Istambul o Mundo a seus pés

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iReportagem

ISTAMBUL O MUNDO A SEUS PÉS 28

—12 Março 2010


Um vapur, os ferries que cruzam o Bósforo dezenas de vezes por dia

iREPORTAGEM PARTE I

iReportagem Coordenação Miguel Sousa Tavares

Quando cheguei a Istambul a noite já caía e a primeira coisa em que reparei, vindo do aeroporto, foi numa enorme fila de navios a perder de vista que esperavam ao largo a sua vez de atravessarem o estreito do Bósforo. “Chegam a estar aí durante dias”, disse-me o motorista. Mais adiante, pedi-lhe que parasse junto de um mercado de peixe ao ar livre e saí para admirar as canastras de peixe expostas à entrada das vendas-restaurantes: gosto de conhecer os países também pelo peixe que comem. Ainda ouvi o canto dos muezzins a ecoar pela cidade no instante em que o Sol se punha no horizonte asiático. No ar subiam fumos e o cheiro a café de uma pequena loja a cuja porta parámos. Mais tarde, depois de jantar, subi a um prédio muito alto de onde me tinham dito que se podia ver a cidade em todas as direcções. E vi: Istambul era uma festa de luzes e água por todos os lados, navios que passavam, vozes que se levantavam, milénios de idas e vindas, de chegadas e partidas, que repousavam no ar quieto da noite. Europa ou Ásia? Que importa? Istambul é apenas deslumbrante.

TEXTOS

Tiago Salazar

FOTOGRAFIA

Pedro Loureiro

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iReportagem

Flaubert viu derviches rodopiantes e acalmou a sífilis nos bordéis. Twain ficou fascinado com as matilhas de cães. Pamuk dedicou-lhe um livro. No rasto dos escritores viajantes, deixámo-nos encantar pela exótica Istambul

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O hüzün, a doença que afecta 14 milhões de almas turcas e um sentimento sem igual que une a cidade aos seus habitantes, está para a Istambul do escritor Orham Pamuk como o desejo absurdo de sofrer esteve para o poeta Cesário Verde, a melancolia para Pessoa ou a saudade para qualquer alfacinha sentimental. Pensar tal coisa na véspera de partir era augúrio feliz para uma alma fadista. Embora a minha Istambul seja de hoje em diante a Istambul de Pamuk, de patologia infantil, indolente e nostálgica, fui imbuído de quimeras exóticas e logo quis saber do afamado fado turco, o hüzün, chamamento de longa data de ilustres viajantes, como Ferreira de Castro, Mark Twain, Gustave Flaubert, Pierre Loti ou o angustiado Nerval. Quando cheguei, o muezzin entoava o seu cântico nos altifalantes do aeroporto e logo ali saudei a fé do islão, pois graças ao corneteiro orador pude escapar-me a uma fila interminável de crentes mobilizados em tapetes, esteiras e capachos como peças de dominó. De todos os relatos de viagens a Istambul, retinha as memórias mais vivas de Flaubert e dos seus tormentos fálicos, além das ironias de Twain com os “bárbaros rituais” derviches de precisos rodopiares num só pé em busca do êxtase e da união divina, hoje uma das maiores atracções de feira da cidade, como os índios de cera de Manaus. Flaubert atracou no Bósforo a 21 de Outubro de 1850, acompanhado do amigo repórter fotográfico Maxime du Camp, e logo nesse dia viu os derviches sufis a fazerem rodopiar o manto branco, experimentou o transe do narguilé numa meyahne (taberna) e recolheu aos bordéis de Beyoglu para mitigar os ardores da sífilis (o frengi trazido pelos Francos, da Europa) contraída na Voyage en Orient que o trouxera do Cairo, Jerusalém e Beirute. Não demorou a qualificar a passagem por Istambul de “imunda” e “detes-

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tável”. Cidade maldita, distante do seu imaginário do Oriente exótico “tanado do beduíno e do deserto, das profundezas escarlates de África, do crocodilo, do camelo e da girafa”. Ali encontra apenas prostíbulos, cemitérios (o seu único consolo na cidade, onde, além de partilhar a paz dos mortos, podia beber um ditoso chá), ninhos vazios de cegonhas e uma intempérie danada. O desconsolo leva-o a escrever como um possesso cartas dirigidas à mãe e aos amigos em que se mostra atraído por tudo o que é estranho, assustador, sujo e bizarro. Interessa-se

pelas putas, sobretudo pelas dos cemitérios, de quem são clientes soldados em trânsito e o próprio autor em ritual de investigação, apesar das sete chagas do membro ulcerado. Clama contra o contágio de origem incerta, entre a investida turca e maronita, e inaugura o debate da encruzilhada de mundos. “Foi a turca ou a cristã, qual das duas? Problema? Questão de pensamento!!! Eis um dos aspectos da Questão do Oriente de que ‘La Revue des Deux Mondes’ nem suspeita”, escreve à mãe. Os infortúnios de Flaubert estendem-se ao frio siberiano

da cidade, aos ventos que sopram do mar Negro, ao vaivém das multidões ou ao afundamento das pedras tumulares “que se perdem na terra como a memória dos mortos esquecidos através dos tempos”. Nas cartas escritas com a sinceridade e o rigor do verbo que o tornarão célebre como romancista, precede sempre a data com a palavra em desuso “Constantinopla”, como se a única cidade que lhe interessasse fosse a da memória romana longínqua, distante dos contágios da perversão ocidental, em particular da doença do turismo sensualista que come-


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01 Pedi ao meu guia uma iniciação ao bas fond da cidade. Ele próprio era desde os 16 frequentador assíduo de bordéis onde no fim o serviço inclui um banho turco 02 As jovens turcas voltaram a usar os lenços tradicionais como acessório de moda e para se pouparem a olhares indiscretos. É esta geração do Dubai Dream que domina hoje “a cidade europeia”. 03 Osnan, 58 anos, vendedor de tapetes. Nas pausas de almoço sobe à mansarda de binóculos, instala-se na gávea da loja e anota as centenas de embarcações que cruzam o Bósforo

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Jean Cocteau comparou Istambul com “uma velha mão coberta de anéis preciosos estendida para a Europa” A cidade oscila entre o grandioso e o fétido, o apogeu e a ruína, o aroma a ciprestes e o fumo eterno dos vapur Com 400 divisões e um tesouro magnífico, o Topkapi só se compara com o Palácio dos Habsburgos de Viena

çara a esboçar-se por culpa dos seus conterrâneos fantasistas. FATAH DO AMOR Deixei a Istambul de Pamuk para o dia seguinte e decidi explorar o roteiro do sórdido de Flaubert logo na primeira ronda da noite. Soner Tufan, 25 anos, o meu drogman (guia), um turco expedito da Capadócia, sabia desses paradeiros terríveis e não se sentiu chocado quando lhe pedi uma iniciação (literária) ao bas-fond da cidade. Ele próprio era desde os 16 anos um assíduo de casas de putas, como a maioria dos turcos, para quem o sexo livre, ao alcance de qualquer homem solteiro no Ocidente, é um fruto proibido antes do casamento. Talvez essa fatah do amor ao natural explique o carão da maioria dos turcos quando se corteja as suas mulheres. Alguns estrangeiros, de olhares concupiscentes e com pouca sorte, poderão mesmo acabar uma viagem prazenteira no vapur (o cacilheiro istambulense) de olho à Belenenses ou defenestrados e levados na correnteza com a maldição de Alá. Longe do perigo eminente do galanteio na via pública, o melhor ainda é fazer como S. Tomé e ver o bordel para crer nas páginas de Flaubert glosadas por Pamuk. O eleito por Soner ficava em Beyoglu, bairro boémio onde a juventude turca manda o hüzün e as tradições às urtigas com penáltis de raki (leite de leão), a aguardente de anis que adoçava as noites do escritor Nerval e o terá levado mais depressa ao suicídio. Descemos então, eu, Soner e o fantasma de Flaubert, por uma viela íngreme e medonha de empedrado musgoso, agarrados ombro a ombro como dois compadres de longa data. Paramos à porta de um casebre de tabique a ameaçar colapso, o último lugar para um viajante sentimental se entregar às alegrias do coito, mas um esplendor para a luxúria literá-

ria. No lugar da Madame estão dois polícias a jogar gamão no sossego de uma guarita (“o município controla o negócio”, sussurra-me). Soner bate no guichet. Um dos polícias levanta-se a passo fúnebre e informa que a casa está cheia, mas temos vaga dentro de três quartos de hora – a entrada são 50 liras (24 euros) à hora por cabeça para um serviço completo, banho (turco) incluído. Agrada-me o banho e pergunto a Soner se os bordéis mantêm a tradição purificadora dos haréns. Duas horas mais tarde tirarei a limpo que o banho do bordel é apenas uma limpeza final, na fronteira ténue entre a massagem e o espancamento. Enquanto fazemos horas, Soner quer saber qual é o verdadeiro interesse da minha visita. Se é trabalho ou conhaque. Explico-lhe que não trago intenções de divagar sobre os meneios lúbricos das turcas. Quero apenas ver se a atmosfera mantém o aparato “sujo” e “imundo” descrito por Flaubert há um século e recordado por Orham Pamuk na sua obra “Istambul: Memórias de Uma Cidade”. Por esta altura, reduzido a um magro socalco de escada na noite escura e glaciar, já confirmara a decrepitude das ruas frequentadas pelo cliente francês. Já provara do mosto a latrina suspenso no ar à mistura com o fumo caramelizado dos vapur que se cheira por toda a parte. A freguesia do bordel é escassa e a entrada formal, como quem vai ao cinema e pede na bilheteira um fellatio no lugar de uma frisa. Entramos a par, depois de preenchida uma ficha de presença e informados das regras do trânsito – as mais jovens para a esquerda e as mais entradas para a direita. Uma adolescente poliglota não têm ao serviço, como a meretriz das epístolas de Flaubert, nem Madames mamalhudas de corpete e chibata. Apenas rapacontinua na página seguinte >>

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iReportagem

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rigas do Leste, vindas com a última leva de emigrantes em busca de melhor sorte. A pensão é dirigida por um turco atracado a uma cadeira, como um funcionário de museu, que indica os quartos com um assobio conforme vaguem. Depois do silvo de ataque, passo a ficha ao turco e sigo caminho para a ala esquerda, com Soner à ilharga a imitar os silvos do turco. Subo as escadas da espelunca com medo que desabem, alegrando-me com a esperança de ver sair aos gritos de um quarto algum senhor furibundo com a falta de maneiras de uma rameira. De resto, quanto a detalhes sórdidos e avanços narrativos, tanto fazia estar ali como em qualquer lupanar da Cochinchina. DO OUTRO LADO DO ESTREITO Descem-se as colinas íngremes de Beyoglu, os subúrbios tristes e silenciosos rente às casas de madeira com janelas em sacada, e logo se desemboca na Ponte Gálata e na confluência das águas simétricas do Bósforo e do Corno de Ouro, que divide Istambul em duas partes. Um longo mar navegado por vapur e mais um número incontável de embarcações, de navios-cisterna a cargueiros escuros e ferrugentos, de fragatas a barcos de passageiros. Através dos prédios começam a divisarse as silhuetas da cidade velha, paisagem interminável que se espraia da colina do Palácio Topkapi ao farol da Ponta do Serralho, a célebre “paisagem de Istambul” que enamorou um sem-número de pintores impressionistas, como Dufy, ou o ilustrador alemão Melling (e o próprio Pamuk, no seu passado artístico). Na paisagem figuram ainda os seis minaretes da Mesquita Azul e as “chaminés” de Santa Sofia, a catedral-mesquita, obra-prima bizantina usurpada na sua fé após a queda de Constantinopla nas mãos dos otomanos. É à medida que se desce o olhar (como se se descerrassem as cortinas para a soirée) que a cidade nos acontece. Por exemplo, na alameda de pescadores debruçados sobre a ponte como pintores de aguarelas à espera da luz perfeita, do grande peixe ou apenas a derramar a melancolia sobre a ondulação. Das 800 mil imagens do fotógrafo Ara Guler, o maior hagiógrafo de Istambul, juntamente com Pamuk, bastaria uma para reconhecer a essência da cidade: dois pescadores de roupas gastas, cinzentas e fantasmáticas num bote atracado sobre o feixe da Lua coada no Bósforo debaixo da Ponte Gálata. Como Pamuk, prefiro a cidade à noite, a preto-e-branco, quando se firma o pacto entre o sonho e a lenda. Diz o turco: “E tenho a impressão que o escuro da noite irá cobrir a miséria da vida, das ruas e dos objectos, e que, inspirando e expirando no interior das casas, nos quartos e nas camas, todos ficaremos perante os sonhos e as ilusões da antiga riqueza de Istambul, agora tão longínqua, e perante os seus monumentos e lendas perdidas.” A miséria, essa, não se distrai. Excepto quando viramos o olhar para o outro extremo, no Farol do Serralho e na colina de Topkapi, e sentimos toda a força do comentário de Jean Cocteau, para quem Istambul era como “uma velha

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mão coberta de anéis preciosos estendida para a Europa”. Cocteau fazia alusão ao tesouro do Topkapi e às suas 400 divisões, obra mor do arquitecto Sinan para Solimão, O Magnífico, apenas comparável com o Palácio dos Habsburgos de Viena ou o Hermitage dos czares russos. Toda a cidade oscila entre o grandioso e o fétido, o apogeu e a ruína, a catástrofe e o renascimento, o aroma a ciprestes e o fumo eterno dos vapur. Percebe-se depressa a “cidade dura” gravada nas palavras de Ian Flemming ou a cidade nostálgica do marinheiro Corto Maltese, que imagino de cigarro lânguido nos jardins do Hipódromo, diante do obelisco de Teodósio, antes de rumar a Samarcanda – na véspera do encontro com o Enver Bey, o ministro da Guerra em 1914 e carrasco no massacre arménio no Cáucaso. A bizarria de contar os barcos não é só de Pamuk, mas de muitos naturais da cidade, como Osnan, 58 anos, vendedor de tapetes em Sultanhamet. Nas pausas de almoço, Osnan sobe à mansarda de binóculos e caderninho e instala-se na gávea da loja (o seu mihrab, altar das mesquitas) contando as largas centenas de embarcações que cruzam o Bósforo e o mar de Mármara a caminho do Egeu e do mar Negro. Observa-lhes os movimentos e regista os trânsitos suspeitos como os espiões americanos, que fica-


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01 Os cacilheiros do Bósforo, os vapur, estão cheios de mulheres bonitas com maridos possessivos. Os estrangeiros atrevidos arriscam-se a acabar a viagem de olho à Belenenses 02 Banca de adoração ao loiríssimo Mustafa Kemal Atatürk, o pai da Turquia moderna, que separou o Estado da religião 03 Uma das muitas matilhas de cães espalhadas pela cidade e que levaram ao rubro viajantes escritores como Mark Twain e Orham Pamuk

ram célebres por fotografarem todos os barcos comunistas que ali passavam a partir do posto de vigia secreto de uma colina vizinha. As fragatas de guerra soviéticas deram lugar a navios de cruzeiros (“indignos de serem contados”, diz), mas na cabeça de Osnan não se pode facilitar o controlo das águas. “Quem domina os estreitos domina o mundo, e os russos sabem-no há muito tempo. Prefiro os russos aos americanos, que só trazem problemas e não largam notas. Só compram tapetes, e sem regatear”, arreganha-se Osnan com os seus molares de oiro. Dali comanda-se a entrada do mar Negro e o comércio da Europa com a Ásia, ainda a sua força maior, que faz de cada turco um vendedor potencial e de qualquer lugar da cidade um mercado improvisado. Enquanto um leigo só a custo distingue rebocadores, ferries, barcaças e cruzadores, Osnan observa-os ao pormenor, do pavilhão ao madeiramento do casco, de fragatas a petroleiros, navios-cisterna a taka dos pescadores de

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ver esse navio e o Bósforo, janelas que cortam a vista umas às outras e que se erguem implacavelmente contras as outras”, sublinha Pamuk. E depois as aves. Gaivotas, pombas, corvos… ou gatos e cães em amena confraria de animais de paz e rapina. A síntese insólita de aldeia e cidade, onde é possível um carneiro balir de uma janela ou uma cabra dormir num telhado. Ainda a cidade de contrastes, como a viu o português Ferreira de Castro em meados do século passado. “Grande burgo de quási um milhão de almas (hoje 14 milhões), Estambul é um misto de cidade e de aldeia. Nunca se percebe, nitidamente, onde começa uma e acaba a outra. […] A cidade está cheia de gatos, pombas e corvos. […] Uns e outras saem de todos os buracos da cidade, de todos os terraços, de todos os minaretes, de todas as cúpulas, de todos os monumentos funerários – e invadem tudo.” A estes falta somar as matilhas de cães dispersas por toda a cidade que levaram ao rubro os viajantes escritores, de Lamar-

Um polícia informa que o bordel está cheio. Temos vaga dentro de 45 minutos. O serviço completo custa 24 euros “Prefiro os russos aos americanos, que só compram tapetes sem regatear”, diz um vendedor de tapetes No dia em que chegou, Flaubert viu derviches sufis a rodopiar e experimentou um narguilé numa taberna Trabzon. Porquê? “Um misto de prazer e prudência”, dirá algures entre umas passas no narguilé e uns golos ruidosos de chá. Tanto pode ser pelo puro gozo do ócio e da contemplação como por temor de que lhe roubem o belo Bósforo, paradeiro estratégico e coração da geopolítica, cobiçado há 26 séculos – desde a chegada do marujo de Mégara de nome Byzas – por nações de exércitos. MATILHAS LIBERTINAS O mais certo é o

viajante que se der ao trabalho de ver à lupa dar com milhares de janelas ávidas, como se todas estivessem orientadas na mesma direcção. “Janelas abertas para

tine a Nerval, de Mark Twain a Pamuk, que os vê iguais na libertinagem aos cães bizantinos e otomanos. “Estes cães – todos parecidos, numa massa cinzento-escura, uma mistura de cores em que nenhuma delas sobressai –, que se passeiam pela cidade com a sua imutável sugestão de liberdade e força, apesar de todas as tentativas de ocidentalização e de modernização, apesar dos golpes de Estado militares, apesar do Estado, da disciplina escolar e dos preceitos e discursos municipais inspirados pelo Ocidente, lembram que nas misteriosas extremidades nervosas da cidade, mais que a força estatal e do poder, conta o senti-

mento de frivolidade, de deixa-andar e de ternura que vagabundeia um pouco por todo o lado, ao acaso”, escreve nas suas memórias. O cão-livre de Pamuk é a metáfora certeira do natural da cidade. Meio século antes, o viajante Ferreira de Castro mostrara-se já atento ao progresso e à jovem República turca, “de feição ocidental e revolucionária”. “Grandes são os resultados já colhidos, sobretudo em Angora, pois este povo de tantas qualidades, agora aliado do Progresso, procura renovar-se de dia para dia – e está realizando uma obra admirável. Mas, em Estambul, o passado encontra-se muito perto ainda e só as novas gerações conseguirão libertar-se de todos os remotos costumes.” DUBAI DREAM Nos anos 50, o jovenzinho Pamuk encarna a premonição do português. “Na minha infância interessava-me muito pouco por Bizâncio, como, de resto, a maioria dos turcos de Istambul. O nome de Bizâncio evocava em mim nessa época as barbas e as roupas assustadoras de padres ortodoxos, os arcos bizantinos espalhados pela cidade, as velhas igrejas de tijolo vermelho e Santa Sofia. Os próprios otomanos que tinham conquistado e posto termo ao Império Bizantino já pareciam, por sua vez, muito longínquos.” É esta geração pós-pamukiana, a “nova civilização” entusiasta do Dubai Dream, que domina hoje a “cidade europeia”. Um admirável mundo velho onde o islão do fez e do muezzin não anda na rua. Bairros como Besiktas, Nisantasi ou Taksim, domínio da avenida Istiklai, uma espécie de Rua Arbat moscovita colonizada por lojas de grife, fachadas Art nouveau e trams, os eléctricos comprados à Carris nos anos 90 e usados no trânsito regular. Ruas colonizadas por um elenco de vítimas da moda para quem Constantinopla, Bizâncio ou Nova Roma assentam melhor no letreiro de uma loja de design, bar trendy ou hotel hip (os termos de caução da modernidade). Os “remotos costumes” da língua, do alfabeto, da religião, dos trajes e rodopios derviches nas praças e jardins, dos tekke ou dos tapetes alimentam somente as páginas nostálgicas de Pamuk e o imaginário dos estreantes na cidade.

Leia no i de amanhã a parte II desta reportagem

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iReportagem

iREPORTAGEM PARTE II

iReportagem Coordenação Miguel Sousa Tavares Istambul pela mão do Nobel Orham Pamuk. Ou de outros escritores, como Flaubert, Mark Twain ou o nosso Ferreira de Castro. Não admira que os escritores tenham tomado conta da cidade. Ou os pintores. Ou outros artistas, como os fabricantes de tapetes e lanternas do Grande Bazar. Não admira que a cidade nos agarre com os seus braços líquidos, nos deixe tontos com os seus sons, canse o olhar de tão excessiva beleza. Não admira que por ela tenham lutado romanos e cruzados e tantos outros, para sempre prisioneiros de Constantinopla.Vá, vamos embora, que esta cidade inquieta. Como se aqui, por fim, estivéssemos frente a frente com a verdadeira encruzilhada sem saída.

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Fados e mistérios de Istambul

Noites à Kusturica, banquetes oferecidos pelo Bósforo e costeletas com baklava. Assim culmina a viagem no rasto do Nobel Orham Pamuk

D a antiga Istambul ficaram nas entranhas das ruas as casas de madeira vazias e cambadas. Os vendedores de melancias da Praça de Tophane que Melling retratou à lupa e cujas bancas de venda de fruta em equilíbrio prodigioso em nada mudaram. Lá estão ainda, há séculos, as crianças levadas por mães solitárias vistas por Téophile Gautier no livro “Constantinople” (1852) – “a mulher que passeia com um filho é sempre considerada mais respeitável do que andando sozinha, sendo por isso menos importunada” – e que deixam de se ver depois do pôr do Sol. As chusmas de pescadores à linha nos cais pacíficos de Besiktas ou nas águas revoltas da Ponte Gálata. Gente de todas as classes e idades que ali gasta a vida, como sempre foi, guardada para a posteridade na objectiva de Ara Guler ou nos relatos delicados de Pamuk. E o Bósforo, a garganta turca, uma das maiores fontes de felicidade das famílias da cidade quando nada mais consola. Os vendedores de simit e o seu pregão mono-

córdico, que caminham sem deter o olhar em nada, indiferentes à paisagem ou ao esmagamento da arquitectura. Os barqueiros exaltados uns com os outros pelo resgate de clientela. Os subúrbios tristes de Karaköy, Sishane ou Beyazit, onde a Lua trespassa as bandeiras com o crescente, dependuradas nos estendais ao lado de peúgas, e camiseiros no lugar do fez e do kafetan. Ou então uma outra cidade suspensa no tempo, de barbeiros queixosos com a crise e a queda nas escanhoadelas. De cafés e tabernas apinhados de homens de fala viril e delicados saracoteares de chávena. De livrarias de alfarrabistas onde só entram estrangeiros à procura das obras do turcófilo Pierre Loti. De mulheres quase sempre sozinhas, ou em bando como corvos, de lenços islâmicos na cabeça sem que nada as obrigue a isso, apenas para se pouparem a olhares indiscretos. De proxenetas que palitam os dentes abrigados na meia-luz de candeeiros no intervalo das caçadas a turistas perdidos. De marinheiros de cabotagem sentados nas amuradas de balde aos pés, que olham os passantes ao desafio. De criancinhas de batas e bibes em filas ordeiras a saírem de colégios encimados pelo retrato do pai da Turquia, Atatürk, em pose de dandy. Das gentes apressadas que entram e saem dos vapur no trânsito corriqueiro entre a Europa e a Ásia, da aurora à noite cerrada. Do cântico do muezzin que se ouve a todo o pano e se evola pela neblina dos ares para dar lugar ao clamor das sereias de um vapur. E vejo então mais do que nunca a cidade falada com minúcia por Pamuk. As mulheres perdidas nas paragens de autocarro, belas e intangíveis como nos qua-

dros de Melling. As crianças de bola de trapos a fintarem as multidões que se acotovelam nas docas de Sirkeci e Eminönü. Os estaleiros abandonados. As mulheres presas às janelas na espera infinita dos maridos perdidos até de madrugada nos bordéis e nas tabernas. Os velhos comerciantes de opúsculos religiosos, de turbantes depostos nos pátios das mesquitas a tamborilarem as ladainhas do grande Alcorão. Os luares do Bósforo trinados por cantores de fasil, esse irmão de sangue do fado que é a voz materna de Istambul, como as sereias e o muezzin. Vagueei eu também


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01 A Mesquita Azul, no centro de Istambul, com os seus seis minaretes. Lá dentro a luz aparece coada em tons de azul, branco e dourado 02 Nos luares do Bósforo, ao som do fasil, esse irmão de sangue do fado, reconheço a cidade descrita com minúcia por Pamuk 03 Já saciado de sargo e a apreciar uma dúzia de acepipes com nomes intraduzíveis, salta da cozinha um grupo de músicos que podiam ter saído de um filme de Kusturica

ferir a Istambul a sua marca poderosa, plena e rica de beleza. Para os que ainda restam de pé, bastariam umas pinceladas de Bondex para voltarem à vida.

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na noite de lua cheia à procura das barcaças “amontoadas em cacho no mar” e dos preparativos de um dia inteiro para o canto do fasil. Mas esse mundo morto deu lugar ao fasil para turista ouvir, tocado ao engano por simulacros de músicos. Tal como acabou há muito a viagem de remadores de caíques que no Verão vendiam fruta, cada um agarrado a um mastro a navegar de yali em yali e de angra em angra. Um comércio marítimo à margem dos opulentos casarões de madeira, os endereços dos filhos de paxás que os viajantes ocidentais do século XIX diziam con-

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Os vestígios das três civilizações que habitaram a cidade saltam de cada pedra como em nenhum outro lugar do mundo Soner, o guia, cumpre o Ramadão fumando um maço de tabaco extra e chama a Alá o “Grande Bacano”

MANJAR DO BÓSFORO Solares trocados na sua grandeza por apartamentos de aluguer, quartos decrépitos e uma vaga recente de hotéis históricos, a maioria incendiados por mão criminosa para instalar o novo turismo. Assim me teria ido de Istambul aturdido por uma tristeza diferente do hüzün, não fora a avaria do táxi na marginal de Kennedy Caddesi e a saída airosa para uma lota atravancada de barqueiros felizes como crianças, de roda dos seus sargos e cantorias. Atrás das lotas bulhentas havia uma mão-cheia de restaurantes de salas escancaradas sobre o Bósforo, cada um dotado do seu ancoradouro e timoneiro que salta da barcaça onde foi à pesca e faz as vezes de chefe de sala. Pressente-se então o que faz os naturais da cidade orgulharem-se do Bósforo, ou seja, da fonte inesgotável de generosos benefícios, garante de saúde e consolo dos homens, fonte de perenidade de Istambul e da vida. Tudo isto me chegará à mesa numa bandeja de sargos empoleirada no punho do próprio chefe de barba em cone. Já saciado de sargo e a educar as papilas com anchovas e uma dúzia de acepipes de nomes intraduzíveis (mas tão comestíveis como o melhor caviar iraniano), salta da cozinha um elenco de músicos à medida de um filme de Kusturica. Não para alegrar a mesa de forasteiro incauto e angariar o dízimo, mas na pausa dos refogados. Erzrum, 52 anos, o proprietário, aquece as unhas na cítara e solta um gemido como um toiro acabado de trespassar. Os apóstolos dedilham o baixo e uma viola de caixa e fazem coro nos gemidos. Na hora seguinte, Ezrun cantará as dores e alegrias universais, a morte, o fracasso, a traição, a bebida, a comida, as catástrofes (incêndios, maremotos, terramotos…) ou pequenas sátiras de cornudos e rudezas domésticas. Deduz-se depressa que o fasil tem filiação poética e sonora nas dualidades do fado. Eis a variante musical do hüzün, depois das sereias e dos pescadores indolentes do Bósforo, dos olhos tristes das prostitutas, dos entardeceres na Ponte Gálata entre pescadores a engolir golfadas de vento poyraz, o vento que sopra do mar Negro e encapela as angras. A continua na página seguinte >>

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iReportagem

04 As crianças levadas pelas mães que se vêem durante todo o dia desaparecem das ruas depois do pôr do Sol

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05 Este boi estava morto há horas, mas os urros dos carrascos, à mistura com as evocações a Alá, não andariam longe do derradeiro ulular do bicho

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angústia do lugar que parece não ter princípio nem fim e onde as mais espessas multidões são esmagadas pela desmesura como num plano infinito. Uma cidade de carga mística com a importância dos ciprestes nos jardins muçulmanos. De resto, a palavra “hüzün” é de origem árabe e vem referida cinco vezes no Alcorão. Trata-se, segundo Pamuk, de um “estado de alma”, muito próximo da melancolia, “que se enraíza numa perda que aflige profundamente”. Remete em simultâneo para um sentimento importante na música local, um termo fundamental na poesia Divan, e para um ponto de vista sobre a vida, um estado de espírito e um material que faz com que a cidade seja o que é. Pamuk encontra parte da explicação na história turca e nas consequências do desmoronamento do Império Otomano, bem como nos efeitos da paisagem da cidade. “Os naturais de Istambul sempre viveram a sua cidade com um sentimento a preto-e-branco, por razões técnicas contra as quais não lutaram o suficiente e que aceitaram como um fado [...] em perfeita harmonia com a sua tristeza.” Ou, como sublinha mais de uma vez: “A vida não pode ser assim tão má. Seja como for, no fim de contas podemos sempre ir dar um passeio para os lados do Bósforo.” RAMADÃO E UM MAÇO DE MARLBOUROUGH

Soner não me foi indicado por nenhuma agência de acolhimento a repórteres andarilhos. Esbarrei com o pequeno e simpático Aladino no átrio da imensa Mesquita Suleimana, ou Mesquita Azul para os forasteiros. Um encontro providencial. Além de pastorear almas por Istambul em troca de cigarros Marlborough, é um arqueólogo clandestino – acusa os oficiais de tratarem as relíquias da pátria como contas bancárias. O maior interesse de Soner é entender o que ali traz, desde a antiguidade, gregos, genoveses, judeus ou, mais recentemente, sibaritas do petróleo e oligarcas russos. Soner, um “light muslim”, cumpre o Ramadão fumando um maço extra e chama a Alá o “Grande Bacano”. Enquanto pasmava diante do efeito azul (e branco e dourado) da mesquita, derramado sobre um milhão de arabescos, mosaicos, azulejos e paredes a pique cinzeladas, ouvi uma voz de bardo levantar-se acima da grafonola do muezzin – e do chilreio imparável de um coro de aves que não se

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calam noite e dia, voejando entre os ciprestes do Hipódromo romano e os minaretes e encostas de Topkapi. “Iznik”, disse Soner, seguido de “Sinan”, como se aquelas duas palavras fossem o santo-e-senha para desvendar os mistérios da caverna de AliBabá. Segundo ele, foram precisos mais de 40 ladrões, uma porção de escravos e apenas um sultão magnânimo para levantar a obra-prima de Sinan, cuja finalidade terá sido abafar a grandeza da vizinha catedral de Santa Sofia. Tirando os seis minaretes, número raro na arquitectura das mesquitas turcas, é mais pequena e menos espectacular que Santa Sofia. “1 a 0 para os cristãos”, dirá Soner. No resto, como era hábito do islão, conserva a inspiração helenística, os pátios centrais, colunatas, arcadas e cúpulas que reproduzem o modelo bizantino. Conquistada a cidade pelos novos senhores de Bizâncio, Santa Sofia passou a ter dois minaretes em forma de chaminés industriais ao lado dos campanários cristãos. Parte da explicação da bonomia religiosa de Istambul, que mil anos depois continua a juntar em amena confraria todos os credos, deve-se a uma singularidade pacifista dos califas, de tratar os indígenas sob ocupação como gado superior. Isto desde que pagassem impostos e acatassem as regras do capitalismo mercantil precoce. O ópio do povo, além da religião, era o que se chama hoje “clearing”, ou seja, a especulação ilimitada de mercadorias que tem o seu expoente na Istambul moderna no Grande Bazar, um empório de 14 mil lojas, onde se acha do brocado grego ao açafrão iraniano, do vidro de Alepo aos tecidos listrados do Iémen, como explicava o autor árabe Hatiti pela boca de um negociante do século IX. Embora as guerras otomanas e bizantinas fossem contínuas, nunca ou quase nunca a causa religiosa veio para primeiro plano. A luta era quase sempre política e não religiosa – prova disso é a questão moderna do separatismo arménio e o infame Artigo 301 do Código Penal, que levou à acusação pública de escritores como Pamuk ou Elif Safak por insulto à pátria. Qual a fidelidade mais forte, a Deus ou Alá, nunca se apurou, mas só com o fervor laico da república kemalista de Atartük (ou Mustafá Kemal Pasa, o pai dos turcos, que impediu todos os cultos), o monumento recuperou a sua dignidade original – chegou a ser, durante séculos, o maior templo cristão do mundo, até à construção da Basílica de São Pedro. A febre laica levou à remoção dos escudos gigantescos com as palavras caligrafadas do profeta Maomé pendurados a 50 metros de altura, mas a ira divina acabou por vencer, com os escudos a voltarem à origem por não passarem em nenhuma porta. Os turistas cristãos boquiabertos passam revista à basílica. Insurgem-se com eco contra a tomada dos símbolos e a paródia islâmica de ter deixado apenas um fresco com a santíssima trindade para afirmar a vitória sem réplica do regime de ferro e da ortodoxia. Os ateus, indiferentes aos delírios da religião, maravilham-se com a caligrafia dos apóstolos do Alcorão. Espantam-se com os pedaços de tecidos atados nos túmulos dos xeques ou as velas sempre acesas nas sepulturas dos templos ou dos Çay Bahçesi (jardins-cemitérios casas de chá). Contentam-se com o pensamen-


to de que, por mais derrocadas de impérios, exércitos libertadores, mãos ensanguentadas de sultões lavadas em fontanários, séculos de frustrações e hostilidades, as gaivotas da antiga Bizâncio nunca deixaram de voar, nem a graça e a força das tulipas deixou de florescer. Ao contrário do que vaticinava Flaubert, esta Babilónia, este colosso do grande luxo (e da miséria assustadora), modelo de civilização imperial e cidade-luz como Roma, Bagdade, Cairo, Samarra, Bassorá, Damasco, Túnis (a encarnação de Cartago), Cór-

te seis séculos capital do Império Otomano, até a república de Atatürk declarar a independência, em 1919. É este mosaico histórico ruidoso que permite cruzar no espaço de uma rua a poesia sufi, a engenharia bizantina das cisternas e aquedutos, a higiene romana dos hamman, o comércio berbere, os surtos demográficos de todo o islão industrioso, a arte otomana (as faianças, os bordados, as miniaturas), a máquina militar e os seus espantosos exércitos ou os versículos do Profeta – e perguntarmo-nos onde está a decadência do islão

ou caprino, quando dei com um vestígio bizantino, nada menos que o cume do aqueduto justiniano que levava água do Bósforo aos planaltos de Istambul. A cidade é assim inesperada. “Não se encontra o que se procura mas o que se encontra”, como diz Miguel Sousa Tavares no livro “Sul”. E por detrás de uma lixeira aprumada pode sempre aparecer uma relíquia milenar. Os tempos gloriosos, as horas nobres do islão, a história e os vestígios das três grandes civilizações que habitaram a cidade saltam de cada pedra como em nenhuma outra

As multidões de pescadores à linha dominam os cais pacíficos de Besiktas. O Bósforo é generoso “A vida não pode ser assim tão má. Afinal podemos sempre ir dar um passeio para os lados do Bósforo”, escreveu Pamuk dova… não viria a tornar-se a “capital da Terra”, desmoronando-se uma e outra vez. Assentamento grego no ponto onde o estreito do Bósforo – que une o mar Negro ao Mediterrâneo, possibilitando rotas comerciais entre a Ásia e a Europa – se junta a um braço de seis quilómetros de águas conhecido como Corno de Ouro. Anexada ao Império Romano no ano de 73 e transformada na sua sede oriental, rebaptizada Nova Roma pelo imperador Constantino em 330, futura Constantinopla, a todo-poderosa capital do Império Bizantino foi duran-

quando 99% dos seus filhos o professam, mesmo trocando as palavras e as obras do Profeta por uma dose reforçada de Marlborough ou Lucky Strike em segunda escolha? FALECIDOS CHIFRUDOS Quando cheguei decorria o maior feriado religioso depois do Ramadão, o Kurban Bayrami. Na verdade, o Kurban Bayrami veio até mim na forma de moelas e costeletas panadas. Andarilhava eu ao Alá dará pelos subúrbios tristes de Fatih à cata de sangue bovino, ovino

do mundo. Escreve Pamuk: “O arco mais modesto, a fonte mais pequena enterrada em toneladas de betão, a mesquita mais pobre nos bairros afastados, por mais maltratados e esquecidos que estejam, fazem sentir com dor aos milhões de pessoas que vivem entre essas memórias – tanto como as grandes mesquitas monumentais e os edifícios históricos da cidade – que são resíduos de um grande império. Em Istambul as pessoas limitam-se a viver no meio desses vestígios.” Pasmado com os engenhosos calhaus de

3 mil anos, quase não dava pelo velho ritual sagrado em honra das papilas do profeta Abraão que decorria do outro lado da rua, numa garagem convertida em cafurna de sacrifícios. Estava num antro de prazeres, ao nível do bordel de Beyoglu onde me levara Soner. O boi decapitado estava bem morto há um par de horas, mas os urros dos carrascos (à mistura com as evocações de Alá) continuavam e não andariam longe do derradeiro ulular do bicho. Cheguei-me ao talho como quem pergunta se o autocarro demora e fui cercado por um rebanho de muçulmanos de barbichas aparadas dispostos a converter-me às maravilhas gastronómicas do islão. Um deles fazia circular um machado nos ares, para que cada um dos carrascos assestasse a lâmina no cachaço, nos cornos ou no lombo do bicho sacrificado, conforme a sua habilidade e pujança. Ainda mal chegara e já me enfartavam de chá, baklavas e um generoso pires de moelas. Aceitei o chá escaldado e aconcheguei-me num banquinho a ouvir o concílio dos maometanos enquanto arrefecia. Quando me disse vegetariano, para escapar a uma ceia de costeletas panadas, um dos mais novos arrancou com uma ladainha imparável, sem que lhe tivesse perguntado nada. Dizia ele “we love animals. Killing is a sacrifice like Abraham’s son killed”. E de cada vez que saía de ao pé de mim alçava o machado como um temível janízaro e rachava mais um bocadinho dos cornos do bicho, perante um coro de gargalhadas. Alcei então a chávena e proferi um “xerefé”, como quem reza um sutra pela alma do chifrudo falecido. PUB

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