. — Ei, sibite, tu não pode fazer isso, tu já é o mais rápido! — gritei para o magrelo que já estava bem adiantado. Corremos, mas não conseguimos alcançar. Quando chegamos ao açude, Joaquim já se lavava na margem. — Pensei que vocês só iam chegar amanhã! — disse com um sorriso largo. Ele se orgulhava de sua capacidade de maratonista. Aproveitamos a deixa para nos juntar e eu para lavar a camisa. — Rapaz, acho que deveríamos aproveitar que estamos aqui e colocar a liderança à prova de novo — disse João, em seu rosto um sorriso cheio de malícia. — O que é isso? Motim? — perguntei, jogando água na cara do safado. Durante algum tempo, fizemos uma guerra, tudo era motivo para pequenas brigas e disputas. Quando encerramos, Thiago dessa vez puxou o assunto:


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— E então, capitão? Com medo de pôr o timão à prova? — O que o Corinthians tem com nossa conversa? — perguntou Joaquim. Meu primeiro imediato adorava usar expressões náuticas que João e Joaquim não entendiam, era uma brincadeira nossa. — Que Corinthians o quê, magrelo! Timão é aquela roda que usam para mover os barcos — respondi. — Eu não sabia que barco tinha roda. Para que precisam de roda dentro d’água? — Meu deus, vocês não assistem televisão? — perguntei. — Não em casa, só quando o pai deixa a gente assistir na praça — respondeu Joaquim, e João confirmou balançando cabeça. Fiquei envergonhado. No meu mundo de menino da cidade, todos têm televisão em casa. Nunca quis parecer esnobe. — Tenho uma figura em um livro e mostro para vocês depois. O que Thiago quer dizer é que eu deveria colocar a minha liderança à prova. — Mas, foi o que eu disse! — rebateu João. — E eu concordei, seu cabeça de ovo! — disse Thiago. — É que essa conversa toda de Corinthians me deixou confuso! Explodimos em uma gargalhada coletiva. O riso frouxo era o símbolo máximo da nossa amizade. — E então? — perguntou Joaquim. — Apesar de considerar isso uma rebelião, vou aceitar o desafio. Dessa vez, temos que nadar até a pedra e voltar!


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— Caramba, até a pedra? — disse Thiago e engoliu seco. O medo compartilhado pelos outros. — Perderam a coragem? A pedra ficava na outra margem do açude que, na verdade, não era um açude e sim a nascente do rio que cortava a cidade. — Eu topo tudo! — respondeu Joaquim. — Nem se escale, a mãe falou que a gente não deve nadar no açude sem adulto perto — disse João ao irmão mais novo. — Agora, pronto! Você né nem meu pai! — Mas, sou seu irmão mais velho, mais forte e melhor de briga. — Eu não preciso brigar com você, tu não me alcança. O pobre João ficou sem resposta e torceu o nariz. Cumprira sua missão de tentar impedir, mas era sempre em vão. Joaquim era um espírito livre. Eu e Tiago riamos da discussão dos irmãos. — Pois, eu vou ficar de fora — disse João, e se sentou emburrado na margem. — Não é como se você tivesse alguma chance! — disse Tiago. João mal sabia nadar e evitava as partes fundas, o que, de certa forma, mantinha nosso grupo sempre em segurança nas margens para não excluí-lo da brincadeira. Não nesse dia. — João, você grita a largada — eu disse. Nos preparamos. Tiago tinha a vantagem, pois eu era acostumado a piscina. Me mantive calmo e brincalhão ante a proposta, mas meu coração estava acelerado. — Uma, duas, meia e já! — o grito de João foi o nosso disparo.


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Tiago saiu na frente. Tentei manter a calma e seguir no ritmo constante. Aquilo era mais importante do que a conversa despretensiosa demonstrou. Quando cheguei por ali, era o menino da cidade. Numa disputa dessas de nado que conquistei o respeito de Tiago, e junto o dos outros. Naquele dia, ele me chamou de Capitão e conquistei meus piratas. Nadei como se não houvesse amanhã. Quando os braços cansaram, bati as pernas com mais força; quando o corpo todo doía, empurrei a dor de lado e continuei a nadar. O mundo sumiu, ao meu redor havia apenas eu e a água. Mal percebi que toquei na pedra e voltava. Não sabia se estava na frente, mas não importava. Só parei de remar quando meu braço se enfiou na lama da margem. Tirei minha cabeça da água e puxei o ar com força. — Gustavo! — gritou João. Olhei para os lados e vi que tinha vencido, era um grito de celebração da minha vitória, mas algo estava estranho em sua voz. Seu rosto branco como leite. — O que foi, João? — disse, esbaforido. — Os outros... Percebi o silêncio na água. Se eles não tinham terminado, por que estava tão quieto? Me virei e não tinha ninguém. — Cadê eles? — perguntei, mas em meu coração já tinha a resposta — Corre, João! Vai pedir ajuda, eu procuro aqui. — O menino saiu em disparada. Tentei nadar de volta, mas, ao me afastar um pouco da margem, comecei a engolir água e afundar. Saí do açude e adentrei o matagal em direção à pedra. Eu contava os minutos, consciente de que era mais tempo do que qualquer um aguentaria debaixo d’água.


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Não adiantava ajuda ou procura. Então, eu sentei. Me sentia fora do meu corpo. Vi o povo chegar e sair. Vi meu avô me levar de volta para a outra margem. Vi os pais de Joaquim, sua mãe ir ao chão, seu pai tentando manter a firmeza. Ouvi as pessoas falando sobre os sumidouros, que não era seguro entrar para procurar os corpos e tinham que esperar subir. Meus amigos agora eram corpos. O mundo parecia envolto em névoa e escuridão, tudo desaparecera. Tudo. Menos a mãe de Tiago. Vi seu olhar para mim. E, naquele momento, entendi porque o capitão afunda com o navio. Wilson Júnior, 31 anos, Historiador e Especialista em Escrita Literária. Foi o idealizador e professor do curso onde esses contos foram produzidos, atualmente dedica a sua vida a tornar literatura sua profissão, seja ministrando cursos ou escrevendo. Por ter começado a escrever tarde sempre se sente atrasado, e na maioria das vezes está mesmo.


Sol Nosso Lygia Amador

O céu exibia diversas tonalidades de laranja, que de instante em instante adquiriam novos matizes; outras cores, como o roxo, despontavam timidamente, mas logo aportavam toda a sua exuberância, insinuavam-se, mesclavam-se, formavam borrões numa espontaneidade bem orquestrada. Era ali que ao encerrar lentamente seu percurso o sol mostrava-se um virtuoso. Mas faltava-lhe plateia, toda a composição era o prelúdio para outras obrigações, as mulheres ocupavam-se da janta, os homens voltavam para casa depois da lavoura, moídos, sem notar o que havia sobre suas cabeças. As crianças, que iam à escola, retornavam fatigadas pelos conteúdos. Com fome, mal podiam com os pés e mantinham os olhos atentos no chão; recuperar-se de uma queda exigiria uma energia da qual não dispunham naquele momento. Aquelas que ficavam em casa, por sua vez, há muito adquiriram aquele fastio no olhar que mesmo numa vida adulta sofrida causa uma espécie de comoção ou de medo a depender do observador. Apenas quando o azul já empurrara grande parte do laranja, as pessoas ganhavam a rua, cadeiras nas calçadas, conversas amenas entrecortadas por risos e gritos infantis. O frescor da noite que despontava animava o espírito que o dia desgastara. D. Artemiza, da janela da sua cozinha, viu uma massa amorfa e diminuta acenando o último adeus do dia, de súbito se benzeu e se assustou com este movimento. Chegou a calçada ainda com cara de quem tinha visto assombração, foi se maldizendo da extrema sinceridade que ela respondeu para


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a vizinha que tava com palpitação de novo, mas esta também arrependeu-se da pergunta e não esticou a conversa – o medo desses assuntos era o único dique de contenção eficiente para sua curiosidade. Alguém comentou que era estranho uma noite sem lua estar tão clara. Os relógios foram consultados e constataram que ontem à mesma hora a escuridão era total. E logo cada um tateava uma explicação. Seduzidas pela cena, as crianças aproximavam-se; as mais espertas entreviram logo a anunciação de um mal e choraram. As ingênuas acreditaram no bom-senso das primeiras e acompanharam-nas. As lágrimas infantis, nas catástrofes, servem também para aferir a gravidade dos acontecimentos, afinal, tenta-se ao máximo resguardar os infantes nestes casos. De certa forma, os pais consideravam aqueles choros adiantados, ainda não era tempo para isso, era hora para saber o que viria a ser e a partir disso se desesperar, sofrer. O sofrimento estava incrustado na alma daquele povo, o pensamento estava ocupado com a falta de água e de comida, todos os dias essa incerteza, qualquer infortúnio novo era amortecido pela desgraça atual. O sol atravancado no céu incomodava, mas era na lavoura e no prato que ficava o medo. Por trás da catarata, os olhos de D. Artemiza acompanhavam a movimentação, o peito estrondava ante aquele encontro há semanas pressentido nas sutilezas da rotina: uma sensação que não conseguia distinguir, mesmo quando a comparava com todas as outras que a sua longa vida a ensinara. A sensação de agora falava com o corpo, mas não se fazia falar com a boca, não era possível articular uma descrição, as pálidas tentativas deixaram-na mais confusa. Ouvia o que cada um dos moradores conseguia construir para explicar aquela teimosia do sol em não ir embora e por dentro se


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angustiava: já sabia que o sabia, mas era um conhecimento para dentro, nunca saberia dizê-lo. Era um saber que não entendia, portanto, não se sustentava para ser útil aos outros. O tempo acomoda os sobressaltos de tal forma que o inóspito acaba por se tornar uma banalidade. Ali estavam aquelas pessoas convivendo com um sol que não se despedia. Assim como os espelhos em tempestades, os relógios eram cobertos, o andar dos ponteiros não comunicava nada, já não eram mais emissores de um acordo, o tempo era a confusão; múltiplas vozes, no início, impunham-no às cegas, crendo que ainda podiam trabalhar com a lógica de outrora, porém não se podia mais trabalhar com o tempo das certezas, era com o do absurdo que tinham que aprender e este não exigia ponteiros. O corpo acatou este tempo, embora sentisse com mais violência sua passagem. O corpo animal, o corpo vegetal, os corpos doíam mais quando submetidos àquele tempo. Todos sofriam. Rezaram. Rezavam muito e em grupo que era para ficar mais nítido aos ouvidos de deus. As mulheres iam para a casa de D. Linduína, porque era a casa mais alta, orar, pedir o fim daquele sofrimento todo. Joaquim gostava de dormir embalado pelas preces, via a dor de sua mãe e de todas as pessoas que vinham a sua casa para rezar, se compadecia, mas do alto dos seus sete anos estava mais feliz do nunca: podia dormir sem temer nenhum mal, porque estava protegido pela luz e pelas orações. As preces ditas num tom monótono e doce inundavam os cômodos da sua casa e ao preenchê-los expulsavam todos os bichos ruins que o atormentavam. Embora fosse grande a constância das tentativas, as pedras atiradas perdiam força a poucos metros, as crianças assistiam Helena brigando com o sol, do lado dela pedras e uma pontaria arredia, do lado dele uma impassividade irritante. Torciam


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por ela, gritavam seu nome com bastante ânimo, mas a heroína feita às pressas permanecia alheia ao fulgor deles. Não era novo gritarem seu nome, mas ela infelizmente não conseguia distinguir a mudança daqueles tempos para este momento. Outrora ouvira os gritos infantis e pedradas contra ela, no entanto isto lhe era indiferente agora. A pedra que acerta seu alvo causa dor. Helena aprendeu e queria ensinar ao sol: ele sentiria dor e fugiria, como ela fugiu. O desespero e o cansaço, que atrapalhavam cada vez mais o seu desempenho, o rosto crispado, Helena, finalmente, parecia sã. Creditava o seu fracasso ao não poder olhar diretamente para o sol, enquanto este, se pudesse, teria lhe dito com desdém “não a vejo”. E ela descobriria o que precisava. De tanto sol na cara, as pessoas ficaram vermelhas, somado ao mau humor permanente, elas lembravam os demônios que Joaquim tanto temia. A belicosidade masculina aflorou-se muito, em especial quando os homens perceberam que não poderiam salvar a lavoura. Nem a oração salvava Joaquim dos tormentos, as mulheres vociferavam as preces, cada palavra era emendada na outra como se elas quisessem evitar o menor intervalo silencioso possível. Ele amedrontava-se com os modos das mulheres, mas elas assustavam-se mais com que ouviam dentro de suas cabeças, era dessa voz que procuravam fugir, abafando-a com as orações. Encontraram o corpo de Helena seco no meio do terreiro. Ninguém se surpreendeu, ninguém suspeitava do que poderia ter acontecido. Era só um corpo seco, sem marcas de violência. Ninguém se surpreendeu quando D. Artemiza foi encontrada morta, ainda que um ou outro tenha dito que ultimamente ela vinha com umas conversas estranhas, dizia que sabia de algo e que aos poucos ia conseguir dizer, mas outros emendavam


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logo que a velha deixou o mundo com o mesmo tanto de juízo com que entrou. Não houve velório para nenhuma delas. Não houve para ninguém. Quando a noite chegou, já era tarde. Lygia Amador, ainda não sabe do que foi e muito menos do que será, neste ínterim é levada pela vida, uma das suas companhias prediletas no percurso é a literatura. Prefere ler, mas aprendeu que escreve por necessidade - a vida além de ofertar uma exímia condução, educa.



Sufocados Oziel Herbert

Caminhava pela rua escura a caminho de casa. O cilindro tilintava, o visor embaçara. Suava, as pernas tremiam. Um estrondo e ela virou corpo comprimido na calçada, empapado de sangue. Uma sombra leva sua máscara e seu gás. O despertador toca, apartando Eliomar do pesadelo reprisado. Com esforço, ele senta no colchão. A rigidez da coluna incomoda. Tenta levantar, sente pontadas nos joelhos e cai. Apoia-se na parede, tenta outra vez. Solta um grito engasgado. Fica de pé, ofegante. Coloca o tanque de O2 no carrinho e puxa o peso até o banheiro. Chega à câmara de vidro, as portas selam. O ar venenoso é retirado pelo maquinário. Uma combinação respirável penetra o recinto. Retira a máscara. Inspira. Dedos de ar apalpam suas narinas, peregrinam através dos brônquios e difundem-se em seus pulmões. Expira, relaxando os ombros. O lábio inferior tremelica e a voz chia, extasiada. Olha-se no espelho. Cutuca a pele enrugada e os fios brancos. Avalia as olheiras sob os olhos frustrados. Água cai do teto, limpa os cabelos com os dedos em pente. Pelo ralo escoam sujeira e problema. Um banho de atmosfera. Os anos de economia valeram a pena, Marlene... “Seu banho acabará em quinze segundos”, diz a máquina. Eliomar coloca a máscara, liga o tanque. O banho acaba. As portas abrem, o sulfeto atmosférico invade. Ele põe o macacão da fábrica e arrasta o carro até a cozinha. Conecta a embalagem de um complexo nutricional ao tubo pelo qual respira, liga a televisão e atenta às notícias na Rede Lobo enquanto


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engole a papa que vem do pacote. Em meio as futilidades, a jornalista diz que a aposentadoria será adiada. Com alguns cortes, economistas renomados apontam todas as vantagens da nova idade e como a terceira geração pode contribuir com a sociedade. O programa prossegue, convidando um antigo cantor que trabalha como produtor musical. “É gratificante”, diz o músico, “Tudo o que conquistei veio do esforço próprio e não de benefícios governistas. O maior problema do Brasil são as classes onerosas que não contribuem e ainda querem comer com nossos impostos. Tenho 70 e ainda trabalho. Não morri por isso, não é”? A câmera recua para a âncora que diz, “Obrigado pela entrevista, Sr. Santana. E no próximo bloco: Professores, como a extinção da classe dispendiosa tornará o Brasil um país ainda mais próspero”. Eliomar desliga a televisão, abaixa a cabeça. Seu pé martela o chão. A mão vai à testa suada. Ele olha para o seu banheiro e sorri, enxuga o suor e caminha até a porta do apartamento. Pouco antes de sair, cartas caem. Contas, algumas com aviso de atraso. O pé sacode. Ele respira fundo e sai de casa. Encontra Rafael no elevador. “Tá morando lá em cima, Rafa?” O rapaz gargalha. “Não, mas a Juçara está.” “Safado sortudo! É verdade que ela tem um quarto de vidro?” Eliomar bate em seu ombro. Rafael confirma. “Tiramos as máscaras e nos beijamos. Foram os melhores 15 minutos da minha vida.” “Todo esse tempo?” “Sim. Foi fantástico. Nem sei como ela se apaixonou por um zé-ninguém feito eu.” Eliomar abaixa a cabeça, os olhos marejados. “Eliomar? Oi? Que houve, amigo?” “Lembrei da Marlene, Rafa.” Rafael não sabe o que dizer. Aperta-lhe o ombro, compadecido, pensa em abraçá-lo. Não era incomum. Um ladrão leva seus suportes e você sufoca numa sarjeta. Acontece sempre. A porta abre e Eliomar apressa-se, fugindo do assunto.


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Cruzam a portaria, caminham quatro quarteirões até a Avenida dos Funcionários para pegar a condução. Pneus arrastam-se nas calçadas sob o céu verde limão e nuvens amarelo-mostarda apinhadas de sulfeto. Na parada, há uma criança mal vestida com um tanque enferrujado nas costas. O ônibus chega, a rampa desce e o rebanho sobe acotovelando-se na busca de assentos vagos. Mãos agarram os ferros para evitar a inércia, cilindros tilintam com o chacoalhar da condução, a menina diz, “Senhores passageiros, desculpe incomodar o silêncio da sua viagem, mas eu preciso de uma doação, um arzinho de nada, qualquer centímetro cúbico serve, tenho pouco, se acaba eu caio na pista e num levanto mais, tenho certeza que não lhe vai faltar e que Deus dá em dobro”. Poucos se compadecem, Rafael é um deles. A pedinte agradece, pula a catraca, dá sinal e vai para o próximo ônibus. “Rafa, cê já tá com o dinheiro do cilindro da Marlene?” “Ainda não, mas próximo mês eu te pago.” “Porra, Rafa, tu distribui ar e não tem minha grana?” “Te pago próximo mês, quando sair a aposentadoria.” “Não ficou sabendo?” “Do quê?” “Adiaram, só daqui a 5 anos.” “5 anos?!” “Sim.” “Porra, Eliomar, que tranquilidade é essa? Que merda, trabalhei a vida toda, vou trabalhar a vida inteira! Que droga! Merda!” “Eu trabalhei a vida toda, Rafa. Não estou morto, estou? E eu até tenho um banheiro. Para de reclamar que é mais jogo.” “Viver devia ser mais que trabalhar e ter coisas!” “Mas não é”, diz Eliomar. As portas se abrem e dezenas descem na indústria, centenas continuam no aperto coletivo. Na esquina, dois corpos desmascarados. “Todo dia isso”, diz Rafael. Eliomar bate o pé. Eles trocam um aperto de mão e separaram-se. Eliomar conduz seu carrinho até a sala do forno, conduz o carrinho de um lado a outro, informando aos peões quais placas de metal entravam


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e saiam das imensas caixas de metal. O resto do trabalho era automático. A trava eletrônica fechava no horário determinado para derreter o metal. Uma pontada veio em seu joelho. Eliomar titubeou, caiu por cima de um funcionário, derrubando-o num dos fornos. Trancafiado pelo sistema, o trabalhador bate no vidro. Ele grita. Ele esperneia. O forno liga em três segundos. Os colegas apertam todos os botões. Eliomar bate o pé. A temperatura faz a máscara borbulhar sobre seu rosto. Os olhos espocam, manchando a lente. Estoura o cilindro de O2. Fios, cacos e pedaços se carne são lançados pelo ar. Sujos de sangue, os funcionários voltam a trabalhar. Eliomar senta na sala de espera. Calcanhar bate o chão feito britadeira. A testa está suada. “Pode entrar”, diz um jovem gordo de máscara transparente. “O que aconteceu nos fornos hoje”, ele olha para o crachá, “Eliomar?” “Um acidente, Sr. Clóvis.” “Acidente?” “Sim, chefe.” “Terei de demiti-lo, Eliomar.” “Demitir-me? Por que?” “Cada forno desses custa uma fortuna. Você não tem condições de me reembolsar.” O pé palpita. “Sr. Clóvis, eu mereço uma promoção.” O chefe dá uma risada. “Pelo quê?” “Você não encontrara alguém mais qualificado que eu para gerenciar esta sede e sem gerente, você teria de vir aqui todos os dias, trabalhar feito um peão até achar alguém apropriado.” O rosto do chefe franziu. “Bom ponto, mas meu filhote está vindo da Europa esses dias. Acho bom dar a ele uma experiência profissional por aqui.” Eliomar levanta-se e segura seu braço. “Me largue.” “Sr. Clóvis, eu sei de tudo que acontece nesta empresa.” “Me largue.” “Sr. Clóvis, eu contarei a sua esposa sobre suas traições.” O chefe esbofeteia seu rosto. “Me largue e agradeça a Deus por eu não chamar a polícia.” Eliomar solta-o, abaixa a cabeça. “Agradeça.” “Obrigado, Sr. Clóvis.” “Me dê seu passe de ônibus.” “Sr. Clóvis, você não


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tem direito.” “Eliomar, o que tem escrito em seu passe em letras grandes e quadriculadas?” Eliomar retira o cartão e lê: “Berços Isolantes Guerreira, garantindo a saúde pulmonar do seu bebê.” “Você trabalha nesta indústria?” “Não.” Ele estende a mão, o velho deixa o cartão sobre a palma aberta. Caminha pela rua escura a caminho de casa. O cilindro tilinta. A máscara embaça. A testa soa, as pernas tremem. De quando em quando os joelhos reclamam e ele caí na beira da calçada, chorando. O tanque se liberta do carro. Bate no meio-fio, o som do metal ecoa na avenida, feito uma overdose de serpentes. Ele coloca o reservatório no carrinho, olha para os lados. O calcanhar tirita no calçamento. Ele se levanta, as costas resmungam, os joelhos clamam por misericórdia. Ele geme. Levanta-se. Um passo de cada vez. Leva a mão ao ombro, massageia-o, prossegue. Falta pouco. Outra pontada, outra queda. Encosta as costas na parede, levanta. Só um quarteirão. “Passa o gás, filho da puta!”, diz um homem que leva um tanque enferrujado amarrado com trapos nas costas. “O quê!?” Eliomar olha para trás, buscando ajuda. “Passa o gás, merda!” “ Não, você não pode fazer isso comigo!” “Passa logo!” Ele atira em sua coxa. O velho grita e cai. O homem abaixa-se e puxa sua máscara. O cheiro de ovo podre invade suas narinas, ele agarra um paralelepípedo solto e tenta acertar a cabeça do inimigo. O golpe rala as costas do oponente que o esmurra em resposta. O homem toma sua máscara e seu tanque enquanto ele tosse, chora e grita. “Não é justo, você não pode tirar o que é meu!” Tenta segurar a respiração, mas o cérebro estúpido insiste e traga o ar intoxicado. Seus olhos queimam. Ele esmurra o chão, o gosto de sangue se espalha em sua boca. De pé, o ladrão conclui a troca. Parece perturbado com o que vê, mas há paz em seu semblante. “Desculpa, tio, mas


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eu não vou sufocar não. Desculpa.” Ele coloca o tanque nas costas e vai embora. Eliomar se levanta, apoia na parede, cospe sangue. Ao primeiro passo, os joelhos o derrubam. Ele caí de cara, deixa um dente amarelo para trás. Tenta não respirar. Respira. O sulfeto marcha em seus pulmões, cavalos de guerra pisoteiam suas entranhas. Cruza o quarteirão, rastejando até o apartamento, entra, ignora o porteiro e os olhares abismados das pessoas no saguão. Manca até o elevador. Ouve a voz de Rafael chamando por trás. Entra, tonteia e treme, aperta o botão de fechar a porta, escolhe o andar. Rafael o alcança no elevador e corre para as escadas. Juçara está paralisada. O porteiro leva a mão a cabeça. Um homem sem máscara é um morto-vivo. O velho tosse sangue, cai no chão frio. A porta abre e ele se arrasta até seu apê. Rafael chega pelas escadas. “Eliomar?! Eliomar espera!” O velho tranca-se dentro de casa. “Eliomar, abre a porta Eliomar.” Escorrega até o piso. “Eliomar, abre a porta!” Sua respiração acelera, ele chora lágrimas amarelas, ácidas. Levanta-se, está entorpecido, as dores nas juntas desaparecem. Ele chuta a mesa onde comia, olha para a casa, os poucos móveis entulhados naqueles míseros metros quadrados. Vai até o lugar onde guardava o tanque e a máscara de Marlene. Ainda há esperança. O armário está vazio. Havia vendido o equipamento para Rafael. Não há esperança. Leva as mãos à cabeça, grita. Seus dedos tremem violentamente. Chegou nos nervos. Morreria em minutos. Corre para o banheiro, lacra as portas. O ar tóxico é expelido. O ar respirável penetra. Vai ao espelho, mas escorrega, bate a cabeça no vidro e cai de cara no piso, quebra o nariz. Não sente, era mais dormência que gente. Vê sua imagem em pedaços nos cacos.


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A água cai. Ele escoa lágrimas mestiças, de sangue e sulfeto. “O banho acaba em 15 segundos”, diz a voz metálica. Ele ri. O chuveiro desliga. “Que desperdício, Marlene.”

Oziel Herbert, é escritor, roteirista, fanzineiro e realizador audiovisual.



Sonha Alice Wesley Jones

Era esse o pensamento que estava passando pela cabeça de todos ali presentes. Argh! Isso sempre acontece. As mesmas piadinhas de sempre. Ok, talvez eu seja uma garota de dezesseis anos muito sonhadora (e um pouco iludida). Mas, já deu, certo? As pessoas insistem em fazer esse trocadilho com o meu nome sempre que surge uma oportunidade. Meu cabelo loiro não ajuda muito, me deixa mais parecida com a protagonista de Alice no País das Maravilhas. Bom, pelo menos naquela ocasião, ninguém falou nada a respeito, mas tenho certeza que vontade de fazê-lo alguém ali teve. – Aqui! – levantei a mão, respondendo à chamada do primeiro dia de aula do curso de inglês. A professora registrou minha presença e prosseguiu com a lista de alunos. A aula ia demorar e tudo o que eu mais queria era ir para casa. Meus pensamentos estavam na sexta-feira anterior, o dia mais emocionante da minha vida. Eu finalmente tinha dado meu primeiro beijo e, melhor ainda, com o menino que eu gostava. Sempre fui uma garota muito romântica. Fantasiava muito com os garotos em quem ficava interessada. Mas, esses momentos perfeitos nunca ultrapassavam as barreiras da minha imaginação. Mas, agora era diferente. Já havia beijado um garoto. E o Henrique era tudo de bom, um verdadeiro deus grego, lindo demais. Reparei nele umas duas semanas atrás, quando mudou de turno, passando para o horário que eu estudava. Pena que ele era de outra turma. Mas, o fato de a gente estar na mesma série já era um assunto que eu podia


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abordar com ele. Certo? E foi assim, num belo dia, à procura de alguém para me ajudar em Matemática, que eu falei com ele. Tudo bem, eu sou ótima nessa matéria, era só um pretexto para puxar assunto, claro. Pode me dar seu WhatsApp para o caso de eu ter alguma dúvida? E, assim, mantivemos contato. A professora terminou a chamada e iniciou a aula. Tentei ao máximo prestar atenção ao que ela estava explicando, mas sempre voltava a pensar no Henrique. O garoto que havia me dito que eu era super especial. O garoto que disse que eu era linda. O garoto que, com aquele beijo, me fez ir ao País das Maravilhas e voltar. O garoto que eu ia encontrar naquela noite na festa de São João da escola. Exatamente por isso que eu estava contando os minutos para a aula de inglês acabar. As horas se arrastaram até que, finalmente, a aula acabou. Corri para o ponto de ônibus. Com certeza, os ônibus estavam lotados. Esperei um pouco e percebi que estava certa. Já dentro do veículo, que mais parecia uma lata de sardinha de tão cheio e apertado que estava, recebi uma mensagem do Otávio, meu melhor amigo. E aí, Alice? Já fez os pontinhos nas bochechas pra festa? 17:10

Eu ainda não acreditava que ia a caráter para aquela festa. Odeio São João, e o Otávio sabe disso. Ele também sabe que só vou por causa do Henrique. O que ele não sabe é sobre o beijo. Não havia contado a ele o que tinha rolado. Claro que confiava nele, afinal, era meu melhor amigo. Só queria revelar quando fosse algo mais sério com o Henrique, e tinha certeza que ia ser. Eu tinha encontrado o grande amor da minha vida, a minha “metade da laranja”. Cliquei para responder à mensagem.


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E você? Já cuidou da sua barba artificial? 17:11

Cheguei em casa e fui direto para o meu quarto. Minha mãe ainda não havia chegado do trabalho. A festa seria em duas horas e precisava começar a me arrumar. Meu celular vibrou com a notificação de uma nova mensagem. Era o Henrique. Aquela mensagem me “Henriqueceu” de vontade de ficar deslumbrante para a festa. Se é que se pode ficar deslumbrante vestida de matuta... Te aguardo lá na festa daqui a pouco. Não demora muito. Não quero ficar sozinho. Beijos. 17:35

Não, claro que meu coração não saltitou dentro do meu peito. Óbvio que não. Imagina. Ele só deu uns cem giros de 360 graus, acelerou como se eu estivesse em uma montanha-russa e quase saiu pela boca. Era isso que o Henrique fazia comigo, e eu mal podia esperar para encontrá-lo. Algo me dizia que aquela festa seria inesquecível...

*** – Pensei que você não curtisse festa de São João... Eu e minha mãe estávamos quase chegando na escola. Depois de ter insistido tanto para ela me ajudar a me vestir e maquiar, óbvio que ia desconfiar da minha superprodução para uma festa que eu nem gostava do estilo. – Eu não gosto, mãe. É que o Otávio insistiu tanto que eu resolvi ir – respondi, tentando soar o mais verdadeira possível.


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Se minha expressão denunciou a mentira mal lavada, ela fingiu não notar. Chegando na escola, me despedi e saí do carro. Minha mãe disse para avisar quando a festa acabasse que ela viria me buscar. Concordei com a cabeça e fui em direção à entrada. Chegando lá, não avistei ninguém conhecido. Quer dizer, não avistei ninguém que eu conhecesse de verdade, conhecido sempre tem. Será que o Otávio já havia chegado? E o Henrique? Estava tudo muito enfeitado. Tudo colorido. Todo mundo cheio de adereços que, provavelmente, tinham relação com o São João. A única coisa que eu tinha certeza que pertencia ao tema era minha blusa xadrez e os pontinhos nas bochechas. Aliás, todo mundo ali estava usando blusa xadrez. Boa, Alice. Acertou nisso. Pra quem não entende do tema, até que dá pro gasto. Chegando no ginásio, avistei o Otávio. – E aí, vai ser o par de quem na Quadrilha? – ele brincou quando cheguei perto. Ri e o abracei. – Só se for do Espantalho. – Ele riu, retribuiu o abraço e disse que tinha visto o Henrique perto do estande dos noivos da Quadrilha. Que ele estava tirando umas fotos lá. Falei que ia procurá-lo e que depois voltaria. Realmente, tinha umas pessoas tirando fotos com os noivos. Quer dizer, só com o noivo. A noiva estava... cometendo adultério. Era a Carla, uma aluna do primeiro ano. Ela estava um pouco distante do estande, aos beijos com... Quem era aquele garoto? Espera, eu conhecia bem aquele cabelo castanho e liso. Eu tinha acariciado aquela cabeleira na sexta-feira passada quando beijei o seu dono. Era o Henrique. Ele a estava beijando de uma forma tão íntima. No impulso, fui até lá.


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– Oi, Henrique – disse, fazendo cara de deboche. Ele interrompeu o beijo e me olhou, incomodado, como se eu fosse um chiclete na sola do seu sapato. – Oi, ah... é... – ele gaguejou. Pensei que estava pensando em alguma explicação para me dar, mas percebi que na verdade ele estava tentando lembrar meu nome. O que eu estou fazendo aqui, meu Deus? – Gabriela – falei um nome aleatório. – Isso! – ele disse, se “lembrando” do meu nome – Eu mandei mensagem avisando para você vir logo. Parece que ela aqui chegou primeiro... – ele indicou a Carla. Ele nem lembrava o nome dela também. Que cafajeste. Naquele momento, não pensei nas palavras carinhosas que o Henrique havia me dito. Não pensei nos seus olhos cor de mel que me encantaram tanto. Não pensei nem na mensagem que ele havia me mandado mais cedo, dizendo que aguardava minha companhia na festa. A única coisa que pensei foi no pé-de-moleque que uma moça ao lado estava comendo. Minha vontade era de tomar da mão dela e esfregá-lo na cara do Henrique. Calma, Alice. A Carla deu um sorrisinho cínico para mim como se falasse: “Perdeu, otária.” Não, eu não ia me prestar àquele papel. Apenas ignorei os dois e me afastei. Não ia chorar ali. Não na frente de todos. Respirei fundo e fui ao banheiro, com as lágrimas queimando meus olhos, tentando ao máximo segurá-las. Chegando lá, não me contive. Desabei no choro. Um choro silencioso, quase inaudível. Sentia um nó no meu peito que parecia crescer cada vez mais. Eu quero ficar só com você. Lembrei das


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palavras do Henrique. Da forma como fez eu me sentir única, achando que ele sentia o mesmo que eu. Como pude me iludir dessa forma? Agora, sei que não passo de uma qualquer para ele. Ele não merece meu esforço. Não merece minha atenção. Não merece minhas lágrimas. Enxuguei o rosto e me olhei no espelho. Minhas bochechas estavam manchadas de preto por causa das lágrimas que desfizeram os pontinhos. Limpei depressa e saí do banheiro. Precisava encontrar o Otávio. Ele estava conversando com uns amigos. Quando me viu me aproximar, veio até mim. – Achou o Henrique? O abracei com toda força que pude. As lágrimas ameaçaram a voltar. Não falei nada, ele também não perguntou nada. Ele me conhecia bem o suficiente para saber que eu estava devastada no momento. Sabia que, se eu quisesse, falaria. Claro que suspeitava que era algo com o Henrique. Ficamos ali, abraçados por um tempo, até que me desvencilhei dele. – Vou ligar pra minha mãe vir me buscar – avisei. – Tudo bem. Qualquer coisa, pode me ligar. – Ele me abraçou e, então, fui em direção à saída. Liguei para minha mãe, sentei na calçada e fiquei aguardando. Meu primeiro beijo não foi tão especial assim. A verdade é que eu fantasiei demais. Aquele beijo para ele foi só coisa de momento. Nada duradouro. E, agora, aqui estou eu. Quebrei a cara. Vai de novo, Alice. Preciso aprender a controlar meus sentimentos. Pensar bem antes de me entregar de bandeja a alguém. Preciso aprender a não cair na lábia de mais ninguém. Minha vontade era de voltar naquela festa, pegar um pedaço de bolo de milho e esfregar no vestido da noiva adúltera e na cara do infeliz do Henrique.


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Vai lá, faz isso, vai! Nem pensar! Não perca mais seu tempo com aquele babaca! Volta lá e beija um garoto na frente dele! Claro que não, nada disso! Ai, ai, ai, Dona Alice! Perdeu o juízo? Esqueça ele e vá embora. Se bem que eu iria adorar ver a reação do Henrique com esse beijo... Não! Não faça isso! Bola pra frente! Aqueles pensamentos estavam me deixando maluca. – ALIIICEEEEEE! Levei um susto. Era minha mãe gritando do carro. Levantei depressa e fui até ela. Quando entrei no carro, ela virou para mim: – Eu buzinei umas cinco vezes e você não ouviu. Estava no mundo da lua? Caramba. Eu realmente estava perdida nos meus pensamentos. Apenas ri e coloquei o cinto de segurança. – Como foi a festa? – minha mãe perguntou. – Foi ótima – menti.

*** As festas continuaram durante a semana inteira na escola. Porém, só fui na que teve no primeiro dia. Não lembro muito bem do que aconteceu quando cheguei em casa depois daquela festa. A única coisa que lembro foi de ter corrido para o meu quarto e desabado no choro. Sabe quando você chora tanto a ponto de cair no sono? Pois é, foi assim que adormeci naquela noite. Parece que aquilo aconteceu em outra vida, mas foi apenas uma semana atrás. Chorei muito nos dias que


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sucederam aquela festa, fiquei muito abatida. Alterei o contato do Henrique para Desgraçado que me iludiu como forma de repulsa. Para que, quando eu pensasse em mandar mensagem para ele, visse aquela nomenclatura, lembrasse do que aquele traste me fez e, assim, fechasse a conversa. Fiquei em casa o restante da semana, mergulhada em minha dor e desilusão. Porém, sabia que precisava superar o Henrique. Precisava apagar a imagem do garoto perfeito que imaginei que ele fosse. Realmente, a Alice aqui estava sonhando acordada. Sonha, Alice. Essa frase nunca fez tanto sentido para mim como agora. Pode deixar, estou muito bem acordada agora. Sempre fui romântica. Sempre acreditei que, um dia, meu príncipe encantado iria aparecer, cativar meu coração e viveríamos felizes para sempre. Clássico conto de fadas. Não, eu não preciso ficar à espera de alguém para ser feliz. Não posso viver achando que minha vida só vai ganhar um rumo quando tiver um amor ao meu lado. Claro que ter alguém com você para compartilhar momentos, se emocionar, viver ao seu lado, é ótimo. Mas, viver à espera disso não vale a pena. Principalmente, se você achar que qualquer um que se aproxima é o amor da sua vida e se entregar fácil. Depositei minha felicidade no Henrique e olha no que deu. Nunca devemos deixar nossa felicidade nas mãos de uma pessoa. O amor próprio é essencial. Um amor vem para agregar a você, não para completar. Você já é completo. Você é autossuficiente. Você mesmo pode ser sua metade da laranja. Sinta-se especial por você mesmo, não só quando alguém fizer você se sentir assim. Esse foi o meu mantra durante a semana, mas pensar é mais fácil do que realizar... No domingo, fui dormir bem tarde, pois estava conversando com o Otávio pelo celular. Já me sentia melhor. A bateria já


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estava quase acabando. Eram três horas da manhã quando chega uma nova notificação. Pensei ser do Otávio. Quando abri o WhatsApp e vi quem havia enviado, senti um frio na barriga. Desgraçado que me iludiu Oi, linda. Saudades. Vai pra escola hoje? 03:05

Wesley Jones, 19 anos, técnico em Redes de Computadores. Alice, a protagonista de seu conto, sempre esteve presente em sua mente, só estava à espera de uma oportunidade para ganhar vida. Além do amor por livros, Wesley também tem uma fascinação muito grande por teatro e astronomia.


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