Espiritualidade, crenças e cura Lay down your dreams, you holy Son of God, and rising up as God created you (The Song of Prayer)
Leitura da queda como metáfora Empreendemos uma interpretação da narrativa de Adão e Eva como metáfora. Após uma leitura cuidadosa, deparei-me com a grande riqueza do mito em expressar a condição humana. Como afirma a Bíblia, a origem da humanidade está descrita por este relato, que tem servido de base para toda a cosmogonia do homem ocidental. Obviamente, estas interpretações variam ao longo da história e de acordo com quem lê. Não estamos isentos disto. Ainda que a narrativa de Adão e Eva seja própria da cultura judaico-cristã, ela tem a capacidade de expressar com profundidade a alma humana. A estória de Adão e Eva é sobre o exílio. Esta é a miséria humana: crer que foi exilado do Paraíso. É assim que o homem se sente, cada vez que experimenta o sofrimento. Esta condição advém da crença de que estamos separados de Deus. A leitura interpretativa pode ser aplicada à psiquê da hu-
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manidade, mesmo considerando que existem outras maneiras de relatar a verdade que subjaz à história do livro de Gênesis. Segundo a Bíblia, Deus criou o Filho à Sua imagem e semelhança, abençoou-o e deu-lhe domínio sobre tudo. Após realizar sua obra, Ele descansou. O homem, na condição em que vive, não crê efetivamente que a criação tenha se dado desta maneira. Como não há conciliação entre a perfeição e a enfermidade, entre a plenitude e escassez, infere-se, de antemão, que não acreditamos, realmente, nesta afirmação bíblica. Se Deus nos criou à Sua imagem e semelhança, ou seja, de mesma natureza, significa que somos como Ele. Ora, é evidente que a criação não poderia ter sido diferente. Como Deus poderia criar algo diferente Dele mesmo? Só poderia fazê-lo a partir Dele, de Sua própria substância, de Seu próprio Ser. Sendo como Deus, não poderíamos jamais adoecer ou sofrer porque na condição em que fomos criados, fomos criados perfeitos. Ele completou Sua obra e viu que o que havia feito era bom. No jardim do Éden, havia duas árvores: a da vida e a do conhecimento do bem e do mal. O fruto da árvore da vida é vida eterna e o fruto da árvore do bem e do mal é a morte. O Senhor Deus ordenou ao homem: coma livremente de qualquer árvore do jardim, mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você morrerá. Comer o fruto. Comer é assimilar, ingerir, tornar seu; fruto é resultado, consequência. Daí que a recomendação divina é para que o homem, criado à semelhança divina, não assimile as consequências do bem e do mal; não se alimente da noção de dois poderes. O resultado de alimentar-se do bem e do mal é viver de acordo com a noção de polaridade, condição em que se perde o poder que não conhece oposição, em que se perde o domínio dado por Deus a Seu Filho, no ato da criação. 16
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A mulher (ishah) é formada a partir de uma das costelas do homem (ish), ou seja, ela é parte dele. Eva é a denominação dada à mulher somente depois de ela ter comido o fruto proibido. Quando a mulher comeu o fruto, houve uma mudança radical na percepção. Podemos deduzir que Eva seria uma representação da mente que opera no erro. Ao comer do fruto, houve uma distorção da mente. Eva seria a mente insana, pecadora, ou seja, a mente que opera fora do alvo, fora do centro. Não mais opera de acordo com a Verdade do Ser. Eva representa o pecado da mesma maneira que Maria representa a santidade. Assim como Adão representa a queda e Jesus, a ascensão. Adão mostra a saída do Paraíso e Jesus, o retorno ao Reino. Adão sucumbiu à tentação e Jesus, não. A tentação é a mesma. Ela consiste em tentar o Filho de Deus a acreditar ser verdadeiro aquilo que não é. Ao pensar e agir de modo dissonante com a voz divina, houve uma mudança de perspectiva de ponta-cabeça: o mundo material passou a ser realidade e a realidade passou a ser vista como ilusória. A queda é esta mudança da mentalidade correta para a mentalidade errada. É esta mudança do estado de consciência espiritual para o material. Adão é um nome usado no hebraico antigo que significa ser humano ou humanidade. Em sentido estrito, é provável que tenha se originado da palavra hebraica Adam, que significa vermelho, por causa da cor do barro ou de adamah, que significa terra. Adão é o símbolo de toda a humanidade. Ele representa a situação da condição terrena. Eva, de acordo com Gênesis (3:20), será mãe de todos os viventes. Ou seja, Eva, a mente distorcida, é a progenitora da condição humana. Partimos do pressuposto de que a verdade da criação de Deus não mudou, pois a criação de Deus é como Ele mesmo. Deus criou um ser perfeito. O que mudou foi a percepção deste Ser de 17
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si mesmo, seu autoconceito. O ato de comer o fruto representa uma comutação na percepção. O mundo divino é contrário ao mundo tal como é percebido por nós. Assim, no momento em que homem e mulher comeram do fruto da árvore, toda a configuração de mundo se modificou. A mente ficou dividida e se perdeu a consciência do Paraíso. Houve uma radical mudança perceptiva da filiação divina para a condição adâmica. A vida na Terra passa a ser uma condição de sofrimento: à mulher, Ele declarou: multiplicarei grandemente seu sofrimento na gravidez, com sofrimento você dará à luz filhos. Ao homem, declarou: visto que você deu ouvidos à sua mulher e comeu do fruto da árvore... Maldita é a terra por sua causa. Com sofrimento, você se alimentará dela todos os dias de sua vida. Considerando que o homem deu ouvidos ao ego, à mente distorcida e passou a acreditar no mundo dos opostos, passou a viver em sofrimento. No estado de consciência material, regidos pelo julgamento, o sofrimento é uma constante em nossas vidas. Somente a partir daquele momento, é que o homem passa a saber o que é o sofrimento. Esta condição é desconhecida anteriormente, quando Deus criou o homem à Sua imagem e o abençoou. O Filho Santo de Deus, sendo como Ele mesmo e vivendo sob a Graça e proteção divinas, desconhece o sofrimento. Não conseguimos vislumbrar isto porque nós nos identificamos com Adão. Então, Adão acreditou na tentação e viveu de acordo com ela: viu a si mesmo como um ser afastado de Deus e passou a viver de acordo com os ditames do bem e do mal. Nós somos este Adão. Jesus não se deixou enganar pela tentação e viveu seu Ser Crístico. A tentação é a crença nos dois poderes, na materialidade. Com Adão, a tentação é representada pela serpente; com Jesus, a tentação é representada por satã. 18
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A tentação, qualquer que seja sua forma, é a grande sedutora da humanidade. Esta grande sedutora – que é a crença de que o Filho de Deus não é o Filho de Deus – gera a culpa, a acusação. A culpa é o adversário que reina sobre a terra, que nos rodeia como um leão a rugir, procurando a quem devorar. Em grego, diabolos; em hebraico, Satã: ambos significam adversário, acusador, difamador. Estes conceitos fazem parte de nosso mundo perceptivo. Não conseguimos ver o outro em unidade conosco. Muitas vezes percebemos, mesmo as pessoas de quem gostamos, como adversárias e acusadoras. Esta percepção permeia nosso mundo e nisto consiste a tentação. A mentalidade errada. É justamente por sentir grande atração pela culpa que o Filho de Deus perde a noção de unidade e fica dividido em acusações e defesas. Necessariamente, aquele a quem acusamos é percebido como outro, diferente e separado de nós. Satã desafia a identidade de Jesus como Filho Santo de Deus, mas Jesus sabia de sua identidade e manteve-se fiel à Verdade. Nós, ao contrário, nos identificamos com o ego porque, mergulhados no sono adâmico, continuamente somos ludibriados pela tentação. Ela exerce um fascínio sobre nós. Nossa história é uma repetição do mito ancestral: cada vez que percebemos o Filho do Deus como um ser adâmico, cada vez que somos seduzidos por pensamentos de confronto, vendo o outro como adversário, é uma mordida que damos no fruto proibido. Cada vez que pensamentos de acusação assomam à nossa mente, somos sucumbidos pela tentação. E, assim, a serpente torna-se o príncipe deste mundo que configuramos. Quando aconteceu a queda, o Filho de Deus passou a perceber o mundo a partir dos opostos, perdendo a noção de completude e integridade. É daí que surge o julgamento, a condenação, 19
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o bem e o mal, o mau e o bom, a saúde e a doença. A mente passa a perceber a dualidade. Operamos a partir de pares de opostos, tal como havia sido dito na advertência sobre a árvore do bem e do mal. A noção de polaridade é constituinte do nosso viver. Disse a serpente à mulher: Certamente não morrerão! Deus sabe que, no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês, como Deus, serão conhecedores do bem e do mal (Gn 3:2-5). Como dito, a serpente é um nome metafórico para tentação, para o desejo de ser separado. É o desejo de usurpar o lugar de Deus e o Seu poder: o que os motivou a comer do fruto foi a intenção de serem como Deus ou como deuses. O ato de comer daquele fruto, como infração das leis de Deus, significou não partilhar da mesma Vontade Divina, ter um desejo diferente, dando origem ao ego. O desejo de tomar o lugar do Criador dá ao homem a sensação de que é um ser autogerado, com vontade própria e diferente da vontade de Deus. O ego é arrogante. Quando investido dos valores mundanos, como status, riqueza, fama, se acha poderoso. Na verdade é cheio de medos e muito frágil: qualquer acidente, incidente, ou mesmo um pequeno pensamento negativo é capaz de torná-lo um nada. Como dito, o ser criado por Deus, que até então escutava somente a voz do Criador, passa a escutar outra voz, que insufla desejos dissonantes com a vontade divina. A partir deste instante, este ser passa a sofrer as consequências de não viver segundo os preceitos de Deus, a conhecer o mundo forjado nos opostos. Assim, fica suscetível à morte, como oposição à vida, e perde a consciência da Vida Eterna, pois já não podia comer do fruto da árvore da Vida, que não conhece contradição. Não é demais repetir que o que aconteceu quando se menciona que se comeu o fruto da árvore foi uma comutação na mente. A mudança de percepção do poder único para um mundo 20
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de dois poderes, da dualidade. A volta ao Paraíso é um retorno ao estado anterior de conhecimento deste único poder, do bem onipresente.Viver no Paraíso é viver num estado no qual não há dor e sofrimento. A ideia que temos do Paraíso é de que nele só exista alegria e bem-aventurança. O ser que vive pautado nos dois poderes é o ser adâmico, a própria condição humana. É necessário superar o humano e retornar ao divino para poder perceber o Paraíso, que é a condição da onisciência, onipresença, onipotência. O Paraíso é a condição mental antes da queda, antes da crença nos dois poderes. No Paraíso não há oposição. A mente distorcida é aquela que infringe o mandamento de Deus. Ao infringi-lo, homem e mulher sentem-se culpados. Desde este momento, a humanidade é atormentada pela culpa. Em verdade, a humanidade surge com a culpa. Recordemos que só se faz referência ao homem como Adão, após ele experimentar o fruto proibido e sentir medo. Também damo-nos conta de que a mulher, ao comer do fruto, logo o ofereceu ao homem. Ela não pecou sozinha. O desejo de viver à parte foi um desejo conjunto, pois o fruto foi dado ao seu companheiro, que o comeu também. Logo, esta mente distorcida é uma mente compartilhada. Vivemos um sistema de percepção e crenças que é coletivo. Ao não viver regido pela lei divina, o homem passa a ter que lutar pela sua sobrevivência e o sofrimento passa a ser parte de sua existência. Quando há referência às dores do parto, significa que o sofrimento passaria a fazer parte da condição humana. No Paraíso, o homem vive sob a Graça. Ao sentir-se expulso, passa a viver como se estivesse desprovido dela. A partir da perda da Graça, o homem fica sujeito a toda ordem de eventos sobre os quais não tem domínio, porque não conta mais com a proteção divina. Mas, posto que Deus e Seu 21
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reino são infinitos, tudo isto não passa de um sonho, ou melhor, de um pesadelo. Até comerem o fruto da árvore que conduz à morte, homem e mulher viviam em inocência, pois em sua nudez não sentiam vergonha. Ao se insurgirem contra Deus, tiveram medo e quiseram esconder-se de Sua presença. Sentiram-se culpados e, acreditando terem sido expulsos do Paraíso, esqueceram a identidade de Filhos do Pai Todo-Poderoso, a quem Deus deu todo domínio. A partir de então, passaram a viver em dor e sofrimento, o que inclui a enfermidade. O homem, assim, não vive mais em sintonia com os preceitos divinos, estando sem Sua proteção. É tão forte o senso de separação sentido pelo ego que causa desconforto a afirmação: ‘que seja feita sua vontade’. Esta afirmação chega ao ego com conotação de oposição, como se nossa vontade fosse oposta à do Criador. Isso é assim porque queremos ser independentes e tomar o Seu poder na criação. Na verdade, considerando que a vontade de Deus é nossa felicidade, e à nossa vontade é nossa felicidade, não pode haver oposição: nossa vontade e a Dele são uma só. Ao infringir a lei de Deus, Adão atribuiu a culpa à Eva. É após comer o fruto que surge o sentimento de culpa, demonstrando que a mente distorcida – ou o ego – tem como fundamento a culpa. Ao perguntar ao homem se tinha comido o fruto, disse ele: Foi a mulher. E a mulher, ao ser indagada, respondeu: A serpente me enganou. A responsabilidade pelo ato não é assumida, mas lançada no outro, como culpa. Há a tentativa de preservar a inocência, ao custo da culpabilidade alheia. É um retrato do comportamento do ser humano que, via de regra, não assume a responsabilidade por seus atos, mas a lança em outrem. Não assumir a própria culpa, lançando-a nos outros, é uma maneira de livrar-se de nossas responsabilidades, quando incorre22
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mos em erro. Dito de outro modo: a culpa do outro é vista como a própria salvação. Achamos que nos salvamos do peso do erro quando jogamos a culpa no outro, projetando-a para longe de nosso próprio self. Comer o fruto carrega consigo as consequências inerentes ao ato. Entretanto, Adão acreditou que foi Deus quem o expulsou do Paraíso. Esta crença dá margem a pensar que Deus teria tido uma atitude de castigo e vingança. Este tipo de interpretação é característico do ego. Repetindo: normalmente, o ego não assume a responsabilidade por seus atos. Quanto à vingança, ela jamais poderia ser um sentimento divino, mas é um forte sentimento egoico. Assim, Adão atribui a Deus à sua saída do Paraíso, ou seja, não assume que seu exílio foi consequência de um ato por ele mesmo perpetrado. Da mesma maneira que atribuiu a Eva o peso da culpa por ter ele comido o fruto. Adão também atribuiu sua saída do Paraíso a um ato de Deus. A menção de que Deus o expulsou do Paraíso já é um pensamento adâmico. Neste momento, ele já não vive em unidade com Deus. É um ser alheio Àquele que o expulsa. Ele é uma vítima. A culpa é de alguém que não é ele mesmo. Esta é a dinâmica em que operamos quase que invariavelmente: nos sentimos vítimas de um mundo exterior a nós. E o sofrimento que passamos é uma demonstração, para nós e para os outros, do mal que o mundo exterior nos causa. O sofrimento não é assumido como resultado da própria ação, um agir dissonante com as leis divinas, realizada por Adão, mas ele atribui a Deus a culpa por seu sofrimento.Tal como Adão, somos incapazes de estabelecer a conexão entre nossos pensamentos e atos e suas consequências intrínsecas. Costumamos reputar a responsabilidade de nosso sofrer a algo fora de nós. Portanto, a passagem bíblica na qual é Deus que condena Adão ao sofri23
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mento representa o mundo tal como é interpretado pela mente distorcida. O que deve ser considerado é a relação imanente entre causa-efeito. Por acreditar ter saído do Paraíso, Adão vê a si mesmo como uma pessoa que foi atacada injustamente. Afinal, a culpa não foi dele, foi de Eva. Ele é inocente. Eva é a culpada. Repetindo: frequentemente, colocamos a culpa fora de nós, sentimo-nos vítimas de pessoas e circunstâncias alheias, além de atacados e injustiçados. O homem sente-se culpado por ter desobedecido a Deus, mas não assume sua culpa. Da culpa, advém a crença na condenação, no pecado e no julgamento divino como punição. Crer na vingança divina é uma projeção da própria mente humana distorcida, pois sendo só amor, Deus não pode ser vingativo. A expulsão do Paraíso é uma crença insana, mas estaremos todos imersos nela, até que despertemos. Entretanto, como poderia Deus, sendo amor e infinito, expulsar aquele que Ele criou perfeito e o criou a partir de Si mesmo? E, para onde o homem poderia ir, além do infinito? Por acreditar ter saído do Paraíso, também se torna explícito o sentimento de que o filho não vive mais em unidade com o Pai, e de que está nu. Dar-se conta da nudez é o sentimento de vulnerabilidade. Sentindo-se culpado, sem a proteção divina, o homem sente-se fragilizado. É precisamente essa crença na separação de Deus que o torna doente. Um ser criado à semelhança de Deus, partilhando todo o poder e com domínio sobre o Céu e a Terra, jamais poderia sentir-se fraco e adoecer. O sentimento de culpa é a própria saída do Paraíso, e sair do Paraíso é estar no Inferno. Ao viver a culpa, como sua, ou lançando-a no outro, o homem fica fora do Reino, perde sua paz e fica suscetível à enfermidade. Tendo aceitado a culpa em sua mente, 24
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o Filho de Deus sente-se fora do Éden, apartado de seu Criador. Ele experimenta um profundo sentimento de abandono. É nessa consciência que a humanidade vive uma condição de desamparo, despojada de sua filiação divina e fora do Reino, pois acredita estar expulsa do Paraíso. É isso toda nossa miséria, que é relatada também no Novo Testamento, por meio da Parábola do Filho Pródigo. Perdemos a percepção da filiação e herança divina. Quando o homem vive, move-se e respira na culpa, ele fixa residência no Inferno, se afasta do Paraíso. É somente quando consegue se livrar da acusação, que consegue voltar à condição de Filho de Deus. Livrar-se da culpa é viver a inocência. Somente um ser inocente pode enxergar inocência no outro. Livrar-se da culpa, e livrar o outro da culpa, é viver uma condição em que se percebe a inocência do outro, e não suas culpas. Ver um mundo puro, inocente, é a condição do Paraíso. Isto não é fácil para nós porque implica, muitas vezes, em negar o que nos mostra a percepção. Como fazer isto? Temos que abandonar o que nos mostram os olhos adâmicos e ver com olhos espirituais. Enquanto ego não conseguimos, mas podemos adquirir a capacidade de enxergar com o amor, e não com o medo e a culpa. Neste intuito, ajuda-nos conhecer as leis da percepção e saber que percebemos o que valorizamos, e na condição carnal valorizamos a visão da culpabilidade alheia. Não existe uma maneira de perceber que esteja desconectada de nossos interesses e emoções. Adão e Eva passaram a se cobrir quando se sentiram culpados. Passaram a viver com o sentido de ameaça e, portanto, tinham que se proteger. Daí, surgem as defesas e os ataques, como forma de proteção.Todo o mundo adâmico foi erigido a partir da culpa. Ao ter desobedecido aos preceitos divinos, eles pecaram, ou seja, passaram a viver em dissonância com a Verdade. Deixam a condi25
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ção da Graça, e passam a sofrer.Vivem em desgraça, ou seja, sem a Graça de Deus, mas por meio do esforço humano. Deus fez o homem cair em profundo sono (Gn 2:21). Em certo sentido, podemos afirmar que este estado de consciência não poderia existir sem a anuência divina. E é no estado onírico que toda a estória adâmica acontece. Se o homem caiu num grande sono e não mais despertou, isto quer dizer que ele está vivendo num estado onírico, que não é real, mas em seu sonho pensa que está acordado. No sono, ele não se lembra da filiação divina. Não se lembra de sua verdadeira identidade. Está iludido no mundo dos sonhos, da oposição, do efêmero, da doença e da morte. Quando sonhamos esquecemos de nós mesmos. Mesmo no estado que consideramos de vigília, a maior parte do tempo, não nos lembramos de nós. O pensamento é o grande pivô disto. Quando estamos pensando, ficamos no passado, que não existe, ou ficamos no futuro, que é uma mera possibilidade. Mas não ficamos no presente, que é real. O pensamento incessante nos rouba o estado de alerta. Exercemos muitas atividades em estado de sonambulismo, mas não sabemos que estamos sonhando. Somos o que sonha nosso próprio sonho. Assumir a responsabilidade pelos sonhos que estamos sonhando é um resgate do poder interior. Mas, se outros são responsáveis pelo que nos acontece, ficamos à mercê dos ditames alheios. Se formos nós os sonhadores de nosso sonho, poderemos acordar. Ao sermos nós que fazemos, somos nós que podemos desfazer. Creio que nossa responsabilidade em acordar consiste numa disposição em ser acordado, pois o sono é tão profundo que precisamos de ajuda para este despertar de que nos falam as escrituras sagradas. O despertar implica livrar-se da culpa, porque é exatamente ela a causadora do sofrimento e da dor. Só se restaura a paz, vi26
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vendo-se a inocência. O retorno ao Paraíso é um retorno à inocência. Para isto, é necessário livrar-se da mente errada, porque é a mente que condena e julga. Não se trata da mente racional, que nos ajuda a avaliar, fazer cálculos e estar no mundo do tempo/ espaço, mas da mente acusadora. A mente que julga e condena. A condição adâmica é aquela em que o homem opera com uma mente distorcida. É necessário livrar-se desta mente condenatória, que se baseia no bem e no mal, nos polos opostos. Ao perceber de modo incorreto, significa que a mente está doente, operamos com uma mente adoecida. Adão, ao introjetar a noção dos opostos, quando comeu o fruto do bem e do mal, esqueceu da condição de vida eterna e passou a conceber a morte como oposição à vida. A vida é conhecida por Cristo, que age em consonância com a vontade divina onde não há doença, pecado e morte. Adão morreu para o divino e representa o nascimento da humanidade. É necessário renascer no espírito e ressuscitar como Filho de Deus para se retornar ao Paraíso. Adão perdeu a visão santa, espiritual. a visão do único poder e ganhou a visão do julgamento, do pecado e dos dois poderes. A segunda vinda de Cristo, segundo Um Curso em Milagres: It is a correction of mistakes and the return of sanity, é a correção dos erros e o retorno à sanidade. (1 p. 1271).Viver o Ser Crístico é o despertar de Adão, é o retorno ao Ser, tal como foi criado por Deus. Vivemos a experiência de estar fora do Reino. É nesta condição que um irmão mata outro. Caim mata Abel, mesmo sendo Abel uma pessoa virtuosa. Este mundo que configuramos: de inveja, assassinato, raiva e pecado, não é o Paraíso. O raciocínio lógico nos indica que o Paraíso será reencontrado quando efetuarmos, novamente, a mudança da mentalidade errada para a mentalidade correta; da fragmentação e sentido de escassez para 27
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a percepção de unidade e plenitude, porque o Paraíso não é um lugar, mas um estado de espírito. • •• Ainda de acordo com Um Curso em Milagres, a vida humana é organizada a partir de um sistema de pensamento, que pode ser um sistema insano de crenças baseado em ilusões. Neste caso, por estarmos dentro dele, não nos damos conta disto. Ou, pode ser um sistema de pensamento fundamentado na Verdade. Cada sistema de pensamento é fundado em emoções: há o que tem o medo e a culpa como fundamento, e há o que se assenta no amor, que corrige a visão. Assim, podemos afirmar que há dois sistemas de pensamento. Aquele que pertence ao homem adâmico, forjado na crença em dois poderes, no qual em tudo há o seu oposto e está baseado no pecado original – que significa a aceitação da culpa, da condenação e justifica o ataque. Este sistema de pensamento tem o medo e a culpa como pedras angulares. A concepção de que somos investidos de culpa ou de que o outro é culpado, configura um mundo de medo. Se você é culpado, fica suscetível ao ataque e condenação do outro. Se você atribui culpa a alguém, acredita que pode atacar legitimamente e, tendo atacado, cria a defesa contra o revide. Surge um mundo permeado pelo medo, em função da aceitação da culpa. Além disso, considerando o mundo alimentado pelo conhecimento do bem e do mal, ou seja, o mundo de opostos, vivemos na insegurança, pois o mau e o bom podem bater em nossa porta. Se em tudo há oposto, experimentamos uma vida de suscetibilidade a acontecimentos externos, pois se perdeu o único poder, o domínio sobre o Céu e a Terra. Tornamo-nos vulneráveis uma vez que não contamos mais com a proteção divina. 28
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E há o sistema de pensamento que está em consonância com a vontade divina, no qual o que é percebido é a unidade, o Todo que tudo abarca, não havendo oposição. Segundo as Escrituras, quando vivemos de acordo com este sistema de pensamento, escutamos somente a voz de Deus, do Todo-Poderoso, o único poder. Não é um poder que age sobre, mas o único poder. Neste sistema de pensamento não há medo, pois se desconhece o pecado que traz consigo o desejo de punição, de vingança, resultante da visão de culpabilidade do outro. Os dois sistemas de pensamento são antagônicos e têm consequências bastante diferentes. Um deles configura um mundo que só enxerga a impecabilidade e o outro, um mundo que enxerga o pecado em todas as pessoas. O mundo de Adão é um mundo baseado na culpa e as pessoas imersas nesse sistema de pensamento, ao considerarem-se culpadas, veem os outros como culpados. A mente só vê por meio de si mesma. O sistema de pensamento forjado na crença na separação de Deus é algo fortemente radicado na mente humana e, como já foi dito, estando imersos nela, não podemos avaliar a dimensão das consequências desta crença em nossas vidas. A crença na separação é a que dá origem a todas as outras que compreendem um sentido de vulnerabilidade e imperfeição do homem. Crenças e cura Todos nós nos conduzimos a partir da emoção, do amor ou do medo. Cada emoção erige um sistema de pensamento a ela correspondente. Este sistema de pensamento, não raro, é pautado em crenças, ideias que tomamos por verdadeiras e que fundamentam nosso viver. A humanidade é uma construção humana. A partir de crenças que erigimos e partilhamos com os outros, 29
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construímos um mundo de significados. Há crenças que pertencem a toda a humanidade, visto que são próprias da condição humana, apenas são vestidas com roupagens culturais diferentes. Há crenças que são específicas de uma cultura, pois só existem em determinados locais. E há crenças individuais, forjadas a partir do processo de socialização. Nossa percepção está ligada ao sistema de crenças que adotamos como representantes do que é real. Ela é construída a partir de desejos e do que valorizamos. Assim, pode-se dizer que só percebemos aquilo que queremos ou aquilo a que damos valor. E precisamos acreditar para poder perceber. O que não acreditamos, o que não faz parte de nossas crenças, torna-se imperceptível para nós. Vemos apenas aquilo em que acreditamos, da mesma forma que acreditamos naquilo que vemos. Depois de cristalizadas, as crenças passam a definir as próprias experiências de vida que se seguem. Tomamos como certas algumas premissas ocultas, que guiam nosso comportamento e percepção. E, estando completamente mergulhados em um sistema de crenças, não nos damos conta do condicionamento que nos faz perceber ou deixar de perceber potenciais em nós. Portanto, a percepção depende daquilo em que acreditamos. De acordo com Um Curso em Milagres¹: sejam quais forem essas crenças, elas são premissas que vão determinar o que aceitas. É levando isso em conta que alguns profissionais que lidam com a terapêutica utilizam-se do sistema de crenças como catalisador para a obtenção do restabelecimento do bem-estar. John Fitzpatrick, mestre em psicologia clínica, em sua pesquisa sobre o papel da fé no retorno ao estado de saúde, reconhece o poder das crenças. Assim, ele afirma que para algumas pessoas essa crença será em um lugar ou em um objeto, como a Gruta de Lourdes, a Água de Lourdes ou as relíquias dos santos. Para outros, 30
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será a crença nos poderes de uma pessoa em especial, como um certo médico, padre ou curandeiro...² Considerando a importância do sistema de crenças, admitimos a preponderância da mente sobre a matéria, no sentido de que o sistema de crenças incide sobre o estado físico do homem. As crenças, que direcionam o que percebemos e estão fundadas em emoções, definem o estado de bem-estar ou não do organismo humano. A medicina moderna tem precisamente outra concepção: a de que o corpo é independente e define por si mesmo seu estado. Esta premissa é refutada por muitos dos pesquisadores atuais, no campo da saúde. Dr. Herbert Benson, médico e professor da Faculdade de Medicina de Harvard, afirma claramente que as crenças se manifestam no corpo e que as percepções e necessidades físicas estão muito entrelaçadas. Sendo impossível separar as mudanças objetivas das subjetivas. Para este pesquisador, até o limiar da dor tem um conteúdo aprendido. Discorrendo sobre diferenças culturais, o Dr. Benson cita um estudo, após o qual chega à conclusão de que a origem étnica afeta a percepção e consequentemente a intensidade da dor. Para ele, a cultura e origem étnica que temos inspiram a maioria dos princípios de nossas vidas. É fascinante constatarmos, portanto, que o modo como somos criados pode determinar a dor que sentimos³. E também que, desde a existência do homem na Terra, acalentamos crenças.Vemos o mundo da forma peculiar que nossa socialização, experiência de vida e formação cultural e religiosa nos permitem ver 4. Nosso sistema de crenças passa a determinar o que percebemos e sentimos. Estando as crenças no nível da mente, consequentemente, apenas ela pode adoecer. O sintoma é do corpo e a enfermidade está no âmbito da consciência. A mente e seu sistema de crenças traz consequências na forma como são sentidas as experiências e têm desdobramentos no 31
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plano físico. As considerações a respeito das crenças enfatizam que a mente se sobrepõe ao corpo e a experiência é condicionada por aquilo em que se acredita. Em nossa mente, podemos perceber ilusões e viver de acordo com elas, como se fossem realidade, pois é a partir do que aceitamos que determinamos o que é real. Um exemplo dos efeitos da fé pode ser verificado no ato de comer manga com leite, bem conhecido na Região Nordeste do Brasil. As gerações passadas acreditavam que, ao comer esta mistura, as pessoas ficariam doentes. Isso, de fato, acontecia. Apesar de não ter nenhum fundamento científico, os efeitos de tal ordem de pensamento agiam efetiva e fortemente sobre o estado de saúde das pessoas. O que vemos e o modo como vemos são derivados de nossas crenças. O corpo atende ao sistema de crenças aprendido e, apesar disto, vivemos acreditando que o corpo é algo separado da mente e que pode se autogerir. Também no nosso paradigma cultural, aceitamos que são vermes, bactérias e vírus que trazem doenças, e vivemos de acordo com isso de forma que parece incontestável. Para pessoas que se encontram num determinado estado de consciência isso se verifica, mas não é o caso daqueles que ascenderam a este estado. Como vivemos num universo de significados, as crenças são parte de nós, não como um adendo, mas como constituintes de nosso ser. A realidade não pode estar sujeita às crenças humanas, que, inclusive, mudam de tempo e de lugar. Mas o que aceitamos na mente tem realidade para nós. Ao mudarmos nossa mente, muda nosso mundo. Procuramos elucidar um sistema de crenças profundamente arraigado na mente humana.Tão profundamente arraigado que o homem não se da conta do mergulho e das consequências nefastas disto. Afirma Um Curso em Milagres: não podes avaliar um sistema 32
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insano de crenças estando dentro dele5. Mergulhados na crença adâmica, perdemos o conhecimento de que somos Filhos de Deus, a quem Ele deu todo o Poder. Adoecemos justamente porque não conhecemos o nosso Ser. O senso de separação é a condição para que a enfermidade ocorra. O ego vive a partir do sistema de crenças forjado na culpa, na separação, no pecado, na doença e na morte. Houve um esquecimento da nossa identidade. Eis o significado da queda: crença na separação de Deus, crença de não mais usufruirmos de sua proteção. E, por vivermos como se estivéssemos afastados de Deus, acreditamos que podemos adoecer. Segundo Dethlefsen, o fato de ficarmos doentes está profundamente arraigado às origens metafísicas de nossa condição humana. O homem vive a condição da queda. Por isso, doença e limitação são partes de nossa experiência. Assentimos com Joel Goldsmith, curador espiritual, para quem sem dúvida, existe uma causa mental para um efeito físico, mas ele não é pessoal com relação ao indivíduo: é um mesmerismo universal na consciência humana, uma crença universal numa individualidade separada de Deus, cujo efeito é hipnótico6. Em Psychotherapy: purpose, process and practice, lemos: all therapy is psychotherapy, so all illness is mental illness. It is a judgment on the Son of God, and judgment is a mental activity (7 p. 9). Toda terapia é psicoterapia, portanto, toda doença é doença da mente. Ela é um julgamento para com o Filho de Deus, e julgamento é uma atividade mental. A enfermidade pode ser associada ao julgamento. Ao julgarmos alguém negativamente, podemos responder com enfermidades. Adoecemos como uma tentativa de imputar culpa no outro. Além disto, quando condenamos alguém por algo, nós nos consideramos vítimas e isto nos causa sofrimento. Quando julgamos o 33
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