Os conquistadores

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MARCO MORETTI

OS

CONQUISTADORES talentos da literatura brasileira

S達o Paulo, 2015

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Os conquistadores Copyright © 2015 by Marco Moretti Copyright © 2015 by Novo Século Editora Ltda. GERENTE EDITORIAL

GERENTE DE AQUISIÇÕES

Lindsay Gois

Renata de Mello do Vale

EDITORIAL

ASSISTENTE DE AQUISIÇÕES

João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda Vitor Donofrio

Acácio Alves

PRODUÇÃO EDITORIAL

REVISÃO

SSegóvia Editorial

Tamires Cianci Fabrícia Carpinelli

AUXILIAR DE PRODUÇÃO

Luís Pereira

PREPARAÇÃO

Livia First

CAPA

Dimitry Uziel

DIAGRAMAÇÃO

Abreu’s System

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 10 de janeiro de 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Moreti, Marco Os conquistadores / Marco Moreti. – Barueri, SP: Novo Século Editora, 2015. – (Coleção talentos da literatura brasileira) 1. Ficção brasileira I. Título. II. Série. 15-03829

CDD-869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11º andar – Conjunto 1111 cep 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699-7107 | Fax: (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br | faleconosco@novoseculo.com.br

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Com todo carinho para minha esposa, Cรกssia. Sem o apoio dela, eu jamais teria publicado este livro. E para meu pai, Carlos Moretti, cuja curiosidade me estimulou a ingressar nesta aventura.

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Agradeço a todos os amigos e colegas que me apoiaram na escrita deste livro, em especial ao Professor Omar Carline Bueno, cujas considerações a respeito do tesouro dos incas foram muito úteis. Também merecem lembrança aqueles que, de uma forma ou de outra, inspiraram-me na realização deste trabalho: José de Alencar, Hernâni Donato e o grande Guimarães Rosa. MM Janeiro de 2015

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“O caminho do excesso conduz ao palácio da sabedoria.” William Blake

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Todas as composições musicais citadas neste livro estão disponíveis no blog do autor: www.diariodomoretti.com.br

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Mapa-múndi de Bartolomeu Velho Lisboa, 1561 – Fonte: Wikipédia

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Sumário

PARTE I Temas e variações 1. O homem que ri

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2. O chamado à aventura

27

3. O prisioneiro da liberdade

33

4. Companheiros de infortúnio

38

5. Praia de náufragos

45

6. Sobre princesas e demônios

49

7. Civilização versus barbárie

53

8. A marcha dos lamentosos

59

9. Terra devastada

63

10. Rumores de guerra

67

11. A estratégia latina

71

12. Fragmento de mim mesmo

76

13. No coração da selva

80

Primeiro Interlúdio – Dom Amadeu – Canto I

86

14. Um ladrão entre nós

89

15. Colóquio entre a ? e as ...

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16. Divisor de águas

103

17. Húbris, ou a tragédia do orgulho

106

18. O abraço da jiboia

109

19. Reflexões sobre o nada absoluto

117

20. Custos e benefícios

120

21. A longa noite de espera

124

22. Na cova dos leões

127

23. A batalha dos perdidos

131

Segundo Interlúdio – Dom Amadeu – Canto II

144

24. Lambendo as feridas

147

25. As intermitências de uma mente febril

153

26. Alma dilacerada

159

27. Aliados improváveis

162

28. Órfãos da tormenta

167

29. Aquele que traz a peste

171

30. Um profeta desarmado

174

31. Quando duas almas colidem

178

32. Vastos tesouros e mistérios insondáveis

182

33. O segredo perdido dos Incas

186

34. Confissões de um religioso em crise

191

35. Tempo de milagres

195

36. A cruz e a sombra

198

37. Um dia é da caça...

201

38. O desconhecido perfeito

204

39. Uma improvável relação

207

40. O lado mais distante de mim

210

41. Artes da sobrevivência

212

42. Estas estrelas são minhas!

215

43. De santos e homens

218

44. Vultos na neblina

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45. Espíritos indômitos

227

46. A travessura do macaco

231

47. Monstruosa vaidade

234

48. Ouro dos tolos

238

49. Para além de qualquer temor

242

50. No umbral da grande aventura

247

51. A região onde habitam os dragões

250

PARTE II Andante tenebroso e adágio Prólogo

255

1. Batismo de sangue

259

2. Inquietante estranheza

262

3. Pelo vale da morte

265

4. Quando a floresta engoliu os homens...

270

5. A madrugada de todos os pesadelos

274

6. A coisa que espreita nas trevas

278

7. Repulsiva perversidade

283

8. Sonhos de dor e sofrimento

286

9. Mosquitos, lama e farrapos humanos

290

10. Entre a cruz e a caldeirinha

294

11. A glória de um patife

297

12. O exército dos mortos

301

13. O carrasco dos justos

304

14. Suspeitos incomuns

308

15. “Freddo e Buio”

312

Terceiro Interlúdio – Dom Amadeu – Canto III

318

16. Navegando no mar interior

321

17. Todos os males do mundo

325

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18. Acidente de percurso

330

19. Sertanistas no cardápio

334

20. Réquiem para um poeta

344

21. Um lobo entre os cordeiros

348

22. Ira

351

23. Lento despertar

355

24. Resgate heroico

359

25. Na hora mais escura...

363

26. Juramentos de vingança

368

27. O longo caminho para a redenção

372

28. De volta ao jardim do Éden

375

29. Uma questão de ponto de vista

379

30. Perseguição implacável

383

31. Viagem ao fundo da Terra

388

32. Dentro da toca do coelho

395

33. Espiando por trás da cortina do mágico

400

34. “A traição será a vossa herança”

405

35. Ousada escapada

410

36. Sozinho no labirinto verde...

414

37. ... E com o minotauro à solta

418

38. Diferenças inconciliáveis

422

39. A nau dos desgraçados

425

40. Bem-vindo à realidade, Francisco Trovão

429

41. Delírio e loucura

432

42. Caem as máscaras

436

43. Uma orelha e dois décimos de orgulho ferido

444

44. A Santa Ceia dos animais

449

45. Queimada!

454

46. Uma sepultura para a eternidade

455

47. Ódio e perdão

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48. Nas entranhas de Pacha Mama

465

49. A ratoeira

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50. EpĂ­logo

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Notas

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Parte I

Temas e variações

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1 O homem que ri

Local: ao sopé da montanha da Penha, na cadeia do Amolar, extremo ocidental do Estado de Mato Grosso Sul. Tempo: hoje pela manhã.

H

avia algo misterioso, algo terrivelmente perturbador, incomum e amedrontador naquela gruta meio oculta pelo véu de neblina matutina em meio à mata espessa, e que se abria diante do menino como a bocarra medonha de um monstro subterrâneo pronto para devorá-lo. Teria sido mera curiosidade, uma dose de insensatez, o desejo de riqueza fácil ou uma mistura de tudo isso o que motivou aquele rapaz de apenas doze anos a derrotar seus medos mais profundos e a penetrar naquele antro munido apenas de coragem e descaramento? Pois era um fato reconhecido e pouco alardeado por todos os que habitavam sua aldeia, um acanhado vilarejo de casebres de pau a pique desconjuntadamente mantidos em pé a poucos passos dos limites extremos da floresta, sobre a qual se impunham, bem a oeste e muito acima da mais alta das árvores, quais guardiões arcanos, os cumes nevados dos Andes, que aquele lugar abrigava tesouros ancestrais, uma caverna de Aladim abarrotada de objetos preciosos de cuja existência o próprio tempo se esquecera e a memória dos homens se encarregara de cobrir de quimeras. Dentre as muitas fantasias coletivas de mentes supersticiosas

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arrastadas para a areia movediça da ignorância, com que os pais procuravam destilar nos filhos o veneno do medo, a que mais se prestava a deixar os cabelos da nuca eriçados era a sugestão de que aquela entrada também conduzia aos recessos do próprio inferno, com todos os horrores dantescos que essa promessa encerra. Contudo, nem isso nem as cores fortes com que eram pintados os castigos reservados aos pecadores insubmissos no reino de Lúcifer foram veementes, ou, quem sabe, repugnantes o bastante para dissuadir o jovem de seu arrojado intento. É pouco provável que ele teria sido induzido a transpor as sebes de bambu que cercavam a sua aldeia e atravessado o quilômetro e meio de matagal cerrado, juncado de grossas raízes de seringueiras e povoado de sucuris e insetos famintos, somente para saciar a curiosidade que o consumia. Essa sedução pela opulência, se podemos chamar assim a ânsia de mergulhar no desconhecido, só despertou em sua consciência quando se encontrava aos pés da imensa abertura, discretamente recolhida à penumbra das folhagens, mas, ainda assim, assustadoramente imponente, semelhante a um portal para as regiões abissais. Afinal, como Adão e Eva dolorosamente descobriram, o proibido é o atalho mais curto e mais rápido para a transgressão. O real motivo de sua ida até ali, a prosaica razão dessa aventura, possuía quatro patas, tinha pelos castanho-claros pejados de manchas escuras, rosnava e abanava o rabo impaciente à sua frente, afocinhando o solo ao mesmo tempo em que latia para que o dono o seguisse interior adentro. O menino hesitou por uns bons minutos, reprisando mentalmente, e rapidamente, as reprimendas dos mais velhos a respeito do que poderia suceder a ele caso ousasse invadir aquele Orco amaldiçoado. Preferiu não dar ouvidos aos alertas, ignorar as hipotéticas ameaças que o aguardariam a cada metro, os inconcebíveis perigos que espreitariam nas sombras. Besteirada, sentenciou em pensamento com um menear de cabeça que traduzia, ao mesmo tempo, coragem e negligência. O que teria a perder entrando ali? Tomado por um profundo desprezo pelos conselhos dos anciões e fazendo de si mesmo um conceito mais alto em termos de sabedoria e prudência do que correspondia à realidade, abandonou qualquer esperança ou resquício de esperança que pudesse ter. Arrancado da imobilidade que o detinha pelo insistente ladrar do cachorro, deu o primeiro passo adiante, depositando com cautela o pé descalço no chão de pedra liso e frio. 22

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Avançou devagar, apoiando-se nas rochas dispostas irregularmente em torno e que se estendiam como uma trilha incerta para o interior da caverna até que a escuridão absoluta o engoliu. Com exceção do arfar do animal e dos próprios passos abafados, nenhum outro som era audível. Foi somente então que se deu conta do desatino que estava cometendo. À medida que se sentia cada vez mais sozinho, tendo por guia apenas o seu companheiro de faro aguçado, as antigas, quase esquecidas, histórias de “sombração” assomaram ao espírito. Embora em condições normais de temperatura e pressão não as levasse muito a sério, agora, sob o efeito intimidador de uma atmosfera sombria, começava a considerar seriamente a hipótese de que talvez, e apenas talvez, contivessem algum rastro fugaz de verdade. O menino ainda estava entretido com esses devaneios quando um farfalhar de asas ressoou próximo à sua cabeça. Instintivamente, agachou-se e ergueu os braços sobre a nuca para se proteger. Tão ou mais assustados quanto ele, os morcegos revoaram em direção à claridade do lado de fora e se perderam no silêncio da selva. Assim que se recuperou do susto, o garoto voltou a se erguer, ofegante, com o coração batendo como um tambor no peito franzino. Estremeceu ao imaginar o que teria acontecido se aquelas criaturas tivessem resolvido avançar para cima dele, e um rosário de “ses”, tão extenso quanto a distância que separa a Terra da Lua, principiou a brotar em sua mente fértil. Novamente, foi o cachorro quem veio resgatá-lo do medo paralisante, pondo-se a rondá-lo e a debruçar as patas dianteiras em suas pernas. A menos de cem metros da entrada, a passagem desandava em um declive suave, que foi se tornando gradualmente íngreme, até que o rapaz se viu obrigado a buscar apoio nas rochas salientes das laterais para não escorregar. Por mais de uma vez, a possibilidade de desistir flutuou como uma nuvem negra e carregada no horizonte dos pensamentos, imagem que ele procurou repelir invocando uma bravura que jamais desconfiara possuir e uma honra de cuja autenticidade duvidava. Mesmo assim, preferiu confiar no apelo da determinação, que era, de longe, sua característica mais proeminente, a se dar por vencido no desafio que se autoimpusera. Além disso, a promessa de recompensas inconcebíveis, que superavam em muito os possíveis riscos, e a surra que, com toda a certeza, lhe estava reservada, brilhavam com fulgor crescente através da fresta da porta entreaberta de suas fantasias. 23

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Imperceptível e quase suavemente, foi penetrando pelos subterrâneos e desembocou em um emaranhado de túneis escavados sob a terra que formavam um labirinto incessante de curvas e volteios, ora obstruídos por avalanches de pedras, ora formando passagens tão estreitas que mal poderiam ser atravessadas por um rato, e cujo destino o garoto só poderia supor. Forçado a se arrastar em certos trechos, e sob a séria ameaça de ser soterrado vivo, ainda assim encontrou dentro de si a força de vontade necessária para seguir em frente. Por um momento, deixou escapar a ideia de como seria empolgante narrar a aventura aos amigos quando regressasse à aldeia. Obviamente, na hipótese nada remota de que ele sobreviveria a ela. A partir de certo ponto, o ar tornou-se úmido e abafado, e o garoto encontrou dificuldade para respirar. Se não achasse logo uma abertura que permitisse a entrada de ar fresco, o jovem e seu animal de estimação morreriam sufocados, e a simples constatação desse fato encheu-o de ansiedade. Começou a suar profusamente, as pupilas dilataram-se e ele sentiu náuseas. Para complicar essa já precária situação, foi perseguido por uma multidão de aracnídeos, que ia de aranhas negras grandes como a palma da mão de um adulto a escorpiões agressivos e intumescidos de veneno. Mesmo em meio a essas atribulações, em nenhum instante ele se deixou vencer pelo arrependimento. Até porque, nos termos pragmáticos em que contemplava a situação, isso não teria serventia alguma. Estava tão desorientado naqueles dutos infindáveis que não poderia, ainda que em um esforço sobre-humano da vontade, reencontrar o caminho de volta para a superfície. Angústia era a palavra mais apropriada para definir o que experimentava e, por mais que opusesse resistência, não conseguia se livrar da sensação de que algo terrível estava prestes a acontecer. Subitamente, apercebeu-se de que há um bom tempo – incapaz de dizer quanto exatamente, pois naquela cova a noção da passagem dos minutos e das horas se esvaíra por completo – não escutava nas proximidades o arfar ou o abanar de rabo do fiel companheiro. Chamou-o, uma e insistentes vezes enquanto lhe permitiram as reduzidas forças, e ficou alarmado quando o animal não atendeu ao apelo. Sobrepujado pelo desespero, cogitou, em ondas crescentes de terror, o que poderia ter ocorrido. A queda em uma greta, naquelas condições de isolamento absoluto, 24

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seria fatal para o cão, provavelmente tão letal quanto a picada de uma serpente ou coisa pior. Quem poderia afirmar quais perigos residiam naquele breu? Ainda estava entretido com essas reflexões nefandas, travando uma luta hercúlea para não sucumbir ao choro convulsivo quando o som de um ganido rasgou a cortina de silêncio que o cercava. Chegou abafado, quase inaudível, oriundo de algum lugar distante à frente. Tomando por guia esse tênue fio de Ariadne, esgueirou-se de bruços pelas trevas dos túneis apertados. Ao fim de um longo arrastar que pareceu de uma eternidade atroz, vislumbrou um clarão mortiço a uns três metros. Atraído pela luminosidade como um inseto pela arandela de uma varanda, o jovem dilatou os grandes olhos pretos amendoados e avançou com a determinação de um cabrito montês até emergir do buraco estreito em um amplo e abobadado salão. Feliz em ver o dono, o cachorro pulou sobre o seu colo e lavou o rosto moreno com efusivas lambidas. Embora mergulhado na semiescuridão reinante naquelas profundezas, e atapetado de limo por todos os quadrantes, era possível enxergar o bastante, graças a uma discreta fenda na extremidade superior da arcada que coava umas poucas réstias de luz, para se distinguir os contornos do lugar. Dispostas mais ou menos em semicírculo em torno do centro, viam-se outras duas passagens escavadas nas paredes, mas todas, como aquela da qual saíra, estavam parcial ou totalmente bloqueadas por pedregulhos de dimensões consideráveis que pareciam pesar meia tonelada cada. A maneira pela qual essas rochas estavam empilhadas, umas sobre as outras, sugeria que um desmoronamento de grandes proporções havia acontecido ali. A geometria rigorosamente simétrica daquele espaço não permitia dúvidas de que mãos humanas, e não o acaso das forças naturais, é que o teriam composto. Por um momento, o rapaz cogitou para onde levariam aqueles túneis, quem os teria aberto, quando e por que e, antes que a sua imaginação alçasse voos estratosféricos, notou uma forma embrulhada na penumbra caída no centro do lugar. Com um misto de excitação e temor formando um bolo indigesto na boca do estômago, engoliu em seco e desceu, pé ante pé, os degraus escavados na pedra, o eco dos passos reverberando tetricamente no recinto. Tão absorto estava que mal percebeu o amontoado de cordas coloridas e atadas por nós, abandonadas ao chão, nem 25

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mesmo quando tropeçou em algumas delas. Se prestasse atenção mais detidamente, veria que objetos semelhantes a esses em comprimento e arranjo ornavam boa parte da parede ocidental, às suas costas. Também teria avistado uma dúzia de figuras em volta, as quais, a um olhar desavisado, poderiam parecer estátuas. À medida que se aproximava, percebeu que o enigmático objeto era, na verdade, um corpo, e, pelas dimensões e membros, um corpo humano caído de costas no chão. Não foi a menos de um metro dele que o menino deparou com o real significado de sua espantosa descoberta. Pela posição em que se encontrava, de pernas estendidas, braços abertos e os dedos arqueados como se tivesse morrido em meio a uma contorção violenta, era razoável supor que se tratava de um homem e que vivera, a julgar pelo estado extremamente deteriorado dos trajes, quase desfeitos em pó, muitos anos antes do que o jovem seria capaz de conceber. Contudo, não foram esses detalhes que catalisaram o pavor que congelou o sangue do rapaz nas veias e o fez emitir um sonoro grito de horror. Tampouco o aspecto da pele, enegrecida, dura e quebradiça como a de uma múmia, levou-o àquela crise de medo que, até então, jamais experimentara. O que realmente lhe causou espanto e sorveu o ar de seus pulmões foi a expressão do cadáver. Isso porque as órbitas dos olhos, há muito vazias e escancaradas, encimavam a boca ressequida, rasgada de um lado ao outro como se o infeliz houvesse morrido com um macabro e perturbador sorriso.

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