A Providência do Fogo - As Crônicas do Trono de Pedra Bruta – Livro II

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BRIAN S TAVELEY a providência do

fogo As Crônicas do Trono de Pedra Bruta livro ii

tradução Sonia Strong

S ão P au l o , 2 0 1 7

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A providência do fogo (As Crônicas do Trono de Pedra Bruta, livro II) The providence of fire (Chronicle of the Unhewn Throne, Book II) Copyright © 2014 by Brian Staveley Copyright © 2017 by Novo Século Editora Ltda. This is a work of fiction. All of the characters, organizations, and events portrayed in this novel are either products of the author’s imagination or are used fictitiously. All rights reserved. A Tor Book Published by Tom Doherty Associates, LLC 175 Fifth Avenue New York, NY 10010 www.tor‑forge.com Tor® is a registered trademark of Tom Doherty Associates, LLC.

coordenação editorial

gerente de aquisições

editorial

assistente de aquisições

Vitor Donofrio

João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda tradução

Sonia Strong preparação

Tássia Carvalho diagramação e capa

Renata de Mello do Vale Talita Wakasugui

revisão

Fernanda Guerriero Antunes Equipe Novo Século ilustração de capa

Richard Anderson

João Paulo Putini

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Staveley, Brian A providência do fogo Brian Staveley ; tradução de Sonia Strong. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2 0 16 . (As Crônicas do Trono de Pedra Bruta ; livro 2) Título original: The providence of fire 1. Ficção norte­‑americana 2. Ficção de fantasia I. Título II. Strong, Sonia. 16 ­‑10 5 3

cdd­‑8 13 .5

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção de fantasia : literatura norte­‑americana 813.5

novo século editora ltda.

Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455­‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699­‑7107 | Fax: (11) 3699­‑7323 www.gruponovoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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Para minha esposa.

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agradEciMEnToS

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a última vez, fiz uma lista de nomes. Essa me pareceu a atitude correta, uma vez que tantas pessoas me ajuda‑ ram de muitas maneiras enquanto eu escrevia O imperador das lâminas. Este livro é ainda maior, e, então, seria de se esperar uma lista mais longa, um catálogo ainda maior de nomes, mas acaWbei me tornando um pouco desconfiado de listas. Fazer uma lista na parte de agradecimentos de uma obra é, por assim dizer, de‑ clarar: Conheço meus débitos. E a verdade é que não os conheço, nem mesmo metade deles. Para cada grande ideia que posso ligar a alguém, a certa conversa com cerveja, há muitas outras, centenas de pensamentos maravilhosos que as pessoas – algumas delas amigas, outras completos estranhos; alguns em forma escrita, outros em um bate‑papo – simplesmente colocaram em meus braços, como pequenos bebês. Criei essas ideias como se fossem minhas, tentei cuidar bem delas, coloquei‑as para dormir entre as capas do livro. Algumas viveram comigo por bastante tem‑ po, e me apeguei muito a elas, tornando‑me até mesmo possessivo, tanto que foi preciso este agradecimento formal para que eu dissesse a verdade: não sei de onde todas elas vieram. Agora, quando elas se dirigem de volta ao mundo, gosto de imaginar que, embora possam ter se assustado a princípio, ficarão cada vez mais encantadas com o tamanho desse mundo, suas cores, sua liberdade, e poderão reconhecer a majestade do lugar de onde vieram. o mundo é tão maior do que a mente de um escritor, e, embora essas ideias tenham vivido comigo por algum tempo, eu nunca fui o destino final delas.

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prÓLogo

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uando Sioan alcançou o topo da torre, deixando o último degrau em direção ao frio cortante da noite, o ar em seus pulmões queimou com uma fúria que se igualava ao fogo ardente nas ruas abaixo. A subida le‑ vara horas – metade da noite, na verdade. os guardas que a acompanhavam não demonstravam nenhum cansaço, mas a Guarda Aedoliana subia correndo os de‑ graus da Lança de Intarra vestindo a armadura completa, uma vez por mês. Acom‑ panhar o ritmo de uma imperatriz de meia‑idade e três crianças pequenas não representava grande dificuldade. Ela, por outro lado, sentia‑se a ponto de desfa‑ lecer. Cada patamar a convidava a parar, sentar‑se, encostar‑se aos andaimes de madeira que sustentavam as escadas, fechar os olhos e adormecer de cansaço. Fiquei fraca demais, ela pensou outra e outra vez; a autocensura era a única coi‑ sa que mantinha suas pernas bamboleantes em movimento. Tornei‑me uma mulher fraca vivendo entre coisas macias. Na verdade, porém, preocupava‑se mais com os filhos do que com ela mesma. To‑ dos haviam subido ao topo da Lança, mas nunca com tanta urgência. uma subida nor‑ mal podia durar dois dias, com intervalos ao longo do caminho para descansar e comer e beber alguma coisa, com bandejas de comida e colchões generosos colocados à dis‑ posição por um adiantado grupo de cozinheiros e escravos. Diferentemente dessas su‑ bidas agradáveis e comemorativas, a subida árdua era demais para as crianças. Mesmo assim, o marido de Sioan tinha insistido, e ninguém dizia não ao imperador de Annur. Esta é a cidade deles, Sanlitun dissera a ela. O coração do seu Império. Isso é algo que eles devem ver. A subida será a menor das dificuldades que terão de en‑ frentar um dia. Não que ele tivesse de subir a maldita torre. uma facção kettral, composta por cinco homens de olhar duro e mulheres vestidas de preto, havia levado o imperador

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ao topo da Torre em seu enorme e aterrorizante pássaro. Sioan compreendia a ur‑ gência. As chamas se alastravam pelas ruas, e seu marido precisava da vantagem para comandar o contragolpe. Annur não podia se dar ao luxo de esperar enquanto ele subia dezenas de milhares de passos. Os kettral tinham se oferecido para voltar e levar Sioan e as crianças, mas ela se recusara. Embora Sanlitun afirmasse que os pássaros eram mansos, mansos não significava domesticados, e ela não pretendia colocar os filhos nas garras de uma criatura capaz de retalhar bois em tiras com um simples golpe. E, assim, enquanto o imperador estava no telhado dando ordens para impedir que a cidade se queimasse, Sioan subira penosamente as escadas, amaldiçoando o marido em silêncio por insistir que se juntassem a ele, amaldiçoando a si própria por ter envelhecido. Os aedolianos subiram silenciosamente, mas as crianças, ape‑ sar de seu entusiasmo inicial, penavam. Adare, a mais velha e mais forte, tinha ape‑ nas dez anos, e eles não haviam subido muito além dos telhados afilados das outras torres, muito mais curtas, quando começaram a ofegar. Kaden e Valyn eram ainda piores. Os degraus – uma construção humana embutida na concha clara de vidro metálico da antiga e impossível estrutura – eram grandes para suas pernas curtas, e os dois meninos tropeçavam constantemente, batendo canelas e cotovelos contra os degraus de madeira. Apesar da insistência do marido para se apressarem, a cidade queimaria, esti‑ vessem os quatro lá para assistir ou não, e Sioan encorajava os filhos a parar cada vez que chegavam a um patamar. Adare, no entanto, preferiria cair morta a decepcionar o pai, e Valyn e Kaden, apesar de sentirem­‑se exaustos, arrastavam­‑se sombriamente, lançando olhares um para o outro, cada um esperando, com clareza, que o outro de‑ sistisse, embora nenhum dos dois estivesse disposto a dizer as palavras. Quando por fim surgiram na porta do alçapão, os três pareciam prestes a de‑ sabar, e, embora um muro baixo rodeasse o topo da Lança de Intarra, Sioan esten‑ deu os braços de forma protetora quando o vento soprou. Ela não precisava ter se preocupado. Os aedolianos – Fulton e Birch, Yian e Trell – rodearam as crianças, guardando­‑as, mesmo ali, contra alguma ameaça constante, invisível. Sioan se vi‑ rou para o marido, as recriminações prontas em sua língua, e então ficou em silên‑ cio, olhando para as chamas que assolavam a cidade abaixo. Eles tinham visto as chamas do interior da Lança, é claro – o vermelho furioso refratado através das paredes de vidro –, mas, da imensa altura do topo da torre, as ruas e os canais da cidade pareciam linhas desenhadas em um mapa. Sioan podia estender a mão e bloquear a visão de quarteirões inteiros – Graves ou Lowmarket, 10

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West Kennels ou as Docas. Não podia, no entanto, bloquear o fogo. O relatório, quando ela começou a escalada, dizia que o fogo encontrava­‑se na margem oci‑ dental da cidade, uma conflagração viciosa confinada a meia dúzia de quarteirões. Durante a subida interminável, no entanto, o fogo se espalhara horrivelmente, de‑ vorando tudo a oeste da Estrada Fantasma e, então, havia se dispersado por um vento rápido proveniente do mar ocidental, continuado seu caminho ao leste, em direção à extremidade do Godsway. Sioan tentou calcular o número de casas quei‑ madas, de vidas perdidas. Não conseguiu. Ao ouvir o alçapão sendo fechado, Sanlitun virou­‑se. Mesmo após anos de ca‑ samento, a visão de seu olhar ainda a imobilizava. Embora Adare e Kaden com‑ partilhassem as íris flamejantes do pai, o fogo nos olhos das crianças era quente, quase amigável, como a luz de uma lareira de inverno ou o olhar do sol. Os olhos de Sanlitun, no entanto, queimavam como uma chama fria, inabalável, uma luz sem calor ou fumaça. Seu rosto não demonstrava emoção alguma. Ele podia ter passa‑ do metade da noite olhando as estrelas traçando seu curso na escuridão ou a luz da lua refletindo­‑se nas ondas, em vez de lutando contra um incêndio que ameaçava consumir sua cidade. Sanlitun olhou para os filhos, e Sioan sentiu Adare empertigar­‑se ao seu lado. A menina entraria em colapso depois, na privacidade de seus próprios aposentos, mas agora, na presença do pai, as pernas tremendo com o esforço da escalada, ela se re‑ cusava a apoiar­‑se na mãe. Os olhos de Kaden arregalavam­‑se como pratos enquanto olhava para a cidade abaixo. Era como se ele se encontrasse sozinho no telhado, uma criança de sete anos enfrentando o incêndio sozinha. Apenas Valyn pegou a mão da mãe, deslizando os pequenos dedos para dentro da mão dela enquanto olhava do fogo para o pai, e novamente para o fogo. – Você chegou a tempo – disse o imperador, apontando para os quarteirões escuros da cidade. – A tempo para quê? – Sioan quis saber, a raiva ameaçando sufocá­‑la. – Para assistir a dez mil pessoas queimarem? Seu marido observou­‑a por um momento, depois assentiu. – Entre outras coisas – ele respondeu em voz baixa, então se virou para o escri‑ vão, ao seu lado. – Faça com que comecem outro incêndio – ele disse. – A extensão total da Via de Anlatun, da fronteira sul da cidade até o norte. O escriba, com expressão atenta, iniciou a tarefa, pintando as palavras no per‑ gaminho, segurando a folha no ar por um momento para secá­‑la, enrolando­‑a ra‑ pidamente, colocando­‑a dentro de um tubo de bambu e, então, fazendo­‑a deslizar 11

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por uma rampa que se estendia até o centro da Lança. Sioan levara metade da noite subindo a maldita torre; as ordens do imperador, entretanto, chegariam ao palácio lá embaixo em questão de minutos. Depois de dar as ordens, Sanlitun virou­‑se para os filhos mais uma vez. – Vocês entendem? – ele perguntou. Adare mordeu o lábio. Kaden não disse nada. Apenas Valyn deu um passo à frente, apertando os olhos contra o vento e o fogo. Ele virou­‑se para as lentes de longa distância, encaixadas nos suportes contra o muro baixo, levantou uma e colocou­‑a contra um dos olhos. – A Via de Anlatun não está queimando – ele protestou depois de um momen‑ to. – O fogo ainda se encontra a quarteirões de distância a oeste. O pai assentiu. – Então por que… – Ele parou de falar, a resposta em seus olhos escuros. – Você está começando um segundo incêndio – Adare disse – para deter o primeiro. Sanlitun concordou. – A arma é o escudo. O inimigo é o amigo. O que está queimado não pode quei‑ mar novamente. Durante muito tempo, toda a família permaneceu em silêncio, olhando o fogo abrindo caminho para o leste. Apenas Sioan recusou uma lente de longa distância. Ela via o que precisava com os próprios olhos. Lenta e implacavelmente, o fogo che‑ gou; vermelho e dourado e horrível até que, em uma linha reta pela extremidade ocidental da cidade, surgiram novos focos de incêndio, pontos discretos no início, espalhando­‑se juntos até uma avenida brilhante de fogo que iluminou a margem oci‑ dental da grande avenida que era a Via de Anlatun. – Está funcionando – afirmou Adare. – O novo incêndio está se movendo para o oeste. – Tudo bem – Sioan disse abruptamente, compreendendo, enfim, o que o marido queria que eles vissem, o que queria que aprendessem; desesperada, de repente, em poupar os filhos tanto da visão quanto do conhecimento. – Eles já viram o suficiente. Ela estendeu a mão para tirar a lente de longa distância de Adare, mas a menina arrebatou­‑a para longe, dirigindo­‑a para os incêndios gêmeos mais uma vez. Sanlitun encontrou o olhar da esposa, então tomou a mão dela na sua. – Não – ele disse calmamente. – Ainda não. Foi Kaden, por fim, que percebeu. – As pessoas – ele falou, gesticulando. – Elas estavam fugindo, correndo em direção ao leste, mas agora pararam. 12

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– Elas estão presas – Adare disse, largando a lente de longa distância e virando­‑se para confrontar o pai. – Elas estão presas. Você tem que fazer alguma coisa! – Ele fez – comentou Valyn. Ele olhou para o imperador, a esperança da criança aparecendo de forma horrível em seu olhar. – Você já fez, certo? Deu uma ordem. Antes de chegarmos aqui. Você as avisou de alguma forma… O menino parou, vendo a resposta naqueles olhos frios, ardentes. – Que ordem eu daria? – perguntou Sanlitun, a voz suave e irreprimível como o vento. – Milhares de pessoas vivem entre esses dois incêndios, Valyn. Dezenas de milhares. Muitas terão fugido, mas como eu chegaria àquelas que não fugiram? – Mas elas vão queimar – Kaden sussurrou. Ele balançou a cabeça lentamente. – Elas estão queimando neste momento. – Por quê? – Sioan indagou, sem saber ao certo se as lágrimas em seus olhos eram pelos cidadãos gritando sem serem ouvidos nas casas lá embaixo ou por seus filhos, olhando, horrorizados, para as chamas distantes. – Por que eles precisam ver isso? – Um dia, o Império será deles. – Para governar, para proteger, não para destruir! Ele continuou a segurar a mão da esposa, mas não desviou o olhar das crianças. – Eles não estarão prontos para governá­‑lo – disse, os olhos silenciosos como as estrelas – até que estejam dispostos a vê­‑lo queimar.

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capÍTULo 1

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aden hui’Malkeenian fez o melhor que pôde para ignorar o granito frio debaixo dele, o sol quente batendo‑lhe nas costas enquanto deslizava para a frente, tentando uma visão melhor das construções de pedra espalha‑ das lá embaixo. um vento forte, encharcado com o frio das neves remanescentes, arranhava‑lhe a pele. Ele respirou, obtendo calor de seu âmago para os membros, acalmando o tremor antes que ele recomeçasse. Seus anos de treinamento com os monges eram bons para isso, pelo menos. Para isso, e pouca coisa mais. Valyn moveu‑se ao seu lado, olhando para trás e observando o caminho per‑ corrido, e então para a frente, mais uma vez. – Esse é o caminho que você percorreu quando fugiu? – ele perguntou. Kaden balançou a cabeça. – Fomos por aquele outro – respondeu, apontando para o norte em direção a uma grande torre de pedra cuja silhueta projetava‑se contra o céu –, sob o Talon, então para o leste passando pelo Salto de Buri e pelas Facas Pretas e Douradas. Era noite e essas trilhas são brutalmente íngremes. Esperávamos que os soldados com aquelas armaduras completas não fossem capazes de nos alcançar. – Estou surpreso que eles tenham conseguido. – Eu também – disse Kaden. Ele apoiou‑se nos cotovelos para espiar sobre a coluna de pedras, mas Valyn arrastou‑o de volta. – Mantenha sua cabeça para baixo, Vossa Radiância – ele rosnou. Vossa Radiância. o título ainda soava errado, instável e traiçoeiro, como o gelo da primavera em um lago nas montanhas, a superfície toda gemendo en‑ quanto brilhava, pronta para rachar sob o peso do primeiro pé incauto. Era pe‑ noso o suficiente quando outros usavam o título, mas vindas de Valyn as palavras

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tornavam­‑se quase insuportáveis. Embora eles tivessem passado metade da vida separados, embora fossem agora homens, cada um com seu próprio direito, qua‑ se desconhecidos, com seus próprios segredos e cicatrizes, Valyn ainda era seu irmão, ainda era seu sangue, e todo o treinamento, todos os anos não conseguiam apagar o menino descuidado de quem Kaden se lembrava da infância, o parceiro com quem ele brincara de espadas e bandidos, correndo pelos corredores e pa‑ vilhões do Palácio do Alvorecer. Ouvir Valyn usar o título oficial era como ouvir seu próprio passado ser apagado, sua infância destruída, totalmente substituída pela realidade brutal do presente. Os monges, é claro, teriam aprovado. “O passado é um sonho”, eles costuma‑ vam dizer. “O futuro é um sonho. Há somente o agora.” O que significava que aque‑ les mesmos monges, os homens que o haviam criado, treinado, não eram mais homens em absoluto, não mais. Agora, eram carne podre, cadáveres espalhados pelos cantos da montanha abaixo. Valyn apontou o polegar sobre as rochas que os protegiam, tirando Kaden de seus pensamentos. – Embora estejamos a uma boa distância, alguns dos bastardos que mataram seus amigos podem ter lentes de longa distância. Kaden franziu a testa, trazendo os pensamentos de volta ao presente. Ele nunca tinha sequer considerado a possibilidade de lentes de longa distância – outro lembrete, como se ele precisasse de mais um, de como sua vida de clausura em Ashk’lan o preparara mal para essa súbita imersão nas correntes traiçoeiras do mundo. Ele podia pintar, sentar­‑se em meditação ou correr durante dias em terreno áspero, mas essas habilidades eram insuficientes quando enfrentavam as maquinações dos homens que tinham assassinado seu pai, massacrado os mon‑ ges Shin e quase o assassinado também. Não pela primeira vez, ele se pegou in‑ vejando o treinamento de Valyn. Durante oito anos, Kaden lutara para reprimir os próprios desejos e esperan‑ ças, medos e tristezas, lutara no que parecia uma interminável batalha contra si mesmo. Os Shin tinham repetido seus mantras muitas e muitas vezes: “O fio da esperança é mais afiado que o aço. Querer é não ter. Importar­‑se é morrer”. Ha‑ via verdade nessas palavras, muito mais verdade do que Kaden imaginara quando chegou às montanhas ainda criança; porém, se ele aprendera algo nos últimos dias, repletos de sangue, morte e confusão, eram os limites daquela verdade. Um fio de aço, como se vira, era bastante afiado. Agarrar­‑se ao próprio eu podia matá­‑lo, mas não se alguém lhe enfiasse uma faca no coração primeiro. 16

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No espaço de poucos dias, os inimigos de Kaden tinham se multiplicado além de suas próprias e persistentes falhas, e esses novos inimigos usavam uma armadura polida, carregavam espadas nos punhos, teciam mentiras aos mi‑ lhares. Se ele fosse sobreviver, se fosse tomar o lugar do pai no Trono de Pedra Bruta, precisaria aprender sobre lentes de longa distância e espadas, política e pessoas, sobre todas as coisas que os Shin haviam negligenciado em seu esfor‑ ço concentrado para treiná­‑lo no transe vazio que era o vaniate. Levaria anos para preencher as lacunas, e ele não tinha anos. Seu pai estava morto, morto havia meses, e isso significava que, preparado ou não, Kaden hui’Malkeenian era o imperador de Annur. Até que alguém me mate, ele acrescentou silenciosamente. Considerando os acontecimentos dos últimos dias, aquela possibilidade pareceu repentina e impressionantemente grande. Homens armados virem com ordens para assassiná­‑lo e destruir o mosteiro era aterrorizante o suficien‑ te, mas eles pertencerem à sua própria Guarda Aedoliana – uma ordem que havia jurado protegê­‑lo e defendê­‑lo –, receberem ordens de annurianos em cargos superiores, homens no topo da pirâmide da política imperial, era quase inacreditável. Sob alguns aspectos, retornar à capital e sentar­‑se no Trono de Pedra Bruta parecia o caminho mais certo para ajudar os inimigos a terminar o que haviam começado. Óbvio, ele pensou sombriamente, se eu for assassinado em Annur, significa que consegui voltar para Annur, o que não deixa de ser um episódio bem­‑sucedido. Valyn gesticulou em direção à margem da escarpa rochosa que os protegia. – Quando você olhar, olhe lentamente, Vossa Radiância – ele disse. – A visão é atraída pelo movimento. Isso, pelo menos, Kaden sabia. Ele passara tempo suficiente rastreando felinos da montanha e bodes perdidos para saber como se manter escondido. Colocou seu peso sobre os cotovelos, vasculhando cada polegada até que seus olhos tivessem es‑ quadrinhado a margem de pedra baixa que o protegia. Abaixo e para o oeste, talvez a quatrocentos metros de distância, apoiado precariamente em uma borda estreita entre os penhascos abaixo e os vastos picos esculpidos acima, localizava­‑se Ashk’lan, único mosteiro dos monges Shin e lar de Kaden. Ou o que restara dele. O Ashk’lan das lembranças de Kaden era um lugar frio, mas brilhante, esfregado até se tornar limpo, uma paleta austera de pedra clara, com largas pinceladas de neve, rios vertiginosos com brilhantes e mutáveis corredeiras, 17

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gelo descendo pelos penhascos voltados para o norte, tudo isso sob uma dura ardósia azul do céu. Os aedolianos o haviam destruído. Grandes faixas de fu‑ ligem manchavam as bordas e as pedras, e o fogo transformara os pés de zim‑ bro em tocos enegrecidos. O refeitório, a sala de meditação e o dormitório encontravam­‑se em ruínas. Embora a pedra fria das paredes tivesse se recu‑ sado a queimar, as vigas de madeira, as telhas, as armações das janelas e das amplas portas de pinho haviam sucumbido às chamas, arrastando pedaços de alvenaria com elas quando caíram. Até mesmo o céu estava escuro, sujo da fumaça oleosa que ainda ardia nos destroços. – Lá – disse Valyn, apontando para o movimento perto do extremo norte do mosteiro. – Os aedolianos. Eles montaram um acampamento, provavelmente à es‑ pera de Micijah Ut. – Vai ser uma longa espera – falou Laith, deslizando para ficar ao lado deles. O mestre de voo sorriu. Antes da chegada da facção de Valyn, tudo o que Kaden sabia sobre os kettral, os soldados mais secretos e mortais de Annur, vinha das histórias que ele ouvira quando criança, contos que o levaram a imaginar assassinos som‑ brios, de olhos vazios, homens e mulheres mergulhados em sangue e destruição. As histórias estavam parcialmente certas: os olhos negros de Valyn eram tão frios quanto os carvões do ano passado, e Laith – o mestre de voo da facção – não parecia nada preocupado com os destroços lá embaixo ou com a carnificina que haviam deixado para trás. Eles eram claramente soldados, disciplinados e bem­‑treinados; e, no entanto, pareciam, de alguma maneira, jovens para Kaden. O sorriso casual de Laith, seu prazer evidente em irritar Gwenna e provocar Annick, o jeito como tamborilava no joelho sempre que se aborrecia, o que ocorria frequentemente, todos esses eram comportamentos pelos quais os Shin o teriam espancado até os eliminar antes de seu segundo ano. O fato de a facção de Valyn poder voar e matar era bastante claro, mas Kaden viu­‑se preocupa‑ do, perguntando­‑se se eles estavam verdadeiramente preparados para a difícil estrada à frente. Não que ele se sentisse preparado, mas seria bom pensar que alguém tinha o controle da situação. Micijah Ut, pelo menos, era um inimigo que Kaden não precisava mais te‑ mer. Se ele não tivesse visto o corpo, seria difícil de acreditar que o enorme ae‑ doliano, com sua armadura completa, fora morto por uma mulher de meia­‑idade empunhando um par de facas. A visão lhe havia proporcionado uma medida de 18

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silenciosa satisfação, como se ele pudesse colocar o peso do aço e da carne morta na balança para equilibrar, de alguma maneira, o resto do massacre. – Alguém quer se esgueirar para o acampamento com o corpo de Ut? – per‑ guntou Laith. – Poderíamos colocá­‑lo em algum lugar, fazer parecer que está be‑ bendo cerveja ou urinando? Ver quanto tempo eles demoram para perceber que o filho da puta não está respirando? – Ele olhou de Valyn para Kaden, as sobrance‑ lhas levantadas. – Não? Não é por isso que viemos para cá? O grupo deles retornara a Ashk’lan naquela manhã, voando para o oeste de seu pequeno acampamento no coração das Montanhas dos Ossos, o mesmo onde eles haviam lutado e matado os homens depois de persegui­‑los, tanto aedolianos quan‑ to traidores kettral. A viagem causara um debate acirrado: havia um amplo con‑ senso de que alguém precisava ir, tanto para buscar sobreviventes quanto para ver se restava algo a ser descoberto com os soldados annurianos que ficaram para trás quando Ut e Tarik Adiv perseguiram Kaden pelos picos. O desacordo centrava­‑se apenas em quem deveria fazer a viagem. Valyn não queria arriscar­‑se a trazer alguém de fora da própria facção, mas Kaden salientara que, se os kettral queriam utilizar a rede ondulante de trilhas de cabras que rodeava o mosteiro, precisavam de um monge familiarizado com o solo. Rampuri Tan, obviamente, era a escolha ideal – ele conhecia Ashk’lan melhor do que Kaden, sem mencionar o fato de que, ao contrário do novo imperador, ele re‑ almente sabia lutar –, e o monge mais velho, apesar das dúvidas de Valyn, pareceu considerar sua participação uma questão definida. Pyrre, entretanto, argumentou que, em primeiro lugar, era estúpido voltar lá. – Os monges estão mortos – ela observou –, que Ananshael ​​ desenrole suas almas celibatárias. Você não pode ajudá­‑los cutucando­‑lhes os corpos. Kaden se perguntou como era ser uma assassina, adorar o Senhor do Túmulo, viver tão perto da morte por tanto tempo a ponto de ela não trazer terror algum, dúvida alguma. Ainda assim, ele não queria voltar por causa dos corpos. Havia uma chance, embora pequena, de que os soldados tivessem capturado alguns dos monges em vez de matá­‑los. Kaden não sabia o que fazer se isso fosse verdade, mas, com os kettral às suas costas, talvez conseguisse resgatar um ou dois. No mínimo, poderia verificar a possibilidade. Tan rejeitara a ideia como tolice sentimental. A razão para voltar era ob‑ servar o restante dos aedolianos, trazer à tona suas intenções; a culpa de Kaden constituía apenas mais uma prova de seu fracasso em alcançar o verdadeiro desa‑ pego. Talvez o monge mais velho estivesse certo. Um verdadeiro Shin arrancaria 19

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o aperto que se enrolava em torno de seu coração, serpenteando sobre ele; elimi‑ naria, uma a uma, as farpas da emoção. Porém, além de Tan e Kaden, os Shin es‑ tavam mortos: duas centenas de monges assassinados durante a noite por causa dele, homens e meninos cujo único objetivo era a calma vazia do vaniate, quei‑ mados e massacrados enquanto dormiam para encobrir um golpe annuriano. Independentemente do que o esperasse em Ashk’lan, isso havia acontecido por causa de Kaden. Ele devia voltar. O resto foi simples. Valyn comandava a facção, Valyn obedecia ao imperador, e assim, apesar das objeções de Tan e Pyrre, apesar de suas próprias apreensões, tinha abaixado a cabeça e obedecido, levando Kaden e o resto da facção para des‑ cobrir o que restava de seu lar na montanha. Eles pousaram o pássaro um pouco para o leste, fora da vista do mosteiro, e cobriram as milhas finais a pé. A trilha era fácil, a maior parte descida, mas a tensão aumentou no peito de Kaden à medida que se aproximavam. Os aedolianos não haviam se preocupado em esconder o massacre. Não era necessário. Ashk’lan estava bem além da fronteira do Império, muito alto nas mon‑ tanhas para os urghuls, demasiado ao sul para os edishes, muito longe de qualquer lugar para mercadores e comerciantes, e, por isso, os corpos envoltos em mantos marrons foram deixados espalhados pelo pátio central, alguns queimados, outros abatidos enquanto fugiam, o sangue seco manchando as pedras. – Muitos monges – Laith salientou, apontando para o mosteiro. – Todos bem mortos. – E aqueles monges? – perguntou Valyn, apontando para uma fileira de figuras sentadas de pernas cruzadas no lado mais distante da borda, olhando para a estepe. – Eles estão vivos? Laith levantou a lente de longa distância. – Não. Esfaqueados. Bem nas costas. – Ele sacudiu a cabeça. – Não sei por que eles estão sentados lá. Ninguém os amarrou. Kaden olhou para os homens curvados por um momento, depois fechou os olhos, imaginando a cena. – Eles não correram – afirmou. – Eles buscaram refúgio no vaniate. – Siiiim… – o mestre de voo disse, esticando a sílaba com ceticismo. – Parece que eles não o encontraram. Kaden olhou para os corpos, lembrando­‑se do incrível vazio emocional do transe, da ausência do medo, da raiva ou da preocupação. Tentou imaginar o que os monges haviam sentido ali sentados, olhando em direção à enorme estepe verde, 20

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enquanto seu lar queimava a alguns passos atrás deles, observando as estrelas frias, enquanto esperavam pela lâmina. – O vaniate pode surpreendê­‑lo – Kaden disse calmamente. – Bem, estou cansado de ser surpreendido – Valyn rosnou. Em seguida, rolou para o lado a fim de olhar para Kaden, que, mais uma vez, encontrou­‑se tentando enxergar o irmão, o irmão que ele um dia conhecera, sob as cicatrizes e os ferimen‑ tos, por trás daqueles olhos estranhamente negros. Valyn, a criança, fora rápido em sorrir, em rir, mas Valyn, o soldado, parecia atormentado, assombrado, caçado, como se não confiasse no próprio céu acima de si, duvidasse da própria mão ma‑ chucada e da espada nua que ela empunhava. Kaden conhecia os fatos básicos da história; como Valyn, ele também fora perseguido por aqueles que queriam eliminar a linhagem malkeeniana. De al‑ gumas maneiras, Valyn passara por situações piores do que o próprio Kaden. Enquanto os aedolianos tinham golpeado repentina e brutalmente o coração de Ashk’lan, os soldados eram estranhos para Kaden, e os sentimentos de injustiça, de traição, mantiveram­‑se abstratos. Valyn, por outro lado, tinha visto sua me‑ lhor amiga ser assassinada pelos colegas soldados. Ele vira a ordem militar à qual havia dedicado sua vida desapontá­‑lo – ou traí­‑lo. Kaden ainda se preocupava com a possibilidade de o comando kettral, o próprio Eyrie, ser, de alguma forma, cúmplice na trama. Havia razões suficientes para Valyn sentir­‑se cansado e des‑ confiado, e, além disso, trazia algo a mais naquele olhar que preocupava Kaden, uma escuridão mais profunda do que o sofrimento ou a tristeza. – Vamos esperar aqui – Valyn continuou –, escondidos, até Annick, Talal e Gwenna voltarem. Se eles não encontrarem nenhum monge, um monge vivo, par‑ timos do jeito que viemos, e retornamos ao maldito pássaro. Kaden assentiu. A tensão da caminhada se aninhara no fundo de seu estômago, um nó apertado de perda, tristeza e raiva. Ele decidiu relaxar. Insistira em voltar para procurar os sobreviventes, mas parecia não haver ninguém vivo. A emoção residual não estava lhe fazendo bem algum; de fato, obscurecia seu julgamento. Embora Kaden tentasse se concentrar na própria respiração, as imagens dos ros‑ tos de Akiil, de Pater, de Scial Nin flutuavam em sua mente, assustadoras em seu imediatismo e detalhes. Em algum lugar lá embaixo, espalhados entre os edifícios destruídos, estavam todos os que ele conhecia, e todos, com exceção de Rampuri Tan, que o conheciam. Outra pessoa, alguém sem o treinamento Shin, poderia encontrar alívio no conhecimento de que esses rostos desapareceriam ao longo do tempo, de que as 21

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lembranças se tornariam borrões, as margens menos nítidas; mas os monges o ti‑ nham ensinado a não esquecer. As lembranças de seus amigos massacrados per‑ maneceriam para sempre vívidas e imediatas, assim como a forma de seus corpos abatidos também, esculpida em todos os terríveis detalhes. E é por isso, ele pensou sombriamente, que você deve separar o sentimento do fato. Os Shin também haviam lhe ensinado essa habilidade, como que para equilibrar a outra. Atrás dele, um pano macio roçou sobre a pedra. Kaden virou­‑se para encontrar Annick e Talal, a atiradora e o feiticeiro da facção, aproximando­‑se, rastejando so‑ bre as largas lajes de pedra como se tivessem nascido sabendo se movimentar des‑ se modo. Eles pararam logo atrás de Valyn, a atiradora imediatamente colocando uma seta em seu arco, e Talal apenas balançando a cabeça. – A situação é ruim – ele disse calmamente. – Não há prisioneiros. Kaden considerou, em silêncio, o feiticeiro. Fora uma surpresa descobrir que os homens e mulheres que teriam sido queimados vivos ou apedrejados até a morte por suas habilidades não naturais em qualquer outro lugar em Annur tra‑ balhavam abertamente com os kettral. Por toda sua vida, Kaden ouvira que fei‑ ticeiros eram perigosos e instáveis, as mentes deformadas pelos estranhos pode‑ res. Como todo mundo, ele crescera ouvindo histórias de feiticeiros que bebiam sangue, de feiticeiros que mentiam e roubavam, dos terríveis Lordes Feiticeiros, os atmani, que, em sua húbris, destruíram o próprio Império que haviam cons‑ pirado para governar. Outra coisa sobre a qual eu sei muito pouco, Kaden lembrou a si mesmo. Nos dias curtos e tensos, desde o massacre e o salvamento, ele tentara falar com Talal para aprender algo sobre o homem, mas o feiticeiro kettral era mais silencio‑ so, mais reservado do que o resto da facção de Valyn. Ele se mostrava invariavel‑ mente educado, mas as perguntas de Kaden produziam poucas respostas, e, depois da décima ou décima segunda resposta evasiva, o monge desistiu de conversar com ele e passou a observá­‑lo. Antes que eles voassem, Kaden observara Talal sujar os aros brilhantes em suas orelhas com carvão obtido do fogo, e, em seguida, as pulseiras e os anéis, esfregan‑ do o carvão no metal até que ele estivesse tão escuro quanto a sua pele. – Por que você simplesmente não os tira? – Kaden perguntara. – Nunca se sabe – Talal respondeu, balançando a cabeça lentamente – o que pode vir a calhar lá fora. Sua fonte de poder, Kaden percebeu. Cada feiticeiro tinha uma, uma fonte da qual obtinha o poder. As histórias contavam sobre homens que conseguiam poder da pedra, 22

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de mulheres que distorciam o aperto acentuado do terror para seus próprios fins. Os aros de metal pareciam bastante inofensivos, mas Kaden pegou­‑se olhando para eles como se fossem aranhas venenosas de pedra. Custou­‑lhe algum esforço até eliminar a emoção e olhar para o homem como ele era, e não como as histórias o apresentavam. Na verdade, de todos os membros da facção de Valyn, Talal parecia o mais estável, o mais pensativo. Suas habilidades eram enervantes, mas Valyn parecia confiar nele, e Kaden não contava com tantos aliados assim para se dar ao luxo de ter preconceito. – Poderíamos passar a semana toda à caça pelas montanhas – Talal prosseguiu, apontando para os cumes serrilhados. – Talvez alguns monges tenham escapado do cerco; eles conhecem o território, já era noite… – Ele olhou para Kaden e parou de falar, algo como compaixão em seus olhos. – Todo o quadrante sudeste está vazio – disse Annick. Se Talal se preocupava com os sentimentos de Kaden, a atiradora parecia indiferente. Ela falava em frases curtas, de forma quase entediada, enquanto os olhos azuis gelados esquadrinha‑ vam as rochas ao redor deles, nunca descansando. – Nenhuma pista. Nenhum san‑ gue. Os atacantes eram bons. Para aedolianos. Era uma pequena piada. Os aedolianos representavam alguns dos melhores soldados de Annur, e eram escolhidos a dedo e exaustivamente treinados para pro‑ teger a família real e outros visitantes importantes. Kaden não tinha ideia de como esse grupo em particular fora incitado à traição, mas o óbvio desdém de Annick era amostra suficiente de suas próprias habilidades. – O que eles estão fazendo lá embaixo? – perguntou Valyn. Talal deu de ombros. – Comendo. Dormindo. Limpando armas. Eles não sabem nada sobre Ut e Adiv ainda. Não sabem que chegamos, que matamos os soldados que perseguiam você. – Quanto tempo eles vão ficar? – quis saber Kaden. O massacre parecia absolu‑ to, mas uma parte dele queria descer de qualquer maneira, andar entre os escom‑ bros, olhar para os rostos dos mortos. – Não dá para dizer – respondeu Talal. – Eles não têm nenhuma maneira de saber que o grupo menor, o que foi atrás de você, está morto. – Eles devem ter um protocolo – disse Annick. – Dois, três dias, antes de in‑ vestigar ou recuar. Laith revirou os olhos. – Talvez seja uma descoberta chocante para você, Annick, o fato de que al‑ gumas pessoas não são escravas de protocolo. Eles podem simplesmente não ter um plano. 23

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– É por isso que nós os mataríamos – respondeu a atiradora, a voz gélida – se lutássemos contra eles. Valyn balançou a cabeça. – Não vai ter luta. Deve haver setenta, oitenta homens lá embaixo… Um praguejar baixo, mas feroz, atrás deles interrompeu as palavras de Valyn. – O bastardo maldito, desgraçado – Gwenna cuspiu, rolando com facilidade sobre uma coluna de pedra e agachando­‑se em uma posição de prontidão. – Esse filho da puta, lambedor de merda. Valyn virou­‑se para ela. – Abaixe a voz. A mulher de cabelos vermelhos ignorou a ordem com um aceno de mãos. – Eles estão a quatrocentos metros de nós, Valyn, e o vento sopra na direção oposta. Eu poderia cantar o maldito hino kettral de ataque a plenos pulmões e eles não iriam notar. Essa rebeldia também surpreendeu Kaden. Os soldados do Palácio do Alvo‑ recer dos quais ele se lembrava eram constituídos de saudações rígidas e obedi‑ ência inquestionável. Embora parecesse que Valyn dava a palavra final sobre as decisões a respeito de sua facção, nenhum dos outros se esforçava para obedecer a ele. Gwenna, em particular, parecia determinada a chegar perto do limite da insubordinação. Kaden via a irritação no rosto do irmão, a tensão em torno dos olhos dele, no maxilar. – De qual desgraçado estamos falando agora? – perguntou Laith. – Há muitos deles neste momento. – Aquele imbecil emproado Adiv – respondeu Gwenna, sacudindo a cabeça em direção ao noroeste. – Aquele com a venda dos olhos e a pose. – O Conselheiro Mizran – Kaden interrompeu calmamente. Era um dos mais altos cargos do Império, e não uma posição militar. Kaden se surpreendera, mesmo antes da traição, quando o homem chegou com o contingente de aedolianos. Agora era apenas mais uma evidência, se é que ele precisava de mais, de que a conspiração adentrara os cantos mais confiáveis do ​​ Palácio do Alvorecer. – Qualquer que seja seu trabalho – respondeu Gwenna –, ele está ali, a pé, ca‑ minhando miseravelmente pelas montanhas. Não pode ter estado à frente de nosso homem mais do que algumas centenas de passos. Valyn respirou por entre os dentes. – Bem, nós soubemos que Tarik Adiv estava vivo quando não encontramos o corpo. Agora sabemos onde ele está. Algum sinal de Balendin? 24

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Gwenna balançou a cabeça. – Pelo menos, isso já é alguma coisa – Valyn respondeu. – É? – retrucou Laith. – Sem dúvida, Balendin é o mais perigoso dos dois. – Por que você diz isso? – questionou Kaden. Laith olhou fixamente para ele. – Ele é kettral – o homem respondeu, finalmente, como se isso explicasse tudo. – Ele treinou conosco. E ele é um feiticeiro. – Adiv também é um feiticeiro – Talal retrucou. – Foi assim que eles rastrearam Kaden nas montanhas, assim que o localizaram. – Eu pensei que eles tinham usado aquelas malditas criaturas parecidas com aranhas para rastrear Kaden – disse Laith. Talal concordou. – Mas alguém precisava controlá­‑las, lidar com elas. – Não importa agora – falou Valyn. – Neste momento, Balendin está desapare‑ cido e Adiv se encontra aqui. Vamos trabalhar com o que temos. – Ele está na minha mira – disse Annick. Enquanto conversavam, a atiradora se movera silenciosamente até um ponto oculto entre duas pedras, puxando a corda do arco até a metade. Kaden arriscou um olhar sobre o cume. A princípio, não viu nada, então notou uma figura mancando por um escoadouro superficial a trezentos passos de distância. Ele não conseguia distinguir o rosto do conselheiro a essa distância, mas o casaco vermelho era inconfundível, o dourado nos punhos e no colarinho muito descoloridos, mas brilhando à luz do meio­‑dia. – Ele foi rápido – observou Talal. – Ele teve uma noite, um dia, outra noite e uma manhã – falou Gwenna com desdém. – Pouco mais de cem quilômetros de onde nós o perdemos. – Como eu disse – Talal respondeu. – Andou rápido. – Você acha que ele trapaceou? – Laith perguntou. – Acho que ele é um feiticeiro – opinou Talal. – Então… sim – o mestre de voo concluiu, sorrindo. – Lembre­‑me de não “trapacear” – respondeu Talal, olhando fixamente para o mestre de voo – na próxima vez que você estiver em apuros. – Atiro nele? – perguntou Annick. A corda encontrava­‑se próxima de sua ore‑ lha agora, e, embora a tensão provavelmente fosse imensa, ela permaneceu imóvel como uma pedra. 25

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