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HENRY JENNÉ

21 dias

nos confins

do mundo

Uma história de ficção baseada em fatos reais

TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

São Paulo, 2 015

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21 dias nos confins do mundo Copyright © 2015 by Henry Jenné da Costa Junior Copyright © 2015 by Novo Século Editora Ltda. gerente editorial

gerente de aquisições

Lindsay Gois

Renata de Mello do Vale

editorial

assistente de aquisições

João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda Vitor Donofrio

Acácio Alves

preparação

revisão

Ana Neiva

Patrícia Murari

diagramação

capa

Luís Pereira

Débora Bianchi

auxiliar de produção

Luís Pereira

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 10 de janeiro de 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Jenné, Henry 21 dias nos confins do mundo / Henry Jenné. - Barueri, SP : Novo Século Editora, 2015. - (Coleção talentos da literatura brasileira) 1. Aventuras e aventureiros 2. Romance brasileiro 3. Ushuaia (Terra do Fogo, Argentina) Descrição e viagens I. Título. II. Série. 15-06047              CDD-869.3 Índice para catálogo sistemático: 1. Romances : Literatura brasileira  869.3

novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – SP – Brasil Tel.: (11) 3699-7107 | Fax: (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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Dedico este livro a todos os seres que um dia jĂĄ habitaram a Terra do Fogo, assim como aos seus espĂ­ritos, os quais ainda vivem por lĂĄ e me permitiram trilhar os seus Caminhos Sagrados.

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AGRADECIMENTOS A

gradeço às Armadas da Argentina e do Chile, assim como a todos que de alguma forma me auxiliaram ao longo do Caminho. Meu sincero e eterno agradecimento à senhora Cristina Calderón – quem me inspirou para a personagem Virgínia – por ter me recebido tão amavelmente em sua casa, assim como a Luis Gómes Zárraga, seu neto – quem me inspirou para o personagem Raul –, que de forma tão adorável e gentil me levou para conhecer as terras habitadas por seus ancestrais yámana na Ilha Navarino, bem como o cemitério existente em suas terras. Agradeço também a Novo Século Editora, que acreditou no meu trabalho e possibilitou a publicação do meu livro. Muito obrigado a todos que trabalharam na revisão, correção, diagramação, ilustrações, enfim, a todos que de alguma forma contribuíram no melhoramento da obra. Por fim, meu agradecimento e admiração por Severiá Maria Idioriê Xavante, índia brasileira de etnia karajá e javaé, a qual me inspirou a compor a história pessoal de Halimink, um dos personagens da história. Severiá, sua história de vida é bela e espero que as dificuldades existentes jamais lhe façam desistir de continuar a luta pelo direito de exercitar a diferença de pensamento e expressão cultural do seu povo. 7

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APRESENTAÇÃO S

empre foi meu desejo ajudar as pessoas a encontrarem um caminho melhor neste mundo, a explorarem melhor suas vidas e seus sentimentos. Mas para isso foi preciso vivenciar algumas provações e identificar em mim mesmo o que de fato tanto nos dói, o que nos motiva a viver e quais nossas principais fraquezas e virtudes. Assim sendo, acreditei que nada melhor para vivenciar na pele o que eu tanto queria do que experimentar a travessia de um deserto, ou seja, algo similar ao que Cristo experimentou num dado momento de sua breve passagem por este mundo. Seus apóstolos também vivenciaram essa experiência e devido a fé que possuíam naquilo em que acreditavam, foram capazes de concluir com êxito a missão de levar aos quatro cantos do mundo a verdade sobre a vida e a real essência humana. Da mesma forma, muitos outros peregrinos e aventureiros também receberam algum tipo de “chamado” em algum dado momento de suas vidas e se lançaram em busca da verdade sobre a vida e sobre si mesmos, na tentativa de superar os limites do corpo, mas principalmente do espírito e da alma. Contudo, eu só precisava de uma única coisa: ouvir a minha voz interior me dizer: Chegou sua hora! Venha, enfrente-me, e veja até onde você é capaz de chegar! 9

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A possibilidade de vivenciar essa experiência sempre foi muito forte em mim, desde a minha infância, mas passou a me consumir em uma fração de conta-gotas ao longo dos últimos anos, tornando-se a cada dia que passava mais e mais sufocante. Logo após eu ter completado 40 anos finalmente ouvi meu chamado e decidi então enfrentar a mim mesmo, esperando encontrar aquilo em que eu acreditei durante a minha vida inteira, e que estaria esperando por mim ao longo do caminho. Nessa ocasião surgiu a primeira questão: qual seria o meu deserto? Será que eu teria de largar tudo e peregrinar em busca de algum lugar do outro lado do mundo? Será que eu deveria atravessar o imenso deserto do Saara ou qualquer outro lugar que pudesse servir de palco para minha tão sonhada imersão? E de que forma seria tudo isso? Será que eu precisaria de muito dinheiro? Deveria sair por aí apenas na cara e na coragem e levar comigo somente o suficiente para me manter vivo? A resposta para todas essas perguntas foi: não! Primeiro porque eu não queria, e tampouco era meu objetivo, passar por nenhuma condição de sofrimento intenso, a não ser o desgaste emocional e psicológico que ocorreriam naturalmente conforme os dias se seguissem. Segundo que, desde o princípio, eu havia criado uma resistência pela ideia de trilhar caminhos já tão desgastados pelo homem ao longo de sua história. Em resumo: eu queria um caminho novo, no qual eu pudesse ter certa segurança e que me possibilitasse experimentar aquilo que eu considerava ser o mais importante da experiência: provar a solidão absoluta e a minha capacidade de seguir em frente independentemente das situações que viessem a ocorrer naturalmente e, acima de tudo, pôr em prova a minha fé e realizar o meu encontro com Deus. 10

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Todo deserto é uma região árida, coberta ou não por um manto de areia, em que é quase nula a presença de vida. Um deserto pode ser também uma ilha perdida ou um lugar pouco frequentado, solitário ou até mesmo abandonado. Diante dessas definições consegui ampliar minhas opções de escolha com relação ao lugar. Após ler e pesquisar sobre diversos desertos existentes ao redor do mundo, optei pelo extremo sul da América, mais especificamente por cruzar a região da Terra do Fogo (Patagônia Argentina e Chilena) e finalizar a minha peregrinação próximo do lugar conhecido como o “Fim do Mundo”. Foi nessa inóspita e desértica região que decidi vivenciar a minha experiência e desafiar a mim mesmo, meditando e refletindo diariamente, a cada passo que eu pudesse dar. Procurei refletir também sobre o meu papel como ser humano num mundo já tão debilitado e carente de sentido, tanto em relação à própria vida como em relação à nossa existência como um todo. Com relação ao sentido teológico do tema “atravessar um deserto”, tentei entender, antes de partir, porque essa experiência nos fascina tanto e ao mesmo tempo nos assusta. Creio que nos fascina porque nos remete à ideia da busca pelo autoconhecimento, pelo poder e o autocontrole sobre si mesmo, e pela obtenção plena da fé que nos faz seguir em frente. Por outro lado, é uma experiência que também nos assusta terrivelmente, pois simboliza a luta pela sobrevivência, pelo mistério, a dor e a agonia, mas principalmente o medo da solidão. De toda forma, fascinando ou assustando, sempre acreditei que em lugares inóspitos ou desertos a vida e a luz interior encontram meios para brotar no seu mais precioso sentido. Isso 11

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se deve, principalmente, pelas dificuldades e pelos perigos existentes ao longo do caminho, assim como pela necessidade de se seguir em frente, custe o que custar. A possibilidade de receber a glória por vencer não somente um caminho, mas a si próprio, encontrando ou ultrapassando os próprios limites do corpo e do espírito, é algo extremamente motivador e enriquecedor. É possível também que os desertos sejam campos preciosos para encontrarmos a cura interior e onde a grandiosidade humana se manifeste da forma mais espontânea e expressiva. E por que não crer que a vida (interiormente) brote de situações ou de lugares onde é quase nula a presença de vida (exteriormente)? Diante disso, e encarando de forma positiva a experiência, me entreguei de corpo e alma ao que eu pretendia viver, e incentivo a todo aquele que ouvir o seu chamado a fazer o mesmo. Ao longo do caminho aprendi quanto a vida se torna simples a partir do momento em que damos o primeiro passo em busca da verdadeira essência que a compõe. Da mesma forma, nos tornamos indivíduos mais pacientes e seguros quando passamos a perceber que podemos viver com muito menos do que imaginamos, diante do imenso fardo de coisas inúteis e sem sentido que carregamos ao longo dos nossos preciosos dias de vida. Tomarmos consciência dessas verdades nos faz viver de forma mais simples e generosa com tudo e com todos que nos cercam, e a enxergarmos a Deus tanto no brilho de uma estrela como no simples brilho contido no olhar de uma criança. Posso afirmar que o deserto é um terreno grandioso para acharmos nossas respostas e formularmos novas perguntas a um nível mais elevado de consciência para que possamos prosseguir com o nosso desenvolvimento contínuo. Também é 12

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uma forma de encontrarmos a nós mesmos e nos prepararmos melhor para nossa breve passagem por este mundo e descobrirmos o nosso verdadeiro papel como seres pertencentes a um único e infinito universo. Por fim, creio que enfrentar o próprio deserto não raras vezes se trata de um lugar distante e cheio de mistérios e segredos. Também enfrentamos pequenos desertos todos os dias, às vezes sem mesmo sair de nossas casas, tentando encontrar em meio ao turbilhão de nossas vidas as respostas para as perguntas que tanto nos sufocam. Certamente que as perguntas não serão as mesmas para cada pessoa, pois cada um de nós tem suas próprias dúvidas e sabe exatamente aquilo de que precisa ou que deve buscar, por aqui ou por lá.

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INTRODUÇÃO D

e acordo com a história, por volta do ano 1300 antes da Era Cristã ocorreu o primeiro milagre que eu considero como o “milagre do deserto”. Esse milagre foi magnífico, pois elevou a consciência de um povo com base nas experiências vividas num imenso vazio. A experiência a qual me refiro levou um grande número de pessoas a sair da condição de escravo no Egito e vagar por cerca de 40 anos entre imensos desertos de areia, buscando essencialmente um novo lugar para se estabelecer e recomeçar sua vida. Embora não tenha sido absolutamente nada fácil, essa longa caminhada por meio do nada, em busca de um novo lugar e uma nova identidade, desencadeou um processo de amadurecimento naquele povo. Mas, acima de tudo, naquilo que se entendia por fé. Foi um processo de aprendizagem em que pessoas muito diferentes umas das outras se viram obrigadas a conviver e a se organizar como um novo povo. Se algum de nós buscar mais informações sobre esse episódio na história, possivelmente chegará à conclusão de que foi a peregrinação de 40 anos no deserto que formou o Povo de Israel. Posteriormente ocorreu também a famosa experiência vivida por Cristo, que recebeu um chamado e decidiu enfrentar por 15

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escolha própria, durante 40 dias, o Seu deserto, despindo-se totalmente de sua divindade e enfrentando tão humanamente todas as suas dúvidas, medos, desejos ou ilusões. Ou seja, tudo aquilo que ainda o impedia de seguir seu caminho na direção da luz. Diante desse contexto, o deserto torna-se, acima de tudo, um lugar mítico, simbólico, e que inevitavelmente de uma forma ou de outra precisaremos atravessar um dia, quer decidamos buscar por ele ou ele decida nos encontrar em determinada fase de nossa vida. Um deserto não é somente um lugar no espaço onde é difícil encontrar vida, mas também um lugar onde se deflagram nossas dores, crises, egoísmos etc. Um lugar onde aprendemos a todo custo que não temos o poder para tudo neste mundo, tampouco para dominarmos as forças naturais que regem a vida e o universo. Para caminhar num deserto é preciso despir-se primeiramente do ego e entregar-se nas mãos de Deus, confiando e interagindo com ele a todo instante se quisermos ouvir as respostas para nossas dúvidas e encontrarmos os sinais que nos conduzirão em segurança ao longo do caminho. Sem Sua presença constante é praticamente impossível obtermos o tão precioso alimento espiritual para o corpo e a alma e vencermos a solidão, o medo e a dúvida. E por que escolhi a Patagônia como o “meu” deserto? Aos quatro anos de idade viajei com meus pais para o extremo sul da América, onde partimos de carro desde a cidade de Santiago do Chile, passando pelas cidades de Puerto Natales e Punta Arenas, cruzando o Estreito de Magalhães e seguindo em frente até a cidade conhecida como “O Fim do Mundo” (Ushuaia). Naquele tempo, por volta do ano de 1964, as estradas eram muito ruins, especialmente as que existiam próximas ao extremo sul do continente, onde o término da Cordilheira dos Andes dificultava 16

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por demais a travessia da região final da Terra do Fogo, pois ela cruza a Ilha Grande no sentido leste-oeste em direção ao final do continente, finalizando próximo ao Oceano Atlântico. As estradas hoje melhoraram muito, mas ainda são extremamente desertas, permitindo dirigirmos longos trechos sem a presença de nenhum outro carro em ambos os sentidos da rodovia. Lembro que há certa altura do caminho tivemos de parar o carro para trocarmos um dos pneus que havia furado. Nosso carro na época era um Chevrolet Opala quatro portas, cor azul-celeste, capota preta com uma enorme grade de ferro cromada na parte de cima, utilizada para carregar as malas e demais pertences, deixando o interior do veículo com mais espaço e conforto. Mais tarde, conversando e relembrando com meus pais sobre a nossa aventura, soube que a viagem foi em comemoração ao seu terceiro ano de casamento. Estávamos por volta do mês de novembro e o inverno havia se prolongado muito naquele ano, fazendo com que o alto das montanhas ainda estivesse, em boa parte, coberto pelo gelo. Meu pai tinha recém-adquirido o carro e era seu sonho fazer a travessia do Paso Garibaldi, famoso por ser a única passagem existente nos Andes Fueguinos na porção austral e final da Cordilheira dos Andes, a qual se teve êxito de cruzar. Embora uma nova rodovia tenha sido construída (concluída por volta de 1970), destinada principalmente ao escoamento da produção industrial da zona franca existente na região do Ushuaia, ainda hoje permanece a antiga estrada de terra, serpenteando vários pontos da rodovia nova que veio a ser chamada de “Camino Nuevo”. No ponto mais alto de ambas as estradas (a antiga de terra e a nova de asfalto), mais especificamente onde as duas se encontram 17

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e se transformam em uma só, existe um marco memorial simples chamado “Paso Garibaldi” homenageando a primeira passagem de um automóvel particular a cruzar as montanhas, marcando assim a abertura do caminho em novembro de 1956. Uma camionete Buick da década de 1920 de propriedade de um senhor chamado Julio Canga foi o primeiro veículo particular a realizar a travessia, feito que marcou definitivamente a ligação entre as cidade de Rio Grande e Ushuaia. Dois dias depois da abertura da estrada (ainda de terra) um turista norte-americano vindo do Alasca repetiu a proeza, fazendo a passagem com seu Jeep anfíbio e passando a ser o primeiro turista a realizar a travessia do final da Cordilheira dos Andes de carro. Vale mencionar que o nome dado ao “Paso Garibaldi” não faz referência ao italiano Giuseppe Garibaldi, mas sim a Raul Garibaldi Honte, filho de uma nativa da tribo haush chamada Luisa Honte com o italiano José Stroppa. Raul era funcionário de uma subprefeitura local e também conhecido pelo apelido de “Paka”, seu nome nativo. Foi ele quem, a partir do Lago Escondido (próximo à cidade do Ushuaia), prospectou intensamente uma via de passagem natural sobre a cordilheira e que por volta do ano de 1936 viria a ser a primeira rua utilizada como ligação entre o restante do continente e o “Fim do Mundo”. De acordo com a história, encontrei referência de que foi sua mãe quem lhe contou sobre a existência de um caminho antigo usado há muitos anos pelos índios selk’nam e manekenk para cruzar as montanhas. Esse caminho lhe serviu de guia para a prospecção da estrada. Vale dizer que o Garibaldi ainda permanece até os dias de hoje como único ponto de ligação terrestre entre o restante do continente e a cidade de Ushuaia. 18

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Voltando à parada que realizamos na viagem, lembro que meu pai ficou com o trabalho pesado, enquanto minha mãe permaneceu apenas ao seu lado contando coisas engraçadas e também cantando para distraí-lo. Minha mãe tinha uma voz linda e gostávamos de ouvi-la cantar. Enquanto isso, senti-me à vontade para sair do carro e olhar os arbustos e o terreno plano e longínquo que se estendia na direção de uma gloriosa cadeia de montanhas que ficava bem ao fundo no horizonte. Os arbustos não eram tão escassos e possuíam uma cor dourada, levemente amarronzada, típica do ressecamento sofrido pelo inverno recém-ocorrido. Era a belíssima estepe patagônica. Ao final no horizonte havia uma perfeita fusão entre as cores do terreno e as cores das montanhas, formando uma única e espessa faixa amarronzada. Apesar do ar gelado, o céu estava de um azul intenso e a cadeia de montanhas parecia possuir uma infinidade de tons de marrom. Suas torres cintilavam com o brilho do Sol e cada uma possuía forma e tamanhos diferentes. Depois de alguns instantes olhando na direção do horizonte, percebi que um dos arbustos próximos ao carro se mexia de forma diferente, insinuando a presença de algum animal. Para minha surpresa era um coelho gordo e cinzento, que ao sair de trás do arbusto parou e olhou fixamente na minha direção. Como eu ainda era muito pequeno, não possuía a razão necessária para medir com segurança os riscos de se perder num lugar tão distante e deserto e, num gesto impulsivo e peculiar de uma criança, lancei-me no terreno em busca do pequeno animal. Não demorou muito para eu perceber que havia me distanciado demasiadamente do local onde estava, dando a nítida sensação de estar perdido em meio a uma infinidade de arbustos que mais pareciam ser todos iguais. Entrei em desespero e me pus a 19

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chorar, agachado e com os olhos cerrados pelas mãos, cobrindo o meu rosto. Foi quando eu senti um toque suave de alguma coisa sobre uma de minhas mãos. Para minha surpresa e espanto, ao abrir os olhos vi que se tratava de um homenzinho com características muito engraçadas. Assim que me olhou nos olhos ele sorriu e emitiu um som parecido com um grunhido, porém suave e acolhedor. Permaneci imóvel e aos poucos percebi a chegada de outros homenzinhos que foram saindo de trás dos demais arbustos que havia ao meu redor. Todos juntos fizeram um círculo ao redor de mim e me olhavam com olhar de acolhimento e ternura que até hoje me faz sonhar com frequência com aquele momento mágico. Após alguns instantes, aquele que parecia ser o mais velho dentre eles me tomou pela mão e me guiou com toda a delicadeza até bem próximo do local onde eu havia saído de modo com que pudesse avistar de perto o carro e também meus pais. Notei que devia ter se passado apenas alguns minutos, pois meu pai ainda estava abaixado trocando o pneu e minha mãe permanecia ao seu lado sorrindo e cantando. Quando os vi soltei um enorme suspiro de alívio e senti uma alegria intensa. Ainda de mãos dadas, olhei para o homenzinho ao meu lado que sorrindo soltou minha mão e em seguida me abraçou, como num gesto de despedida. Já de pé, percebi que ele não tinha mais do que a minha altura, ou seja, com a minha idade na época, cerca de no máximo 1,20 metro de altura. Corri na direção do carro e assim que alcancei meus pais olhei para trás e o homenzinho permanecia lá, em pé, me olhando em meio aos arbustos como que se estivesse ainda cuidando para que eu alcançasse com segurança o local de onde eu havia saído em busca do coelho. 20

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Imediatamente gritei: – Mamãe, mamãe, eu me perdi! Minha mãe fez cara de espanto sem entender o que havia acontecido. Ela brincou comigo dizendo: – Sério, meu filho? E como você encontrou o caminho de volta? – Foi um homenzinho que me trouxe, ele está lá, olhe! – E apontei na direção do arbusto onde o pequenino se encontrava. Curiosamente minha mãe não o via, mas eu o enxergava perfeitamente, a ponto de insistir incisivamente com ela para que o procurasse melhor com os olhos. Não sei por qual motivo minha mãe não conseguia vê-lo. Tenho a certeza de que aquele ser era real e estava ali, bem perto de nós, mas infelizmente apenas eu conseguia enxergá-lo. – Pronto! – disse mamãe. – Venha, seu pai terminou com o pneu e nós já podemos seguir com a viagem. Eu insisti: – Mas e o homenzinho? Precisamos levá-lo para casa, mamãe. Está muito frio aqui fora e não podemos deixá-lo aqui. – Você deve ter se assustado, querido, isso é muito comum quando ficamos preocupados com alguma coisa. Venha com a mamãe um pouco no banco da frente.Vamos embora, está ficando muito frio aqui fora. Entramos todos no carro e meu pai deu a partida no motor. Ao sairmos do acostamento e ingressarmos na rodovia pulei imediatamente para o banco de trás, em meio a solavancos e pisoteando minha mãe de tudo quanto era jeito. Ao olhar na direção onde estávamos há pouco, vi muitos homenzinhos saindo dos arbustos e tomando o acostamento da estrada no local onde o carro havia parado para a troca do pneu. O pequenino que 21

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havia me ajudado levantou sua mão direita, acenando em despedida, enquanto os demais permaneciam ao seu redor, emitindo apenas olhares de calor e ternura. Naquele instante, mesmo sem entender, tive minha primeira experiência espiritual com os seres mágicos existentes na Terra do Fogo e com o caminho que anos mais tarde eu viria a chamar de “Caminho Sagrado”. Muitos anos se passaram desde então, e o episódio daquele dia foi pouco a pouco sendo trancafiado no baú do meu esquecimento. Contudo, mesmo inconscientemente, tinha com frequência sonhos estranhos com seres mágicos, mesmo depois de adulto, e quando acordava tinha a sensação de que de alguma forma eu voltaria algum dia naquele lugar e encontraria as respostas para todas as dúvidas que restaram escondidas em minha memória.

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