Quero ser Beth Levitt

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QUERO SER

BethLevitt S達o Paulo, 2013

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Copyright

Coordenação Editorial Diagramação Capa Preparação Revisão Foto da Autora

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2013 by Samanta Holtz

Letícia Teófilo Edivane Andrade de Matos/Efanet Design Adriana Brazil Thiago Fraga Fabrícia Romaniv Tatiana Holtz

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Holtz, Samanta Quero ser Beth Levitt / Samanta Holtz -- Barueri, SP - Novo Século Editora, 2013. 1. Literatura Brasileira I. Título. II. Série. 13-04371

cdd-869.93 Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

2013 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. CEA - Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia, 2190 - 11o andar Bloco A - Conjunto 1111 CEP 06455-000 - Alphaville Industrial - SP Tel. (11) 3699-7107 - Fax (11) 3699-5099 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br

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Dedicatória Este livro é dedicado à memória da minha amada avó, Irma. Irminha... onde quer que esteja, lembre-se do grande amor que cada um de nós mantém por você. É disso que sobrevive a nossa alma: do amor que plantamos em vida no coração do próximo. Que eu seja abençoada com essa mesma graça. E que minhas palavras sejam sementinhas plantadas no coração de cada um que as ler. Exatamente como você me ensinou... “Palavras são sementes.”

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Agradecimentos Curioso como tanta coisa mudou em um intervalo tão curto de tempo! Quando escrevi os agradecimentos de O Pássaro, meu primeiro romance, publicado em 2012, restringi minhas palavras à família e aos amigos que me rodeavam, por sempre acreditarem em mim e nesse sonho que me acompanhava desde a infância: ser escritora. Hoje, já com os primeiros passos dados no mercado literário, continuo grata a essas pessoas – talvez até mais do que antes! Elas devanearam comigo quando tudo não passava de um sonho e embarcaram ao meu lado quando o desejo se tornou realidade. Deram-me força nos tempos das respostas negativas e vibraram comigo quando se tornaram positivas. Aconselharam-me quando precisei e incentivaram-me sempre. Todos os dias. Incondicionalmente. Então, a cada pessoa da minha família linda e a cada um dos amigos que torcem por mim, estejam perto ou longe, o meu muito obrigada. Vocês foram importantes no primeiro passo, no segundo, no terceiro e ainda o serão em cada um deles. E, entre tantos passos dados nessa caminhada, reuni novos nomes para agradecer... Começarei pelos leitores e admiradores do meu trabalho, que, todos os dias, enchem-me de lindas mensagens, recados, cartas e e-mails. Vocês são a alma da minha paixão literária, o grande motivo pelo qual escrevo e pelo qual busco constantemente evoluir. Suas palavras me impulsionam a persistir. Aos blogs amigos e parceiros, que divulgam meu trabalho, meus eventos e minhas notícias. É emocionante vê-los torcendo tanto por mim, comemorando comigo cada conquista, acompanhando-me na expectativa de cada novidade. Suas palavras preenchem meu coração e me dão a certeza de estar no caminho certo. Aos amigos autores que o meio literário me permitiu conhecer e, hoje, ocupam um espaço especial em meu coração... Obrigada por serem pessoas tão maravilhosas, generosas e humildes! Suas palavras me inspiram. Ao grupo Turnê Literária, composto por pessoas incríveis com as quais dividi instantes inesquecíveis. Nossos momentos são histórias vivas narradas pela voz do tempo. À Vanessa, minha irmã arquiteta, por ter me ensinado nomes, estampas, estilos e artigos de decoração, os quais enriqueceram (e muito!) minhas descrições de ambientes. Várias palavras não estariam aqui se não fosse por você, querida! Muito obrigada!

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Às minhas eternas “duas fãs número um”, Vaniete e Tatiana, sempre as primeiras a lerem e opinarem com tanta sinceridade tudo o que escrevo. Obrigada por me ajudarem nas revisões, com sua leitura minuciosa, corrigindo até mesmo meus “gafes culinários” – como eu dizer que o petit gateou é feito com bolacha...! À minha amada família, pela compreensão e paciência em cada ausência minha nos encontros de finais de semana que passei no computador, trabalhando incansavelmente neste livro. Vocês são maravilhosos! À editora Novo Século, que acreditou em mim quando eu era apenas uma anônima sonhadora. Obrigada por continuarem apostando em mim. Obrigada pela confiança em meu trabalho. Obrigada pelo carinho com o qual sempre me atendem e recebem. Obrigada pelo trabalho atencioso e primoroso! E obrigada, principalmente, por darem esse espaço tão importante à literatura nacional. Eu os agradeço e aplaudo! E o mais importante dos agradecimentos: a Deus. Não somente por ter me presenteado com este dom tão lindo, mas por ter me lapidado ao longo do tempo e me proporcionado as ferramentas necessárias para jamais desistir na árdua caminhada rumo à realização deste sonho que você, neste momento, segura em suas mãos. Então, obrigada também a você, por abrir as portas do seu coração às minhas palavras e ajudar-me a levar este sonho sempre adiante! Com carinho, Samanta Holtz

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Prefácio Delicado, sensível, envolvente, apaixonante... Assim é Quero Ser Beth Levitt. Depois da força e ousadia de Caroline em O Pássaro, deparei-me com a graciosidade de Amie, uma menina que teria todos os motivos para desistir dos seus sonhos. Em vários momentos, eu me vi correndo com ela atrás de seu ideal; em outros, torcendo para que ela não desistisse e fosse além das suas limitações. Foi mais que uma leitura, foi viver Amie. Foi me ver repetindo as palavras daquele jovem coração tão cheio de esperança. Foi atravessar as páginas de um livro e entrar no mundo harmonioso e carregado de esperança que Samanta Holtz criou. Na vida, existem sonhos que simplesmente nos movem, que nos fazem enxergar além dos obstáculos, acreditando que eles são pequenos demais em vista da realização que nos aguarda. Creio que esses sonhos são o nosso destino. E se, de alguma maneira, os adiamos ou deixamos que as adversidades nos parem, sempre irá faltar algo completo, sempre haverá uma ausência, um espaço vazio que outrora foi criado para acomodar esses sonhos. Mais uma vez, Samanta Holtz nos emociona com sua combinação de palavras, deixando o texto convidativo, em que cada página chama pela outra sem esforço. Sua escrita vai além de um belo romance; ela nos faz pensar sobre nossas atitudes, a vida que temos levado neste mundo e, de uma maneira tão agradável, convida-nos a romper, a acreditar que nossos planos são possíveis, não importa qual situação estejamos vivendo. Quero Ser Beth Levitt é um romance leve, de escrita rebuscada e minuciosamente construída. Parece que cada frase nasceu para pertencer a este livro. Não tenho dúvidas de que a autora é uma das maiores revelações da literatura brasileira e fará com que seus livros sejam lidos por futuras gerações. Poderia passar o dia detalhando o prazer que senti com a leitura desta belíssima obra. Mas, mesmo que quisesse, teria que pensar e repensar, pois ainda

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não encontrei as palavras que possam descrever toda a ternura descarregada em sua escrita. Se eu fechar meus olhos, posso ver a bela Amie desenhando as notas de uma suave melodia com seus pés. Consigo ouvir cada música que marcou os momentos culminantes, e também sentir a vontade de dizer o que Amie declarou com toda a força vinda do seu sonho: eu também quero ser Beth Levitt! Adriana Brazil Autora da série Foi Assim que te Amei

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Capítulo 1 Gostava de pensar que sua vida seria como a dela: mudanças inesperadas, um príncipe apaixonado e o desfecho digno de contos de fadas... O sonho dissolveu-se lentamente na realidade à medida que Amie abriu os olhos. A claridade entre as frestas da janela e o som dos carros lá fora a despertaram pouco a pouco para o amanhecer que abraçava a cidade. Sentou-se na cama, esfregando os olhos. Recusou-se a abri-los por alguns segundos, saboreando os últimos vislumbres daquele sonho interrompido. Risadas. Árvores borradas. O balanço. Sua mãe. O silêncio do quarto foi estilhaçado por um coro desafinado de vozes. Um grupo entusiasmado de garotas abriu a porta, cantando e rindo desordenadamente. – PARABÉNS, AMIE! Uma das garotas se aproximou, segurando um bolo coberto de raspas de chocolate, onde se equilibravam duas velas acesas. Amie emergiu das lembranças, arrastada pela canção esganiçada de parabéns que as recém-chegadas entoavam a plenos pulmões, seguida de gritinhos e abraços. – Dezoito anos, Amie! – exclamou Lana, a mais jovem do grupo. – Agora, você vai poder sair... – E dirigir... e fazer compras... – Trabalhar... namorar! Todas vibraram com a última palavra e Amie fingiu compartilhar daquela animação, disfarçando o frio incômodo que se espalhava por seu estômago. Era seu décimo oitavo aniversário. O mais esperado, mas também o mais temido. Chegar à maioridade significava partir daquela casa que a acolhera por tantos anos para, finalmente, encarar o mundo de frente, sem ninguém a quem dar as mãos. Seu sorriso desapareceu por completo quando olhou através da janela, agora aberta. Estaria preparada para o que a esperava lá fora? Haveria lugar para ela naquele mundo barulhento e agitado? Os pensamentos a transportaram para sete anos mais cedo: a morte da mãe. Um marco que rachou a vida e a história de Amie em duas partes. Desde que ficara órfã, passou a viver no abrigo para meninas – e, desde então, pouco conheceu do mundo que existia além daquelas paredes emboloradas. Viveu o auge de sua adolescência em aulas, atividades dirigidas, regras, amigas e sonhos, totalmente alheia às loucuras e paixões tão

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comuns à juventude. Tudo o que ela conhecia era o certo, o errado e as cenas de amor dos filmes a que assistiam escondidas. – Preciso arrumar minhas coisas – anunciou, jogando a coberta para o lado. – Rosana disse que a advogada virá conversar comigo de manhã. – A gente ajuda! – a pequena Lana se adiantou, prestativa. – Por onde começamos? – Bem... Analisou o quarto, perdida. Seus pertences se misturaram aos rostos meio felizes, meio amargurados das amigas de tantos anos – suas irmãzinhas de coração, como ela gostava de chamá-las. – Vou sentir tanta saudade! – disparou Rebecca, com os olhos vermelhos. A aniversariante mordeu os lábios para conter o choro. – A gente ainda vai se ver – consolou-a, com a voz rouca. – Virei visitá-las sempre, eu prometo! – Não será a mesma coisa. Um silêncio torturante tomou conta do ambiente. Sabrina, a mais velha do grupo, interveio antes que aquela reunião se transformasse em uma cachoeira de lágrimas. – Ei, meninas! Vamos ajudar a Amie para podermos cortar logo este bolo. Todas se mobilizaram pelo quarto, recolhendo os pertences espalhados da amiga. Nenhuma delas tinha muito a chamar de seu, mas, naquela vida simples do abrigo, tinham aprendido a amar o pouco que possuíam. Era parte do segredo do sorriso daquelas meninas, que, tão jovens, já foram obrigadas a encarar perdas tão grandes. Amie foi direto até o criado-mudo e pescou suas coisas em meio à bagunça. Um par de brincos, prendedores de cabelos, uma pulseira de miçangas e... Deteve-se diante do último e mais importante de todos os objetos; um velho romance de pouco mais de cem páginas, com os cantos amarelados e a capa desbotada pelo tempo. O livro favorito da sua mãe. Aninhou-o com cuidado entre as mãos e o analisou, emocionada. Perdera a conta de quantas vezes seus olhos haviam atravessado aquelas páginas, sedentos pela história como se fosse sempre a primeira vez que a liam. Doce Acaso era um antigo romance que contava a história de Beth Levitt, uma jovem bailarina com muitos sonhos e poucos recursos, que vê a vida mudar por completo na noite em que, sentada nos degraus em frente à sua casa, atira no chão o anel que ganhara de um sedutor mentiroso com quem iria ao baile, naquela noite. Um rapaz que passa pela calçada devolve-lhe a joia caída e, notando tanta tristeza, pergunta o que houve. Ela conta sobre sua grande decepção, e o estranho, comovido com aqueles belos olhos tão agoniados, convida-a para ser sua companhia no baile. Encantada, Beth aceita a gentileza, sem imaginar que aquele com quem dançaria a noite toda – e por quem se apaixonaria perdidamente – era ninguém menos que o príncipe Edward. Acarinhou a capa do livro e sorriu. Para ela, Beth se tornara mais que a simples concepção de um escritor; era sua companheira, sua referência, sua melhor amiga. Gostava de pensar que sua vida seria como a dela: mudanças inesperadas, um príncipe apaixonado e o desfecho digno de contos de fadas.

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O susto veio em uma noite fria, quando Amie, então com doze anos, decidiu reproduzir sua parte favorita do livro. Esquivou-se dos olhos atentos da zeladora e, sorrateira, foi se sentar nos degraus em frente ao abrigo, esperando pelo príncipe que a convidaria para dançar e a levaria embora rumo ao seu final feliz. Aguardou pacientemente por quase uma hora, com o queixo tremendo de frio, quando, enfim, um garoto apontou na esquina. Animada, ela deixou cair na calçada seu anel de pedrinhas cor-de-rosa. O garoto olhou para a joia, depois para a menina, cujo coração martelava de expectativa. No entanto, para sua amarga surpresa, o menino simplesmente começou a rir e disparou com o anel nas mãos, desaparecendo no final da rua. O impacto daquela decepção ficou cravado em seu pequeno coração feito um espinho. As risadas do garoto, que sumiam ao longe, soavam-lhe como as de Beth, a zombar da sua inútil tentativa de viver o amor que foi criado para ela. Quase podia ouvi-la dizer, entre os risos: Você jamais será Beth Levitt! – Amie, já acabamos! Amie? Emergiu tão rápido dos pensamentos que se sentiu zonza. Estava novamente no quarto, diante de um grande bolo de aniversário e dos rostos ansiosos das amigas, que ainda esperariam alguns anos até aquele momento da emancipação. Enxergou a si mesma naqueles olhares; a mente cheia de sonhos que esperavam a vinda daquele grande dia para receberem o passaporte da oportunidade. No entanto, agora que o seu momento havia chegado, ela não tinha certeza se estava pronta. Rosana Doladone, a diretora do abrigo, bateu à porta. – Amelie, precisa se trocar. A advogada está aqui e quer conversar com você. Ah... feliz aniversário! Disparou pelo corredor, com o olhar fixo, listando mentalmente as próximas tarefas do dia. – Vamos cortar o bolo, pelo menos! – sugeriu uma das internas, entregando o cortador na mão de Amie. – Faça um pedido! – gritaram em coro, batendo palmas. Os olhos da aniversariante brilharam. Um pedido... Havia tanta coisa que seu coração desejava naquele momento! Apenas um desejo pareceu-lhe tão pouco, tão injusto. Ao mesmo tempo, não fazia ideia de como transpor em palavras todo aquele conjunto de anseios abstratos pulsando em seu coração. – Vamos, Amie! – agitaram-se, impacientes, tentando manter as velas acesas. – Apenas um pedido... – sussurrou. Amie fechou os olhos, concentrada. Aos poucos, as formas dançaram na escuridão, formando imagens. Enxergou Beth sentada na pequena escada de madeira, diante do seu príncipe. De repente, Beth transformava-se em Amie, e era a ela que o príncipe estendia sua mão... Abriu os olhos, decidida. Sem pensar mais, soprou com força o fogo fraco das velas e afundou a faca no bolo macio, recitando várias vezes em seu pensamento o desejo que escolhera para aquele aniversário: Quero ser Beth Levitt!

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Depois da breve comemoração entre amigas, Amie vestiu seus jeans favoritos e o velho moletom azul-escuro, seguindo até o escritório da diretora. Rosana conversava em voz baixa com a advogada e se levantou ao ver a garota: – Amelie – fez um gesto para que entrasse –, esta é Anita Lewiss. Ela é... quero dizer, ela foi a advogada dos seus pais. Amie assentiu, com um sorriso contido, e a advogada fez um aceno solene. – Certo – Rosana se afastou, torcendo os dedos finos das mãos uns nos outros. – Fiquem à vontade. Se precisarem de mim, ou de qualquer coisa... me chamem. Atravessou a porta de madeira e a encostou, deixando ecoarem os estalos rápidos do seu sapato no velho assoalho de taco. Rosana era uma mulher solteira de meia-idade, alta e muito magra. Tinha os olhos aflitos, daqueles que sempre estão resolvendo dois problemas ao mesmo tempo, marcados por rugas precoces e olheiras. Amie sempre pensou que ela seria uma mulher muito bonita se parasse de prender os cabelos naquele coque malfeito e sorrisse mais. Não se lembrava de tê-la visto, algum dia, caminhando devagar ou conversando despreocupadamente. Mas a admirava; acreditava que aquela casa só continuava funcionando graças aos seus sacrifícios. O badalar do antigo relógio da sala abafou os passos da diretora, anunciando as dez e meia da manhã. Foi naquele mesmo horário que, quase sete anos atrás, Amie jogava os últimos punhados de terra sobre a morada final da sua mãe. – É um prazer conhecê-la, Amelie. A advogada estava ao lado dela, com a mão estendida para um cumprimento formal, embora os olhos acusassem uma emoção contida. Amie a cumprimentou, reprimindo uma careta quando um perfume muito doce invadiu suas narinas. Anita era uma mulher na casa dos quarenta e tantos anos, muito elegante e bem conservada. Tinha grandes olhos castanhos, circundados por uma camada espessa de lápis preto, e a boca pequenina bem delineada. O rosto era comprido e fino e os cabelos castanhos estavam perfeitamente escovados para o lado. Passaria facilmente por uma madame em tarde de compras, não fosse o terno reto bege-claro, que lhe emprestava um ar profissional. Anita também observava a garota, com um leve sorriso escapando nos cantos da boca. – Você tem os olhos do seu pai. Fitou as íris castanho-esverdeadas da menina, podendo jurar que quem a olhava era o velho amigo e ex-cliente, Paul Wood. Já os cabelos – lisos, fartos e muito compridos – tinham o mesmo tom loiro-escuro da saudosa Julia. A emoção ameaçou abalá-la, então desviou o assunto: – Vamos ao que interessa? – esfregou as mãos cheias de anéis. – Sente-se, Amelie, por favor.

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Passou para o lado oposto da mesa, sob o olhar confuso e curioso da menina, que se perguntava o que aquela mulher teria a lhe dizer exatamente. A advogada ocupou a cadeira da diretora e pensou por um longo instante antes de erguer o rosto complacente para Amie: – Como você sabe, fui advogada dos seus pais por muitos anos. Eles eram... seres humanos exemplares – baixou o rosto, respeitosa. – Obrigada. Mas, desculpe-me, a senhora me chamou para conversar... sobre meus pais? – Não! – retificou, com um gesto curto das mãos. – Há alguns detalhes que precisamos acertar, agora que você completou a maioridade. Sabe que não poderá mais ficar aqui, não é? Já pensou sobre onde passará a morar a partir de agora? Ela notou o espanto percorrer os olhos da garota e a tranquilizou com um riso certeiro dizendo: – Não se preocupe. A sua mãe pensou, e é sobre isso que nós vamos conversar. Antes de falecer, ela... – respirou fundo – Bem, é melhor eu contar a história desde o início. Amie se ajeitou na cadeira, muito atenta. – Depois que Julia ficou viúva, ela se preocupou muito com o futuro de vocês duas. Mais especificamente com o seu, quando foi diagnosticado o câncer dela – fez uma pausa. – Tanto ela quanto Paul eram filhos únicos, e sua única avó viva, mãe dele, estava internada com estado avançado de Alzheimer. Imagine como se sente uma mãe que sofre de uma doença terminal, sem poder prever o que será da filha pequena quando o inevitável acontecer... Aguardou por uma resposta da menina, mas ela apenas a ouvia, com os olhos muito abertos. – Então, em seus últimos meses de vida, Julia veio me procurar. Ela parecia confusa, porém decidida; queria a minha ajuda para garantir que você tivesse toda a estrutura necessária depois que ela partisse. É claro que aquilo era muito tocante... alguém vir até você e falar com tanta objetividade sobre a própria morte. – Imagino – Amie murmurou, sentindo um aperto no peito. Anita fitou longamente a garota antes de continuar: – Pois bem. Naquela semana, montamos seu testamento. Julia nomeou você como única herdeira de todos os bens, incluindo a casa onde moravam e o dinheiro que ela manteve no banco para acumular rendimentos até você alcançar a maioridade. – A nossa casa? – arregalou os olhos, surpresa. – Nossa casa ainda... existe? – Sim, Amelie – Anita sorriu, satisfeita. – Está lá, do jeito que você e seus pais a deixaram. E é sua. Amie sentiu o coração acelerar. A casa onde passara a infância tinha se tornando um borrão em sua mente, em meio às lembranças confusas daquela outra metade da sua história: a vida em família. Era estranho – e comovente – imaginar-se voltando para lá. Em seu coração, desejou que aqueles bons tempos também pudessem retornar... – Mesmo com todas essas providências – Anita prosseguiu –, você precisaria de um lugar para ficar até ter idade suficiente para se apossar dos seus bens. Então, conversamos com Rosana, que tinha acabado de assumir a diretoria do abrigo. De pronto, ela

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aceitou acolhê-la enquanto fosse necessário, prevenindo que você e seus bens caíssem em mãos incertas. Amie assentiu, calada. Ainda estava abalada com os sentimentos desenterrados ao falarem da sua casa. Tantos momentos foram compartilhados ali! Tantos abraços... tantas vozes que nunca mais ecoariam por aquelas paredes... Anita recuperou o olhar da menina colocando suas mãos sobre a dela, no tampo gelado da mesa. – Amelie, o amor que faiscava nos olhos de Julia, naquele dia, me emociona e admira até hoje. Não é algo que se vê todos os dias. – Ela cuidou de tudo – resumiu, distraída. – Continuou cuidando de mim, como prometeu... Baixou o rosto, comovida, e visualizou sua lembrança mais forte, que o sonho daquela noite trouxera: Sempre cuidarei de você, minha filha, não importa onde eu esteja. Enxugou os olhos na manga do moletom, evitando que uma lágrima escorresse. – O que eu devo fazer agora? – pigarreou, firmando a voz. – Vou precisar de umas assinaturas suas – Anita abriu uma pasta, colocando os óculos de armação dourada enquanto vasculhava uns papéis. – Não se preocupe, eu a orientarei em todo o processo de posse do que é seu por direito. Enquanto isso, por que não arruma suas coisas e se despede das suas amigas? – Certo – levantou-se. – Com licença, doutora Anita. E obrigada. Por tudo. A advogada deu uma piscadela simpática e começou a arranhar o papel com anotações velozes. ****

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Mais tarde, naquele mesmo dia, Amie atravessou as portas do abrigo para uma saída sem retorno. Ficou parada no patamar, segurando a pesada mala em uma das mãos e uma caixa debaixo do braço. Por todos aqueles anos, vivera sob os cuidados que sua mãe providenciara com tanto carinho. No entanto, assim como o feitiço da Cinderela, tinham hora certa para acabar. Olhou para trás e viu as amigas de todos aqueles anos ainda chorando, pedindo para visitá-las sempre. Mas ela sabia que, por mais que o fizesse, sua vida jamais seria como antes. Nunca mais as confidências no meio da noite. Nunca mais o quarto escuro, a janela emperrada, os lençóis com cheiro forte de umidade. Nunca mais as batidas regulares do relógio antigo da sala. Nunca mais o aguardar ansioso por aquele aniversário. Era chegada a hora de cuidar de si mesma, assumindo as rédeas da própria vida. Desceu o primeiro degrau em direção à rua, sentindo que, naquele instante, sua vida se rachava dolorosamente em um terceiro pedaço.

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