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O tesouro da Ordem de Cristo Copyright © 2016 by Daniel Pedrosa Copyright © 2016 by Novo Século Editora Ltda. coordenação editorial
Vitor Donofrio
gerente de aquisições
Renata de Mello do Vale
editorial
Giovanna Petrólio João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda
assistente de aquisições
Acácio Alves
preparação
projeto gráfico e diagramação
revisão
capa
Marta Cursino Josefina Neves Mello Gabriel Patez Silva
João Paulo Putini Dimitry Uziel
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB‑8/7057 Pedrosa, Daniel O tesouro da Ordem de Cristo Daniel Pedrosa Barueri, SP: Novo Século Editora, 2016. (Setor 27; 3) 1. Ficção brasileira 2. Ficção policial I. Título 16‑1051
cdd‑869.3
Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção brasileira 869.3
novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699‑7107 | Fax: (11) 3699‑7323 www.novoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br
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Para minhas tias Anadir, Magali, Maria JosĂŠ e TarcĂlia
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Este livro é uma obra de ficção. A participação de entidades e personagens históricos, bem como suas respectivas citações, são criações da imaginação do autor e não podem ser comprovadas ou encontradas em registro oficial. Quaisquer semelhanças com eventos reais, organizações ou pessoas também são mera coincidência.
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RegiĂŁo central de Salvador
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Convento de Cristo
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Prólogo
A respiração ofegante de Horácio não representava nem a mínima parte
do cansaço que consumia o robusto corcel cinza no qual estava montado. Cavalo e cavaleiro já haviam percorrido mais de 140 quilômetros quando cruzaram a entrada da cidade de Lisboa, mas a sensação de insegurança ainda permanecia intensa e latente. A noite era fria, e a escuridão das ruas era vencida apenas pe‑ las poucas luzes bruxuleantes que partiam dos postes metálicos, cujas lanternas eram abastecidas com óleo de baleia. A névoa característica da cidade portu‑ guesa não permitia visibilidade superior a dez metros, e, mesmo assim, Horácio gritava e açoitava o animal sem qualquer piedade. Repetindo o movimento que fazia desde o primeiro instante em que deixara a cidade de Tomar, ele esticou o braço, tocando a caixa de cobre que balançava presa ao corpo de seu cavalo. A missão para que fora treinado durante toda a sua permanência na Ordem, a qual nunca imaginava ter que realizar, estava chegando ao fim. Em seu íntimo, o cavaleiro agradeceu por aquele objeto continuar ali, no mesmo lugar onde o havia colocado, e então se concentrou em seu caminho. Sabia que sua vida de oração e promessa não teria sentido se o maior de todos os segredos de sua Ordem fosse revelado, de modo que precisava reunir o que restava de suas forças para chegar ao fim daquela jornada. A sociedade que majestosamente haviam construído estava em risco, e apenas um homem podia evitar que tudo fosse perdido. Nas últimas horas, muitos haviam padecido para defender os muros da fortaleza, e ele era agora a última barreira entre os acontecimentos do passado e a construção do futuro. Passaram próximo ao Castelo de São Jorge, cruzando um bosque repleto de grandes árvores. Dez minutos, talvez quinze, era o tempo que separava o cavalei‑ ro de seu destino. As ruas estreitas e úmidas, apesar de perigosas e escorregadias, eram a distância mais curta, e Horácio decidiu que esse seria o melhor caminho a seguir. Na madrugada silenciosa, o som dos cascos sobre as pedras denuncia‑ va sua presença, mas era um risco necessário, um risco que tinha que correr. 11
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Cavalgaram por alguns minutos, descendo a colina que levaria ao litoral até che‑ gar à última curva. Apenas mais alguns metros e poderiam avistar a claridade que os conduziria a seu destino. Era o fim da descida, e Horácio açoitou o animal para que corresse ainda mais. Estava perto e não havia por que perder tempo. Parecia o melhor a fazer, mas, dessa vez, sua decisão não estava correta. As‑ sim que passaram pela última curva da rua, uma carroça repleta de barris surgiu à frente dos dois. Quando avistou o obstáculo, o corcel tentou diminuir a veloci‑ dade, mas o piso escorregadio o impediu de parar, e ele se chocou violentamente contra o veículo de madeira. Horácio não teve tempo de sequer entender o que os havia atingido. O animal bateu na lateral da carroça, fazendo com que os barris caíssem. Alguns deles, ao bater no chão, romperam‑se, espalhando o conteúdo de seu interior sobre as pedras da rua, enquanto outros rolaram para longe, sem qualquer dano aparente. Horácio, impulsionado pela velocidade com que colidira, foi jogado para frente, caindo sobre os objetos destruídos e sobre o líquido sujo e inutilizado que agora jazia sobre a rua. Os primeiros instantes após a queda foram de confusão e dúvida. Demorou até que o cavaleiro pudesse se dar conta do que havia ocorrido, para então pensar nas alternativas que tinha. A dor era quase insuportável: sua perna estava quebrada e seu corpo sangrava, devido aos vários cortes que o acidente lhe causara. O corcel, imóvel ao lado da carroça, parecia não ter tido qualquer chance de sobrevivência. Horácio olhou para o corpo do animal e, por um breve momento, o desespero tomou conta de sua mente. A caixa continuava ali, mas parte do corpo do cavalo repousava sobre ela. Horácio se arrastou penosamente. A dor que sentia era imensa, como se seus ossos o dilacerassem por dentro. Tocando a caixa, percebeu que o conteúdo, pro‑ tegido por estruturas metálicas, ainda estava intacto. Imediatamente, então, se deu conta do que deveria ser feito. Encostou o corpo sobre a carcaça do animal, retirando o objeto que ele trazia preso do outro lado da barriga. Era um arcabuz, uma arma pouco conhecida, cujo poder destrutivo é enorme. Com dificuldade, colocou a pólvora em seu interior, completando a carga com pequenas esferas de ferro que estavam em uma saca presa ao cabo de madeira do armamento. En‑ quanto lágrimas escorriam de seus olhos, Horácio encostou o arcabuz no chão, posicionando‑se para que pudesse disparar. 12
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Moradores desciam de suas casas para ver a origem do barulho que os ha‑ via acordado, surpreendendo‑se ao encontrar um homem pronto para atirar em quem vinha em sua direção. Ele dizia coisas desconexas e fazia uma exigência: – Quero falar com Dom Inácio de Loyola.
p As batidas violentas na madeira da porta assustaram momentaneamente Dom Inácio. Havia muitos anos não tinha seu sono interrompido por soldados em emergências militares, muito menos àquela hora da madrugada. O homem de 57 anos já não era o mesmo que enfrentara batalhas memoráveis, como a de Pamplona, mas sabia de sua missão naquela cidade, de modo que não estava surpreso. Com calma, o ocupante do posto geral da companhia se levantou de seu catre e foi colocar as vestes, despidas poucas horas antes. – Desculpe‑me, Dom Inácio – disse o soldado, assim que a porta foi aberta –, mas é algo muito importante. – Diga, soldado – respondeu ele, ainda arrumando sua roupa. – Tem um homem, senhor, um cavaleiro da Ordem, que está na cidade e exige falar com o senhor – anunciou o soldado, ofegante. – Por que não o trazem aqui? – perguntou Inácio. – Não podemos, senhor. Ele sofreu um acidente e está muito machucado. Tentamos nos aproximar, mas ele ameaçou atirar em nós. – O homem fez uma pausa. – Ele tem uma espécie de canhão nas mãos… Parece perigoso. Em um instante, Dom Inácio percebeu o que ocorria. Alguém os denun‑ ciara. A missão que haviam planejado em segredo por meses estava expos‑ ta, e precisavam agir imediatamente. Desde que saíram de Roma, com uma incumbência determinada pelo próprio Papa, sabiam que aquele era o maior desafio de suas vidas, e nada nem ninguém poderia fazer com que falhassem. Deveriam ser precisos e cuidadosos para garantir que o tesouro, que haviam protegido por tantos anos, não influenciasse na construção do futuro que pre‑ tendiam para a humanidade. – Acorde o Comandante Tomé de Souza e peça para que ele prepare as naus para partir – disse ele, em tom firme. – Nosso tempo acabou. Se fizerem tudo como combinamos, poderão partir em pouco mais de uma hora. 13
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– Sim, senhor – respondeu o soldado. – E peça – completou antes que ele saísse – para que um grupo de soldados me espere na frente da Torre. Vamos ver se esse cavaleiro cumpriu a sua missão. Se o haviam enviado até ele, o objeto deveria estar em seu poder. Assim que o soldado deixou o aposento, Dom Inácio pegou sua espada e, colocando‑a na cintura, desceu em direção à saída da Torre. A névoa que pairava sobre o rio Tejo não permitia que a bela fortaleza fosse vista em todo seu esplen‑ dor e ainda dificultava a locomoção por suas escadas externas. Assim que desceu o último degrau, Inácio sentiu o ar frio e úmido tocar seu rosto. Os símbolos da Ordem de Cristo, esculpidos nas pedras que rodeavam a Torre, lembravam‑no ainda mais da importância de sua missão. Na praia, Dom Inácio montou seu cavalo e, junto com mais seis soldados, deixou a Torre de Belém rumo à cidade.
p Horácio sentia as forças esvaírem‑se de seu corpo, sem nada conseguir fazer para evitar. Estava cansado e sabia que em pouco tempo não poderia mais cumprir a pro‑ messa que fizera à Ordem e, principalmente, a Deus. O movimento a seu redor havia mudado e, de repente, era como se toda a cidade tivesse acordado com sua chegada. Ao mesmo tempo em que o assustava, tal cenário trazia a esperança de que algo pu‑ desse ser feito antes que os invasores encontrassem seu rastro e chegassem até Lisboa. De onde estava, Horácio podia ver alguns soldados guardando posição e algumas pessoas curiosas que se aproximavam para ver o que acontecia. Nos últimos minutos, porém, passara a perceber também marinheiros, com carroças lotadas de objetos, correndo em direção ao porto. Não poderia ser coincidência; Dom Inácio havia rece‑ bido seu recado e agora não deveria demorar muito. Seus ouvidos começaram a reconhecer um som de cascos de cavalo se apro‑ ximando, e, mais uma vez, Horácio apoiou a arma, mirando nos soldados. Havia feito esse movimento várias vezes, e até o momento tinha conseguido mantê‑los distantes. Rapidamente as pessoas a sua frente se afastaram, assustadas, e o ho‑ mem que ele aguardava surgiu diante de seus olhos. – Dom Inácio! – falou, com dificuldade. – O senhor veio. – Claro, meu rapaz – respondeu ele, abaixando‑se ao lado do moribundo.
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Com o movimento do corpo, a ferida de sua perna doeu ainda mais; mesmo as‑ sim, Horácio se manteve na mesma posição. Os ferimentos eram profundos e, logo que os viu, Dom Inácio percebeu que não seria possível salvar a vida do cavaleiro. – Eles invadiram o Castelo, senhor – começou o rapaz, soltando a arma e tentando se aproximar do líder. – Mataram muitos dos nossos e quase chegaram ao tes… – Não se esforce – interrompeu Dom Inácio –, apenas me diga se conseguiu trazê‑lo. – Sim, senhor, eu consegui – disse o homem, agora chorando. – Eu trouxe, senhor, está aqui, aqui… Dom Inácio olhou para onde o jovem apontava e conseguiu ver a caixa. Ela estava presa embaixo do corpo do cavalo. – Peguem uma corda, rápido! – ordenou, virando‑se para os soldados. – Pre‑ cisamos tirar o cavalo de cima da caixa, agora! Com cuidado, os soldados afastaram Horácio e, amarrando a corda em volta do animal, moveram seu corpo, revelando uma resistente caixa de cobre que, por sorte, acidentalmente ficara escondida de olhos curiosos. Dom Inácio soltou a caixa do corpo do animal com o auxílio de sua espada e contemplou o objeto, ainda em perfeito estado. A missão ainda poderia ser concluída. O líder deu um leve toque na cabeça de Horácio, agradecendo por sua jorna‑ da, e deu‑lhe a última bênção, na intenção de preparar seu caminho para a vida eterna. Horácio sabia que seu espírito amanheceria além deste mundo, mas não temia, porque seu dever fora cumprido. – Cuide dele – disse Dom Inácio a um dos soldados. – Os demais, venham comigo. – Obrigado, senhor – agradeceu Horácio. – Temos que mandar esta caixa para o Novo Mundo antes que os homens que atacaram a Ordem cheguem a Lisboa. É a única maneira de mantê‑la segu‑ ra – informou Dom Inácio, enquanto se punha novamente de pé. – Nossa noite está apenas começando, senhores! Preparem as suas armas, pois o nosso futuro depende de vocês. Era sexta‑feira, 1o de fevereiro de 1549.
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capítulo 1
Um último suspiro
O sol que se punha no horizonte anunciava o fim da tarde, quando Ga‑
brielle deixou as dependências do depósito do Setor 27, em Brasília. Quase doze meses haviam se passado desde os acontecimentos no laboratório de Goiânia, e mesmo assim as consequências das descobertas realizadas em sua última expe‑ dição ainda atraíam repórteres e curiosos vindos de todo o país. – Doutora! Doutora! – chamou um homem com trajes despojados e um gra‑ vador digital numa das mãos, tentando abordá‑la enquanto ela caminhava em direção ao estacionamento. – Quais são suas previsões para os novos segredos? Serão revelados novos nomes ou novos experimentos, capazes de mudar os ru‑ mos do país? Por favor, converse conosco! Gabrielle juntou os cabelos negros, jogando‑os para as costas, e levantou a mão, acenando negativamente, numa tentativa inútil de despistar o repórter. Como era de costume, seguranças a cercavam em seu trajeto, buscando mantê‑la longe de confusões, mas aquilo não evitava que a imprensa, insistente, permane‑ cesse em seu encalço. – Com os casos de corrupção que estouraram pelo país nos últimos meses, seguidos por novos boatos e por prisões nas mais altas esferas do governo – insis‑ tiu ele –, uma parte da mídia tem colocado uma expectativa grande em relação às revelações dos novos depósitos. Poderia ao menos nos dizer quantos são e o que ainda podemos esperar deles? De fato, a estabilidade a que o país havia se habituado nos últimos anos esta‑ va radicalmente mudada. Escândalos de corrupção, crise financeira e denúncias de espionagem internacional somavam‑se a revelações sobre informações ocul‑ tas durante muito tempo nas bases do Setor 27, transformando a opinião pública em um grande pandemônio. A jovem e bonita historiadora, que sonhava um dia poder mudar os rumos de seu país, sentia sobre as costas o peso de estar em 17
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meio a tanta desilusão. A magia dos tempos de glória e crescimento de um país emergente agora abria espaço para uma economia fragilizada e uma profunda crise política, financeira e social. O desemprego e a desconfiança internacional castigavam a população, e nem mesmo o mais otimista dos analistas conseguia imaginar quando esse terrível pesadelo chegaria ao fim. – Obrigada! – disse ela, quando um dos soldados de sua escolta, bloqueando a passagem do repórter, abriu a porta do carro que havia sido trazido pelo mano‑ brista e que a levaria até o apartamento alugado no centro de Brasília. – Não há de quê, senhora – respondeu ele, sem alterar o semblante rígido. Gabrielle acomodou‑se no confortável banco de couro e, antes de colocar o cinto de segurança, encheu os pulmões com o ar gelado do interior do car‑ ro. Respirar profundamente lhe trazia tranquilidade em situações de pressão como aquela. A jovem queria ter as respostas para todas as perguntas que lhe faziam, mas, ao mesmo tempo, desejava não ter nenhuma. A carga emocional de ter que decidir o que podia ou não ser revelado, o conhecimento sobre fatos que algumas vezes lhe traziam grande pesar e o medo associado a tudo o que vivenciara nos últimos tempos eram algo diferente do que imaginava que pu‑ desse um dia enfrentar em sua vida. O Setor 27, com o tempo, se tornara uma arca do tesouro, cujas peças, de riqueza imensurável, se mostravam contami‑ nadas e cobertas por grandes maldições. Como em um filme de fantasia, quem tivesse contato com cada um daqueles segredos carregaria consigo histórias capazes não só de transformar sua vida, mas também suas crenças e a maneira como enxerga o mundo a seu redor – positiva e também negativamente. O bip indicando que o cinto de segurança não fora travado ecoou forte em seus ouvidos assim que engatou a marcha. Com certeza aquela noite terminaria com uma enxaqueca tremenda. Gabrielle passou a faixa protetora pelo corpo e travou a fivela, acelerou e saiu em direção à avenida principal. O tempo estava agradável quando deixou o prédio do Ministério da De‑ fesa. Gabrielle decidiu então abrir os vidros e respirar um pouco de ar fresco. O trânsito parecia tranquilo, e aquilo a fez lembrar que em poucos dias seu trabalho em Brasília estaria terminado. Os mais de 25 mil metros quadrados do depósito localizado naquela cidade estavam quase vazios, o que sinalizava possíveis e ansiadas férias. Já fazia meses que não sabia o que era descanso ou diversão, e o acúmulo de atividades já lhe causava um cansaço evidente. Até 18
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mesmo a relação com Fernando, seu namorado, aparentemente estabilizada depois de tanto tempo juntos, estava sofrendo as consequências do status e da posição que ela agora ocupava. O telefone celular, ligado ao sistema multimídia do veículo, reproduziu uma música, anunciando à jovem que havia uma mensagem de voz na caixa postal. Trabalhar em um depósito secreto no subsolo de um prédio do governo tinha algumas poucas vantagens, e uma delas era não ter contato com pessoas durante, no mínimo, dez horas de seu dia. Mesmo enquanto dirigia, Gabrielle digitou o código de desbloqueio do telefone e aguardou que a mensagem fosse iniciada no sistema de viva voz. – Boa tarde, Gabrielle! – disse uma voz masculina. – Aqui quem fala é Car‑ doso. Hoje é quinta‑feira, são exatamente 14 horas e 32 minutos. Estou ligando para contar que, depois de 11 meses e 22 dias, o coronel Castro saiu do coma. Por um instante, Gabrielle se surpreendeu. Havia muito tempo não ouvia falar do coronel, e a simples informação de que aquele homem pudesse voltar a estar entre eles parecia lhe provocar sensações ruins. – Na verdade – continuou Cardoso –, logo após ter acordado, ele acabou falecendo. Como Cardoso não explicou a causa da morte, Gabrielle ficou ainda mais surpresa. – Estou ligando para avisá‑la e também para dizer que seria interessante se você pudesse vir para São Paulo imediatamente. Pelo que pudemos apurar, a morte do coronel não teve a ver com os ferimentos ou com o tratamento pelo qual ele havia passado. Durante o exame de necropsia, acharam indícios de uma droga ilícita e concluíram que algo foi injetado em seu corpo. A enfermeira disse que os sinais vitais dele estavam melhorando quando ele acordou e que ele teve até alguns delírios, chegando a abrir os olhos e a se comunicar. De maneira geral, eu diria que essa história está bem estranha. Pedi para chamarem o Fernando e acho que seria bom se você também viesse para cá. É isso, câmbio e desligo! Só ao fim da mensagem é que Gabrielle pôde ouvir o som das buzinas, que ten‑ tavam, em vão, fazer com que seu carro cruzasse o semáforo, que já abrira e fechara duas vezes. Buscando disfarçar, fingindo que os sons não se dirigiam a ela, liberou o caminho, colocando seu carro novamente em movimento. Percebeu então que, nas poucas palavras ditas por Cardoso, havia muito mais informação do que o colega 19
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tivera a intenção de lhe passar. Esconder segredos era a principal atribuição do co‑ ronel Castro, e tudo indicava que ele ainda devia carregar consigo alguns dos mais importantes. Afinal, qualquer um que se dispusesse a enfrentar a segurança de um hospital militar para eliminar um paciente de alta patente, além de muito corajoso, devia ter, por certo, um motivo forte e urgente. Pelo visto, a semana de trabalho em Brasília acabaria mais cedo e, depen‑ dendo do desenrolar da história, suas almejadas férias teriam que esperar – mais uma vez. Aquele era certamente um assunto de grande importância e que não poderia ser adiado. Com as novas informações e o pedido de Cardoso, o planejamento para a noite havia mudado. Agora se resumia a fazer as malas e… viajar!
p A vida atribulada e desgastante de promotor agora não consumia tanto Fernando como nos últimos anos. O jovem advogado havia mudado sua rotina e passou a dividir seu tempo de maneira equilibrada e saudável – uma transfor‑ mação significativa e surpreendente para alguém com o básico estereótipo de homem correto, metódico e prestativo. Essa era uma nova maneira de enxergar as coisas, resultado das experiên‑ cias de alguém que havia encarado a morte várias vezes nos últimos tempos. Nos dois episódios em que se envolvera com o Setor 27, correr perigo e ar‑ riscar a vida foi o que de fato mais lhe acontecera. O passado exemplar, de um indivíduo seguidor das regras e respeitador de leis, fora corrompido pela participação direta em invasões, brigas, fraudes e todo tipo de irregularidade imaginável. A verdade é que a exposição a essa overdose de pequenos delitos havia transformado sua personalidade, e agora pouco restava daquele sujeito cartesiano do início da vida adulta. Para atender à rotina dessa nova fase de sua vida, Fernando abrira um escri‑ tório, em que contava com a ajuda de um grupo de assistentes para o gerencia‑ mento de seus processos. Era uma solução que lhe consumia parte da verba, mas, em contrapartida, rendia tempo, permitindo que fizesse atividades diferentes, como aquela a que se dedicava naquele momento. Pow!, ecoou o som pela sala. 20
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Mesmo com a proteção auditiva era possível ouvir o barulho oco dos dis‑ paros cada vez que um deles era efetuado. Fernando havia esvaziado um pouco mais da metade do pente de sua IMBEL.380 e continuava a disparar na direção do alvo à sua frente, em intervalos próximos a dez segundos. Esse era o tempo médio que levava para estabelecer a mira e garantir que o alvo fosse atingido. Pow!, soou o tiro seguinte, e outros mais… Depois da experiência com armas e fuzis militares durante a ação no porto de Santos, parecia adequado saber mais sobre manuseio, funcionamento e técnicas para conseguir bons disparos. Mesmo conhecendo um pouco sobre essas máquinas e já tendo efetuado alguns tiros antes daquele dia, a sorte o havia favorecido na investida contra os terroristas, e a experiência lhe havia despertado a necessidade de se apro‑ fundar no assunto. Até mesmo Gabrielle, uma aventureira nata, já havia sugerido que treinassem, e, por isso, passara mensalmente a comparecer aos treinos. Pow! Surpreendentemente, Fernando se mostrara um bom atirador e também al‑ guém interessado no esporte. A possibilidade de ferir pessoas não lhe agradava, mas a prática do tiro se mostrava uma atividade interessante e, algumas vezes, tranquilizadora. Alguns processos travados, com significativas perdas de paciên‑ cia, eram resolvidos facilmente depois de uma sequência de tiros ao alvo imóvel daquela sala. Uma terapia que não causava risco a pessoas e que tornava suas tardes produtivas e desestressantes. Pow!, ecoou o último disparo. Fernando retirou o abafador auricular e, em seguida, os óculos de seguran‑ ça. Mais uma sessão havia terminado, e agora era só adicionar seus pontos ao ranking de atiradores do estande. Ele apertou um botão ao lado da cabine de tiro e acionou o motor do alvo. Imediatamente, o papel que havia recebido os tiros começou a se mover em sua direção. Enquanto aguardava o resultado de seu treino, Fernando retirou o cartucho da arma e checou se a câmara estava vazia – parte do procedimento padrão de final de treino. Diferente do que se podia imaginar, o promotor não portava arma fora daquele ambiente. A tenta‑ ção de ter à mão um objeto capaz de ferir pessoas, ainda mais em uma cidade onde conflitos eram rotineiros, não era algo que ele, mesmo sendo tranquilo e coerente, se permitia desejar.
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Estava guardando a arma em sua caixa de madeira quando outro som, agora suave e gentil, chegou a seus ouvidos: – Nada mal para um civil! Sem precisar se virar, Fernando pôde reconhecer a identidade do enuncia‑ dor. A militar de traços orientais e comportamento reservado, assim como o de outros membros do Setor 27, havia se tornado sua amiga, e era impossível confundir sua voz. Fernando continuou a guardar as partes da arma na caixa e respondeu: – Vindo de uma profissional, entendo que seja um grande elogio. Depois de muito contato com o grupo do Setor, ele descobrira que a melhor maneira de se relacionar com aquelas pessoas era por meio de poucas e bem escolhidas palavras. Ele aguardou enquanto Patrícia se aproximava da baia e re‑ tirava o papel afixado com um pregador. Ela observou com atenção os disparos, surpresa com os resultados encontrados. Em sua maioria, as perfurações se loca‑ lizavam entre o alvo principal e suas imediações. A militar sorriu timidamente, confirmando sua percepção de que Fernando havia de fato evoluído muito em seus treinamentos. Ela então continuou: – Realmente impressionante! Fernando retribuiu o sorriso, aceitando o elogio. Virando em sua direção, respondeu: – A que devo tão ilustre visita? – Naquele instante, ele a olhava de frente. – Não acredito que a tenente tenha vindo até aqui apenas para acompanhar minha evolução. Ele pegou o papel das mãos de Patrícia e, carregando a caixa em que havia colocado a arma, seguiu em direção à recepção do clube de tiro. A jovem o acom‑ panhou, caminhando praticamente a seu lado. – Mesmo estando surpresa com seus resultados – disse ela –, você sabe que real‑ mente não estou aqui só para visitá‑lo. Aconteceu algo e precisamos de sua ajuda. – Nestes últimos meses – disse ele, enquanto caminhavam – vocês têm me proporcionado algumas noites de insônia, além de dias distante de minha namo‑ rada. Não sei do que se trata, mas minha primeira resposta é não. Tenho um jantar importante com a Gabrielle neste final de semana e não vou perdê‑lo por nada. Patrícia, que também passara a conhecer o comportamento de Fernando, sorria enquanto o acompanhava. Aquele homem alto, de cabelos negros e um 22
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olhar conquistador, lhe causava admiração por sua firmeza, mas não era alguém verdadeiramente irredutível. Sua negação inicial era algo a que ela já havia se acostumado e que passara até mesmo a diverti‑la. De todas as vezes em que ha‑ viam precisado da ajuda de Fernando, pelo menos em metade delas sua reação não fora diferente. Ela sabia que precisava esperar até que ele pudesse absorver o primeiro impacto e, então, só depois disso, ele permitiria que ela entrasse em detalhes sobre o assunto e de que se tratava o pedido de ajuda. Os dois atravessaram algumas portas, despontando em um corredor com pa‑ redes brancas e um piso revestido de cerâmica vermelha. Fernando continuou caminhando até encontrar o balcão de atendimento, no salão principal do clube. Ele colocou a caixa de madeira sobre o balcão e entregou o papel ao atendente: – Mais pontos para a minha ficha, Walter – disse ele. – Dessa vez, acho que bati meu recorde! No salão com quase cem metros quadrados, dezenas de armas antigas de‑ coravam as paredes. Rifles, pistolas, revólveres e até mesmo espadas davam um ar de militarismo ao lugar. O homem de meia‑idade e traços rústicos que estava atrás do balcão se aproximou e, pegando a folha de tiros, respondeu: – Pelo visto seus tiros estão melhorando, Fernando. Este é mesmo um ótimo resultado! – Parece que teremos um novo líder do ranking em breve, meu caro Walter! – respondeu ele, sorrindo. – Você não perde por esperar. Na parede atrás do balcão de onde o homem falava com Fernando, um antigo quadro negro ranqueava nomes e categorias dos diversos atiradores associados ao clube. Fernando estava entre os dez primeiros, mas faltava muito para que chegasse ao topo. Consciente, ele sabia que dificilmente chegaria à liderança, mas nunca deixava de provocar o homem. Walter pegou a caixa da arma, trancou‑a no cofre principal e retornou ao atendimento: – Desculpe a indelicadeza, meu caro, mas acho que ainda falta muito chão. – Inclua meus pontos no placar, e não se esqueça de nenhum – disse Fernan‑ do, enquanto se afastava. – Quando menos esperar… up! – concluiu ele, apon‑ tando para o teto. – Bom descanso – desejou o atendente, sorrindo –, e mande lembranças a Gabrielle. – Claro, serão dadas! Obrigado! 23
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Patrícia permaneceu em silêncio enquanto os dois caminhavam para fora do clube. O dia estava quente, e ambos tiveram que proteger parcialmente os olhos da forte luz solar assim que deixaram o prédio. Fernando caminhava sobre o piso de cascalho rumo ao estacionamento, quando, enfim, voltou a lhe dirigir a palavra: – Tudo bem, Patrícia, já percebi que vai continuar me seguindo até que eu a ouça – atestou ele, caminhando sem nem mesmo olhar para ela. – Pois bem, pode me dizer o que está acontecendo? – O coronel está morto – respondeu ela subitamente. Fernando parou e, voltando o corpo, olhou na direção da amiga. De repente, o tom da conversa havia mudado, e Patrícia agora tinha toda a sua atenção. – Temos razões para acreditar que um homem invadiu o hospital e, não sa‑ bemos como, o assassinou. Não temos os pormenores do ocorrido, mas acredi‑ tamos que possa ter sido algo premeditado. Fernando ficou em silêncio, pensando por alguns segundos, e só então voltou a falar: – Suspeitam de alguém? – perguntou. Desta vez, ele estava mais sério e, cer‑ tamente, mais atento à conversa. – Não! Na verdade, nenhum de nós esteve no local da morte ainda. O caso é recente e só teremos acesso ao hospital amanhã. Cardoso marcou um horário para vocês se encontrarem – Patrícia falou com certo pesar, tentando parecer menos decepcionada. – Ele chamou Gabrielle e pediu para que eu viesse lhe pro‑ curar. Me pediu para convocá‑lo. Fernando olhou para seu carro enquanto Patrícia falava. Por um instante, toda a história da qual havia participado voltou à sua memória. Conscientemente, ele sabia que o coronel, durante toda sua vida, fora um homem inescrupuloso e que sua morte era motivo de alívio para muitas pes‑ soas. Aquele homem, no entanto, carregava consigo informações que poderiam reduzir a distância entre eles e as verdades que há muito procuravam sobre o Setor. Por isso, e somente por isso, sua morte também era rodeada de mistério e preocupações. – Posso lhe mandar por mensagem o endereço do hospital e o horário do nosso encontro, caso queira – disse a jovem, enquanto aguardava uma resposta. – Car‑ doso ficaria contente se aparecesse por lá. Precisamos descobrir o que aconteceu. 24
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Fernando voltou a olhá‑la e respondeu: – Faça isso, eu estarei lá. Enquanto caminhava até o carro, novos pensamentos e inquietações preen‑ chiam sua mente. Mais uma vez, a paz e a tranquilidade que tanto buscava em sua vida afastavam‑se dele sem qualquer aviso prévio. Era como um carma anti‑ go que o ligava a Gabrielle e às histórias misteriosas do Setor 27. Como das outras vezes, ele pressentiu que algo de muito ruim estava para acontecer.
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