Labirinto de espelhos - 2ª edição

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TRILOGIA LABIRINTO – LIVRO

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TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

S ão Pau l o , 2 0 1 6

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Labirinto de espelhos

Copyright © 2016 by Bárbara Negrão Copyright © 2016 by Novo Século Editora Ltda. aquisições

editorial

Vitor Donofrio

Giovanna Petrólio João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda

preparação

revisão

Mônica Vieira/ Project Nine

Fabrícia Romaniv Larissa Caldin

Cleber Vasconcelos coordenador editorial

diagramação

Cláudio Tito Braghini Júnior

capa

Marina Ávila

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 10 de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Negrão, Bárbara Labirinto de espelhos; Bárbara Negrão; Barueri, SP: Novo Século Editora, 2016. (talentos da literatura brasileira) 1. Fantasia I. Ficção brasileira II. Título 16-04256

cdd-869.93

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção: Literatura brasileira 869.93

novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699-7107 | Fax: (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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Dedico este livro aos meus pais. À minha mãe, que é meu exemplo, obrigada por todo seu amor e carinho. Ao meu pai, que abriu minha mente para o mundo da fantasia. E ao meu amor Rafael, que faz todos os dias valerem a pena. Obrigada por me fazer feliz.

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Capítulo Um (Willian)

A sensação de perda e descontentamento pairava por todo o ambiente ao meu redor. Tão forte que era praticamente palpável. Mas desconsiderei a sensação e continuei andando, tamanho o alívio que sentia de poder estar aqui novamente. Transportado para perto dela. Aonde será que esse sonho me levará desta vez? Não que isso realmente importasse. Pois sempre que a encontrava dentro de meus sonhos era uma experiência nova e surpreendente. E toda vez ela está um pouco diferente em relação à última vez em que a vi. As mudanças podiam ser sutis, quando ficava pouco tempo sem vê-la. Mas quando os sonhos demoravam para acontecer, as mudanças eram bem evidentes. Pelo menos para mim. Nos últimos dias, meus sonhos têm sido cada vez mais frequentes e conturbados. A urgência que sinto vindo dela é desesperadora. E mesmo sem saber para onde sou levado, prefiro mil vezes estar em qualquer lugar com ela, do que longe, sem saber o que pode estar acontecendo. Mesmo quando não a vejo logo no início do sonho, como hoje, sei que ela está em algum lugar por perto. É por ela que eu estou aqui. Sempre por ela. Desde as primeiras vezes em que a vi soube que era por ela. Não foi preciso procurar muito. Andei alguns poucos passos e, a menos de dez metros, lá estava ela. Deitada na grama, aos pés de uma árvore quase sem folhas. Reconheci onde estávamos assim que o sonho se tornou nítido.

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Tantas vezes antes estive aqui em sua presença. Estávamos no jardim dos fundos de sua casa. Mesmo a essa distância e não conseguindo ver seu rosto direito, podia sentir que ela não estava bem. Fui me aproximando devagar. Não que isso fizesse qualquer diferença, pois tomar cuidado não era realmente necessário, era mais por costume. Pois em todos os sonhos que tive com ela até hoje, e não foram poucos ao longo dos anos, nunca consegui me mostrar presente. Nunca. Por mais que tentasse, é como se eu não existisse. Há alguns anos me conformei de que aqui, em seu ambiente, eu era apenas um simples espectador. Mas nem por isso eu deixaria de tentar. Pelo menos eu podia fazer parte disso tudo e por alguns instantes era parte de sua vida, mesmo estando em segundo plano. Aproximei-me o suficiente para poder observá-la melhor, ela estava adormecida. Olhei ao redor com a sensação de que não estávamos sozinhos. Como se alguém estivesse nos espreitando de longe. Não era a primeira vez que sentia isso. Mas era impossível outra pessoa estar aqui sem que eu a notasse. Queria poder alertá-la, precavê-la de que alguém mais estava por perto. Mas qualquer coisa que eu fizesse não adiantaria, pois era completamente em vão. Nesses nossos momentos eu era apenas o coadjuvante assistindo de longe ao espetáculo sem poder dar opinião. Mas tudo bem. Não me importava. Só de poder vê-la novamente já era um alívio. Saber que esses momentos ainda existiam. Que ela ainda existia. E que pelo menos em meus sonhos eu podia fazer parte da vida de alguém, e esse alguém não me julgaria por ser quem eu sou, ou melhor, por ser o que sou. Sentei-me ao seu lado na grama observando seus traços. Ela não mudara em nada desde a última vez em que a vi. Com o passar dos anos, ela foi se transformando diante de meus olhos. E a cada noite, sempre que voltava a sonhar com ela, algo havia mudado. Para olhos humanos não seria perceptível, mas para os meus, algumas semanas que ficasse sem vê-la, fazia uma grande diferença. O sol fraco do final da tarde batia em sua pele clara, deixando-a levemente ruborizada. Ela parecia estar em sono profundo. Não sei quanto tempo o meu sonho duraria, por isso desfrutaria ao máximo de sua companhia antes que acordasse. Aproveitei a oportunidade para observá-la. Não que precisasse decorar seu rosto, pois seus traços já estavam gravados a ferro quente em minha memória.

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– Qual é o seu nome? – perguntei, próximo ao seu ouvido, sem realmente esperar por uma resposta. Seus cabelos castanhos se espalhavam pela grama parecendo mais claros na luz dourada do crepúsculo. Era uma pena seus lindos olhos estarem fechados, pois adorava a cor deles. Ao redor de cada um pude notar um leve halo escuro e marcas por onde as lágrimas escorreram pela lateral de seu rosto. Isso fazia com que ela parecesse exausta e mais velha do que realmente era. Sua pele estava mais pálida do que o habitual. E mesmo assim ela estava linda. Parecia tão em paz assim, adormecida na grama. Infelizmente tocá-la era impossível. Isso me fez lembrar da primeira vez em que sonhei com ela alguns anos atrás. Foi muito confuso no início, pois vampiros não sonham. Na época, ela era apenas uma criança, foi um sonho rápido, que durou não mais do que alguns poucos segundos, e logo acordei. Achei que não aconteceria novamente, não no meu mundo. Nesse mundo eu não sou humano, não posso ter sensações humanas e isso inclui sonhar. Nunca sonhara depois de transformado. Por isso tive certeza de que não voltaria a acontecer. Mas torcia pelo oposto. Alguns dias depois, voltei a sonhar com ela. E depois disso nunca mais parei. Com o passar dos anos sentia uma necessidade constante de estar com ela. E ficava angustiado quando se passavam meses sem que eu a encontrasse. Eu a vi crescer e se transformar em uma linda mulher. Não sabia se ela realmente existia. Por muito tempo a procurei em diversos lugares pelo mundo. Mas não a encontrei. Nunca consegui entender o motivo de tudo isso acontecer. No começo considerava um presente e ao mesmo tempo um castigo. Podia vê-la, estar com ela, estar perto dela, mas não podia tocá-la. Eu era um reles observador de sua vida. Mas o mais surpreendente em nossos momentos juntos é poder sentir o que ela sente através do ambiente. E isso, com certeza, considero um presente. Talvez fosse para ser minha maldição. Ter que ver sua vida passar diante de meus olhos, vendo-a crescer, se apaixonar, se casar, ter filhos, netos e finalmente morrer, sem poder interferir em absolutamente nada. Será que depois dela viria outra pessoa em seu lugar? Continuaria sonhando? Não tenho respostas para nenhuma dessas perguntas. Hoje em dia não vejo mais nossos encontros como um castigo, pois o que sinto quando estou com ela é muito especial para considerar como punição.

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Balancei a cabeça tentando dispersar a ideia de castigos e maldições. A verdade é que não trocaria nossos momentos íntimos e especiais por nada. Não foi minha escolha ser o que sou. Mas já aceitei há muito tempo, pois nada mudaria. Tempo é o que não nos falta. Mas a cada ano que passa, a cada dia em que noto que algo está diferente nela, um sentimento de desespero inunda meu ser, pois não quero perdê-la. Ela está ficando mais velha e eu não. Estou sempre igual. Congelado no tempo. Ela se mexeu ao meu lado tirando-me de meus devaneios, voltei minha atenção completa e somente para ela. Faria qualquer coisa para poder tocá-la agora, pelo menos uma vez poder sentir sua pele. Inclinei-me para chegar mais perto, apoiando-me sobre meu cotovelo, ficando a poucos centímetros de seu rosto. – Quem é você? – perguntei baixinho em seu ouvido. – Qual é o seu nome? Então, de repente, ela abriu os olhos e, como aconteceu centenas de vezes antes, tive um pequeno fio de esperança. Ela teria, finalmente, depois de tanto tempo, me ouvido? Mas no mesmo instante soube a resposta para essa pergunta. Eu estava completamente debruçado sobre ela, mas seus olhos me atravessavam e estavam fixos no céu atrás de minha cabeça. Voltei a sentar ao seu lado inspirando profundamente. Era decepcionante quando me permitia acreditar que algo teria mudado dessa vez. Seu rosto se contorceu em uma careta de dor, como se pensasse em algo ruim. Virou-se de lado na grama, abraçando os próprios joelhos, ficando em posição fetal. Seu coração começou a acelerar. Sabia disso não só por poder ouvi-lo em alto e bom som – vantagens de se ser o que sou. Mas porque podia senti-lo dentro de meu próprio peito, batendo no mesmo ritmo que o seu. A sensação era simplesmente maravilhosa para mim. Coloquei a mão sobre meu tórax, fechando os olhos para desfrutar desse momento. Uma forte e ritmada pulsação podia ser sentida vinda de dentro de mim, onde antes só havia silêncio. Mesmo sabendo que aquele coração não me pertencia, sentia-o como se fosse meu. Parecia que éramos um só nesse instante. Não sendo mais humano e não tendo mais batimentos cardíacos, poder sentir aquilo de novo através dela era um presente. Tudo o que sinto em meus sonhos vem dela. Sensações das mais diversas como frio, fome, alegria, tristeza, e, em raras ocasiões, com sorte, poder aproveitar momentos especiais como esse.

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Desde a primeira vez em que sonhei com ela, tudo o que ela sente vem direto para mim. Emana de seu corpo como pequenas explosões e viaja pelo ambiente, chegando a mim como ondas penetrantes. Mesmo sabendo que não é real, é forte o suficiente para me fazer ansiar por esses momentos. Na grande maioria das vezes é muito bom. Por mais sutil que seja a sensação como um simples suspiro, um arrepio de sua pele, um simples bocejo, é maravilhoso. Mas nas últimas vezes em que sonhei sinto apenas tristeza e desgosto vindo dela. Como agora. – Por quê? – perguntei, esticando meu braço para tentar tocar seus cabelos, sem êxito. Olhei novamente para ela achando que voltara a adormecer, mas não, estava acordada. Ela piscou várias vezes, tentando em vão controlar as lágrimas que teimavam em escorrer por seu rosto. As lágrimas vinham sem parar em um choro silencioso. Posso ter a força de mil homens, mas aqui sou incapaz de amparar uma simples lágrima. Queria poder consolá-la, abraçá-la e dizer para que não se preocupasse, pois eu estava aqui. Mas qualquer que fosse o motivo pelo qual ela chorava, eu não podia fazer absolutamente nada além de observá-la. Ela virou de barriga para cima voltando a olhar o céu fixamente. Suas mãos estavam juntas sobre a barriga. Levei minha mão à dela, mas nada aconteceu, simplesmente a atravessei. – Por que está chorando? – insisti. Mesmo sabendo que ela não escutaria, que tudo não passava de um sonho, tinha que continuar tentando, ainda mais vendo-a sofrer desse modo. Ela deu um longo suspiro e depois de um instante se sentou, enxugou o rosto com a manga da blusa e se levantou. Ficou olhando para sua casa, sem realmente vê-la, por alguns instantes com o olhar perdido. Ela podia estar ali de corpo, mas sua mente estava muito longe. Levantei-me também ficando em sua frente. Ela deve ter 1,68 m aproximadamente de altura. Como é linda. Com seus cabelos caindo em ondas sobre os ombros. Podia sentir o calor que emanava de seu corpo atingindo o meu. Seus braços estavam arrepiados. Ela deveria estar com frio. Pelo menos era isso que eu recebia vindo dela. Um leve desconforto pelo clima. Mas essa era apenas uma das muitas sensações que chegavam até mim.

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– Qual é o seu nome? – insisti, olhando fixamente para ela. Seus olhos castanhos estavam avermelhados por causa do choro. Há quanto tempo ela estaria chorando? E por quê? Isso é tão frustrante. Sua boca estava entreaberta e seus lábios úmidos por causa das lágrimas que ainda insistiam em escorrer. Como seria beijá-la?, pensei. Mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, ela me atravessou com um único passo decidido indo em direção à casa, como se eu fosse feito de fumaça. Virei-me a tempo de vê-la entrar pela porta dos fundos que dá acesso à cozinha. Eu sabia que teria que acompanhá-la para onde quer que ela fosse. Se não por vontade própria, à força. Eu não tinha o menor controle sobre nada aqui. Tudo girava em torno dela. No momento em que ela saía do alcance de meus olhos, o ambiente começava a se tornar embaçado e se dissolver no ar e, assim que voltava a nitidez, lá estávamos nós novamente, só que em um lugar diferente. Não que eu me importe. Simplesmente é assim que acontece desde a primeira vez. Agora estávamos em seu quarto. Já estive nesse lugar tantas vezes antes que me sinto mais à vontade aqui do que em muitos lugares no mundo real. Em cima da mesinha de cabeceira havia um relógio em forma do chapéu dos Smurfs que mostrava que eram 17h43 da tarde. Logo estaria escuro. Ela se sentou na cama tirando os tênis. Olhou para o relógio em cima da mesa sem realmente vê-lo e se largou na cama de barriga para cima. Sentei-me ao seu lado e esperei. Provavelmente ela voltaria a dormir, agora em um lugar mais confortável. Isso me daria a chance de ficar com ela enquanto dormia. Mas assim que ela se deitou, a porta de seu quarto se abriu de repente com um barulho alto a assustando. Ela levantou a cabeça do colchão olhando em direção à porta. Quando me virei para olhar quem era, dei de cara com o teto de minha própria casa. Eu havia acordado. – Não! – exclamei alto de frustração por nosso encontro ter sido tão breve. A luz fraca que atravessava as cortinas me dizia que ainda estava escuro lá fora. Os dias aqui eram muito frios nessa época do ano e o vento açoitava a janela do quarto sem dó. Ouvi batidas na porta e, pela insistência, deveriam estar batendo já há algum tempo. Era melhor que fosse importante, pois pedi a todos que estão viajando conosco que nunca me incomodassem depois que tivesse ido dormir.

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A exceção era em casos de extrema importância, ou seja, somente em caso de vida ou morte, o que no meu mundo não acontece com muita frequência, já que estamos todos mortos. Todas as noites em que ia dormir ansiava pelos poucos instantes em que, com sorte, poderia estar com ela. Caso fosse uma boa noite. Um segundo em sua presença era como estar vivo novamente. Todos os meus sentidos ficavam muito mais aguçados. E podia realmente sentir, era tudo por causa dela. Quando revelei a algumas pessoas de confiança sobre os meus sonhos, para saber se eles já haviam passado por algum tipo de experiência parecida ou se era uma coisa de vampiro, todos acharam que eu tinha algum tipo de doença. O que é impossível levando em consideração o que somos. Mas ninguém soube me dar uma explicação plausível para o que acontece. A verdade é que, mesmo não tendo uma explicação lógica para toda essa loucura, fiquei satisfeito em saber que era o único a ter essas experiências. Isso significava que ela era só minha. Mesmo não fazendo sentido algum sentir ciúmes de uma pessoa que só existe dentro de minha cabeça, não me agradava em nada a ideia de dividi-la com alguém. Depois de muito pensar, cheguei à conclusão de que simplesmente não quero mais buscar por explicações do que os sonhos possam significar, de onde venham ou por que acontecem. Desde que não parem. Algumas vezes, sinto como se fosse chamado, ou melhor, requisitado a estar com ela e me deixo levar, não me importando para onde sou levado desde que possa estar com ela, para que sinta tudo o que ela tem a oferecer. Sendo bom ou ruim. Nas últimas semanas nossos encontros têm me deixado com um humor horrível. Vê-la sofrer, senti-la sofrer e não poder fazer nada para ajudá-la está me deixando louco e nem um pouco sociável. E quem quer que estivesse batendo na porta deveria ter algo muito importante para falar, já sabendo das consequências que teria que enfrentar por ter me acordado. A porta se abriu lentamente e Dante colocou a cabeça para dentro do quarto. – Posso entrar? Por sua aparência, não devia se alimentar há dias. Segundo Dante, isso fazia com que a necessidade de caça ficasse ainda mais aguçada e, assim, mais fácil de saber para onde deveria ir. Com seus vinte e poucos anos, ele aparentava

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ser muito mais maduro do que a idade com a qual foi transformado. Seus olhos mostravam toda a experiência acumulada durante sua existência sobrenatural. Ele já havia passado dos cento e cinquenta há alguns anos. – Sei que não deveria acordá-lo, mas já estamos de partida – falou, abrindo a porta por completo sem entrar no quarto. – Sonhando com ela de novo? – arriscou. – Estava, antes de ser interrompido. – Respirei fundo tentando me acalmar. Não queria brigar com ele, mas fervia de raiva por dentro. Não sei se por mim mesmo ou pelo modo como ela se sentia em meu sonho. Tão triste, indefesa e carente. – Isso não é normal, Willian – disse ele, com uma expressão preocupada no rosto. – E o que é normal? – Não sonhar – rebateu. – Você está obcecado. – Não me importo com isso – falei, levantando-me e pegando minha jaqueta que estava no encosto da cadeira. Não conseguiria ficar bravo com ele por muito tempo. Dante é meu melhor amigo. Considero-o como se fosse meu irmão. E ele estava aturando meu mau humor há semanas sem reclamar. – Estamos indo para onde dessa vez? – Quis saber. Fui até a janela conferir o clima. Ele ficou em silêncio. O que me fez parar e olhar para ele. Pude ver que ponderava o que dizer, enquanto parecia ter uma luta interna sobre se entrava no quarto ou não. – Pelo amor de Deus, Dante, entre logo neste maldito quarto e fale o que o corrói por dentro. – Fiz uma mesura exagerada para que ele entrasse. Ele entrou e respirou fundo. – Não acho que deva continuar viajando comigo, Willian. Essa busca está demorando muito mais do que previ. Você tem suas responsabilidades e está longe há muito tempo. Talvez seja por isso que esteja sendo tão afetado por esses seus “pesadelos” – falou, se sentando na cadeira próxima à cama. – Acho que você deve voltar – concluiu. – E você vai continuar? – Sim, não tenho escolha. – Seu olhar de preocupação estava estampado em seu rosto. – Willian, você sabe que é como um irmão para mim, mas...

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– Para mim também – o interrompi. – Não somos do mesmo sangue. Mas você sabe o quanto o considero – falei, sentando-me na ponta da cama para ficar de frente para ele. Eu o conhecia bem, e sabia que não conseguiria convencê-lo a deixar que eu seguisse viagem com ele. Mas tentei mesmo assim. – Não quero voltar. Não ainda. Os sonhos estão cada vez mais frequentes. Ficamos em silêncio durante algum tempo. Não sabia o que ele diria a respeito da minha revelação. Dante era uma das únicas pessoas para quem contei sobre a existência de meus sonhos. Eu evitava falar sobre isso o máximo possível e não mais do que o necessário. E ele sabia que, para eu estar tocando no assunto, era porque estava admitindo a derrota e pedindo ajuda. – Você está cada dia mais perturbado por esses “pesadelos”. Posso ver em seu rosto a revolta que sente. – Hoje em meu sonho ela precisava de ajuda. Não estava bem. Mas não pude fazer nada a respeito – admiti. – Ainda estamos falando de uma pessoa que não existe, Willian. – Isso não foi uma pergunta. Havíamos concordado que ela não era real há muito tempo. – São só sonhos. Não passam de sonhos. Talvez por você ser, você sabe, diferente do resto de nós – disse, um pouco sem jeito. Diferente. Sempre detestei ser chamado assim. Disso e de “especial”. Ter a capacidade de manipular a mente de humanos me fazia ser considerado por outros de minha espécie como importante. Pois nenhum outro vampiro pode fazer o que faço. A não ser Edgar, meu irmão de sangue, que tem esse mesmo dom, mas não tão pronunciado quanto o meu. Eu posso manipular a mente de qualquer ser humano independente de sua capacidade intelectual. Já meu irmão pode induzir pessoas de mentes mais fracas a fazerem o que ele quer. Na grande maioria das vezes funciona bem. Isso nos faz ser muito requisitados no nosso mundo, por muitos vampiros e muitos clãs, para as mais diferentes tarefas. Somos sempre chamados para manipular humanos para que se esqueçam de determinada coisa, ou para que mudem de ideia, para que favoreçam determinada pessoa, ou para que concordem ou discordem de algo. É um dom muito útil.

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Já com vampiros não funciona assim. Eu até consigo manipular a mente dos mais novos e inexperientes, mas o efeito logo passa. É como ter uma neblina na frente dos olhos. Mas com o tempo ela se dissipa e a manipulação termina. Diferente de meu irmão, que nunca conseguiu manipular a mente de nenhum vampiro. Meu dom já existia antes de me tornar o que sou. Sempre fui capaz de plantar ideias na cabeça das pessoas para que fizessem o que eu queria. Sabia que tinha essa capacidade. E foi esse dom que me custou ser o que sou hoje e levou meu irmão comigo. – Edgar me ligou pedindo para se juntar a nós dentro de alguns dias. Mas falei que você já estava voltando – falou Dante, trazendo-me de volta para a realidade. – Não quero que ele participe das caças. – Willian, ele é bem grandinho, sabe se cuidar sozinho – repreendeu. – Ele disse que já estão perguntando por você. Você sabe que tem responsabilidades e que precisa... – Não tenho responsabilidade alguma e não faço parte de nenhum clã há muito tempo, assim como você, Dante. – Mas se você não voltar para fazer o que precisa ser feito, logo alguém virá atrás de você, ou melhor, atrás de nós. Você sabe o quanto é valioso – ele falou aquela última palavra quase rindo, só para me importunar. – Eu não vou voltar agora – rebati, não dando importância para sua provocação. Ele sabia que não podia me obrigar a voltar. Mas eu também não queria comprometer sua missão por estar com ele. – Bem, se você não quer mesmo voltar agora... – Respirou fundo antes de continuar: – Você poderia... – Poderia o quê? – quis saber. – Tem uma pista que sinto há alguns meses. Mas não pude conferir por causa dessa que estamos seguindo agora. Se quiser ir até lá, pode tentar espairecer um pouco e me ajudaria. Posso falar aonde deve ir e o encontro lá na volta. Observei-o por alguns instantes ponderando o que fazer. Era minha única saída. – Onde?

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– É para o sul, não tenho certeza do local. Você terá que procurar. Provavelmente não é nada. É só uma sensação fraca. Mas como é persistente, gostaria que desse uma olhada. Não conseguiria convencê-lo a me deixar seguir viagem com ele. E, por mais que não gostasse de admitir, eu sabia que ele estava certo e logo alguém viria atrás de mim. – Tudo bem. Diga-me para onde devo ir – disse, rendendo-me.

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