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O povo Tapeba do Ceará
Digital
Galeria 15
GABRIEL MAZIVE: MÃOS SAGRADAS ARTES
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Não tenho nada a dizer que eu próprio não sei o que é Entrevista a escritor moçambicano Lucílio Manjate
Timbila: Música e mistério
Letras 08
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ndice
Setembro 2013
04 - Efeméride
nosmocambique@gmail.com
07 - Literatura Com uma escrita ―formal‖ porém, uma ―orgia de loucos‖ lá vai o prosador construindo os seus marcos na história da nossa literatura. Falamos com o escritor, o crítico e docente de literatura moçambicana… Lucílio Manjate
30 anos da Escola Nacional de Mú Museu de História Natural
Colunas Gonzana – Reviver com 24 Sabor Por Niosta Cossa
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Cartas ao Mundo Por Dhiogo Coetano
15 - Galeria
Fotografias de Rogério Rodrigues
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17 - Música
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A ciência tenta chegar à verdade sobre o som da Timbila, instrumento musical tradicional moçambicano e, por outro, há os fazedores não param de embarcar nos seus mistérios. falaremos de um grupo de música que trabalha na base da Timbila, os Timbila Muzimba.
A Poesia de Eduardo White: Do amor ao desencanto e à morte Por Lara Fabiana Videira
Ensaio
21 - Artes Plásticas
Jorge Dias olhar o passado de soslaio, abraçar avidamente o presente de Alda Costa
GABRIEL MAZIVE – MÃOS SAGRADAS
Escultura
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A Confissão de Julieta
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Bairro Baixo (I)
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Camilo Pesenha na Intimidade
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Poesia de Jaime Munguambe Júnior
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Poesia de Izidine Jaime
Conto Romance
Crítica
Poesia
Poesia
Seja um de Nós. Escreva-nos pelo e-mail: nosmocambique@gmail.com
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DIRECTOR Eduardo Quive Edição Mensal n.º 04 Matola — Setembro 2013 Distribuição electrónica ENDEREÇO Av. Mártires da Machava, 904 Bairro Patrice Lumumba - Matola E-mail: nosmocambique@gmail.com Celular: +258 82 27 17 645
COLABORADORES Adelto Gonçalves (Brasil) Dhiogo Caetano Lara Fabiana Videira (Portugal) Nélio Nhamposse Eduardo White Niosta Cossa Jaime Munguambe Júnior Izidine Jaime Tito Selemane FOTOGRAFIA Bantus Imagem Marcos Vieira (Brasil) Rogério Rodrigues (Brasil) PROJECTO GRÁFICO Bantus Imagem
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nosmocambique@gmail.com
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ESCOLA NACIONAL DE MÚSICA FAZ 30 ANOS
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oçambique é um país de tradição oral muito forte. O canto e a dança são mais do que uma interpretação, são estilos de vida, são o povo e o seu quotidiano. Moçambicanos nasceram no tom e a na voz, moçambicanos nasceram cantando. Algum dia, o povo deveria saber que toda essa combinação de voz, ritmo e instrumentos, pode ser aprendido. De toda uma tradição oral de música celebrando o nascimento, música invocando os espíritos, música em cerimónias de vida e da morte, fez-se descobrir que se pode aperfeiçoar o dom.
Foi tendo em conta todo esse valor e estilo de vida, que em 1983 foi fundada a primeira e a única, até agora, escola pública de música e ficou denominada: Escola Nacional de Música. Um lugar não que necessariamente mora a música, mas onde se podem moldar os músicos do futuro: Aos 09 anos de Idade, as crianças já podem entrar na Escola Nacional de Música e lidar com os instrumentos musicais que, dentre eles, a voz não se exclui como lugar de morada desse género artístico. Num país com tradição musical muito forte, onde há uma maioria de crianças, adolescentes e jovens
com potencial musical muito forte, estar na escola de música tem um grande significado. Falamos com os petizes sobre as aulas e o apreendido na aula de solfejo… Bem esses são os músicos do futuro ou pode ser que não. A verdade é que estão na Escola Nacional de Música e aprende desde pequenos a lidar com o bom acto de fazer música. O professor explica o valor de ensino de música para crianças: Acompanhamos as aulas da Escola Nacional de Música e foi notável que nesta escola moldam-se os cantores e tocadores do futuro. O professor de instrumentos de sopros que também está na oficina de repa-
ração dos mesmos fala dos mistérios destes na música moçambicana. Por sua vez a professora de música, Isabel Mabote, que é também directora da escola, considera serem muitos anos de trabalho e dedicação para colocar a Escola Nacional de Música aos níveis desejados. Realça ainda que os 30 anos da escola é a idade de muitos professores da instituição. Desde 1983 até ao presente ano, a Escola Nacional de Música, com muita dedicação e empenho, contribuiu para a formação de fazedores de cultura com a missão de formar, fazer, criar, cultivar, viver e ensinar a música.
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I Festival de Xigubo
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letras
Lareira ganha prémio no Brasil
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elo Prémio Revelação con-quistado no Festival Inter-nacional de Teatro da Língua Portuguesa, que teve lugar na cidade brasileira do Rio de Janeiro, o Ministério da Cultura homenageou, ontem, o grupo te -atral Lareira Artes. O grupo venceu o único prémio do festival, com a obra ―Cin-zas sobre as Mãos‖, do escritor francês Laurent Gaudé, ence-nada por Eliot Alex e interpre-tada por Diaz Santana, Sérgio Mabombo e Lucrécia Noronha. Na ocasião, o ministro da Cul-tura, Armando Artur, disse que ―este é mais um prémio que veio confirmar que as nossas artes e cultura cresceram ao nível internacional. Moçambique está nas mãos de cima em termos de artes e cultura. ‖. Com apenas três anos de existência, o Lareira Artes é o primeiro grupo moçambicano a conquistar o galardão no FES-TLIP. ―É uma honra para nós conquistar este prémio, tendo em conta que havia vários grupos na disputa. Passámos por várias di-ficuldades… tivemos que afastar as mesas e cadeiras nas nossas próprias casas para podermos ensaiar, porque não temos espa-ço para ensaios. Normalmente, para participar nestes festivais, os governos de cada país pagam as passagens para os grupos, o que não acontece no nosso país. A organização do FESTLIP teve de custear as despesas para a nossa ida ao Brasil e isso foi humilhante para nós, mesmo assim, superámos tudo isso, e conseguimos trazer o prémio para Moçambique, é uma ale-gria para nós‖, disse o actor Diaz Santana, que acrescentou que ―dentro dos nossos três anos de existência já representámos vá-rias vezes Moçambique fora.‖, vincou.
Sukuma no tributo a Mutukudzi
Breves
Umoja volta a concentrar figuras das artes em Maputo
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Marrabenta de Ndjindji será celebrada em todo o país
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músico moçambicano Stewart Sukuma participa hoje, no Festival de Jazz de Harare, no Zimbabwe, numa edição em tributo ao ícone da música zimbabweana Oliver Mtukudzi, que completou 61 anos de vida, a 22 do corrente mês. Neste evento, que contará também com a presença dos músicos Hugh Masekela, Judith Sephuma, Dudu Manhenga, Steve Dyer, Albert Nyathi, Mary Bell entre outros, Stewart Sukuma vai interpretar com Oliver Mtukudzi o tema ―Hear me Lord‖. O músico tem ainda agendada uma participação no City Hall Sessions, na Cidade do Cabo, África do Sul, de 6 a 9 do próximo mês. Sukuma irá igualmente com a banda Nkhuvu representar Moçambique no Festival da CPLP, que vai decorrer em Macau, de 28 Outubro a 4 de Novembro. O homenageado de hoje, carinhosamente chamando por Tuku, visitou o país no mês de Junho, no âmbito da das suas actividades como Embaixador de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF). Durante a sua estadia em Maputo, Oliver Mtukudzi teve a oportunidade de ver o trabalho realizado no âmbito do HIV e SIDA e participação de crianças, adolescentes e jovens, no município da Namaacha, para além de gravar um programa de televisão com destacados músicos nacionais que têm colaborado com o UNICEF na advocacia e sensibilização pública para a realização dos direitos da criança no país. Mtukudzi teve também um encontro com músicos, na Associação dos Músicos Moçambicanos (AMMO), para uma troca de experiência sobre música, tendo na ocasião aconselhado os músicos para se unirem para melhorar a visibilidade dos artistas.
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mega-evento será marcado por várias manifestações, com destaque para uma exposição de artes designada ―Umoja-CFC: 10 anos criando juntos‖, além de espectáculos de diferentes manifestações artísticas. O maior evento multicultural de Maputo volta a juntar mais de cinco países em Moçambique. O evento traz, nesta edição, várias manifestações artísticas e grandes figuras das artes nacionais e internacionais. Este ano, o evento será corporizado por música, dança, artes visuais e circo, representativos de África e Europa, juntando Moçambique, África do Sul, Quénia, Tanzania, Etiópia, Zimbabwe, Noruega, entre outros países. O mega-evento será marcado por várias manifestações, com destaque para uma exposição de artes designada ―Umoja-CFC: 10 anos criando juntos‖, além de espectáculos de diferentes manifestações artísticas. ―Umoja Cultural Flying Carpet‖ é um evento cultural internacional que tem lugar em várias cidade do mundo. Em Maputo, o mesmo teve, ano passado, uma audiência de cerca de cem mil pessoas. O festival Umoja é uma iniciativa cujo objectivo é estimular a criatividade e troca de experiências entre artistas plásticos, bailarinos, músicos e escritores. O evento terá lugar nos dias 1, 2 e 3 de Novembro.
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músico Dilon Ndjindji celebra 70 anos de car-reira. O artista inicia no dia 28 de Setembro corren-te uma turnée pelo país, que vai envolver vários artistas nacionais que marcaram os tempos da sua carreira. O ―Rei da Marrabenta‖, como é tratado, vai fazer o resumo da sua carreira em espectáculos musicais com início na cidade de Xai-Xai. A iniciar a celebração dos seus 70 anos de carreira, o músico vai cantar ao lado de outros incontornáveis artistas musicais, designadamente, Xidimingwana, António Marcos, Joana Coana, Xico António e Cecília Ngwenha. Dilon, que considera que já deu o seu contributo para a elevação da marrabenta, diz estar feliz e orgulhoso pelos 70 anos de carreira. ―Esta turnée vai ser o resumo da minha carreira, vou tocar, cantar e dançar‖, afirma Ndindji. Dilon refere que esta celebração será de facto a representação mais alta da sua carreira. Inhambane e Beira são as próximas cidades a ser escaladas.
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Literatura
Lucílio Manjate
NÃO TENHO NADA A DIZER QUE EU PRÓPRIO NÃO SEI O QUE É Fotos: Embaixada dos EUA em Maputo
Eduardo Quive eduardoquive@gmail.com
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ucílio Manjate, estreou com um livro de contos intitulado “Manifesto” em 2006 onde escolhe contar estórias de lugares conhecidos da cidade de Maputo, a convergência periferia-metrópole e o quotidiano vivido na realidade. Em “O Silêncios do Narrador”, sua segunda obra, é onde convence-me que estamos em outros tempos literários que se pode confiar no novo sangue literário que fazendo histórias do seu tempo. Um romance complexo onde há uma atitude de dar ao leitor, a responsabilidade de testemunhar a frieza com que os actos ocorrem no seu espaço de criação e convivência. Quem conhece Lucílio Manjate, sabe que não vem de longe os seus personagens, muito menos os lugares por onde circulam, vem de Maputo e é porque aqui que caminham e vivem as suas peripécias. A urbe neste escritor, tal como em outros como Aldino Muianga, é um campo de acção, isso afirma-se com mais substancio em “O Contador de Palavras”, contos que saíram em 2012. Com uma escrita “formal” porém, uma “orgia de loucos” lá vai o prosador construindo os seus marcos na história da nossa literatura. Falamos com o escritor, o crítico e docente de literatura moçambicana…
letras O Lucílio Manjate está na literatura como escritor e docente. Na verdade quem é o docente no meio disso tudo? - Eu até respeito quando as pessoas lêem Lucílio Manjate e vê professor de literatura e escritor. Mas tenho estado a defender se calhar para não ser confundido, que são duas pessoas diferentes, com duas cabeças diferentes, dois pensamentos diferentes. Se me pergunta quem é professor Lucílio Manjate é um indivíduo que um dia decidiu que ao fazer um curso superior faria linguística e literatura. Eu já tinha uma paixão por este mundo das letras, das ideias por via do escritor. Recordo-me de quando tive que decidir que curso devia fazer oscilei entre sociologia e linguística e literatura. Acho que são duas áreas muito intensivas no sentido de reflexão. Eu acho que é das coisas que gosto de fazer, pensar, discutir… E não tendo ingressado para o curso de sociologia não me senti perdido, não era daquelas situações em que fazemos escolhas em que uma das opções é que é a escolha. Eu tinha duas escolhas possíveis e para mim as duas eram válidas. Fui para linguística e literatura e já no primeiro ano sempre dizia para mim que tinha vontade o desejo de discutir a literatura moçambicana. Eu entrei, digamos, já com um projecto para o meu curso e esse pensamento foi amadurecendo a medida que fui descobrindo que havia um silêncio em relação aos novos autores que iam surgindo na literatura moçambicana, estou a falar daqueles que alguns chamam de jovens escritores, portanto as novas vozes, melhor dizendo. Fui modificando esse projecto no sentido de querer trazer a ribalta, essas novas vozes. Já no terceiro ano começo a concretizar esse projecto de trazer novos nomes da literatura moçambicana, eu recordo-me que dei uma entrevista ao Alexandre Chaúque enquanto ele trabalhava para o Notícias, fazendo uma espécie de anúncio que vou fazer isso e já no mês seguinte eu já estava a publicar o meu primeiro texto de discussão sobre literatura que tinha a ver com a discussão que fazia sobre a obra de Manecas Cândido ―O Sentido das Metáforas‖, foi o primeiro texto que publiquei. É a partir dessa perspectiva de intervenção que vou amadurecendo a veia analítica, se podemos assim dizer, o sentido crítico sobre as obras do sistema literário moçambicano. E mais tarde, em 2009 ingresso para quadro de docentes da Faculdade de Letras e Ciências Sociais, Departamento de Linguística e Literatura da Universidade Eduardo Mondlane e aí as coisas vão se modificando porque é preciso pegar o trabalho de divulgação com mais seriedade, afinco, no sentido de produzir conhecimento científico, não só para divulgar, mas também para passar aos estudantes que temos sob a nossa responsabilidade. Portanto, essa ideia de ser professor para de uma simples ideia de divulgar,
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passa por ter um caris sistemático no sentido de eu poder perceber o que é que está acontecer ao nível de gerações, por exemplo, como é que os textos se comportam, quais são as vozes destacáveis dessas gerações, para a partir daí podermos orientar os estudantes que vamos tendo. Portanto, o Lucílio Manjate funciona mais ou menos nesse raio de acção, divulgação enquanto professor de literatura, sobre tudo das novas vozes. Mas também estabelecer relações entre estas novas vozes e as vozes já consagradas com o intuito de disponibilizar isso como material bibliográfico, digamos, para os estudantes. Eu acho que é tempo de estudos sobre a literatura moçambicana começarem a incidir sob os novos autores. Eu tento de uma forma muito subtil trazer essas vozes pelos textos que vou publicando nalguns espaços. Esse é que é o professor. É um pouco difícil quando falamos de nós próprios, mas em algum momento temos que estabelecer uma imagem de nós. Eu penso que no fundo o que me move é a grande paixão pela literatura. Mesmo o facto de estar a dar aulas de literatura, tudo isso tem a ver com a convicção de que a literatura dá saúde e saúde é vida, é tudo. A sociedade também tem que viver disso, do texto literário. É uma utopia que me guia. Uma das questões que pode que se tem colocado é o facto dos estudos sobre a literatura moçambicana virem em grande número de fora do país. Por outro lado, a literatura moçambicana ainda atravessa as dificuldades de sistematização. Como é que lida com isso no seu trabalho? - Sistematizar uma literatura como a nossa não é uma tarefa fácil. Estamos a falar de uma literatura relativamente jovem, quer dizer, depende dos parâmetros que queremos estabelecer para dizermos que é uma literatura jovem ou mais adulta, por aí adiante. Mas não é tarefa fácil de qualquer forma e não é bem verdade que os estudos sobre a literatura moçambicana vêm de fora. É preciso, se calhar, percebermos a natureza desses estudos, quer dizer, se nós estamos a falar de uma sistematização estejamos a falar mais ou menos em escrever uma história dessa literatura. Olhar literatura como um sistema não é tarefa fácil, não é só olhar o texto literário, e mesmo que olhemos ao texto literário numa perspectiva sistémica, podemos ter muitas dificuldades, posso citar o exemplo trabalhos que abordam essa visão sistémica, sobretudo de ponto de vista do texto, trabalhos como do professor Almiro Lobo, Francisco Noa, Fátima Mendonça, são alguns trabalhos que procuram observar numa perspectiva histórica a literatura moçambicana. Portanto, isso leva seu tempo. O que acho que esteja a acontecer é que estudiosos
Literatura
doutras paragens tem estado a incidir sobre o texto literário, em termos muitos concretos, de um determinado autor que é um processo que nos conduz a uma visão sistémica. Mas são dois momentos, um momento é trabalharmos o texto, pegar no teu livro e escrever sobre ele e publicar, outra coisa é eu querer perceber por exemplo a origem da literatura moçambicana, aí a abordagem é mais sistémica. É louvável sim que estudiosos de fora abordem os textos literários. Isso é importante porque chama de alguma forma atenção para uma certa letargia da crítica nacional. Eu acho que há um silêncio, são pouquíssimas vozes que aos poucos vão se pronunciando. Mas também procuro entender porque é que há essa letargia, porque temos que perceber o que está-se a
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Letras passar. Um dos argumentos se calhar para mim o mais importante, é que não é missão do estudioso de literatura, digamos que mensalmente escrever um texto que esteja a falar sobre uma obra. A missão do estudioso de literatura é de nessa perspectiva sistémica entender o fenómeno literário não como uma coisa isolada que é o texto, mas ir fazendo ao longo do tempo um estudo aprofundado sobre o que é que está a acontecer no sistema. E vamos lá tirar um ensaio de vinte e cinco páginas, que nos dá uma dimensão mais clara, mas consistente daquilo que está a acontecer no sistema literário. O estudioso tem uma missão muito para além de uma simples divulgação. Ora nós temos por via da disciplina do jornalismo cultural que algumas instituições leccionam, nós temos pessoas formadas que deviam olhar para o texto literário, para as artes de uma forma geral, e publicarem periodicamente, seja mensal ou semanalmente textos que discutam as artes e o texto literário que vamos produzindo. Essa é uma missão de divulgação. E mesmo os estudiosos de fora, se fores a reparar, não são textos simples, não são textos até de fácil compreensão para o pacato cidadão, o leitor comum. São textos que exigem não só a elaboração de ponto de vista de quem produz, mas uma outra compreensão do ponto de vista de quem lê. Portanto é um outro paradigma, outro tipo de produção que eu não chamaria para questão da simples divulgação. Do ponto de vista de produção da teoria da literatura moçambicana estamos a caminhar, isso não é um processo de curto prazo. Agora nós podemos estar carentes de uma certa opinião da crítica moçambicana, mais erudita, mais adulta, mais aceite, porque nós temos esses críticos. Mas se calhar já é tempo de nós organizarmos momentos de debate e forçar essa crítica a pronunciar-se, porque se calhar a crítica não se pronuncia por falta também desses ambientes, isso é uma hipótese. Outra é que talvez não se pronuncia porque acha que não há qualidade que mereça esse pronunciamento. Nós podemos inventar aqui uma série de argumentos. Mas é louvável que a crítica estrangeira, os professores de fora se pronunciem sobre o que vamos produzindo, inclusivamente tem olhado para novas vozes. Isso é importante. E faz-me lembrar o velho ditado ―santo de casa não faz milagre‖. Também é perfeitamente natural e normal, de alguma forma que essa crítica comece vindo de fora. O que já não aconteceu muito, por exemplo, na década de 80, que foi uma das décadas de ouro em termos de produção, divulgação em fim. É só olharmos para a Gazeta de Artes e Letras da revista Tempo, tu tens uma chuva de discussão sobre a literatura quanto sistema, sobre as obras. Nós estamos carentes disso, mas também era um momento que estavam a surgir novas propostas de discussão
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sobre a realidade moçambicana. E creio que muitos dos críticos consagrados que temos hoje nessa altura estavam a tentar sistematizar na sua perspectiva aquilo que é a literatura moçambicana, no sentido de sua especialização, isso também conta. Eu pego os meus autores porque quero fazer o doutoramento e fecho-me ali e depois aparentemente não há mais nada. Eu acho que só o tempo poderá ditar, com alguma influência da nossa parte, no sentido de criar algum mecanismo de pôr as pessoas a falar. Alguém dirá que o texto literário não precisa disso, que ele vai falar por si, é verdade, mas acho que é o momento histórico que estamos a viver, se calhar que é transitório, vamos ver. Mas eu acho que está-se a produzir, e a produzir com qualidade. Atendendo que no país reclama-se da qualidade de leitura nos jovens, como é que comporta-se o estudante de literatura? - Essa é uma questão muito complexa. Mas o perfil do estudante que eu e os meus colegas temos estado a e enfrentar é um perfil pobre em term0s de leitura. Eu falo de leitura nem estou a falar do texto literário, refiro-me ao texto, falo de leitura, leitura normal, jornal, um texto informativo, há um défice muito grande, e a imagem que tenho é do trabalho que está sendo feito nos níveis mais abaixo, secundário e primário é um trabalho que deixa muito a desejar, é muito pobre, e isso tudo entra naquele pacote de problemas que já se tem discutido que é preciso repensar o nosso sistema de educação e pensar o que queremos quando educamos, qual é a filosofia, um debate que já tem barbas brancas. Portanto, os estudantes que entram na universidade são muito fracos, pobres, tu perguntas qual é o livro que ele já leu, vai te falar de um manual de língua portuguesa, mas quando fazemos essa pergunta estamos a procura de leitura de textos ficcionais completos, estamos a procura se tenham lido um livro de poesia, um romance, contos, coisas de género. E os estudantes não nos apresentam isso. Apresentam-nos manuais e na mesma abordagem de português, todo tipo de manuais possíveis. Só o nível da compreensão da nossa pergunta quando queremos saber o que eles lêem, eles já extrapolam e vão buscar tudo o que precisam, isso implica estar já perante um problema de interpretação, um problema de compreensão daquilo que se está a pedir. São esses os estudantes que recebemos. Isso naturalmente, tem a ver, como disse, com as ofertas do ensino primário e secundário. Será que o texto literário é oferecido? Será que a leitura como um acto prazeiroso, um acto como alguns gostam de dizer, mas que eu não gosto muito, um acto de lazer, será que este tipo de leitura está-se a dar aos nossos estudantes. Eu penso que não e todos problemas que depois nos deparamos com ele vêm disso. Isso é um processo que deviam começar nos níveis inferiores para depois no superior porque o
Literatura
estudante não vai fazer o curso de literatura na nossa faculdade, por exemplo, sem ter lido ―Ualalapi”, “Terra Sonâmbula”, ―Nós Matamos o Cão Tinhoso”, mas isso significa que essa, quando chega na universidade, é uma leitura imposta, nem cá ele vai ler com a vontade que se espera que ele leia. É isso que se perpetua. É preciso repensar na forma como o texto literário é tratado ao nível do ensino primário e secundário. Porque penso que a questão da língua, no sentido de aprendizagem, acaba descurando a aprendizagem doutras capacidades, como a de leitura, que eu penso que é mais fundamental, porque a língua, nós aprendemos usando-a. Mas a leitura e a interpretação dos fenómenos do mundo nós não aprendemos assim, aprendemos lendo esses fenómenos. Quer dizer, esse é um problema muito maior, eu estou a tentar aqui de formais razoáveis e sintéticos apontar as causas. Já agora falando com o escritor. Quais são as razões que tem para a loucura de escrita? - Eu não sei. Não tenho nada a dizer que eu próprio não sei o que é. Vou descobrindo e vou me descobrindo a cada livro que vou escrevendo. Como escritor, acho que eu sou uma espécie de leitor da minha sociedade e estas leituras vão dependendo da forma como a sociedade também vai se comportando. Cada leitura acaba sendo um livro em função daquilo que eu vejo. Este é o grande motor, o meu meio, aquilo que me intriga, aquilo que me choca, aquilo que eu gostaria de ver de forma diferente, os meus sonhos, portanto essa é a grande alavanca para isso que podemos chamar de loucura de escrever. Mas também tem o prazer de escrever, o prazer de contar histórias, eu diria mais, o prazer de contar histórias e de massacrar o leitor porque o texto literário é imagem de um puzzle, os dados estão lançados, a imagem está lá distorcida, tem que compor e tirar uma possível imagem, que os dados passam sugerir. Este é um lado muito prazeiroso, quando eu olho para um texto literário ou quando produzo. Neste sentido, a forma como tenho escrito, acaba sobrepondo aquilo que eu quero dizer, ou acaba fundindo-se àquilo que quero dizer, mas a forma está em primeiro lugar. Portanto, move -me também o prazer do jogo, da criação e imaginar que doutro lado, há quem, se calhar com mesmo prazer, há-de tentar descobrir esse jogo no seu processo de leitura. Falando em massacrar o leitor, encontro muito essa atitude da sua parte, no seu segundo livro “Os Silêncios do Narrador”. Será, realmente, um acto consciente? - Já foi inconsciente. Mas também até certo ponto. Penso que a partir do meu primeiro livro, ―Manifesto‖ já dava indícios disso. Tenho um texto intitulado ―Jossefa‖, agora falando na qualidade de leitor do meu livro e se calhar no lugar de produtor, mas estou a tentar colocar-me no lugar além do livro que escrevi, nesse texto nun-
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...não tinha a plena consciência do que estava a fazer, mas sentia que a perspectiva que usava é apetecível. Penso que vou tentando, de alguma forma, porque é uma coisa que gosto e faz parte desse jogo, vou tentando manter essa perspectiva e vai se tornando uma coisa consciente. Para mim, hoje, isso é consciente. Procuro simplesmente, sempre que posso, sempre que o tema que quero discutir permita, procuro fazer isso de uma forma sofisticada...
Letras ca sabes se esse personagem está no cemitério, na rua ou no bar, há toda uma teia que te põe assim… na minha perspectiva. Eu sou muito apaixonado por esse texto, gosto muito de lê-lo de vez em quando. Portanto, recordo-me que quando produzia esse texto, não sabia exactamente o que estava a fazer, mas sentia que devia fazer como o estava a fazer. O que acontecia é que não tinha a plena consciência do que estava a fazer, mas sentia que a perspectiva que usava é apetecível. Penso que vou tentando, de alguma forma, porque é uma coisa que gosto e faz parte desse jogo, vou tentando manter essa perspectiva e vai se tornando uma coisa consciente. Para mim, hoje, isso é consciente. Procuro simplesmente, sempre que posso, sempre que o tema que quero discutir permita, procuro fazer isso de uma forma sofisticada. Por exemplo, o mesmo vai acontecer com o primeiro texto do meu último livro, ―O Contador de Palavras‖ em que as pessoas já me colocaram essa questão, de onde se encontra a personagem, se está na casa de banho, no bar, se está morta ou não. É um acto consciente do qual não abro a mão. Parece-me que qualquer tentativa de tentar decifrar o palco dos acontecimentos das suas estórias leva-nos a um labirinto, porém as personagens sempre dão-nos algum valor. - O que acontece é que tenho uma estória que começa de A, passa para o B vai para C. simplesmente, não vou seguir essa linha, isso não é meu, não estou a inventar nada. Mas ser escritor também é isso, a mim não interessa ser escritor para contar mais uma história, interessa-me, sobretudo, como é que conto essa história. Vou, portanto, inventando um labirinto, convido o leitor a entrar nesse labirinto, e se o leitor entrar com a convicção de que tem que desmascarar algumas coisas, decifrar alguns códigos, isso é possível que aconteça. Mas o labirinto, como tu questionas, sobrepõe-se à simples necessidade de caracterizar um personagem ou um espaço. Nós vemos o espaço no texto, mas a caracterização desse espaço e seus elementos, vamos encontrando nas situações, e a partir dessas situações caracterizamos o espaço e o personagem. Mas a caracterização do personagem não é a que me interessa, interessa-me, sim, esse labirinto e o que ele pode significar. Para mim é esse o grande interesse ao nível simbólico. Na estória nós percebemos o que é aquele personagem, mas temos é que nos preocupar em como essa estória é contada. Não é o conteúdo que me interessa, embora ele esteja lá. Se calhar por várias leituras que tenho feito da sociedade vou tentando equilibrar o conteúdo e a forma, no sentido de trazer aquilo que alguns chamam de discussões mais candentes, coisas que
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de ponto de vista ideológico importa discutir. Você disse uma vez, na II Semana Literária de Maputo que se arrepende por ter lançado “Os Silêncios do Narrador”. O que te fez chegar a esse arrependimento? - Eu disse sim. O sistema literário tem muitos vícios, muitas mesquinhices também. Tenho a impressão, tanto como outros autores, que não há uma sinceridade, uma opinião formada. Nós os escritores lançamos livros e não temos uma opinião formada sobre os livros que estamos a lançar e raramente nós discutimos sobre os nossos livros, isso é um facto. Eu por exemplo, tenho um grupo de amigos, refiro-me a Sangare Okapi, Aurélio Furdela, Léo Cote, nós vamos discutindo o que fazemos. Mas pronto, isso não é generalizado e não acontece com todos. Mas a impressão que tive depois de lançar ―Os Silêncios do Narrador‖ e também fui ouvindo algumas opiniões sobre o mesmo, o meu sentimento de desilusão é de eu achar ou perceber que as pessoas não perceberam a visão desse livro e esta falta de percepção é refém da falta de leitura entre nós e leitura no sentido de discussão. Eu tenho a impressão de que as pessoas não perceberam a perspectiva desse livro. Eu até comentei com um estudioso que não vou aqui citar o nome e ele disse-me que as pessoas querem pastilha, aquilo que metam na boca, mascam umas dez vezes, perde a doçura e deitam. Pastilha é algo que não serve. As pessoas estão a espera de um texto fácil, e foram muito fáceis de emitir as opiniões que fui ouvindo aqui acolá, pelo que percebi que não fui compreendido. Mas posso estar a ser injusto ao colocar-me nessa condição de insatisfação porque o texto também vai falando por si e tem o seu tempo de vida, isso é verdade, e eu não posso de alguma forma reclamar sobre isso. Mas a minha afirmação foi uma espécie de desabafo, no fundo, porque isso acontece a qualquer escritor. Mas quando acontece muitas vezes elas isso não sai do escritor, e eu tive a sorte ou o azar de dizer isto em público no Centro Cultural BrasilMoambique, e pronto, a partir daí uma das perguntas que sempre me colocam é essa. Penso que vou convivendo melhor com esse livro, mas a imagem que se projectou dele, desde o início é que me chocou. Mas também gosto desse livro por causa da perspectiva formal como já disseste. Quero perceber melhor a ideia de aquela carta aberta ao Presidente da República que está em “Os Silêncios do Narrador”. Um cidadão pacato vai desalojando as suas mágoas, uma espécie de empresar a desgraça que vive ao Presidente. De princípio o livro não parece que vai dar naquilo, mas de repente essa manifestação de cidadania cria um momento de
Literatura
clímax na obra. Fale-me dessa construção. - A relevância daquela carta tem a ver com a forma como nós começamos a leitura do livro e vamos perseguindo a sua lógica. Não vou dizer o que o livro procura discutir, mas aquela carta, ali onde está foi por um acto propositado. Aparentemente ela não quer dizer nada, verá que ela começa como uma carta, mas ela entra num tipo de discurso que vai mudando. É uma carta, mas depois vai fazendo uma fusão com outro registo de discurso que é de um narrador ficcional mesmo. No fundo quem
escreve a carta conta uma estória, mas é a estória que o presidente também precisa saber. Portanto é a carta mas é uma estória que está a ser contada. Mas tem tudo a ver com a atmosfera do livro. Se olharmos para as manifestações que estão no texto, os excertos dos jornais, esses dois cenários permitem que algum momento se possa prever que surja uma carta aberta ao presidente. Tens as manifestações, tens os excertos dos jornais, as opiniões das pessoas, e tens a carta. Quer dizer, há uma sociedade de alguma forma, e que tem algo a dizer. E os membros dessa sociedade vão emitindo ideias, e o que escreve essa carta, conta uma história que vai se ligando com todo o resto que está sendo dito. Por fim, a ideia da carta traz-nos um mais narrador. Falemos dos excertos de jornais que estão no livro. Eles trazem opiniões de pessoas importantes e conhecidas da nossa sociedade. Porém não chegam a defender ideias claras no livro, a aparecem a falar como que secundando alguma coisa. Isso leva-me à forma como serve o jornalismo mas também não me cala a preocupação de que esses excertos são verdadeiros ou não e porquê os escolheu? - Por acaso tudo é ficção. De facto há uma razão e tem que haver uma razão para que os excertos estejam onde estão como uma forma aparentemente vazia de significação. Eu acho que há um momento crucial neste livro. E que na minha opinião
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ajuda a perceber certas coisas e sobretudo esses excertos. Deverá se recordar que há um manuscrito no livro, o único problema que pode haver é como disse o Dr. Nataniel Ngomane, porque ele é que apresentou o livro, ele teve dificuldades de ler esse manuscrito… Também tive… - Pois é, esse é o grande problema. Porque aquele manuscrito, no fundo trás o ponto fulcral do texto. É a partir se calhar daquele texto manuscrito que nós podemos derivar a perceber tudo o resto. Também não vou dizer o que trás o manuscrito. O que acontece é que o livro está a debater uma questão social muito séria, e esses excertos dos jornais representam as opiniões que algumas pessoas foram emitindo sobre o mesmo problema. A carta também está em função desse problema entre outras coisas. Uma das primeiras versões desse livro tinha uma sequência lógica ou cronológica e não anacrónica como está ali. Mas isso já faz parte do que falamos antes, o labirinto. É tudo propositado, no fundo. Tudo começa, na verdade com um decreto, isso está no manuscrito, esse decreto proíbe a venda de preservativos no território moçambicano. Isto tudo vai ser um motor para o livro, digamos assim, e para discutir outras questões, porque calculo que um decreto como esse é um problema nacional. Mas é um decreto que vem para acabar ou reduzir os índices de infecção pelo vírus de HIV que Moçambique tem registado. É uma visão parassocial que estou a trazer. Eu digo por exemplo que tu estás blindado e podes atravessar esta mata que está a arder, e porque estás blindado podes passar. Mas se eu te tiro a protecção e digo atravesse, obviamente que não vais. É um pouco desse pensamento e discussão que anda a falta em que vou pegando um personagem que sai de casa e tem um destino, vou construindo momentos para que se chegue a essa discussão. E qual foi o desafio de escrever “O Contador de Palavras”? - Venho escrevendo ―O Contador de Palavras‖ desde que era finalista do curso, e mesmo antes de ―Os Silêncios do Narrador‖. Vinha escrevendo porque achava que devia mudar um pouco de estratégico. Eu achei que o meu anterior livro fosse ideologicamente marcado, se calhar, talvez não, talvez sim. Essa é uma discussão. Mas precisava discutir literatura enquanto literatura e sair um pouco de um universo temático muito recorrente na nossa literatura. Eu acho e tenho estado a defender isso, que nós enquanto escritores temos que tentar mudar alguns lugares comuns demais. A palhota, os espíritos, curandeiro que é isto ou aquilo, da filha que esposa de um defunto… eu leio e gosto, mas confesso que enquanto escritor esses lugares já não me dizem muito. Esse assunto já foi tratado e a tratar esse assunto é preciso ser de forma que nos diga alguma coisa, isto é, que nos
Letras diga algo que ainda não foi dito. A questão da tradição que vem sendo retratada muitas vezes vem oposta à modernidade e a fórmula adoptada é resgatar os nossos valores tradicionais. É verdade que já há indícios de mudanças na perspectiva, trazer esses cenários, a palhota, os espíritos, a mulher dos defuntos, que não pode ter filhos com o marido porque o defunto não deixa, esse universo começa a sofrer alguma mudança. Ora, quando escrevi ―O Contador de Palavras‖ não queria repetir esses lugares. A minha intenção era primeiro olhar para o texto e toda essa vontade que tenho de trabalhar o texto na perspectiva do jogo, do labirinto, mas também em termos temáticos, tentar trabalhar um pouco as memórias, buscar histórias que precisam ser contadas, imaginadas, fundamentalmente, olhar para a literatura enquanto arte da linguagem como dizia o professor Noa na apresentação do livro. E foi por aí, uma espécie de rompimento que queria fazer comigo mesmo, mas também com alguns textos da literatura moçambicana que ia lendo e que não me cativavam nesse sentido. É verdade que os rompimentos não são drásticos, repentinos, definitivos. Portanto, e por via disso, há um texto em ―O Contador de Palavras‖ intitulado ―O Tempo‖ que é uma estória que se situa, no primeiro nível, num universo tradicional. Mas eu não demoro nesse nível, saio e vou discutir outro problema, exactamente pelo facto da personagem achar que toda sua família morreu por ter desrespeitado as leis da tradição, a personagem exila-se, isola-se dentro da casa. E nós vemos a história e não percebemos se a personagem está viva ou se morreu. No fundo é um problema existencial que se está a discutir, tens o isolamento, por um lado, o fechamento em relação ao mundo exterior, é uma visão da personagem, um texto mais introspectivo. Tudo isso estou a tentar, porque não é uma coisa de se querer e conseguir. Quando a gente olha para um texto literário quer fazer uma coisa e vamos tentar conseguir enquanto escrevemos. É um desafio que tenho estado a abraçar a partir deste último livro. Ao ler “O Contador de Palavras” noto alguma ausência da “loucura” ou o que poderíamos dizer uma viagem inconsciente. O livro apresenta-se com uma densidade de investimento na linguagem tanto como língua, mas a alma do texto não vem a superfície. Que opinião tem sobre essa leitura? - Eu de facto quando pensei em voltar a olhar para o texto depois de toda emoção que tenho quando escrevo o texto, percebi que isso não poderia passar sem o rigor no tratamento da própria língua, é verdade que isso pode passar sem o que nós chamamos de rigor, porque é relativo, estamos a dizer em relação a que outro registo? Porque se calhar estamos a nos referir a um registo mais leve, menos rebuscado. Mas a minha ideia é construir o texto. A minha grande angústia com o
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contador de palavras é com a construção. A ideia de que para esta aresta eu preciso de um bloco de 15 e não pode ser o de 10. Preciso da massa neste ponto e não pode ser noutro. ‗e esta consciência no fundo, que acabou ditando até esse rigor. Mas essa ideia de construção tem a ver com a construção do próprio escritor, a sua própria construção, daquilo que lê, o que pretende alcançar, aquela pergunta, porquê, para quem escreve, no fundo eu penso que são perguntas motivadoras quando vamos escrevendo um livro. E em função delas dita-se a forma como vamos escrever. Por tudo isso acabou pesando esse lado do rigor. Eu já não queria, de facto, um registo como ―Manifesto‖, nem ―Os Silêncios do Narrador‖, mas se tu reparares a nível da sintaxe, das frases, hás-de ver que em algum momento o texto do meu segundo livro tende a massacrar mais o leitor. Uma sintaxe muito longa que quase não vês a pontuação. Na minha forma de ver não acontece o mesmo neste último livro. Tenho impressão de que o barroquismo, se posso assim dizer, do segundo livro já não é o mesmo que está em ―O Contador de Palavras‖ e essa é uma coisa que tenho estado a melhorar ao nível da minha progressão, mas tenho tentado trazer outros imputes. Trazer a ideia do trabalho com a língua, lapidar a palavra,
Entrevista
porque eu acho que é uma coisa que todo autor tem que ter em conta. Eu senti quando entrei no ―O Contador de Palavras‖ que havia necessidade de pensar o texto a partir da palavra. A partir da palavra adequada para o cenário que quero dizer. Nesse livro o texto parte da palavra, vai para a frase e vem todo o enredo. Eventualmente isso, como tu dizes, possa ter aniquilado a tal loucura que tu vez no livro anterior. Mas particularmente a textos que gosto, como esse que falei, ―O Tempo‖, e vejo que no fundo houve algum equilíbrio. Eu tenho dito que escrevo sob o signo da loucura. O facto de ser professor de literatura e quanto mais o tempo passa isso pressupõe que vamos tomando as coisas com mais sinceridade, isso pode ter pesado, mas eu procuro sempre quanto autor, despir-me do leitor, do professor. Eu começo a escrever em 1996 e só entrei para a faculdade em 2004, portanto, parece-me passou-se o intervalo de oito anos nesse período. Eu já tinha me familiarizado com a literatura, de tal forma que procuro evitar que haja interferência, mas eventualmente isso pode não resultar. Mas eu não estou e não quero transformar o meu texto literário numa espécie de manual informal de escrita criativa. A minha perspectiva
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é manter-me quanto escritor e escrever como eu gosto de escrever, construir o texto que quero construir enquanto Lucílio Manjate. Da leitura que se faz dos autores que começam a publicar a partir do ano 2000 é fácil nalguns deles encontrar as linhas de aliança com outros escritores moçambicanos, mas a si fica complicado de distinguir isso. - Discutamos primeiro a ideia de inspiração. Acho que há sim uma fase de inspiração do escritor que é a fase dos poemas ou contos iniciáticos. E eu tive. Recordo-me que andei a fazer decalques e decalques do livro ―Maria‖ de José Craveirinha que são elegias, se tu visses os textos que escrevi em paralelo com essa obra eras capaz de dizer que roubei do Craveirinha. Não que a minha qualidade se comparasse ao Craveirinha, mas a dimensão poética em que tudo decalcava dele. Essa para mim é a fase de inspiração e se calhar, depois dessa fase e até hoje sobretudo, eu estou a viver uma fase de expiração. Que é tudo aquilo que eu fui lendo, absorvendo, isso cria-me uma espécie de simbiose, e eu traduzo isso na forma como vejo o mundo. Para mim isso é importante, no fundo enquanto escritor que sou, vou pedindo emprestado os instrumentos dos outros, interiorizo-os e vejo o mundo a partir de desses empréstimos. Em termos teóricos todas as literaturas vivem assim. Eu pedi emprestado, por exemplo, em alguns discursos e há alguns personagens que eu confesso que não hesito em olhar para Mia Couto. Se pegarmos a primeira parte de ―Os Silêncios do Narrador‖ vamos ver isso. E outras situações. Mas há casos também que não evito em olhar para o Ungulani Ba Ka Khosa, penso que ele ajudou-me de alguma forma a entrar com profundidade no campo da loucura. Da imagem que tu tens no texto e paras perguntando o que é isto? Penso que esses são os grandes autores, cá que tento ver isso. Mas depois quando me apercebo onde esses foram beber isso vou descobrir o Alejo Carpentier, Gabriel García Marquez. Acho que oferecem-me muito daquilo que preciso e o resto tento descobrir a partir daquilo que vejo, da imaginação, fundamentalmente. Se isso é visível, acho que isso já depende do ponto de vista de como o leitor mastiga, tritura, porque no fundo estamos a falar de técnicas e é a partir delas que nós olhamos o mundo. E se a partir dessa técnica tu olhas o mundo, significa que nessa intercessão, podes traduzir essa técnica de uma outra forma, ou seja tirar uma coisa que já não é aquilo. Em fim, essa é uma discussão teórica. Mas o que disseste tem a ver com uma coisa que é eu escreve não para ser igual. Eu tento escrever para tentar criar o traço distintivo. Escritores são muitos mas o que vai nos fazer diferentes é a forma como cada um vai escrever. Nós vamos pedindo esses empréstimos todos, mas é preciso transformar isso em algo que nos vai distinguir dos outros.
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A Poesia de Eduardo White: -DO AMOR AO DESENCANTO E À MORTE Lara Fabiana R. D. R. Videira lara_fabiana_videira@hotmail.com
―Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.‖ Fernando Pessoa
―Onde eu vivo não é na sombra. É por detrás do sol, onde toda a luz há muito se pôs.‖ Mia Couto
―Sou um pensamento que não tenho, sou uma compreensão que não sinto.‖ Eduardo White
É impossível falar de poesia moçambicana contemporânea sem referir o nome de Eduardo White. Um poeta que podemos chamar de poeta lírico uma vez que as suas palavras nos rodeiam e fazem voar na realidade e no sonho. Quando se abordam as caraterísticas temáticas da poética de Eduardo White rapidamente nos surgem duas paralvras: amor e erotismo. Contudo, a poesia whiteana ultrapassa em muito os limites destas palavras para percorrer outras linhas de pensamento. Procuraremos apresentar e explicitar alguns temas igualmente essenciais na obra de Eduardo White e que, todavia, são muitas vezes esquecidos, ignorados ou remetidos para segundo plano. Referimo-nos ao tom melancólico e ao tema da morte. Para isso,teremos como base os livros: O País de Mim eOs Materiais de Amor seguido de O Desafio à Tristeza. A poesia de White possui um caráter claramente intimista que procura uma nova forma de representar a realidade Moçambicana (revelando-se por vezes mais explicitamente que outras). Numa tentativa de eliminar as imagens de guerra e sofrimento e exaltar o homem moçambicano, o poeta escreve a partir de uma temática amorosa que não se centra exclusivamente na mulher amada, mas que ultrapassa esses limites para se revelar no sentimento amoroso
dedicado à terra, à poesia, ao sonho... ― O amor é o motor da criação poética e por sua vez é também um elemento que tem de ser recuperado para poder recompor a identidade do sujeito poético e para repensar a realidade da nação sob uma nova perspectiva.‖ (Spinuzza, 2009: 32) Preenchidos pela magia que transparece o onirismo e a ternura que inundam as palavras, os seus textos poéticos revelam-se repletos de ritmo e musicalidade. Cantando o amor como hino nacional e, sobretudo, individual (observe-se o facto de uma das suas obras ser denominada O País de Mim) como sinédoque de um todo maior, a poesia whiteana reflete sobre um mu n do in t erio r do homem, nos sentimentos e sonhos, assim como sobre um mundo interior do poema presente através da metalinguagem que aborda a criação poética. Através do amor, White ambicionou erotizar a amada e, numa leitura alegórica, a sua terra e, com isto, eliminar imagens obscuras relembrando a vida. Deste modo, considerou que a sua poesia é ―acima de tudo uma temática de protesto e relembrança‖ em que procurou ―levar ao leitor uma relembrança do que afinal está em nós ainda vivo, do que a gente acredita como sendo possível, como sendo real, que é o amor‖ (White in: Laban, 1998: 1179). Num mundo rodeado de guerras e mortes ―a literatura pós-indepedência almejou cantar o amor na tentativa de desadormecer a paz‖ (Almeida, 2006: 38) e os versos brancos permitiram erotizar uma terra consumida pelas ações do Homem. Todavia, se o amor e a vida são a essência da poética whiteana, a morte não consegue ser ignorada já que esta participa na vida e faz parte dela ou se revela o
seu oposto numa espécie de representação de ascese obtida a partir do amor e que a morte destrói. Por isso, além de momentos de otimismo encontramos também momentos de desalento e tristeza. As obras de Eduardo White são caraterizadas pela existência de um determinado momento de desencanto ou de presença da morte, que é antecedido ou procedido pelo louvor ao amor e a amada. • O País de Mim Este é o caso da obra O País de Mim. Neste, encontramos um livro que já por si apresenta um título provocatório uma vez que remete para um universo singular num conceito – país – que transporta a ideia de pluralidade, de grupo. Quando questionado quanto
ao título o autor responde simplesmente: ―Foi mais pela musicalidade que me dá «O País de Mim», acho uma palavra bonita a ideia do «Mim». Acho, inclusive, que «O País de Mim» é mais um país de dentro. «O País de Mim», «de Mim», porque o «Mim» está dentro.‖ (White in: Laban, 1998: 1193) Desta forma, O País de Mim aborda a interioridade do homem, a sua realidade interior. Os poemas não têm títulos mas são numerados numa sequência que desenha um percurso ascendente e que, após o clímax (entre os poemas 29 e 35), se torna descendente. O afastamento do tema da vida surge após o clímax e de forma gradual sendo substituído pelo tema da morte e rompendo definitivamente a ligação, de forma visível na
Letras obra, com uma página que contém uma citação de Sylvia Plath onde pudemos ler: ―Morrer/ é uma arte como tudo/ mais./ E eu faço-o excepcionalmente bem‖. Assim, inicialmente, o sujeito poético centra-se no amor que surge ainda antes do poeta nascer, nas suas palavras: ― Eu já amava e escrevia versos/ nas paredes do útero de minha mãe‖ (White, 1989: 10). E, na segunda parte, focalizase na morte como complemento da vida. O poeta abandona o quadro moçambicano para se concentrar em temas muito mais universais. A utilização do amor como tema contínuo é questionada, contudo o sujeito não encontra resposta. O amor participa na vida do ―eu‖ lírico, faz parte dela, e, como tal, não deve existir necessidade de questioná-lo apenas de experimentálo, sentí-lo e vivê-lo. O amor e a poesia estão intrinsecamente ligados ao sujeito poético desde a sua génese e, por isso, a vida deve têlos como base da construção do ser. À medida que avançamos na leitura dos poemas a mulher incorpórea vaise tornando corpórea e o amor assume uma ligação ao elementar e à natureza. Através de metáforas e comparações com elementos da natureza descobrimos uma descrição cada vez mais palpável da mulher amada e do amor. A corporalização da mulher leva à descrição erótica que, de forma encoberta, expõe toda a relação dos amantes. Com isso, entramos na vida que é definida pelo amor, mas que revela as impurezas que a corrompem. Com o surgimento do tempo atravessamos para outra realidade: a morte. O tempo retira a vida e evoca a morte. O poema 50 é, sem dúvida, um dos primeiros indícios de mudança de tema e de visão da vida. Até agora o sujeito nasceu, amou, desejou, consumou o amor, imaginou o fruto dessa consumação... Porém, agora, surge o envelhecimento e a memória de uma amor eufórico que presentemente é atenuado e ameno. Na segunda parte descobrimos um tom de desencanto crescente em relação até ao próprio amor que perante a passagem do tempo exige às pessoas um término. O tempo esgotou a vida e o amor absorveu-a, consumiu-a, ―sobrou dele/ estas partes pobríssimas/ e friorentas/ que somos‖(White, 1989: 64). Atualmente, os amantes apenas esperam a chegada da morte, desejando morrer juntos mas sabendo que a morte exigirá levá-los como a vida os trouxe: independentes. Por isso, numa brusca necessidade de controlar a vida que nunca foi controlável, de agarrar o destino que sempre desenhou autonomamente o seu curso, decide argumentar que escolham o momento em que a vida termina dizendo ―punhamos nós mesmos, resolutos/ termo à vida‖(White, 1989: 67). Para Eduardo White:
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13 Deste modo, o sujeito poético confessa "Eu amo-te devagar, como profunda e iluminadamente amo todo este destino, porque cedo me deram a poesia, essa voz candida, funda, pela qual empobreço escrevendo versos. Ninguém agora me perdoa tamanha loucura e dela é tarde para que me liberte e é por isso que conto estrelas e falo sozinho pelas ruas e penso bastante." (White, 1996: 21) White explora na sua criação poética não só o amor mas toda a essência da vida que, nele, se transfigura na poesia. Logo, mesmo nesta primeira parte, se encontra o rasto de descontentamento presente através dos sentimentos provocados pelas atitudes dos outros e que conduzem o ―eu‖ lírico a falar sozinho e a pensar bastante. Contudo, ignorando os outros, Os Materiais de Amor é ainda uma hino ao amor e à vida, à terra que é evocada através dos seus vários elementos, por exemplo, em: "Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que a Norte e na Ilha traz um amante inconfortado. Em tudo habita a tua imagem, o m'siro purificado da tua beleza e das tuas sedes, a rosa dos ventos, o sextame dos tempos, em tudo acordas de repente como se ardesses naus, garças, águas, ouros, pratas, vagas, escravos ausentes, tudo o que esta Ilha sou ao Norte," (White,1996: 25 e 26)
―O País de Mim é isso, é o lado que eu vivo, o lado lírico e idílico, mas também o lado real que está dentro, que está subjacente. Eu assumo a morte em O País de Mim como atitude voluntária: não acredito nessa treta de morrer pela pátria. Acho que já passámos o tempo de morrer pela pátria, pelas boas causas. De maneira que eu faço o que é perfeitamente justo aos olhos do leitor mais assumido, mais engajado, quando os amantes propõem morrer porque a velhice chega, o cansaço. Eu ponho a morte como uma atitude voluntária: não é morrer pelo amor, mas porque a vida já não traz muito. E morrer para viver não como herói, não na lembrança, não na memória, mas na vida.‖ (White in: Laban, 1998: 1181) Deste modo, em O País de Mim, a morte surge como complemento da vida, como parte dela. Após a citação de Sylvia Plath, assume-se que a ideia do sujeito poético foi realizada e que a mortenão é um término mas uma passagem para outro tipo de vida. Analisando os atos dos amigos, o ―eu‖ lírico conclui que a morte é uma nova extensão de vida e que ―estamos na morte com o mesmo encanto/ e com a mesma mestria com que estivemos/ na vida‖(White, 1989: 74). O tempo já não conta, já não se
altera, e o amor permanece, enquanto esperam pelos filhos. Depois da constatação da velhice que levou a um desapego da vida, dá-se um novo hino de glória ao amor que, agora, se torna ainda mais profundo e que se revela a única coisa que se conserva nos amantes e que os faz ser relembrados pelos vivos, como escreveu o poeta: ―O amor foi a única coisa que trouxemos/ da vida. / Por ele nos lembram ainda/ e por ele decidimos morrer/ sem dor/ sem arrependimento‖(White, 1989: 83).
• Os Materiais de Amor seguido de O Desafio à Tristeza Todavia, nem sempre a poesia whiteana expõe a ideia de morte pacífica presente em O País de Mim. Assim, surgem dois livros que, apesar de tão distintos, se constroem num só livro, referimo -nos a Os Materiais de Amor seguido de O Desafio à Tristeza. Em Os Materiais de Amor é o amor que orienta a escrita através de uma linguagem sonhadora e secreta que evoca a imagem e o ritmo para construir esses materiais incorporados. Materiais estes que se revelam através de vários tipos de leituras como a mulher amada e a terra desejada – mais especificamente representada pela Ilha de Moçambique.
Definição da amada como semelhante à terra ou da terra como amada, White apresenta várias representações oníricas do amor numa vã tentativa de definição. Seguindo esta sequência de contínuasenumerações e metáforas Fátima Mendonça resume esta primeira parte dizendo: ―A concentração de sinais vários, as sedas, os búzios, turbantes e filigranas, o séquito ajawa, o curandeiro macua, o pangaio, om'siro, naus, garças, sob sugestão marítima do índico, não pode estar aqui dissociada da insularidade que a imagem evoca. Insularidade do Eu e do Outro. Do Corpo e da Terra. Do Nós e da Mátria. Lugar de encontro com o Eros, espaço da fusão dos seres, fusão simulada porque só permitida pelo sonho e apenas confirmada do alto da nossa racionalidade pela loucura ou pela poesia". (Mendonça in: White, 1996: 10) Representando o amor na poesia, White vai desmistificar a loucura por amor tornando-a clara e algo realizável.Assim, surge-nos o tema da morte já não como momento de finalizar a vida como em O País de Mim, mas como oposição ao amor. Neste poema, morrer é não viver no amor, tanto num acumular de desejode fundir-se com a amada em
Letras que, como diria o ―eu‖ lírico, ―onde és tu que eu estou morrendo, estou morrendo de sede‖ (White, 1996: 35 e 36), como numa sociedade que impede o amor. O amor é o antídoto da morte, a fonte da vida. Só através da loucura se pode amar e só através do amor verdadeiramente se vive. Sem amor, apenas resta a morte que o sujeito poético tanto procura negar. Este livro termina com o apelo à amada para se libertarem do que os rodeia, para não se influenciarem―na glória dos que querem o amor no esquecimento‖, e viverem a partir do amor e no amor. Contudo, é exatamente no espírito oposto que descobrimos o sujeito poético de Desafio à Tristeza. Se, no primeiro livro, é o amor que controla todo o universo e desenvolve um mundo onírico e erótico renegando a morte e a infelicidade, no segundo livro, é a tristeza que governa e como que, numa descida ao inferno interior, expõe o sofrimento do sujeito poético a partir da utilização de um teor que podemos considerar mais biográfico. Num exercício retórico que se debruça no sujeito e num exame interior, encontramos uma visão, até agora desconhecida, de um negativismo puro e do desencanto por um país rodeado de guerra e fome. Desta forma, o sujeito poético inicia declarando: "Estou vazio, rigorosamente vazio dessa possibilidade tão feliz que é ser delicado, que é olhar para as coisas com beleza e senti-las desse modo, porque tudo em mim está cinzento dentro e a doer como um irremovível tumor a apodrecerme as vísceras. Estou vazio e não tenho outra realidade mais clara e nítida, tão vertical e concreta. Sou um horizonte que já foi, a solidão funérea de um caminho que ninguém percorre e tão desprezível me é essa maneira de viver que não há para ela senão uma forma desprezível de morrer: acobardadamente fraco, infalivelmente doente." (White, 1996: 59 e 60) Todos os dias o sujeito poético enlouquece e deseja esquecer a vida que o perturba e intimida. Num sentimento de ausência de algo que dê sentido ou valorize a vida refugia-se na bebida que, por momentos, mascara a realidade e encobre os verdadeiros sentimentos. Considerando-se ―vazio‖, sem sentido ou direção, o ―eu‖ lírico mergulha num profundo desalento que transforma tudo o que é seu num tumor de destruição. A vida é tão insipiente que nem a uma morte digna pode ter direito. Contrastando com tudo e todos, nauseado de si próprio considera que ―lá fora é dia e eu sou noite dentro de mim‖. (White, 1996 : 70) Desanimado com a vida, o sujeito
Setembro de 2013 poético vê a vida como algo infecundo e sem significado. Considera que não teve adolescência e que a velhice é um ―contrato em letra morta com a vida‖. (White, 1996 : 76) Deste modo, compreendemos que o sujeito poético se sente
Ensaio
termina o poema que, com um abalo, acorda o leitor para a realidade incómoda. Para Eduardo White, o que mais interessa é escrever e cantar o amor e
14 ama.‖(White in: Laban, 1998: 1184) A essência da vida está no amor e é a partir deste que Eduardo White vai construir a sua poesia tendo sempre em atenção toda a realidade da vida humana e a sua sensibilidade que tanto nos pode conduzir a uma poesia de cariz erótico como ao interior psíquico de um sujeito desalentado.
♦Bibliografia Almeida, Cíntia Machado de Campos, Na Ponta da Pena: Moçambique em letras e cores, Rio de Janeiro, 2006 Camargo, Patrícia, A leveza confluente entre o sonho e o amor na força poética de Eduardo White, Revista África e Africanidades – Ano I- nº. 3, 2008 Laban, Michel, Moçambique – Encontro com escritores III vol., Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1998 Secco, Carmen Lucia Tindó, Brasil e Moçambique: a importância dos sonhos, do amor e da poesia nos conturbadostempos modernos, Brasil Universidade Federal do Rio de Janeiro, in: http://www.bd.ce.usb.ve/ sistemaAnterior/cd/ ceisal2002/Indice_tematico/ Grupos_de_trabajo/GT-10/gt10.html Spinuzza, Giulia, A Poética de Eduardo White, Universidade de Lisboa, 2009
desolado quando confessa: "Não posso pedir mais nada. Estou triste. Mergulhado no inerte terror desse facto. Sou um pensamento que não tenho, sou uma compreensão que não sinto."(White, 1996 : 64) O ―eu‖ lírico está desencantado com o mundo e tem consciência disso, apercebe-se da sua melancolia que não termina. Perturbado, sem conseguir conciliar-se consigo mesmo, resolve que a única solução é a morte. ―Um tiro certeiro na cabeça da tristeza é tudo quanto basta para a emoção desse desafio devolver-me à realidade de saber-me homem, mesmissimamente igual a tantos outros: pequeno, humilde e sem glória.Homemsó. Mais nada‖.White, 1996 : 81) Através da metáfora ―tiro certeiro na cabeça da tristeza‖ , o sujeito poético
não a temática da guerra que exclui o sentido da vida. Deste modo, diz ― vai ser importante saber que eu escrevi sobre o amor quando se morria‖.(White in: Laban, 1998: 1185). Verdadeiramente a sua poesia é um hino ao amor como extensão da vida, contudo a vida não é inócua e nela existe a morte. Assim, a poesia whiteana retrata a vida em toda a sua dimensão revelando o otimismo que nos preenche e também o desencanto que por vezes surge. A morte é um elemento constituinte da vida que pode ser representado como seu complemento e até complemento do amor quando se chega a um determinado estado ou seu opositor. Como súmula da poesia de White poderíamos utilizar as suas próprias palavras quando diz: ―Cantar a verdade, para mim, é cantar o homem que amanhã vai nascer, é cantar o indivíduo que trabalha, que morre, mas que
Tostes, Paulo Roberto Machado, Eduardo White e Fernando Pessoa: no olhar, uma metáfora da existência, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2012 Tostes, Paulo Roberto Machado, Meu País é o meu Corpo, in Anais XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP, 2009 White, Eduardo, O País de Mim, Associação dos escritores moçambicanos, 1989 White, Eduardo, Os Materiais de Amor seguido de O Desafio à Tristeza, pref. Fátima Mendonça, Lisboa, Caminho, 1996 White, Eduardo, Janela para Oriente, Lisboa, Caminho, 1999 http://lusofonia.com.sapo.pt/ white.htm Consultado em: 16-04-2013 21h15
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O POVO TAPEBA DO CEARÁ
Rogério Rodrigues clicrogerio@gmail.com
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povo Tapeba é resultado de um longo processo de junção de elementos étnicos dos povos originários em uma dinâmica de mútua assimilação. Potiguara, Tremembé, Cariri e Jucá foram etnias indígenas que, sob a autoridade do poder colonial, agruparam-se na Aldeia de Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaia - que deu origem ao município de mesmo nome. A população Tapeba é composta, actualmente, por aproximadamente 6.439 indígenas que vivem distribuídos em 17 comunidades. Seu território está localizado na Região Metropolitana de Fortaleza, no município de Caucaia – estado do Ceará. A Terra Tapeba foi identificada em 1986 com uma área de 4.675 ha, pela FUNAI, e actualmente encontra-se em processo de demarcação. A afirmação da identidade étnica e a luta pela terra são elementos fundamentais para compreender a história desse povo que, até tempos recentes (década de 80), não tinha o reconhecimento de sua etnia uma vez que a presença de povos indígenas no Ceará era constantemente negada. Até a década de 80, o estado do Ceará, assim como os do Piauí e do Rio Grande do Norte, eram dados, pelos registos da FUNAI e pelos levantamentos produzidos por antropólogos e missionários, como os únicos estados no Brasil, além do Distrito Federal, em que inexistiam índios. No Ceará, entretanto, a presença indígena deixou de ser ignorada quando a então Equipe de Assessoria às Comunidades Rurais - hoje, Equipe de Apoio à Questão Indígena da Arquidiocese de Fortaleza passou a actuar no município de Caucaia, junto à colectividade dos Tapeba. "Tapeba", "tapebano" ou "perna-de-pau" são atribuições étnicas pelas quais uma dada colectividade se identifica e é reconhecida na paisagem social local do município de Caucaia como constituindo um grupo distinto. Tapeba também é um topónimo. É o nome de uma lagoa e um riacho periódico da área rural do distrito da sede do município de Caucaia, na proximidade dos quais moram famílias Tapeba, numa área onde a sua presença é maioritária. A etimologia da palavra tapeba é tupi constituindo uma variação fonética de itapeva (de itá/tá, i. é, "pedra"; e peva, i. é, "plano", "chato"): "pedra plana", "pedra chata", "pedra polida", etc. O nome do município em que se encontram também é de origem tupi, representando uma variação de ka'a-okai (de ka'a, i. é, "erva", "mato", "bosque", "floresta"; e okai, i. é, "queimar"): "mato queimado", "bem queimado está o mato", "queimada", "mato que se queima". A toponímia local é quase toda ela de origem tupi: Capuan, Iparana, Icaraí, Jandaiguaba, Paumirim, Pabussu, Tabapuá etc.
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GABRIEL MAZIVE – MÃOS SAGRADAS
David Bamo davidbamo@gmail.com
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esta edição percorremos o perfil de um artista que tem as mãos para expressar as suas opiniões e sentimentos. Um que tem a arte de esculpir a madeira. Arcanjo Gabriel Mazive e Sérgio Zimba são os homens das artes que nos acompanharão nos próximos minutos, ambos
residentes do município da Matola. Arcanjo Gabriel Mazive nasceu a 27 de Junho de 1965 em Maputo é membro activo do Núcleo de Arte desde 1983. Descobriu a arte em si desde novo, mas só entre 1985 e 1986 definiuse como escultor. Hoje embora não viva de arte, tem a arte como sua vida e o acompanha em todos os lados. Aliás, Mazive tem a sua
casa como ateliê e é nela onde a o Páginas de Alma encontrou-se com o fazedor de arte. Participou em várias exposições colectivas, concursos de artes plásticas e workshops e tem várias das suas obras dispersas em colecções particulares no território nacional bem como no estrangeiro. A seguir conheça este artista que vive e trabalha na cidade da Matola.
Mazive, não teve uma escola para aprender a trabalhar a madeira. Mas não viveu sozinho os momentos de edificação artística. No bairro da Matola H mesmo a escassos quilómetros da galeria de um dos mais reconhecidos mestres da escultura em Moçambique, Alberto Chissano. Mas os seus afectos estão no pintor-mor, Malangatana Valente Ngwenha, o monstro sagrado, das nossas artes.
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TIMBILA: MÚSICA E MISTÉRIO
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or um lado a ciência tenta chegar à verdade sobre o som da Timbila, instrumento musical tradicional moçambicano e, por outro, há os fazedores não param de embarcar nos seus mistérios. Um docente de física da Universidade Eduardo Mondlane (UEM) fez uma apresentação sobre a possibilidade de se explicar cientificamente o fabrico e o funcionamento da Timbila, aqui aprofundaremos o texto e falaremos de um grupo de música que trabalha na base da Timbila, os Timbila Muzimba.
O investigador moçambicano e docente de Física da Universidade Eduardo Mondlane (UEM) Mário Baloi encontrou espaço na Mbila ou Timbila, para desmistificar os segredos da construção do instrumento que tradicionalmente o seu domínio é transmitido de através de descendências familiares, em Moçambique, particularmente na região de Zavala, província de Inhambane a sul do país. O que o estudioso pretende apresentar na verdade é sobre a quantos anda a popularização de tecnologias tradicionais em Moçambique, visto que, ao seu entender e pelos estudos que fez, a Timbila é uma inovação do tradicional.
como a ponte que estas tecnologias podem estabelecer com a área de ciências.‖
Comentando sobre o aspecto da preparação da sociedade, para tomar conhecimento da realidade sobre assuntos tradicionais que são, na verdade, científicos, Mário Baloi disse, que isso sempre fez parte da sociedade e salienta que existe nas pessoas um conhecimento empírico, mas que é válido, na construção de uma tecnologia africana.
Por outro lado, este estudioso, apesar de considerar haver um desenvolvimento científico elevado, hoje em dia, disse não haver tecnologias correspondentes, sendo assim ―há um equilíbrio e penso que cada parte do mundo participa para tal, uns com a tendência para a tecnologia e outros na própria construção do conhecimento. Se a tecnologia da Timbila é secular, não quer dizer que nós estamos a dominar outras tecnologias e outros conhecimentos explicativos do domínio da Física ou da acústica por exemplo.‖
―A sociedade já vive com esta tradição há séculos, temos que pensar que talvez, desde os anos 1800. Entretanto, temos que nos perguntar, por exemplo, se aqui em África que conhecimentos, tecnologias existem. E que papel, estas tecnologias podem desempenhar para o desenvolvimento do país na sociedade moderna? Os conhecimentos tecnológicos podem ser relacionados com as construções de casas, celeiros, pontes e estradas, na produção de adubos, incluindo na área artística musical,
―O grande problema que temos e, que chamamos isso de positivismo clássico, é que vimos a ciência apresentada nos livros, como algo pronto, sem nenhuma relação com o pensamento, com a civilização e desenvolvimento local e isto, vai criando cada vez mais dificuldades às crianças e aos cientistas de como inserir-se na sociedade. Tenho feito esta comparação e descubro que o conhecimento destas tecnologias locais, só cria uma plataforma de facilidade para conhecimento das tecnologias moderna‖, argumentou Baloi.
Em contra partida, Baloi garante que ―nos revelamos assim, como um povo especial dentro do conhecimento da humanidade, e isto, é fundamental para o conhecimento é humano, independentemente dos estágios em que ele pode alcançar. O facto da Timbila ter
sido declarada património da humanidade, dá-nos uma chance de irmos valorizando cada vez mais, esta parte humana de conhecimento, onde Moçambique pode participar.‖ Quando colocada a questão sobre o enquadramento que se pode dar a quem sabe fazer e tocar a Timbila, não havendo notas musicais, nem mesmo uma instrução científica para o seu fabrico, a nossa fonte realçou a necessidade de se aproveitar as fontes existentes para se adquirir este tipo de experiência, como no caso de Venâncio Mbande Júnior, filho do mais popular e respeitado mestre moçambicano da Timbila, Venâncio Mbande, seu acompanhante na investigação sobre a Mbila dos Chopi. ―A experiência que tenho, de um modo concreto, foi promover junto daquelas pessoas com quem trabalhamos na pesquisa científica, como o Mbande Júnior criando uma oportunidade nas universidades, para que esses jovens conhecedores desta cultura, por um sistema de educação oculto ou tradicional ou enraizado na própria cultura, para que possa elevar esse conhecimento, estudando essas áreas e combinar o conhecimento com uma possibilidade de sistematiza-lo, dentro de uma instituição de ensino superior.‖ ―Temos que dar a oportunidade a pessoas que tem conhecimento empírico e não sempre olharmos a estatística, quando queremos que alguns jovens continuem a estudar, querendo ver se que passou o exame de admissão ou não passou, porque se reprova os exames, perde-
mos toda uma chance de tais jovens que vem de uma realidade diferente e com habilidades, perdemos uma chance deles desenvolverem o país, diante de uma visão moderna e futurista que vão ter e olhando para o passado, de escrever, de relatar e de publicar teses científicas nesta área‖ rematou. Para finalizar, Mário Baloi, alertou ao facto de algumas pessoas que detém conhecimentos valiosos, da ciência e tecnologia tradicional, estarem a desaparecer. Disse ainda que muitos deles, já estão na idade avançada e brevemente não teremos a possibilidade de recorrer a eles em busca destes conhecimentos. Na voz de quem é timbileiro, ―Para mim na qualidade de fabricante, ouvir que a timbila é uma inovação tecnológica e que a física sabe explicar o seu fabrico constitui uma grande novidade. É algo novo saber que a quem produz a timbila, também tem um conhecimento científico, mas sempre gostei desta arte. Foi uma ideia louvável do Doutor Baloi efectuar estes estudos e por isso que aceitei o seu convite.‖ Declarações de Venâncio Mbande Júnior, filho do lendário mestre da Mbila, Venâncio Mbande, Homem, que muito se acredita que possui um conhecimento empírico sobre o fabrico deste instrumento musical de elevada qualidade rítmica e que, entretanto não é valorizado no seu próprio país. Júnior, participou no seminário da Academia de Ciências de Moçambique,
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convidado por Mário Baloi, docente de Física e investigador científico de longos anos de experiências. Este artista, que antes não tinha em consciência que o saber, fazer e tocar a Timbila, é um conhecimento científico e que o instrumento é uma inovação tecnológica, trabalha com este cientista há mais de dois anos e disse estar a aprender com o docente. Aliás, é devido a esse empenho que Venâncio Mbande Júnior, engrenou no recém-criado Instituto Superior de Artes e Cultura (ISARC), cursando animação cultural, visto que um curso específico para o instrumento que sabe muito bem tocar, não existe no país. Como resultado da Investigação do Mário Baloi, Júnior diz que ―espero que no futuro hajam manuais que detalhem o fabrico da Timbila e que as nações saibam o que é este instrumento na verdade.‖ Timbila Muzimba, aqueles que timbilam o corpo Com o nome inspirado em dois elementos, Timbila – instrumento musical de origem Chopi e, Muzimba – Corpo, os Timbila Muzimba pautam por uma música de raiz, com fortes fundamentos chopis, mas com a fusão de outros ritmos nacionais, moldados por instrumentos musicais tradicionais e modernos. O seu trabalho com o som, leva-os a constantes investigações sobre a combinação de ritmos e instrumentos o que a torna, portadora de música de qualidade com padrões apreciados em grandes eventos musicais do mundo. Compõem este grupo os músicos Cheni wa Gune, Lucas Macuácua, Celso
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Durão, Tinoca Zimba, Alex, Arlindo, Osório e Matchumi, na sua maioria filhos de populares tocadores da Timbila. São moçambicanos oriundos do subúrbio. Lá onde a fama de criminalidade é que mais cresce pelos corredores sociais, no lugar do despontar de culturas que levam ao coração melancolias e alegrias. Aos 15 anos de existência, essa banda não mudou de lugar, é do bairro Unidade “7” e é lá fomos buscar a sua história. Para estes músicos cuja maioria é ma-chopi (etnia do norte da província de Gaza e sul de Inhambane em Moçambique), segundo conta Matchumi, ser machopi é viver a sua realidade, a tradição e saber lidar como tal, com o dia-a-dia. Convivendo com essa realidade, tradição no dia-a-dia acompanhados por respeitados mestres da música chopi desse tempo (pelo menos a nível do bairro), Massangai, Tchambeni e Katini, viram-se formalmente indicados para levar adiante as suas origens, de acordo com a conclusão que chega a nossa fonte. ―Foi um processo auxiliado pelas nossas origens. Aos quatro anos começamos a dançar e a tocar a música chopi, depois o tempo foi passando, crescemos e fomos nos apaixonando pela música. Os nossos pais, os nossos tios, eram fazedores da timbila, e nesse momento éramos adolescentes e gostávamos de participar em eventos culturais, como dança, música, estávamos sempre metidos na cultura, na cidade.‖ ―Éramos músicos, bailarinos e muito mais. Com o andar do tempo dicidimos formar o Timbila Muzimba em Agosto de 1997, mas claro, com cada membro a pertencer outros grupos tra-
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dicionais desse tempo. De lá para cá ouve muita gente a fazer parte do grupo e a sair.‖ Enquanto contava era possível ver horizontes nos olhos de Matchumi, afinal, está-se perante uma história de sucesso. De jovens que pegaram a timbila como seu símbolo logo na primeira escolha da linha que pretendiam seguir. E nas suas palavras ―a timbila é como se fosse nossa alma. Tocar timbila é como se estivéssemos a falar a nossa língua.‖ Conta o artista. Mas o trabalho com a música tradicional, embora atenuada com a modernidade, exige da banda esforços contínuos de prática, para que de facto, tal como vive Timbila Muzimba, a sua arte seja o seu ganha-pão e não um mero divertimento. De acordo com o nosso entrevistado, o grupo tem como aposta a qualidade e é isso que difere-os de outros artistas. Essa qualidade apresenta-se tanto nas aus composições como quando estão em palco. ―Como se sabe, a música chopi é para dançar, cantar, pode-se escutar também, mas ela foi feita para se dançar. É a música das timbilas. É esse o som tradicional que contagia as pessoas que chegam a perder o controlo do tempo e vivem a verdadeira emoção da vida. Até
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porque esse é o objectivo central.‖ Pelo menos essa verdade é difícil de se contrariar, quando os Timbila Muzimba estão em palco há ―sofrimento‖ por parte do público; vibração por vezes involuntária; pulsação rápida do coração; os pés recusam-se do chão; as mãos estendem-se pelos ares a procura de um espaço para o corpo. É isso, os deuses assim o querem, é o encontro com aqueles que fazem a história. Lembramo-nos de um ontem que não vivemos na combinação de danças como Ngalanga e o suar dos Xitendes, tambores e o principal, a Timbila. Mas a que isso nos pode levar? ―Transformamos algo na vida das pessoas. Servimos de uma banda que ajuda pessoas a resolver seus problemas, ajuda na educação da sociedade, não servimos só para tocar. Preservamos cultura e a realidade. Não trabalhamos apenas com o tradicional. Tentamos fazer algo de inovador, fazemos novas experimentações, tentando renovar o moderno.‖ Tempo a tempo, a história vai cobrando seu espaço na preservação daquele instrumento musical que já é reconhecido pela ciência, sob o olhar calmo daqueles que deviam preservar o ―Mwenje‖, árvore usada para o fabrico da Timbila.
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JORGE DIAS OLHAR O PASSADO DE SOSLAIO, ABRAÇAR AVIDAMENTE O PRESENTE Felizmente, os artistas são imprevisíveis, e à medida que atravessam e circulam pelos múltiplos e plurais territórios da cultura, apropriam-se do que querem apropriar-se e trocam o que querem trocar… Orlando Britto Jinorio1
Alda Costa Fonte: Buala
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orge Dias é u m d o s membros fundadores do Movimento de Arte Contemporânea de Moçambique. O seu trabalho não se define por um medium específico; caracteriza-se, sim, pela heterogeneidade,integra pintu ra, escu ltu ra, vídeo, instalação, objectos. Interroga o conceito de obra de arte, tal como o fizeram já vários artistas, reflecte sobre problemáticas que dizem respeito a todos os seres humanos do planeta, mas também sobre a sua realidade mais próxima. O trabalho deste artista torna necessária outra maneira de pensar sobre a arte que considera não apenas o labor, a habilidade ou a técnica, mas reconhece a importância da ideia que lhe é subjacente. Para além da contestação dos que continuam a pensar e a olhar a arte com ‗outros olhos‘, fazem-se, às vezes, sobre o trabalho de Jorge Dias, e de outros artistas do nosso tempo, comentários do tipo: ―Isto é arte europeia, arte ocidental, não tem nada de africano ou de asiático ou de latino-americano‖. No caso de Jorge Dias, este tipo de comentários, feitos por africanos2 e não-africanos, t êm po r b a se u ma n o ção de ‗africanidade‘ essencial(ista) que deixa de lado a coexistência e o confronto de realidades diferentes e a criação permanente de novas formas de relações culturais. Esta perspectiva, a que se associa outra, a de ‗autenticidade‘, foi já objecto de acesos debates e discussões. Tem
Ao contrário de outros artistas, de gerações anteriores, beneficiou de um novo ambiente para a arte, de um crescente interesse pela África contemporânea, do espaço aberto por artistas, críticos e vindo a ser contrariada por muitas vozes críticas mas encontra, todos os dias, alimento em discursos e narrativas dominantes que tendem a simplificar e a homogeneizar a(s) realidade(s) complexa (s) e a esquecer a liberdade de criação. Jorge Dias já se confrontou, diversas vezes, com estes comentários. Fora de Moçambique o seu trabalho já foi considerado ‗muito africano‘, em Moçambique como ‗não tendo nada a ver com africano‘. Para si, são apenas julgamentos superficiais. Acredita que as suas origens culturais plurais, as suas experiências e formação vão estruturando a sua forma de pensar, o seu trabalho e a sua procura e não está preocupado em ‗parecer mais ou parecer menos‘3.
Este texto visa fornecer elementos para ajudar a pensar e a interpretar a arte praticada pelo artista Jorge Dias e a maneira como tem vindo a construir o seu trabalho e a sua relação com o mundo. Artista de uma geração que intervém num contexto pós-colonial, cresceu nos primeiros anos de construção da nação Moçambique, viu cair muitas das barreiras experimentadas pelos seus antecessores, conheceu mais oportunidades, experimentou o mundo e a sua pluralidade. Ao contrário de outros artistas, de gerações anteriores, beneficiou de um novo ambiente para a arte, de um crescente interesse pela África contemporânea, do espaço aberto por artistas, críticos e curadores, de mais possibilidades de
curadores, de mais possibilidades de internacionalização e maior visibilidade.
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internacionalização e maior visibilidade. O seu trabalho, que abraça várias disciplinas, realiza-se num contexto de mudança de paradigmas, expressa livremente as suas aspirações e inspira -nos para reflectir, sentir e entender as complexidades do processo artístico.
Os anos de formação Nascido em 1972, Jorge Dias graduou-se em cerâmica na Escola de Artes Visuais4, onde ainda hoje é professor, e muito cedo associou o seu trabalho de jovem docente à vontade de ser artista. Nesse início da década de 90, já depois de ter exposto algumas vezes com outros jovens artistas, queria ser ‗um grande pintor‘5 e estava disposto a trabalhar para isso. Buscava inspiração no ambiente artístico em mudança que se vivia, nesses anos, em Maputo, nos artistas que se afirmavam ou intervinham localmente, nos jovens que regressavam ao país acabada a formação superior em arte e que estavam desejosos de marcar a diferença. Naguib e Fátima Fernandes foram referências importantes, mas Jorge Dias reivindica também a influência de Eugénio Lemos que, como refere, ‗fugia muito dos cânones estéticos da pintura moçambicana‘ ao privilegiar a cor e a estruturação de limites e formas no espaço6. O Núcleo de Arte, que fora um centro artístico importante, também vivia momentos de mudança. Procurava reanimar-se, depois de um período em que buscava, mais uma vez, a sua vocação e lugar. Opondo-se à visão hegemónica reinante nos anos 80 uma nova geração de artistas, mais ou menos conscientemente, tentava alguma descontinuidade, sair do isolamento, virar as costas à ―armadilha da avaliação ‗da arte africana‘ como exótica‖7. Virar as costas a outras armadilhas, as que ―tolhiam a criatividade dos artistas‖, questionar pensamentos e acções, ―descobrir‖ o novo, o até aí desconhecido continuou a ser o objectivo de outros encontros de artistas8 que então aconteceram. Foi neste contexto que Jorge Dias começou a expor e chegou mesmo a abrir, com outro jovem que também queria ser artista, Habulen, uma galeria de arte, a Kindlimuka no recémmodernizado Centro Comercial da Interfranca. A procura de espaço e de afirmação por parte de uma nova geração de artistas marcou fortemente esses anos de muitas mudanças, a diversos níveis. A Bienal TDM, a Descoberta da Casa de Cultura do Alto-Maé, a Anual do Museu Nacional de Arte e as novas galerias que surgiam ofereciam variadas oportunidades, principalmente para muitos dos jovens estudantes e graduados da única escola de artes visuais existente em Maputo. Jorge Dias não fugiu à regra. A pintura suplantava a cerâmica, sua área principal de formação. O tratamento da forma, da cor e da matéria
amadurecia. Aos azuis seguiram-se os verdes e ‗a entrada numa gestualidade de largos movimentos curvilíneos‘9. O trabalho apresentado na exposição anual MUSART/TDM’97, Os três caminhos que procuro, pode bem simbolizar e sintetizar o período anterior à sua ida para o Brasil onde estudou e se graduou em escultura pela Escola de Belas Artes da UFRJ, em 2002. Que caminhos procurava Jorge Dias? A experiência de formação no Brasil, a partir dos últimos anos da década de 90, seria marcante para o seu percurso como artista. Marcaram-no vários artistas, as propostas que apresentavam, a sua maneira de pensar livre e ousada. O que restava do seu antigo desejo, nascido em Moçambique, de querer ser ‗um grande pintor‘? Alguns anos volvidos, já não era tão fácil dizer o que era uma pintura ou o que esta podia incluir e o curso de escultura alargara a sua noção de arte abrindo novos territórios para explorar. A redefinição do conceito de arte e de obra de arte que se vinha fazendo há décadas passara praticamente ao lado da formação que fizera em Moçambique. Agora já não era tão fácil dizer o que era ser um artista. Numa realidade fragmentada e sem mais certezas, o artista fugia às definições das categorias estéticas, ‗exibindo com júbilo a sua liberdade‘, como escreveu Pradel. O trabalho com as tintas e com o barro deu lugar ao trabalho com outros materiais. Ainda em 2002, Jorge Dias mostrou, no Salão Principal do Campus Avançado em Niterói, a exposição Sistemas e Conexões, resultado do seu projecto de fim do curso. Forma, material, luz e espaço associados produziam trabalhos que continuariam a ser retomados e a dar origem a novas propostas, num processo de transformação e construção permanentes. O plástico e o tecido eram a base de Casulos, Sistemas e Conexões e Linha Contínua. Iniciava-se uma série de trabalhos que,
após o seu regresso a Moçambique, iria ser continuada e diversificada em múltiplos caminhos.
Os vários papéis: a curadoria, a escrita e a prática da arte O ambiente artístico em Maputo onde se reintegrava, apresentava, mais uma vez, sinais de mudança. Uma outra geração de artistas voltava a questionar o ―pouco desenvolvido sistema artístico existente em Moçambique‖ que não encorajava a vontade de ser diferente de muitos artistas nem a sua participação nos principais eventos africanos e internacionais que tinham lugar10. Ao lado das ‗tradicionais‘ criações artísticas que se praticavam, estes artistas incentivavam a utilização de novas linguagens, técnicas, materiais e atitudes associadas à arte contemporânea. Com outros jovens artistas de formação, experiências e anseios diversos foi fundador do Movimento de Arte Contemporânea, MUVART como também é conhecido11. Os Casulos que iniciara no Brasil, desta vez feitos com jornais, cordas de sisal e integrando mesmo um par de sapatos, voltaram a ser mostrados a partir de 2003 em vários espaços, interiores e exteriores, do jardim ainda em ‗bruto‘ do Museu Nacional de Arte, a uma das salas da fortaleza ou mesmo ao espaço de exposições do Centro Cultural Franco Moçambicano, veiculando a ideia de transformação permanente do ser humano e da sociedade e propondo diferentes diálogos com o público, conforme o espaço de exposição. Obra em aberto, como a entende Jorge Dias, os Casuloscontinuam em transformação, integram novos materiais e objectos, têm sido exibidos em vários contextos e deram já lugar a Neocasulos. A divulgação do seu trabalho e do
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dos outros artistas do MUVART, a partir das exposições realizadas em Maputo, abriu portas em outras latitudes e granjeou apoios, de perto e de longe. A participação na Arte LisboaFeira de Arte Contemporânea, em 2004, foi uma das primeiras oportunidades. Beneficiando da estratégia de internacionalização da feira que passava pela divulgação da arte contemporânea produzida nos países falantes de português, o MUVART e os seus membros mais activos começaram a ser conhecidos junto dos circuitos da arte contemporânea. Seguiram-se diversos convites, em Portugal, Espanha, Itália, regista-se interesse por parte de várias galerias. Com o Brasil também se estreitaram os laços. Dar continuidade a este relacionamento vem sendo um objectivo para estes artistas uma vez que consideram importante esse espaço de afirmação. Jorge Dias tem participado, ora como artista, ora como curador, como aconteceu, por exemplo, na ARCO2006 em Madrid. O papel de curador que Jorge Dias começou por desempenhar no seio do Movimento logo nas suas primeiras apresentações depressa se tornou uma faceta importante do seu dia-a-dia. O interesse pela teoria, as aulas que começou a dar no ensino superior e a vontade de desenvolver o trabalho de curadoria em Moçambique tiveram a sua quota-parte de responsabilidade nesta escolha. A sua experiência com a galeria Kindlimuka, enquanto existiu, também foi importante. Foi nessa época que, como disse Jorge Dias, estreitou o seu relacionamento com artistas, escolhendo trabalhos para expôr, seleccionando trabalhos para vender. Hoje em dia acompanha artistas da sua geração, motiva alunos e exalunos, envolve-se e está atento ao que acontece no meio artístico que o rodeia. Ocupa o lugar de curador no Museu Nacional de Arte, já há vários anos criado12, mas não é aí que realiza a maior parte dos seus projectos. Estes surgem, em geral, no âmbito do MUVART e suas actividades, às vezes por convite (ainda são muito poucos os que consideram necessário o trabalho de um curador e são frequentes as vezes que se pergunta o que é um curador) ou por iniciativa dos próprios artistas como foi, por exemplo, o caso do artista Famós que apresentou recentemente a sua primeira exposição individual. O contacto próximo e a gratificante relação que se estabeleceu entre os dois, artista e artista-curador, durante cerca de um ano, foi visível na exposição apresentada e reconhecida por ambos na conversa final de encerramento da mesma13. Escrever sobre a produção dos artistas do MUVART, escrever regularmente14 sobre artes visuais, as artes e sua transversalidade, o ensino artístico ou a legitimação das artes, escrever sobre os
Artes artistas que acompanha ou sobre o seu trabalho de curadoria é outra faceta do trabalho deste artista. Tal acontece num contexto novo em que há uma descontinuidade no ‗incipiente‘ sistema artístico local. Os principais comentadores deixaram, por várias razões15, de fazer sentir a sua influência, abrindo-se espaço para outros intervenientes e novas abordagens. Daí a importância da sua escrita, porque alarga o número dos que escrevem sobre arte em Moçambique e porque, diz Jorge Dias, ‗o artista deve ser o primeiro a trazer contributos teóricos e conceptuais sobre o seu trabalho‘. Como artista, o trabalho de Jorge Dias continua a desenvolver-se em múltiplas direcções. O período em que, após o seu regresso, esteve à frente da oficina de cerâmica na escola de artes visuais foi caracterizado por uma ruptura no trabalho até aí realizado, provocando interessantes respostas por parte de alunos e mesmo outros professores. O trabalho que realizou como artista nesse período reflecte o ambiente vivido. Inicia uma ‗fase pós-casulos‘ em que observa atentamente e comenta a realidade em que vive. A cerâmica é utilizada para revestir bolas ou caixas de cartão de várias dimensões, que integra posteriormente nas suas instalações. Estas instalações sugerem o envolvimento do observador que é convidado a tomar parte, movimentandoas e reagrupando-as a seu gosto. Ainda com recurso à cerâmica preenche enormes plataformas, como aconteceu nos trabalhos já apresentados em Maputo e em Lagos (Portugal), em 2005. Imagens da Plataforma Espiritual16 e de outros trabalhos deste artista estão incluídas num livro recentemente publicado sobre os artistas e a produção artística africana mais recente. Se as caixas de Jorge Dias são revestidas, para além de grãos de cerâmica, com papel, tecido ou fita adesiva, as bolas são também revestidas de pedaços de azulejo, de animais-miniatura de plástico ou feitos, manualmente, a partir de arame e fio colorido (lagartos, moscas e baratas), dispostas no chão ou suspensas com fios de sisal (‗as coisas suspensas‘). Os mesmos animais ou outros objectos como as casas miniatura em madeira revest em t amb ém as ‗tradicionais‘ peneiras, um objecto da cultura material local, em alguns dos seus trabalhos. Num processo acumulativo, o seu trabalho evolui, desenvolvendo-se a partir do anterior que se constitui como referência. Ao criar novos objectos com objectos já existentes recorrendo a associações, o artista procura, como diz, novas formas de comunicação. A apropriação que Jorge Dias faz destes objectos-miniatura e os trabalhos que cria e recria a partir deles aproxima-o de Nelson Leirner (n.1932), artista brasileiro, ao lado de quem foi convidado a expôr (Zoologia dos Trópicos era o
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veja-se também o que escreveu Fernando Gonçalves na Tribuna do Editor, Savana, 20 de Novembro de 2009, p.10, a propósito de jornalismo africano ou jornalismo em África. 3.Entrevista realizada a Jorge Dias no site www.artecapital.net 4.A Escola de Artes Visuais começou a funcionar em 1983, em Maputo. 5.Tempo, 22 de Maio de 1994. 6 . E n t r e v i s t a à ARTECAPITAL já referida 7.Des do b ráv el do ‗Workshop‘ de Arte, Maputo, Março.Abril de 1991. 8.Por exemplo, o Ujamaa Workshop, Pemba/ Maputo, 1991. Ver o desdobrável produzido. 9.Domingo, 29 de Maio de 1994. 10.Manifesto do Movimento de Arte Contemporânea de Moçambique, Maputo, 2003.
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11.Ver Costa, A. (2004) Txovando a Arte Contemporânea. In Catálogo da Expo-Arte Contemporân ea (pp.48). Maputo. 12.A figu ra.ocupação de curador foi proposta quando, ainda nos anos 80, se definiu o qualificador profissional para os museus. Foi resultado da necessidade de tal figura nos museus de Moçambique, da influência da bibliografia em língua inglesa e do relacionamento com os museus dos países, maioritariamente falantes de Inglês, da região austral de África onde Moçambique está integrado. 13.Conversa havida na galeria do Instituto Camões com a presença do artista e do curador, Maputo, 13 de Novembro de 2009. 14.Entre 2006 e 2007 Jorge Dias escreveu regularmente sobre artes visuais no, já desaparecido, J o rnal Meianoite. 15.A morte de Júlio Navarro, figura ‗militante‘ das artes que durante muitos anos exerceu múltiplos papéis no sistema artístico, e de Augusto Cabral, a ‗desistência‘ de alguns jornalistas como, por exemplo, Paulo Sérgio, o desaparecimento de revistas ou jornais e.ou espaços em jornais são algumas delas. O artista Malangatana continua a exercer este papel num espaço que se vem afirmando: Kulungwana, Associação para o Desenvolvimento Cultural. 16.Spring, C., (2008) Angaza Africa: African Art Now. Cape Town: Francolin Publishers. 17.Nome de um trabalho, Em Construção, já mostrado em 2005, que vem desenvolvendo com embalagens plásticas de cola vazias e onde o sinal de trabalhos em curso nele integrado simboliza a maneira como o artista encara o seu trabalho.
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Artes
Património
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Afirmação do Português dominará a II Conferência Internacional da Língua Portuguesa
A
afirmação do português em organismos internacionais, na divulgação científica e comunicação digital vai dominar a II Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, no final de Outubro, em Lisboa, foi hoje anunciado. A presidente da comissão organizadora e do Camões – Instituto de Cooperação e da Língua, Ana Paula Laborinho, afirmou, em conferência de imprensa, que um dos objectivos do encontro é avaliar a aplicação do Plano de Acção de Brasília, aprovado em 2010, na I Conferência [realizada na capital brasileira]. ―Agora estamos no patamar da difusão do Português e da sua afirmação como Língua internacional, presente em vários organismos internacionais‖, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a União Africana, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), disse. Na comunicação digital, a Língua Portuguesa ―é a quinta mais usada na Internet e a terceira nas redes sociais
como o Facebook e o Twitter, o que demonstra a sua importância‖, sublinhou Ana Paula Laborinho. Na Conferência de Outubro, será aprovado um documento formal, o Plano de Acção de Lisboa, que vai incluir uma introdução, de carácter político e programático, a avaliação da aplicação do Plano de Acção de Brasília e as recomendações para o futuro da Língua Portuguesa, no âmbito de organizações internacionais, científico, da inovação, dos negócios e do empreendedorismo. Ana Paula Laborinho destacou a importância do trabalho de todos os membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) na realização desta Conferência. ―Durante estes dias – 29 e 30 de Outubro –, queremos que Lisboa seja uma cidade CPLP. Por isso, haverá um programa paralelo com várias iniciativas‖, disse.
Plano de Acção de Lisboa: aprovação pela CPLP em Novembro O presidente da comissão científica da conferência, Ivo José de Castro, profes-
sor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), destacou que a organização aceitou 100 candidaturas para apresentação de comunicações livres, das quais seleccionou 70.
de Acção de Lisboa vai ser aprovado pelos ministros dos Negócios Estrangeiros [dos oito países-membros], a 4 de Novembro, na sede da organização e endossado para a Cimeira de Díli‖.
―O facto de termos 100 candidaturas é, em si, um êxito‖, declarou.
Na reunião extraordinária de Lisboa, os chefes da diplomacia da CPLP vão propor o Plano de Acção de Lisboa para aprovação na próxima Cimeira da CPLP, na capital de TimorLeste [marcada para Julho de 2014].
A principal temática das comunicações seleccionadas reflectem fundamentalmente os problemas relacionados com o Ensino do Português, como Língua estrangeira, e nas comunidades de emigrantes, disse. ―Esta conferência vai servir para percebermos onde está o interesse e as tendências‖ relativas à afirmação do Português a nível internacional, no âmbito do ensino ou da esfera digital, e que ―deverão integrar o Plano de Acção de Lisboa‖, afirmou. O Plano de Acção de Lisboa vai apresentar recomendações sobre o futuro da Língua Portuguesa, abrangendo o desenvolvimento científico, a inovação, o empreendedorismo e os negócios, a utilização em organizações internacionais e na cooperação entre os países-membros da CPLP, diásporas e comunidades. O secretário-executivo da CPLP, Murade Murargy, lembrou que o ―Plano
A Conferência de Lisboa vai reunir mais de 200 participantes, entre especialistas e responsáveis políticos e institucionais de vários países. Além das mesas de apresentação das 70 comunicações livres seleccionadas pela organização, destacam-se a palestra de abertura, pelo ministro do Ensino Superior, Ciência e Inovação de Cabo Verde, António Correia e Silva, e o encerramento, a cargo do administrador da Fundação Calouste Gulbenkian e antigo ministro da Educação da República Portuguesa, Eduardo Marçal Grilo. A CPLP integra Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste.
Gonzana – Reviver com Sabor Crítica
Niosta Cossa
D
entre os monstruosos vocalistas moçambicanos, Gonzana é o que mais facilmente canta. Como se não fizesse esforço algum. O canto sai-lhe tão naturalmente como a extensão de uma ideia. E é tão belo e tocante. Enquanto uns se contorcem, se retorcem e gritam como se estivessem a exorcizar demónios (Wazimbo e Tony Django), a outra canta dramaticamente como se transportasse a própria vida na voz (Zena Bacar), o outro explode com tudo numa torrente de versos oscilantes, ora acelerando, ora abrandando (Alberto Machavele) e os restantes são simples-
mente irresistíveis e estimulantes (João Cabaço, Mingas, José Mucavel e Flash Ency), Gonzana é suave, é puro, quase angelical. Entretanto inquietador. Mexe e remexe com quem lhe escuta, perfurando o ouvido, arrebatando o coração e perturbando a alma.
Todo o álbum, ainda que longo, é forte, compacto. Entretanto, ―Ao Tomi Wociwon‖ (de Djuma Mucatsica) destaca-se. Embora triste, até certo ponto trágica, a leitura da música, por parte de Gonzana e Júlio Silva, torna-a uma reafirmação da vida.
Este álbum, produzido por Júlio Silva, como o próprio título denuncia – Reviver com Sabor – traz músicas ficadas num tempo distante da história cultural moçambicana, a maior parte das mesmas compostas por aquele que talvez seja o maior compositor dentre os que vieram antes da inde-
―Wene Wango‖ (outra de Mucatsica) é uma balada fabulosa, com o seu sabor de Salsa-Marrabenta. E ―Mawaco‖, na voz de Gonzana, recomenda-se vivamente.
pendência de Moçambique: Mucatsica (ou Mukatsica).
Djuma
Um excelente álbum da Música Moçambicana, este de 2002. Uma grande viagem ao som de um dos imortais vocalistas que Moçambique produziu.
m’saho Caderno de Prosa&Verso
POESIA
LOUCURAS
Parte Integrante de Nós 04 - Setembro 2013 - Não pode ser distribuido separadamente
CONTO
A Confissão de Julieta Pág. 02
Bairro Baixo (I) Pág. 03
Adelto Gonçalves
CAMILO PESSANHA
NA INTIMIDADE Pág. 05
M’saho
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Prosa
A Confissão de Julieta
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5 de Abril foi o dia que nos conhecemos, Matiangola. Estavas radiante na discoteca, em Newn Town, lembras. Vestias umas jeans da Levis, uma camiseta de Che Guevara e uma botas amarelas da Timberland. Encantei-me e ali mesmo e impestivamente sonhei contigo. Esvoaçávamos pelo ar numa rumba e beijávamo-nos incessamente numa nuvem. De rompante, despertei e dei por mim tocava Spanish Guitar, de Toni Braxton, e pediasme para dançar. Acordei e de seguida voei para os teus braços, e me entreguei novamente ao sonho.
corpos entrelaçados pelo grito lamentoso e abafado, o gemido. Tínhamo-nos tomado, lembras-te? Entoávamos em surdina o canto de dois amantes na aurora: o amor.
mos infinitamente no crepúsculo da intermitente emissão do líquido seminal ou do pólen! São reminiscência de que não me esqueço e quero levá-las comigo no esquecimento.
Minutos depois, rolavas nos meus braços como um bebé com a sua mãe. E dizias: ―Quero que me leves no teu coração. Quero que me lavras nele. Quero arder e carbonizar nos teus seios e lábios, e gemer de delírio. Quero morrer no teu coração‖, lembras-te.
Então chegou a Rosimel, o sol de que te banhavas inteiramente e te esquecias do sangue, do útero, da palavra que te fazia florescer. Engoli os engodos, depois os sapos, lagartos, peixes e até cobras. E engoli por te amar. Queria te amar até no esquecimento.
E se não te comoves com a forma como escrevo, vou-lhe instalar a cartase, que tu mesmo me ensinaste. Dizias, ―meu amor, o que eu procuro
Uma coisa é certa e não posso negar, a Rosimel tinha conseguido voltar a irradiar-te, brilhavas. E eu ali na solidão e no silêncio. O amorfo e
Salvador Mungoi
Cheiravas a jasmins e eu lambia-te já todo. Os nossos passos eram compassos. A sincronia era tal que cheiravas à Rose + mel. De todo e impulsivamente, parámos de dançar e saíamos da discoteca, sem sequer me dirigires uma única palavra, para um jardim que ficava ali perto. Possuíste-me e amámo-nos e intensamente. Os teus braços nas minhas coxas, os teus lábios a choverem intermitentemente entre os meus lábios e seios. A língua a possuir-me por entre as pernas. A volúpia a condensar de ser tanta. Os
é apenas o poema e o verso, nada mais. E procuro no teu coração, onde começo e termino‖. Até hoje, mesmo no silêncio e na solidão, procurarasme no coração. Decerto, ao início compreendia que procurasses um outro leito para te amamentares. Tinhas perdido o teu império. Tinhas ruído e desabado. Estavas sem chão, demolido. Uma espécie de levitação, mas em baixo. Entendia que te diluísses onde quer que quisesses, desde que também me banhasses de sangue como naquela noite dos lençóis brancos, lembras-te, que nos perde-
amarroto a tormar-me toda. Tinhame transformado em lustro. Lágrimas agrestes escorriam pelo corpo e percebi que tinha perdido parte de mim, o meu sangue. Exorcizei-me e encarnei em partes de ti e de Rosimel. Amávamo-nos e todos gemiámos. Os corpos enlaçavam-se de tal forma que se mecanizaram. E tive a certeza que mesmo que partisse, continuaria a ser amada nesse silêncio e solidão, o espaço a que me comprimiste. Não te julgo, apenas quero que onde quer que vais leves contigo jasmins, apenas. E te decepas nelas.
Nélio Nhamposse n_nhamposse@yahoo.com.br
Os teus braços nas minhas coxas, os teus lábios a choverem intermitentemente entre os meus lábios e seios. A língua a possuir -me por entre as pernas. A volúpia a condensar de ser tanta. Os corpos entrelaçados pelo grito lamentoso e abafado, o gemido. Tínhamo -nos tomado, lembras-te? Entoávamos em surdina o canto de dois amantes na aurora: o amor.
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Prosa
BAIRRO BAIXO (I)
Tito Selemane
L
indo dia de sol doce, f re sc a a ra g em , densa sombra triste, silêncio humano silencioso, pássarostenor em voz baixa a cantar. Avenidas, ru as, b ecos, recintos muito movimentados – Bairro Baixo! 1.70 m de altura, corpo elegante, bem nutrido, naturalmente forte internamente e não resultado de perigosos assassinos anabolizantes não necessários; cabelo a escovinha cortado, goro castanho, óculos de sol, camisola azul, cinto preto, jeans azuis, sapatos meia bota pretos, gabardina castanha, mochila preta às costas, bíblia de moral e ética aberta nas mãos vazias com apenas umas policrómicas flores, e água em duas garrafas de Martini no chão daquela varanda para os vasos daquelas flores que consigo levava. Firmemente firme e só naquele momento, alguns dias a debulharem-lhe cristais de sal da alma pelos olhos – sal do seu próprio sangue – com que compunha o seu possível antídoto – e não vacina – para o peito triturado pelas chagas que lhe fritavam, queimavam e transformavam o luto em cinza com que fazia a sua bengala cardíaca, artífice da superação, seu próprio psicoterapeuta, viajante imóvel dentro e fora de si, Tó-Carocho parecia um caminhante solitário em plenos devaneios, onde vivia e naquele Bairro Baixo onde se encontrava naquele momento, mas aquilo não era Paris, nem seus arredores. Roía-lhe o coração, algures dentro de si, como sempre, TóCarocho procurava-se! Ali em redor de si uma velha senhora inconsolavelmente chorando pelo seu filho único que se tinha ido, vítima de uma suposta bala perdida de um agente de ordem, segurança e tranquilidade públicas, que abrira fogo numa tentativa de busca e captura, sem sucesso, de um perigoso ladrão de cães vadios em plena baixa da cidade capital nacional e que infeliz e precocemente dispensara da vida um jovem inocente
Foto: Eduardo Quive
ardina; dizia um jornalista, em directo para o seu canal televisivo independente, que era verdade o que se pudera ler numa das páginas culturais de uma das revistas que o jovem, já no céu, vendia e que generosamente o vento abrira, tendo -a deixado coladinha com o próprio sangue no lado esquerdo do peito, exactamente ali onde a bala atravessara quando, precocemente, fora, para sempre, posto a dormir em plena rua alcatroada, sem almofada nem cobertor. É verdade, frisou, o que naquela página de "Além-mar", n° 604/ano LV, Junho de 2011, que falava sobre a "Solidariedade face à violência" na "Literatura Africana no Feminino – Literatura da vida", podia ler-se: a solidariedade e os vínculos entre as pessoas tornam mais suave a dureza da vida: dão cabimento à esperança, inclusive nos piores momentos. E é o que aqui vemos hoje, o nosso ser mais que um unido povo solidário, Eis aquele nojento lugar comum, aquela coesa fraterna verdadeira solidariedade, sim, porque quem assim aqui o canta, aos apurados olhos desgraçados, fo**-se a pobreza diz – vitupérios – às lágrimas alheias. Que desumanidade! … Nem mesmo tudo o que se diz é o que se sente. "Acompanhamos a família enlutada desde que estas tristes e espinhosas lágrimas irreversíveis caíram no seu seio, não ouvimos uma única sílaba, inteligência nem responsável algum vimos da parte de quem terá sido responsável por esta obra". Talvez, porque, segundo consta, não foi a bala disparada contra o pobre jovem, mas sim o jovem que, vagabundo, assustadiço, terá ido de encontro à bala. Disse ainda o jornalista. Enquanto o jornalista falava, quatro mulheres jovens e dois adolescentes tiravam de um carro de mão
– meio pelo qu al t inh a sido transportado do local onde tinha ingerido a fatal bala da tranquilidade, ordem e segurança públicas para a última morada, o corpo sem vida do filho único da coitada velha senhora descalça de chinelos recauchutados. Era assim consumada ali aquela cerimónia. Condoendo-se de tão magoado pesar, fazendo-lhe frescas as velhas úlceras a dor daquela pobre senhora, e tentando conter as passadas lágrimas sempre actuais que dolorosamente de tudo aquilo dos olhos lhe espreitavam, Tó-Carocho atentamente observava e ouvia o mundo em seu redor. Várias pessoas por ali passavam. Uns adolescentes a uma pequena distância perdidamente beijavam-se, muitos jovens algures roubavam rosas recém depositadas para as revender, outros e outras vendiam água e inúmeros tipos de flores, tantos outros ainda conversavam com ares de quem a sua vida era também ali onde a vida se completa. Tó-Carocho, sem abrir nem erguer as mãos, fechar os olhos, baixar ou levantar a cabeça, ajoelhar ou sentar -se, como um bravo segurança, orou: - Senhor, meu pai, aqui estou eu, minha doce mãe, mãe-natureza! São três horas desta tarde, tarde de hoje, Quinta-feira, 11 de Julho de 2008, noite ou manhã de Sexta-feira, Sábado ou, principalmente, Domingo, conforme mandam as Leis do nosso calendário – nosso deveras sagrado calendário. Quinta-feira, 11 de Julho de 2008, sim! Iluminai os meus pés, a minha mente, a minha alma e o meu coração com a luz do Vosso grande coração, da Vossa razão e de todo o Vosso poder
sobre todos os poderes para que o meu e a minha sejam cada vez mais sadios, racionais e limpos. Iluminai este caminho a caminho do homem que ainda não sou – um caminho repleto de vicissitudes –, para que aquelas lições, a esta presença ausente me valham força, higiene e constante esperança positiva. Iluminai este caminho que longo o sinto! Longo, longo, sim, Senhor mãenatureza, este caminho da vida, porque me é cheio de montanhas e imensas planícies desde o dia em que vim. Longo, longo é mesmo este caminho que bem sei que Sabeis. Creio, sim – como posso não? –, que o sono seja incapaz de calar, matar, apagar efectivamente a voz de um grande amor que, capaz de gerar e rigoroso amorosamente amar, muito amou. Longo, longo é mesmo este caminho e talvez em breve tempo... Breve, talvez, porque me parece que vinte e quatro horas apenas têm os dias, menos umas para necessariamente repousar o esqueleto, algumas para cuidar das necessidades do estômago e da bexiga, outras ainda para em tanto pensar em pensar… Parece! Mas mesmo assim, enquanto estes dois sacos de ar neste peito amargurado, de amarguras que nunca e jamais deixarei que me entristeçam o resto dos dias, me oxigenarem ainda o sangue, seguirei em frente até quando não poder, como bem soubeste pedalar em todos os nossos momentos: na alegria e na tristeza da nossa vida cá deste lado da face da terra. Bem percebo mais agora, doce mãe, que a tua filosofia de vida era uma filosofia prática. Do romance Inéditto: Doroth
M’saho
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Crónica
AS LÍNGUAS DA NOSSA LÍNGUA
Eduardo White
Escritor moçambicano, Eduardo Costley White nasceu em Quelimane (Moçambique), a 21 de Novembro de 1963. Após uma formação durante três anos no Instituto Industrial, o escritor exerceu funções directivas numa empresa comercial, foi membro do Conselho de Coordenação da revista "Charrua" e dirigente da Associação de Escritores de Moçambique. Apresenta colaboração em imprensa lusófona e várias publicações como Amar sobre o Índico (1984), País de Mim (1990), Poemas da Ciências de Voar e da Engenharia de Ser Ave (1992), Dormir com Deus e um Navio na Língua (2001), As Falas do Escorpião (2002), O Libreto da Miséria entre outros.
P
orque a língua tem esta faculdade de ser interpretativa mesmo sendo comum aos seus falantes. A língua que mente é a que veredicta, a que odeia e a que ama. As ironias evidentes de um só destino. E advinhe-se qual guarda a nossa Língua outras tantas línguas. A que falamos em comum e que por inerência das nossas culturas, nossas, as dos falantes, se amaneirou de identidades próprias, e de sonoridades e estruturas a elas subjacentes. A língua que falamos, passou, assim, por espelhar povos tão diferentes e tão eloquentemente multifacetados. Tornou-se mesmo uma ponte entre as distâncias das nações que somos. Mas, o mais notável que tenho constatado, para além do que já nos é comum saber quanto a importância que a nossa Língua Portuguesa tem de nos tornar perto estando nós tão longe, é a que encontro nos lugares do dia-adia. Por exemplo, num bar, numa cafetaria, numa festa. E, a esse propósito, aconteceu-me, aqui por Lisboa, estar eu sentado numa pastelaria e ter ouvido uma senhora a pedir a conta ao empregado de mesa. De princípio nada tem o facto de invulgar. Se estamos numa pastelaria, é evidente que acabamos sempre por pedir a conta. A menos que nada tenhamos consumido. Porém, não sendo o português que falo o português de Portugal, a moçambicanidade da minha língua deixou-me quase que atónito quando o empregado, ao trazer a conta, diz para a senhora: – Então, é uma Coca-Cola e três línguas de veado. Olhei para ele atonitamente e, confesso, meio encabulado. Não estava a perceber de como os bons modos se tornavam, tão de repente, numa marca
de tão pouca cortesia num recinto de denotada fineza. Dei-me, um pouco mais reflectidamente, ao benefício da dúv ida , n ão fos se t er me smo consumido a senhora as três línguas de veado. O que não deixava de ser estranho, para mim, que tal subtileza gastronómica se servisse num café. Mas como estou sempre a aprender, de cada vez que viajo, fiz por não me surpreender. Cairá por terra, a seguir e entretanto, tal esforço, ao notar a senhora, educadamente, a liquidar a conta. Mas, porque carga de água, num pequeno pires sem resíduos de molho algum e com uns restos do que me parecia ter sido um bolo, se dava como pagas línguas de veado? Perguntei-me eu. Daí a pouco tempo e como resultado de acautelada investigação, se deu como confirmado, junto ao empregado, de que não eram as línguas as de tal animal, mas biscoitos. Sendo assim, restava-me uma outra curiosidade por satisfazer. A se estariam tais iguarias conotadas ao quadrúpede ou a certas pessoas a quem os nossos irmãos brasileiros costumam adjectivar. Não sendo a primeira como se veio a comprovar, pus-me a cogitar de que modo entender iam os brasileiros as línguas de veado. Por sua vez, se pediriam os veados, no Brasil, os doces em questão e como entenderiam os mesmos tais línguas aqui? É que não me esqueço de certa complicação, de que fui autor, no aeroporto de São Paulo, quando indaguei a um sujeito por que me estava a passar, à frente, na bicha, se não tinha estado na bicha. A confusão, até que se explicasse, foi, deveras, um problema quase diplomático. O drama esteve às portas de ser consumado devido a uma simples interpretação linguística entre
pessoas falantes da mesma língua. Sim, porque em Moçambique, bicha é o que é fila para os brasileiros. Mas, imagino eu um dilema maior que era o de pedir, num restaurante, para u m a o r ig in a l ís s im a s e n h o r a moçambicana, tal ementa: Bebidas Licor: vinho periquita.
de
merda,
Pão: caralhotas, Comidas sopa de grelos, punhetas de bacalhau. Sobremesa: fatias de parida. Ela olhar-me-ia, com toda a certeza, com um olhar indignado e depressa me deixaria sózinho à mesa, sem, ao menos, a oportunidade de poder explicar-lhe que tal ementa era tipicamente portuguesa e não uma blasfémia em português. Portuguesa do Portugal de onde nos é oriunda a língua que falamos e nos entendemos, eu e ela, mesmo com as nossas diferenças étnicas e que nos permitem comunicar se não tivéssemos em comum o português. E, porque, deste modo, também se traduz a lusofonia, esta palavra que qualquer dia dará o nome a uma qualquer iguaria, também, de igual modo, nos entendemos e vemos lusófonos em detalhes tão peculiarmente pequenos como o é este que relato e nos faz tão imensamente grandes. Grandes no sentido de que a língua acaba por nos trazer a mais-valia incomensurável de podermos partilhar, com tolerância, os sentidos que a ela damos nas diferenças que somos inevitavelmente. Já o antevia Fernando Pessoa quando dizia que a sua Pátria era a sua língua e nenhuma outra maneira de estar nos poderia responsabilizar melhor por ela e nem melhor nos poderíamos sentir nela.
M’saho
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Crítica
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CAMILO PESSANHA NA INTIMIDADE Adelto Gonçalves marilizadelto@uol.com.br
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epois de publicar Clepsidra e outros poemas, para o qual escreveu o prefácio e fixou o texto, com ilustrações de Rui Campos Matos (Lisboa: Livros Horizonte, 2006), e A imagem e o verbo: fotobiografia de Camilo Pessanha (Macau: Instituto Cultural do Governo da R.A.E. de Macau e Instituto Português do Oriente, 2005), o pesquisador literário Daniel Pires (1951) acaba de lançar Correspondência, dedicatórias e outros textos, de Camilo Pessanha (Campinas: Editora Unicamp; Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal), que reúne 19 cartas do poeta português que se encontravam parcial ou integralmente inéditas e 59 que estão disseminadas por livros esgotados e por periódicos de difícil acesso. Obra desde já imprescindível para quem se aventurar a escrever sobre Camilo Pessanha (1867-1928), o livro traz ainda uma minuciosa cronologia que avança até 2010, acrescentando obras, teses acadêmicas, filme e exposições realizadas sobre a vida e a obra do poeta. Nos anexos, além de dedicatórias feitas a amigos e admiradores, há dois textos da lavra do funcionário público Camilo Pessanha: um relatório encaminhado ao secretário -geral do Governo de Macau sobre a atividade pedagógica das Irmãs Canossianas na cidade e uma ata secreta do Governo de Macau, que consta de acervo do Arquivo Histórico de Macau. No primeiro documento, Pessanha, presidente de uma comissão nomeada pelo governo, avalia a atuação de uma congregação religiosa na prática educacional. De sua leitura, vê-se a influência e conseqüências em Macau da revolução republicana de 5 de outubro de 1910, depois da deposição da monarquia em Portugal. O segundo documento, de certa maneira, relata o inconformismo do poeta diante da provável execução, se fosse extraditado, de um alto dignitário chinês, Lam-KuaSi, perseguido pelo vice-rei de Cantão. Como observa Daniel Pires no ensaio que escreveu à guisa de prefácio, em razão da dependência de Macau em relação à China, todas as personalidades portuguesas convocadas a aconselhar o governador diante do pedido feito pelo vice-rei se colocaram a favor da extradição, com exceção de Pessanha,
que justificou em separado a sua posição, ainda que não houvesse ―decerto bandidos mais bestialmente cruéis do que esse Lam-Kua-Si‖, como escreveria mais tarde, em 1912. É que ao poeta repugnava o comportamento indigno dos tribunais chineses bem como os métodos desumanos com que as autoridades do país faziam cumprir a pena, métodos tão abjetos que talvez só concorressem em crueldade com os que seriam praticados pelos esbirros da ditadura militar brasileira de 1964. Eis como Pessanha descreve um deles num prefácio que preparou para o livro Esboço Crítico da Civilização Chinesa, de J. António Filipe de Morais Palha, publicado em Macau em 1912: ―(...) Entre os suplícios restaurados havia a sensacional morte de gaiola, em que o paciente era suspenso pelo gasnete, mas de modo a poder apoiar no chão os dedos dos pés, e deixado nessa divertida posição, de equilíbrio instável, até morrer de esgotamento‖. II A respeito das dedicatórias, há uma observação: não são dedicatórias feitas ao correr da pena, de forma burocrática, apenas com o intuito de cumprir uma formalidade, mas que, em muitos casos, apresentam detalhes introspectivos que ajudam a compreender a alma do poeta. Obviamente, as cartas aqui reunidas ajudam muito mais a conhecer a profunda capacidade introspectiva de Camilo Pessanha, além de sua concentração no estudo do idioma e da civilização sínicos. Eis o que escreve ao amigo Carlos Amaro em 1912, à época em que cuidava da tradução de ―Oito Elegias Chinesas‖, publicadas dois anos mais tarde no jornal O Progresso, de Macau: “Em quase vinte anos de Macau, fui-me adaptando ao meio, por um trabalho penível, embora em parte inconsciente, que me incapacitou para ser qualquer coisa fora daqui. São quase vinte anos de estudo, mais ou menos assíduo, da língua chinesa, dos costumes chineses, da arte chinesa. A língua, principalmente desde que cheguei aqui a
última vez, há três anos, tenho-a estudado brutalmente –, no furor de me absorver fosse no que fosse, para ver se conseguia distrair-me de tantas desgraças a que não posso dar remédio e
que são a minha obsessão‖. No prefácio, Daniel Pires lamenta que se tenha perdido a correspondência que, por certo, existiu entre Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes (18541929). Este poeta radicou-se em 1886 em Macau, onde desempenhou funções como oficial da Marinha, e desenvolveu uma estreita amizade com Pessanha. Em 1896, foi para o Japão a fim de participar do trabalho de instalação do consulado português em Hiogo e Osaca e mantevese naquele país até falecer. Sua correspondência, porém, desapareceu, já que sua casa, em Tokushima, cidade do Sul do Japão onde se havia instalado, não resistiu aos bombardeamentos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial. Já o espólio literário de Pessanha, como observa Pires, foi vítima da incúria de seu filho e apenas uma parte dela recuperada por Danilo Barreiros, que seria seu biógrafo, em 1931, quando dava seus primeiros passos em Macau. III
Daniel Pires, doutor em Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa, lisboeta de nascimento e setubalense de coração, é mais conhecido por suas pesquisas sobre Bocage (1765-1805), sua paixão literária, o que o levou a assumir a direção do Centro de Estudos Bocagenos, de Setúbal, além de defender tese de doutoramento a respeito da obra do poeta, a quem considera ―um transgressor‖. Foi responsável pela edição da Obra Completa de Bocage, publicada pela Edições Caixotim, do Porto, entre 2004 e 2007. Essa paixão pelo poeta e sua obra, porém, nunca o limitou em suas pesquisas. Tanto que é autor de várias obras sobre Camilo Pessanha, Wenceslau de Moraes e Raul Proença (1884-1941). Licenciado em Filologia Germânica, já deu aulas de inglês no ensino secundário e foi professor em Setúbal, embora possa ser encontrado com freqüência nas salas de leitura da Biblioteca Nacional de Lisboa. Sua paixão pela pesquisa e seu gosto pelo conhecimento já o levaram a trabalhar em São Tomé, Angola, Moçambique, Macau, China, Goa e Escócia. Em Macau viveu por três anos, entre 1987 e 1990, onde atuou na Universidade local, e, mais tarde, ensinou na Universidade de Cantão, a cerca de 120 quilômetros de Hong Kong. É autor de importantes trabalhos de divulgação da obra de Bocage, como o livro Fábulas de Bocage (Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2000) e a organização e publicação da brochura da Exposição Biobibliográfica comemorativa dos 230 anos de nascimento e dos 190 anos da morte de Bocage (Setúbal, Câmara Municipal de Setúbal/Biblioteca Pública Municipal de Setúbal, 1995). Com Fernando Marcos, preparou a edição de uma pasta com 15 belos postais (sépia) sobre Bocage na Prisão (Setúbal, CEB, 1999). Publicou ainda o Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa no Século XX (Lisboa, Editora Grifo, 1996), constituído por três volumes. E promete lançar em breve o Dicionário da Imprensa de Macau, trabalho de pesquisa a que se dedicou nos últimos anos. Colaborou no Dicionário de História de Portugal e no Dicionário de Fernando Pessoa, além de fazer parte da comissão que organizou as comemorações do bicentenário da morte de Bocage, em 2005.
CORRESPONDÊNCIA, DEDICATÓRIAS E OUTROS TEXTOS, de Camilo Pessanha, com prefácio, organização, cronologia e notas por Daniel Pires. Campinas: Editora Unicamp; Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 333 págs., R$ 62,00, 2012. E-mail: vendas@editora.unicamp.br
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Moçambique
Partida
Pela madrugada adentro, envelhecem e morrem no chão sonolento, as folhas das árvores, enquanto faltam séculos para a aurora pousar no galho do hábito, como uma ave estranha que anuncia o princípio de tudo. Desfalecem discretas de tudo, menos da lua que entorna a brancura sobre as cabeças verdes tampadas de um escuro emprestado pela madrugada que gravita em torno do pensamento dos grilos, que fecham o silêncio que jamais pousou nos ouvidos da minha atenta atenção de pedra. Perecem as folhas não iguais as estrelas que morrem na pupila da alvorada. Partem dos galhos acima das árvores que constroem, para que donde vieram nasçam novas folhas que cairão mais um dia secas. 9
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Poesia
Poesia de Jaime Munguambe Júnior
Intrínsecos de mim
Choupais
Ensejo Quando estrondo Do machado fere as lenhas, O vento fica confuso, E as aves comem barulho Como se o espaço zangasse […] 8
Estes meus bairros Dormem no meu peito O orvalho nocturno Lambe os telhados de zinco Tudo que revejo Me revê E me reconhece De igual modo. Aqui, todos dias da semana São sexta-feira! 12
As bocas das gavetas cospem papéis inertes, o poeta lê o primeiro livro fica exasperado e atira no canto indiferente, pega noutro folheia e atira de igual modo, crê que sufoca as roupas esparsas no chão quando pisaas. Lê cada verso escrito pela chuva nas paredes cálidas do seu quarto. Um cabido pendurado no prego que espetou a parede abana a solidão de uma camisa que espera ser a saída qualquer dia […] 14
Convicção Poesia da aranha Ninguém lê a poesia escrita pela aranha que tenta mostrar em teia No canto duma parede quieta algures
Esta tarde cinzenta Traz nas suas mãos leves o odor Em forma de lembrança é nela onde me reencontro Igual a ela mesma.
Tal exercício só é visto só Pela loucura feita da lucidez. 16
Meditação É benigno o acto do fecho Dos olhos sonolentos… É por essa senda comunal Que legalmente parto Para o porto místico que me aventura E me devolve junto das areias. 7
M’saho
Setembro 2013
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Poesia
CARTAS AO MUNDO
Moçmbique
Poesia de Izidine Jaime
O nosso corpo pode ser pertença de quem abusos tece Folhas Deserdadas
Acordo
Dhiogo Caetano dhiogocaetano@hotmail.com
Q
Me perco Rendido a tantas vielas Cruas de serem vazias Gente não passa Nem de fome e sede A rua não é mais suja Findou a moda De pedir esmola
No ósseo das ilhas mortíferas Fome de todos os braços
uanto medo.
Nem por amor se namora naquelas ruas
Não entendia o comportamento daqueles monstros que conviviam à minha volta. Eu era simplesmente uma criança mas, mesmo assim, aqueles seres me atormentavam.
Com árvores adaptadas como sanitárias
Fui perseguido, obrigado a fazer coisas que nem mesmo eu sabia o que era. Mas, dentro de mim, sentia que era algo errado e que não deveria ser feito. Mas aqueles monstros me obrigavam, me ameaçavam. E eu era obrigado a fazê-lo. Eu me sentia culpado. Tinha medo e vergonha, também. Mas me sentia obrigado. Dentro de mim um desalinho, pois sabia que algo errado estava acontecendo mas, ao mesmo tempo, tinha medo de contar e omitia pra mim mesmo aquela cena terrível. Não fui violentado graça a Deus, mas foram inúmeras as vezes que me deparei com pessoas ditas honestas e humanas, que olharam pra mim, uma simples criança e diziam, olhando para o seu membro genital: ―eu deixo você pegar‖. Não foi uma só pessoa; foram algumas pessoas em momentos diferentes da minha vida. Eu me sentia mal, me considerando culpado, um verdadeiro lixo. Nada aconteceu no meu corpo físico, mas na alma ficaram as marcas de uma experiência que nunca será esquecida. Fui utilizado como parte da fantasia sexual de indivíduos que se diziam humanos mas que, na verdade, não passavam de seres irracionais, monstros da pior espécie.
Já não se ama verdades de sangue virgem Nestes tempos oblíquos de serem impuros Como nossos jardins sem folhas esverdeadas Que arrastam-se no abandono das entidades Já não se timbila nas noites A tradição dos batuques Noites são farras de álcool e traseiros femininos Uma house music para a nudez das pernas
Consolo
É a nova tradição de estar na moda.
Lição Atirem-me todas as pedras Não sou bom samaritano Nem que fosse Preciso de pedras Para os alicerces da vida.
Escrevo como quem morre Triste de ser Qualquer cidadao sem voz Resignado nessas minhas lérias amenas De vestes do tipo “do not iron” Esqueço-me de ser homem Cidadão de qualquer mundo Mesmo esfrangalhado de lixo como as ruas Tenho na consumaçao destas letras Mais flores que o jardim tunduro.
Acreditava que tudo acontecera comigo, era porque tinha que acontecer; mas viver tal experiência é um estigma que fica registrado na alma. No decorrer da vida, encarei essa cruel realidade e sobrevivi e, hoje, busco defender pessoas que, como eu, foram traumatizadas por monstros que não respeitam ninguém. Diga não à pedofilia. Pois podemos ver ainda na atualidade a coisa acontecer em todos os lugares e de variadas formas, mas com um único ser; os mais especiais, puros e frágeis também: as nossas crianças que são usadas e humilhadas por monstros em forma de seres humanos. A cada esquina um olhar enigmático, mas louco! A cada passo um medo e, na garganta, um sufoco. A cada momento nada se pensa, sobre o que aconteceu, o nosso corpo pode ser pertença de quem abusos tece. Mas tudo silencia e nada nos descansa quando surge um novo dia e alguém se apropria da doçura da alma de uma criança. Por isso respeite as crianças. Seja humano e se coloque no lugar das mesmas, assim você verá, ou melhor, sentirá na pele o medo, o desalinho da alma.
No Horizonte No horizonte há timbilas De sonhos rasgados na noite Como o rugir dos ventos em viajem aprendida nos rituais da terra No horizonte há batuques Deitando na fogueira Segredos da alma Há palhotas guardadas No terno assombro De poeiras assustadas ao cantarolar dos grilos.
Retrocesso Um dia vi o futuro Esfrangalhado de cansaço Como se ele existisse No mesmo lugar Em que suportava o tempo Esperando o meu Pais Cegamente atrasado Pela ganância dos políticos.
Última Hora
Cesário Matias nosmocambique@gmail.com
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