Apocalipse 13 - Isso Poderia Realmente Acontecer?

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Título original em inglês: COULD IT REALLY HAPPEN? Direitos de tradução e publicação em língua portuguesa reservados à CASA PUBLICADORA BRASILEIRA Rodovia SP 127 – km 106 Caixa Postal 34 – 18270-970 – Tatuí, SP Tel.: (15) 3205-8800 – Fax: (15) 3205-8900 Atendimento ao cliente: (15) 3205-8888 www.cpb.com.br 1ª edição neste formato Versão 1.1 2013 Coordenação Editorial: Marcos De Benedicto Editoração: Matheus Cardoso, Paulo Roberto Pinheiro e Marcos De Benedicto Design Developer: Anderson Mendes e Éfeso Granieri Projeto Gráfico e Capa: Éfeso Granieri Imagens da Capa: Fotolia

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio, sem prévia autorização escrita do autor e da Editora.

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Agradecimentos Desejo agradecer a várias pessoas que contribuíram para o aperfeiçoamento deste livro. O advogado Alan Reinach, diretor de Liberdade Religiosa da União do Pacífico da Igreja Adventista do Sétimo Dia, leu vários capítulos que tratam de questões relacionadas à igreja e ao Estado; em seguida, fez valiosas sugestões. O Dr. John Markovic, professor de História Europeia na Universidade Andrews, leu meus capítulos que falam sobre a história da Europa. Seus comentários sobre a história da Alemanha, examinada no capítulo 5, foram especialmente úteis e tornaram esse capítulo muito mais preciso. O Dr. Brian Bull, amigo pessoal e médico da Universidade de Loma Linda, amavelmente se dispôs a ler todo o texto. Suas sugestões tornaram o livro, como um todo, muito mais fácil de ler. Eu gostaria também de agradecer a David Jarnes, meu editor, pelo ótimo trabalho de preparação do texto para publicação. Mesmo as coisas mais bem escritas podem ser melhoradas por um editor competente, e David certamente realizou isso de maneira admirável neste livro. Finalmente, desejo expressar meu agradecimento aos editores da Casa Publicadora Brasileira que trabalharam na edição em português.

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Prólogo Gosto de predições extravagantes e tolas. Quanto mais excêntricas e tolas elas são, mais gosto delas. Por quê? Porque, quanto mais extravagante e tola uma predição parecer inicialmente, maior impacto causará quando se cumprir. É claro que sempre há a possibilidade de que minha predição não se cumpra. Nesse caso, minha predição não é a única coisa extravagante e tola – eu também sou! Esse é o risco que corre qualquer pessoa que faça uma predição. Portanto, é melhor estarmos seguros de que nossas predições têm um fundamento sólido e racional, de acordo com os melhores fatos disponíveis no momento.

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rederick Wheeler, um ministro metodista episcopal, estava realizando, no início de 1844, uma cerimônia de santa ceia numa pequena igreja em Washington, New Hampshire, num domingo de manhã. Antes de servir os emblemas, ele disse à congregação que “todos os que confessam comunhão com Cristo numa cerimônia como esta devem estar prontos a obedecer a Deus e guardar Seus mandamentos em todas as situações”. Rachel Oakes Preston, uma batista do sétimo dia, assistiu ao culto. Mais tarde, quando Wheeler a visitou em casa, ela o desafiou: – O senhor se lembra, pastor Wheeler, de ter afirmado que todos os que confessam a Cristo devem obedecer a todos os mandamentos de Deus? – Sim. – Eu estive a ponto de me levantar naquela hora e dizer uma coisa. – Percebi – Wheeler respondeu. – O que a senhora pensou em dizer? – Eu gostaria de dizer que o senhor deveria deixar de usar aquela mesa e cobri-la com uma toalha até que começasse a guardar os mandamentos de Deus. Wheeler foi pego de surpresa e perguntou o que ela queria dizer. A Sra. Preston falou que tinha em mente o quarto mandamento, o qual Wheeler estava violando por não guardar o sétimo dia da semana. Wheeler aceitou o desafio e foi para casa estudar o que a Bíblia ensina sobre esse dia. Algumas semanas depois estava guardando seu primeiro sábado, e, em março de 1844, pregou seu primeiro sermão sobre o assunto. Foi assim que Rachel Oakes Preston apresentou o sábado para os adventistas1 e que Frederick Wheeler se tornou o primeiro ministro adventista do sétimo dia. Na época, nem a Sra. Preston nem o pastor Wheeler imaginavam o impacto que seria causado pelo simples diálogo ocorrido naquela manhã de domingo em Washington, New Hampshire.2 Não existem detalhes sobre o que aconteceu a seguir. Contudo, sabemos que Thomas M. Preble, outro pregador que morava em Washington, New Hampshire, ou próximo dali, ficou convencido da verdade a respeito do sábado e, no verão de 1844, começou a observá-lo. É muito provável que tenha ficado sabendo do sábado por intermédio de Frederick Wheeler ou algum dos membros da igreja de Wheeler. Guilherme Miller, na época, pregava fervorosamente, e, em fevereiro do ano seguinte, Preble divulgou um artigo sobre o sábado em The Hope of Israel [A Esperança de Israel], uma publicação milerita. José Bates leu o texto de Preble e, dentro de poucos dias, decidiu guardar o sábado. Daquele momento em diante, passou a ser um infatigável defensor do quarto mandamento. No início de 1846, discutiu o assunto com Tiago White e Ellen Harmon (que depois se tornaria Ellen White). No entanto, estes, na ocasião, não deram importância ao sábado. Em agosto de 1846, Bates publicou um panfleto de 48 páginas intitulado The Seventh-day Sabbath, a Perpetual Sign [O Sábado do Sétimo Dia, um Sinal Perpétuo]. Tiago e Ellen White, que se casaram naquele mesmo mês, estudaram o panfleto de Bates, convenceram-se de que aquela era a verdade e começaram a guardar o sábado. Assim se iniciou a longa história da observância do sétimo dia por parte dos adventistas. Agora, observe o seguinte: nos últimos 150 anos, o número de membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia, no mundo, cresceu de cerca de três mil (em 1863) para mais de 16 milhões (2009). Por outro lado, os batistas do sétimo dia, que eram muitas vezes mais numerosos que os adventistas em meados do século 19, têm hoje um total de cerca de 50 mil membros. Essa minúscula fração corresponde a 1% dos membros da Igreja Adventista hoje. O que fez a diferença? Por que os adventistas do sétimo dia cresceram de maneira tão extraordinária durante os últimos 150 anos,

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enquanto os batistas do sétimo dia permaneceram em um número quase estático? Creio que uma das razões seja o fato de que, desde o início de nossa história, colocamos o sábado num contexto escatológico, ao passo que os batistas do sétimo dia veem o sábado simplesmente como o dia certo a ser observado. O sábado e a escatologia Escatologia é o estudo dos eventos finais da história deste mundo, antes da segunda vinda de Cristo. Temas escatológicos se encontram ao longo de toda a Bíblia, mas especialmente em alguns livros do Antigo Testamento (principalmente Daniel) e em um livro do Novo Testamento: Apocalipse. Além disso, os evangelhos e as epístolas revelam que Jesus e os apóstolos estavam profundamente interessados em escatologia. Os apóstolos criam que a segunda vinda de Cristo ocorreria durante a vida deles ou pouco tempo depois.3 Daniel e Apocalipse têm fascinado de maneira especial os estudantes das profecias ao longo dos séculos, e os adventistas não são exceção. Contudo, nossa compreensão dessas profecias difere significativamente daquela mantida por intérpretes católicos e protestantes atuais, e o sábado é um aspecto essencial de nossa perspectiva. Da forma como a compreendemos, a marca da besta (veja Ap 13:16, 17) é um símbolo que indica uma lei que exigirá a observância do domingo, a qual será imposta primeiramente nos Estados Unidos, pouco antes da segunda vinda de Cristo, e, depois, em todo o mundo. Cremos que uma questão importante no conflito final será esta: O povo de Deus deve observar o sábado (o sétimo dia da semana) ou o domingo (o primeiro dia)? Esse conceito já existia no início de nosso movimento, cerca de quinze anos antes de nos organizarmos como igreja. José Bates foi o primeiro a relacionar a “marca da besta” à observância do domingo. Em um panfleto publicado em janeiro de 1847, ele escreveu: Há dezenas de milhares de pessoas que esperam Jesus e que não creem nas doutrinas mencionadas acima; o que vai acontecer com eles? Pergunte a João, pois ele sabe das coisas melhor do que nós; e ele só descreveu dois grupos. Veja Apocalipse 14:9-12. Um desses grupos guarda “os mandamentos de Deus e a fé de Jesus”. O outro tem a marca da besta. [...] Não é evidente que o primeiro dia da semana, como dia de guarda ou dia santo, é a marca da besta?4 Alguns anos mais tarde, Ellen White, cofundadora da Igreja Adventista em meados do século 19, expressou a mesma ideia sobre a marca da besta. Em seu livro Primeiros Escritos, ela disse: Então compreendi, como nunca antes, a importância de pesquisar cuidadosamente a Palavra de Deus, para saber como escapar às pragas que, a Palavra de Deus declara, virão sobre todos os ímpios que adorarem a besta e sua imagem e receberem o seu sinal em sua testa ou em sua mão. Surpreendi-me grandemente com o fato de alguém transgredir a lei de Deus e pisar o Seu santo sábado, quando tão terríveis ameaças e advertências estavam contra eles.5 Nesse texto, embora Ellen White não declare especificamente a relação entre a marca da besta e a observância do domingo, é óbvio que ela tinha essa ideia em mente, pois contrastou a marca da besta com a observância do sábado. Ela conservou esse conceito ao longo de 70 anos de ministério. Por exemplo, em 1899, ela escreveu: Quando for expedido o decreto que impõe o falso sábado [ou seja, o domingo], e o alto clamor do terceiro anjo advertir as pessoas contra a adoração da besta e de sua imagem, será traçada com clareza a linha divisória entre o falso e o verdadeiro. Então, os que ainda persistirem na transgressão receberão o sinal da besta.6 De acordo com a declaração anterior, os adventistas creem que, pouco antes da segunda vinda de Cristo, o mundo será dividido em apenas dois lados: os que guardam o sábado receberão o selo de Deus, enquanto os que honram o domingo receberão a marca da besta. Ellen White afirmou: O Senhor me mostrou claramente que a imagem da besta será formada antes do fim do tempo da graça; pois será o grande teste para o povo de Deus, pelo qual seu destino eterno será decidido. [...]

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Todos os que provarem sua lealdade a Deus, observando Sua lei e se recusando a aceitar o sábado espúrio [o domingo], serão enfileirados sob a bandeira do Senhor Deus Jeová e receberão o selo do Deus vivo. Os que renunciarem à verdade de origem celeste e aceitarem o domingo como dia de guarda, receberão a marca da besta.7 Esse é o contexto escatológico no qual os adventistas do sétimo dia colocam o sábado. Cremos que Deus nos chamou não apenas para proclamar o que a Bíblia diz sobre o sábado, mas também a advertir o mundo sobre o conflito final que girará em torno dos mandamentos de Deus, particularmente o quarto. Segundo nossa compreensão, no fim dos tempos, a linha divisória entre os que servem a Deus e os que não O servem envolverá essa controvérsia relacionada ao sábado e ao domingo. Nessa ocasião, os guardadores do sábado serão perseguidos e até mesmo martirizados por causa de sua lealdade a Deus ao observar o sétimo dia. Sentimo-nos compelidos a advertir o mundo sobre algo de que a maioria das pessoas não tem a menor ideia; algo que muitos julgam inacreditável. Estamos certos de que tais eventos se acham à nossa frente. Esse é um dos principais fatores que tornaram nossa proclamação do sábado tão mais bem-sucedida que a dos batistas do sétimo dia. Essa é uma das principais razões pelas quais temos hoje mais de 16 milhões de adeptos, em comparação aos 50 mil dos batistas do sétimo dia. Mas isso poderia realmente acontecer? O mínimo que se pode dizer é que essa interpretação escatológica do sábado abrange uma pretensão estupenda, até audaciosa. Mesmo um exame superficial da história política norte-americana torna difícil a crença em que os Estados Unidos um dia possam promulgar uma lei dominical nacional, pois, ao longo do tempo, esse país tem mantido a igreja e o Estado separados. Por volta de 1970, quando eu era pastor de uma pequena igreja na cidade de Uvalde, no oeste do Texas, fiz amizade com um comerciante local que era batista. Certo dia, enquanto estávamos conversando em seu escritório sobre religião e profecias, eu lhe perguntei se ele tinha interesse em saber o que os adventistas pregam sobre o tempo do fim. Ele disse que sim. Então, falei algo acerca do que você leu neste capítulo. Quando terminei, perguntei-lhe o que achava. Ele sorriu e disse: “Acho absurdo.” Ele não é a única pessoa que pensa isso, nem a primeira. No início do século 20, um crítico chamou de “absurda” nossa concepção de que a marca da besta será a imposição da guarda do domingo. Ele disse que, para os Estados Unidos rejeitarem seu apoio histórico à liberdade religiosa, seria necessário “um milagre maior do que aquele realizado por Deus: o crescimento instantâneo de um carvalho gigantesco”.8 Outro antigo crítico do cenário profético adventista foi D. M. Canright. Popular evangelista e líder adventista durante os primeiros anos de nosso movimento, Canright cortou ligação conosco em 1887 e se uniu a uma congregação batista em Otsego, Nova York. Em seu livro Seventh-day Adventism Renounced [Por que Renunciei ao Adventismo do Sétimo Dia], Canright escreveu: Os adventistas do sétimo dia dão grande ênfase à sua interpretação deste símbolo [a besta semelhante ao cordeiro] de Apocalipse 13:11-18. A teoria deles sobre a marca da besta, sua imagem, o selo de Deus, a mensagem do terceiro anjo, e toda a sua obra especial sobre o sábado, está construída sobre sua pressuposição a respeito dessa besta. Se eles estiverem enganados aqui, todo o sistema teológico deles desmorona. Eles afirmam que essa besta representa os Estados Unidos; que em breve ocorrerá nesse país uma união da igreja com o Estado, e isso será a imagem da besta, isto é, do papado. A marca da besta é a guarda do domingo. Uma lei vai impor isso aos adventistas. Mas eles não a obedecerão. Serão proscritos pela lei, perseguidos e condenados à morte. No tocante a todas as extravagantes especulações adventistas sobre as profecias, essa merece estar entre as mais extravagantes.9 Essa linguagem é muito forte! Eu não iria tão longe ao dizer que, se estivermos errados em nossa interpretação profética de Apocalipse 13, todo o nosso sistema teológico desmoronaria. Mas é verdade que grande parte do que consideramos como nossa missão no mundo está baseada em nossa compreensão desse capítulo. A pergunta fundamental, portanto, é esta: Isso poderia realmente acontecer? É razoável supor que os Estados Unidos irão, algum dia, legislar sobre o domingo como dia de descanso? Pode-se crer que, em algum momento, num futuro relativamente próximo, um edito global

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exigirá que as pessoas observem o domingo como dia de repouso e que os violadores sejam ameaçados de morte e, talvez, até executados? A marca da besta realmente tem a ver com isso? Meu propósito, ao escrever este livro, não é provar para você que a resposta a essas perguntas é “Sim”. Desejo apresentar as evidências, da forma como eu e os adventistas as vemos, e deixar que você decida por si mesmo. É por isso que o subtítulo deste livro é: “Isso poderia realmente acontecer?”, e não: “Isso Vai Realmente Acontecer?”. A profecia e os eventos atuais Gosto de comparar a interpretação das profecias a um par de óculos de sol. Se você usar óculos com lentes azuis, o mundo parecerá azul. Se as lentes forem amarelas, as imagens parecerão ter essa cor. Lentes verdes, por outro lado, darão ao mundo um tom esverdeado. Da mesma forma, a interpretação dada por alguém à profecia bíblica afetará a maneira como ele vê o que está acontecendo no mundo atual e aquilo que provavelmente ocorrerá no futuro. Os dispensacionalistas, por exemplo, têm uma determinada compreensão da profecia e interpretam os acontecimentos mundiais à luz desse entendimento. Eles concentram a atenção no Oriente Médio, especialmente em Israel. Interpretam eventos como o Onze de Setembro, o conflito no Iraque e a luta entre israelenses e palestinos com base em sua compreensão dispensacionalista da profecia. Suas lentes proféticas também os levam a fazer certas predições sobre o futuro. A compreensão profética adventista é bastante peculiar. É como se colocássemos óculos de sol com lentes muito diferentes daquelas usadas pelos dispensacionalistas. O mundo parece distinto através de nossas lentes, o que nos leva a uma explicação singular do que está acontecendo agora e do que esperamos para o futuro. Embora precisemos ser cautelosos quanto às implicações proféticas de cada notícia que aparece no jornal ou na TV, as tendências, num certo período de tempo, podem nos indicar o rumo a que o mundo está seguindo. E nosso entendimento da profecia bíblica influencia nossa interpretação dessas tendências. Neste livro, você terá uma explicação detalhada da compreensão adventista de Apocalipse 13 e de como isso afeta nossa interpretação das tendências no mundo atual. Este primeiro capítulo é uma breve introdução. O restante do livro examina os detalhes. Minha discussão envolverá duas perguntas-chave ao longo da exposição: • A interpretação adventista de Apocalipse 13 é razoável, isto é, baseia-se no que a Bíblia realmente diz, ou é mera especulação? Para responder a essa pergunta, examinaremos esse texto, bem como algumas outras profecias bíblicas. • Será que a história e os eventos atuais indicam que o cenário adventista é possível? Para responder a essa questão, estudaremos a história do catolicismo, a história de protestantes e católicos nos Estados Unidos, e a presença e influência de ambos os grupos em nossos dias. Apresentação do livro Antes de ir para o próximo capítulo, preciso fazer alguns comentários que facilitarão sua leitura. Em primeiro lugar, gostaria de dizer uma palavra sobre o que você encontrará. Como foi dito, este livro consiste, em grande parte, num estudo de Apocalipse 13 à luz da história e dos eventos atuais. Ele está dividido em três seções, cada uma das quais lida com um aspecto diferente de Apocalipse 13: • A primeira parte trata da terrível besta que surge do mar (Ap 13:1-10). • A segunda parte fala sobre a besta que surge da terra (v. 11-18). • A terceira parte analisa a marca da besta (v. 16, 17). As primeiras duas seções começam, cada uma, com um capítulo que trata da base bíblica para a compreensão adventista daquele trecho de Apocalipse 13. A seção que aborda a marca da besta começa com dois capítulos que expõem a base bíblica para essa questão. Os capítulos posteriores apresentam evidências históricas – algumas antigas, outras bastante recentes – com o objetivo de mostrar que a interpretação adventista tem sólida base em eventos mundiais que já aconteceram e estão acontecendo. Em segundo lugar, é válido ressaltar que sempre fui adventista do sétimo dia; portanto, escrevi este livro a partir de uma ótica adventista. Contudo, também o redigi tendo em vista os que não são de nossa fé e não estão familiarizados com nossas crenças. Uma vez que esse texto é direcionado não apenas a

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adventistas, mas também a não adventistas, expliquei a base bíblica para nossa interpretação de Apocalipse 13 com mais detalhes do que seria preciso para muitos adventistas. Uma observação a respeito de Ellen G. White. Ela é, sem dúvida, a mais influente escritora adventista. Ela viveu 87 anos – de 1827 a 1915. Em dezembro de 1844, quando tinha apenas 17 anos, recebeu a primeira visão. Ao todo, foram cerca de dois mil sonhos proféticos e visões que afirmou ter recebido de Deus durante a vida. Foi a mais prolífica escritora do século 19, e talvez de todos os tempos. Durante seus mais de setenta anos de ministério, produziu mais de cem mil páginas manuscritas, ou seja, mais de duas dúzias de livros. Desde sua morte, trechos de suas cartas e seus diários, além de outros escritos, também têm sido compilados e publicados no formato de livro. Os adventistas aceitam Ellen White como uma profetisa genuína, embora ela preferisse ser conhecida como “mensageira do Senhor”. Ela falou muito sobre o tempo do fim. Partilhei com você, ao longo deste capítulo, algumas declarações dela, e a citarei ocasionalmente em futuros capítulos. Os leitores adventistas, sem dúvida, aceitarão essas citações como inspiradas por Deus. Os não adventistas que estiverem lendo este livro podem pensar nessas citações como algo simplesmente representativo daquilo em que os adventistas creem. A maioria dos adventistas provavelmente irá concordar com a maior parte do que é dito neste livro. Convido os leitores não adventistas a também aceitarem o que eu digo, se fizer sentido para eles. De qualquer forma, espero que a leitura desta obra ajude tanto os adventistas quanto os que não pertencem à nossa fé a compreenderem melhor nossa interpretação das profecias.

1 Passariam outros dezessete anos antes que os adventistas guardadores do sábado optassem pelo nome adventistas do sétimo dia, e outros dezenove anos antes que se organizassem como denominação. 2 Veja Seventh-day Adventist Encyclopedia (Washington, DC: Review and Herald, 1966), p. 1019, 1020; e Arthur W. Spaulding, Origin and History of Seventh-day Adventists (Washington, DC: Review and Herald, 1961), p. 117-119. 3 Veja, por exemplo, Romanos 13:11, 12; Tiago 5:8, 9; 1 Pedro 4:7; 1 João 2:18; Apocalipse 22:7, 12, 20. 4 Joseph Bates, The Seventh-day Sabbath, a Perpetual Sign From the Beginning, to the Entering Into the Gates of the Holy City According to the Commandment (New Bedford: Benjamin Lindsey, 1847), p. 59, ênfase acrescentada; em C. Mervyn Maxwell, Development of Seventh-day Adventist Theology Source Book: Maxwell Source Collection, material preparado para a disciplina de História da Teologia Adventista, p. 271. 5 Ellen G. White, Primeiros Escritos (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001 [CD-Rom]), p. 65. 6 Ellen G. White, Manuscrito 51, 1899; citado em Ellen G. White, Evangelismo (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001 [CD-Rom]), p. 234, 235. 7 Ellen G. White, The Seventh-day Adventist Bible Commentary (Washington, DC: Review and Herald, 1957), v. 7, p. 976. 8 Theodore Nelson, na introdução ao livro de Dudley M. Canright, Seventh-day Adventism Renounced (Nashville: Gospel Advocate Company, 1914), p. 23. 9 Canright, ibid., p. 89.

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ual foi a última vez que você olhou para uma pintura? Era o retrato de um homem simpático, uma mulher bonita ou, talvez, uma paisagem? Você usou uma lente de aumento para examinar os detalhes? Essa não é a melhor maneira de apreciar a beleza de uma pintura, não é mesmo? O artista tem de prestar muita atenção a cada pincelada que dá, uma vez que, após o término da obra, os críticos de arte irão analisar esses detalhes. No entanto, bem de pertinho, essas pinceladas individuais não são muito atrativas. Se você realmente deseja apreciar a beleza da produção do artista, tem de se afastar e olhar para o quadro todo. Mais cedo ou mais tarde, até os críticos deverão se distanciar para enxergar o “quadro mais amplo”. O Apocalipse está cheio de imagens – quadros, por assim dizer. Você encontrará mais dessas imagens simbólicas no Apocalipse do que em qualquer outra parte da Bíblia. Neste livro, vamos ser “críticos de arte” das imagens do Apocalipse. Passaremos bastante tempo examinando os detalhes dessas imagens, especialmente as do capítulo 13. Assim como os detalhes de uma pintura não nos mostram o quadro como um todo, também nossa compreensão do Apocalipse não poderá ser completa se atentarmos apenas para os detalhes. Por isso, neste capítulo, vamos dar uma olhada no “quadro mais amplo” do Apocalipse. Examinaremos os detalhes em capítulos posteriores.

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O grande conflito Você não precisa ser um teólogo para compreender a mensagem básica do Apocalipse. Até uma pessoa não religiosa que estiver lendo casualmente a última metade do livro (do capítulo 12 ao 22) pode entender que o tema principal é a batalha entre o bem e o mal – o que os adventistas do sétimo dia têm tradicionalmente chamado de “o grande conflito”. De acordo com o Apocalipse, esse conflito se iniciou no Céu milhares de anos atrás. Apocalipse 12:7 diz: “Houve peleja no Céu. Miguel e os Seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e seus anjos.” Miguel é o líder dos anjos leais do Céu, e o dragão é Satanás, o líder dos anjos que se rebelaram contra Deus. Essa guerra, porém, não afetou apenas o Céu. O Apocalipse diz que o dragão “foi atirado para a Terra, e, com ele, os seus anjos” (v. 9). Portanto, a batalha entre o bem e o mal se transferiu para a Terra e tem estado em andamento desde pouco tempo depois de Deus ter criado nosso mundo. Mesmo hoje não é preciso muita coisa para se perceber o conflito em ação. Basta passar alguns momentos lendo o jornal ou assistindo ao noticiário na televisão para se ver o suficiente. Grande parte da segunda metade do Apocalipse se concentra especialmente nos últimos meses, ou talvez anos, do conflito entre o bem e o mal – fase a que vou me referir como o “conflito final”. Nessa ocasião, Satanás irá intensificar seus esforços a fim de intimidar os seres humanos e controlá- los. E a maioria das pessoas vai se deixar levar sem resistência. O Apocalipse diz: “Toda a Terra se maravilhou, seguindo a besta” (13:3). Diz ainda: “E adorá-la-ão todos os que habitam sobre a Terra, aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (v. 8). O ponto de disputa será a obediência. Ao longo da história, o povo de Deus tem se deparado com a questão da obediência a Deus ou aos poderes do mal que há no mundo, questão essa que será crucial no conflito final. Adão e Eva tiveram que optar pela obediência a Deus ou à serpente. Escolheram ceder à sugestão da serpente (veja Gn 3). Em contrapartida, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, diante da ameaça de morte numa fornalha ardente, escolheram obedecer a Deus, em vez de adorar a imagem de ouro de um rei pagão (veja Dn 3). No Novo Testamento, Jesus obedeceu a Seu Pai ao Se submeter à cruz. No conflito final, a pergunta será a mesma: Será que o povo de Deus irá obedecer a Ele, ou irá ceder à pressão política dos poderes mundiais no último período da história da humanidade, os quais

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tentarão fazer com que os seres humanos desobedeçam às leis de Deus? Apocalipse 12:17 apresenta a integridade do povo de Deus no tempo do fim e o conflito que isso provocará entre os fiéis e as forças do mal: “Irou-se o dragão [Satanás] contra a mulher [o povo de Deus] e foi pelejar com os restantes da sua descendência, os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus” (ênfase acrescentada). E o capítulo 14:12 diz: “Aqui está a perseverança dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus” (ênfase acrescentada). Portanto, segundo o Apocalipse, os mandamentos de Deus – Sua lei – serão um ponto central no conflito final. O povo de Deus permanecerá leal à Sua lei, mas isso trará sobre eles a ira dos poderes político-religiosos apóstatas da Terra. Eis a descrição desse aspecto do conflito final feita por Ellen White: O último grande conflito entre a verdade e o erro não é senão a luta final da prolongada controvérsia relativa à lei de Deus. Estamos agora a entrar nessa batalha – batalha entre as leis dos homens e os preceitos de Jeová, entre a religião da Bíblia e a religião das fábulas e da tradição.1 Contudo, a obediência é apenas parte da questão no Apocalipse. A outra parte é a fé. Os cristãos frequentemente falam sobre a “justificação pela fé”. Uma correta compreensão da justificação pela fé se pauta em um equilíbrio correto entre fé e obras. Uma ênfase demasiada na fé leva à graça barata, enquanto que a exagerada importância dada às obras conduz ao legalismo. O povo de Deus que viver durante o tempo do fim terá uma compreensão correta tanto da fé como das obras. O próprio Apocalipse sugere isso quando diz: “Aqui está a perseverança dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus” (Ap 14:12, ênfase acrescentada). Os dois lados O conflito final envolverá questões profundamente espirituais. O mundo estará dividido em dois campos, sendo que o povo de Deus estará de um lado, e as forças do mal estarão arregimentadas contra ele do outro. Não devemos imaginar que será suficiente o “cristianismo de fachada”. Jesus advertiu que, quando vier pela segunda vez, muitas pessoas irão Lhe dizer: “Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em Teu nome, e em Teu nome não expelimos demônios, e em Teu nome não fizemos muitos milagres? Então, lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai- vos de Mim, os que praticais a iniquidade” (Mt 7:22, 23). Observe que essas pessoas creem em Jesus. São membros de igreja leais e íntegros. São fiéis a seus cônjuges, devolvem o dízimo e ocupam importantes cargos na igreja. Contudo, Jesus lhes dirá: “Nunca vos conheci.” Também podemos dizer o contrário: que eles nunca O conheceram. Seu cristianismo era muito superficial. Consistia na compreensão intelectual de uma série de doutrinas e na realização de boas obras. Acharam que, sendo membros da “igreja verdadeira”, teriam garantido acesso ao Céu. Você provavelmente cruza com algumas dessas pessoas em sua igreja. Mas ficará surpreso, um dia, ao descobrir que elas não estarão junto a você durante a crise descrita no Apocalipse. Creio que muitas dessas pessoas se posicionarão ao lado de Satanás durante o conflito final. Isso pode parecer estranho a você. Mas tenha em mente que o último conflito será primariamente uma batalha espiritual envolvendo assuntos profundamente espirituais, e Satanás usará argumentos muito sutis para manter as pessoas do seu lado. Jesus fez a seguinte advertência: “Porque surgirão falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os próprios eleitos” (Mt 24:24). O mundo estará dividido em apenas dois grupos no tempo do fim: o daqueles que são fiéis a Deus e o daqueles que são leais a Satanás. Infelizmente, muitos supostos cristãos terão uma surpresa ao descobrir, quando tudo terminar, que escolheram o lado errado. Várias parábolas de Jesus ilustram a divisão do mundo em dois lados. Certa vez, Ele chamou os justos de “boa semente”, e os ímpios, de “joio” (Mt 13:37-43). Em outro momento, chamou-os de ovelhas e bodes (Mt 25:31-33). O Apocalipse também apresenta símbolos para esses dois grupos de pessoas no fim dos tempos. Os justos recebem o selo de Deus, ao passo que os ímpios recebem a marca da besta (Ap 7:1-4; 13:16, 17). O povo de Deus guardará Seus mandamentos, enquanto os ímpios estabelecerão suas próprias leis e se rebelarão contra as leis de Deus. Como se isso não bastasse, estes ainda tentarão forçar o mundo todo, inclusive o povo de Deus, a unir- se a eles em sua rebelião contra Deus. Isso irá resultar numa luta de vida ou morte entre o povo de Deus e os poderes do mal presentes no mundo – e, a princípio, parecerá que as forças do mal estão ganhando. Apocalipse 13:7 fala sobre a

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besta que sai do mar: “Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse” (ênfase acrescentada). O verso 15 afirma que os que se recusarem a prestar adoração da maneira politicamente correta serão mortos. Apocalipse 17 descreve uma mulher perversa “embriagada com o sangue dos santos” (v. 6), ou seja, daqueles que foram martirizados. Essas declarações do Apocalipse dão a impressão de que os poderes do mal irão vencer no conflito final. E, de fato, a princípio parecerá que eles venceram, assim como pareceram vencer quando o Filho de Deus morreu na cruz. Os cristãos entendem que, com Sua morte, Jesus obteve uma grande vitória. Contudo, aqueles que testemunharam Sua crucifixão pensaram que Ele havia perdido. Até Seus discípulos, lamentando Sua morte, disseram: “Ora, nós esperávamos que fosse Ele quem havia de redimir a Israel” (Lc 24:21). Da mesma forma, durante o último conflito haverá a impressão de que os poderes malignos da Terra venceram e que o povo de Deus perdeu. O mundo recompensará a lealdade dos justos a Deus e aos Seus mandamentos com perseguição e morte, e as pessoas se alegrarão com a aparente vitória dos poderes do mal. Eis como o Apocalipse descreve a alegria do mundo ao ver a perseguição contra os que permanecerem fiéis a Deus: “Quando tiverem, então, concluído o testemunho que devem dar, a besta que surge do abismo pelejará contra elas, e as vencerá, e matará [...]. Os que habitam sobre a Terra se alegram por causa deles, realizarão festas e enviarão presentes uns aos outros, porquanto esses dois profetas atormentaram os que moram sobre a Terra” (Ap 11:7, 10). O mundo nunca apreciou as leis de Deus. Acha que Seus princípios morais lhes restringem a liberdade. Quando o povo de Deus chama a atenção para Suas leis, o mundo responde com zombaria. É por isso que, durante o conflito final, “os que habitam sobre a Terra se alegrarão por causa” dos fiéis que exaltarão Suas leis. Obviamente, esse será um tempo de grande sofrimento para o povo de Deus. Um mundo rebelde tentará fazer com que os justos desistam de sua lealdade a Deus. Por que o povo de Deus permanecerá fiel a Ele durante esse tempo? Os versos que anteriormente lemos nos dão a resposta: • “O dragão [Satanás] irou-se contra a mulher [o povo de Deus] e saiu para guerrear contra o restante da sua descendência, os que [...] se mantêm fiéis ao testemunho de Jesus” (Ap 12:17, NVI, ênfase acrescentada). • “Aqui está a perseverança dos santos que [...] permanecem fiéis a Jesus” (Ap 14:12, NVI, ênfase acrescentada). Os fiéis conservarão sua lealdade a Deus porque “se manterão fiéis ao testemunho de Jesus” e “permanecerão fiéis a Jesus”. A chave é o relacionamento íntimo com Jesus, que nos dá a vitória sobre a tentação. Na crise final haverá o que o Apocalipse chama de a “hora da provação que há de vir sobre o mundo inteiro” (Ap 3:10). Ellen White afirma que a intensidade da pressão exercida sobre o povo de Deus durante a crise final “mostrará se há fé real nas promessas de Deus. Mostrará se ela está sustida pela graça”.2 Não é necessário ser um adventista para compreender que o relacionamento que agora você e eu desenvolvemos com Jesus determinará se permaneceremos leais a Deus, ou se renunciaremos às nossas convicções. O fim do conflito Aparentemente o mundo terá vencido o povo de Deus, mas essa vitória se dará por pouco tempo. No último minuto, quando os fiéis selariam sua entrega com o próprio sangue, Jesus intervirá em seu favor. O Apocalipse descreve o evento desta forma: • “Pelejarão eles [os poderes malignos da besta] contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, pois é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis; vencerão também os chamados, eleitos e fiéis que se acham com Ele” (Ap 17:14). • “E vi a besta e os reis da terra, com os seus exércitos, congregados para pelejarem contra Aquele [Cristo] que estava montado no cavalo e contra o Seu exército. Mas a besta foi aprisionada, e com ela o falso profeta [...]. Os dois foram lançados vivos dentro do lago de fogo que arde com enxofre” (Ap 19:19, 20). Esses dois versos são, na verdade, vislumbres da batalha do Armagedom (veja Ap 16:12-16).

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Contrariamente à opinião popular, o Armagedom não será uma guerra entre nações da Terra. Ao contrário, será uma batalha entre os poderes espirituais do bem e do mal no mundo. Durante a fase inicial, parecerá que as forças do mal estão ganhando. Mas, no último minuto, quando tudo parecer perdido, Jesus retornará à Terra, abaterá as forças do mal e livrará Seu povo do poder delas. Apocalipse 13 No restante do livro, examinaremos Apocalipse 13 de forma detalhada. Porém, creio que será útil ter primeiro uma visão geral desse capítulo da Bíblia. Para começar, recomendo que você leia todo o capítulo. A seguir, transcrevemos o texto completo, extraído da Nova Versão Internacional. Como Apocalipse 12:17 está intimamente ligado ao capítulo 13, iniciaremos com esse verso. (Ap 12:17) O dragão irou-se contra a mulher e saiu para guerrear contra o restante da sua descendência, os que obedecem aos mandamentos de Deus e se mantêm fiéis ao testemunho de Jesus. (18) Então o dragão se pôs em pé na areia do mar. (13:1) Vi uma besta que saía do mar. Tinha dez chifres e sete cabeças, com dez coroas, uma sobre cada chifre, e em cada cabeça um nome de blasfêmia. (2) A besta que vi era semelhante a um leopardo, mas tinha pés como os de urso e boca como a de leão. O dragão deu à besta o seu poder, o seu trono e grande autoridade. (3) Uma das cabeças da besta parecia ter sofrido um ferimento mortal, mas o ferimento mortal foi curado. Todo o mundo ficou maravilhado e seguiu a besta. (4) Adoraram o dragão, que tinha dado autoridade à besta, e também adoraram a besta, dizendo: “Quem é como a besta? Quem pode guerrear contra ela?” (5) À besta foi dada uma boca para falar palavras arrogantes e blasfemas, e lhe foi dada autoridade para agir durante quarenta e dois meses. (6) Ela abriu a boca para blasfemar contra Deus e amaldiçoar o Seu nome e o Seu tabernáculo, os que habitam nos Céus. (7) Foi-lhe dado poder para guerrear contra os santos e vencê-los. Foi-lhe dada autoridade sobre toda tribo, povo, língua e nação. (8) Todos os habitantes da Terra adorarão a besta, a saber, todos aqueles que não tiveram seus nomes escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a criação do mundo. (9) Aquele que tem ouvidos ouça: (10) Se alguém há de ir para o cativeiro, para o cativeiro irá. Se alguém há de ser morto à espada, morto à espada haverá de ser. Aqui estão a perseverança e a fidelidade dos santos. (11) Então vi outra besta que saía da terra, com dois chifres como cordeiro, mas que falava como dragão. (12) Exercia toda a autoridade da primeira besta, em nome dela, e fazia a Terra e seus habitantes adorarem a primeira besta, cujo ferimento mortal havia sido curado. (13) E realizava grandes sinais, chegando a fazer descer fogo do céu à Terra, à vista dos homens. (14) Por causa dos sinais que lhe foi permitido realizar em nome da primeira besta, ela enganou os habitantes da Terra. Ordenou-lhes que fizessem uma imagem em honra à besta que fora ferida pela espada e contudo revivera. (15) Foi-lhe dado poder para dar fôlego à imagem da primeira besta, de modo que ela podia falar e fazer que fossem mortos todos os que se recusassem a adorar a imagem. (16) Também obrigou todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, a receberem certa marca na mão direita ou na testa, (17) para que ninguém pudesse comprar nem vender, a não ser quem tivesse a marca, que é o nome da besta ou o número do seu nome. (18) Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem. Seu número é seiscentos e sessenta e seis. Tenho certeza de que você notou que Apocalipse 13 descreve duas grandes bestas. Uma sai do mar, e outra, da terra. Assim, no restante de nosso estudo eu as chamarei de “a besta do mar” e “a besta da terra”. Visão geral das duas bestas O que ou quem essas duas bestas representam? Os adventistas, juntamente com a maioria dos demais

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intérpretes da profecia, entendem que uma das bestas, nas profecias apocalípticas, representa uma poderosa entidade política, um grande poder que exerce domínio sobre grande território. Há vários séculos, um anjo disse ao profeta Daniel que as quatro grandes bestas de Daniel 7:1-8 representam “quatro reis (ou ‘reinos’) que se levantarão da Terra” (Dn 7:17). Era sem dúvida o mesmo anjo que afirmou a Daniel que o carneiro e o bode de Daniel 8:1-8 representam os reinos da Média- Pérsia e da Grécia (Dn 8:20, 21). Nesse contexto, surgem naturalmente estas perguntas: Que poderes mundiais a besta do mar e a besta da terra representam? Essas entidades políticas somente existiram no passado ou estão presentes no mundo hoje? Para responder a essas questões, vamos começar com uma visão geral das duas bestas – o “quadro mais amplo” de Apocalipse 13. Poderes globais. O primeiro fato que notamos sobre essas duas bestas é que ambas são poderes político-religiosos com influência global. A besta do mar é claramente um poder político mundial, porque “deu-se-lhe ainda autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação” (Ap 13:7). Sabemos que sua natureza é religiosa pelo fato de que o mundo a adora e ela “abriu a boca em blasfêmias contra Deus, para Lhe difamar o nome e difamar o tabernáculo, a saber, os que habitam no Céu” (v. 6). A besta da terra também é um poder político global, porque tem autoridade para ordenar que os habitantes da Terra façam uma imagem da besta do mar (v. 14). Além disso, sua autoridade religiosa é evidente, já que ela faz morrer todos os que não adoram a imagem da besta (v. 15). Falsa adoração. Uma leitura atenta de Apocalipse 13 mostra que ambas as bestas promovem a falsa adoração. Com exceção do remanescente, o povo de Deus no tempo do fim, toda a população do mundo adorará a besta do mar (v. 8), e a besta da terra forçará os seres humanos a adorar a imagem da besta do mar (v. 15). Perseguição religiosa. Outro fator comum a essas duas bestas é que ambas perseguem os que se opõem a seu programa político-religioso. A besta do mar guerreia contra os santos e os vence (v. 7), e, como já foi observado, a besta da terra força o mundo todo a adorar a imagem da besta do mar (v. 15). Poderes no tempo do fim. Outra conclusão a que chegamos sobre a besta do mar e a besta da terra é a seguinte: ambas são poderes presentes nos últimos dias. Isso se torna evidente pelo fato de que elas cooperam entre si para impor a marca da besta, que a maioria dos estudiosos do Apocalipse entende ser um fenômeno do fim dos tempos. Muitos intérpretes da profecia estão convencidos de que vivemos hoje no tempo do fim. Se isso é verdade, pode-se afirmar que esses dois poderes terrivelmente intolerantes existem no mundo hoje. Vinte, trinta ou quarenta anos atrás, alguns estudantes das profecias afirmavam que a União Soviética comunista era uma dessas bestas. No entanto, essa opção deixou de existir aproximadamente em 1990. Hoje pode ser mais tentador pensar em terroristas islâmicos como uma dessas bestas. Contudo, o comunismo e o terrorismo islâmico não nos reportam à identificação correta de qualquer das duas bestas. No próximo capítulo, partilharei com você a compreensão adventista da besta do mar. Capítulos posteriores abordarão a besta da terra, a imagem da besta e a marca da besta.

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Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001 [CD-Rom]), p. 582. Ellen G. White, Parábolas de Jesus (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001 [CD-Rom]), p. 412.

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A Besta do Mar

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uponha que, enquanto você e eu estamos conversando sobre um amigo em comum cujo nome é João, eu diga a seguinte frase: “João é um buldogue!” Imediatamente você entende que não estou afirmando que nosso amigo é um membro da espécie canina. Em vez disso, refiro-me a alguma característica relacionada aos buldogues que também se aplica a João, ou pelo menos à maneira como o vejo. Ao utilizar essa palavra, quero dizer que ele é muito agressivo e tenaz; que, quando coloca algo na cabeça, corre atrás daquilo e não desiste até que o tenha conseguido. Usada dessa forma, a palavra buldogue se constitui numa metáfora, ou seja, num símbolo. Cada língua, cada cultura tem símbolos como esse. E o Apocalipse está cheio deles: bestas, estrelas, trombetas, tronos e coroas, entre muitos outros. Há apenas um problema com os símbolos do Apocalipse: não podemos encontrar seu significado tão facilmente. Em relação à maior parte deles, o último livro da Bíblia não nos orienta quanto às suas respectivas representações. Há exceções, sem dúvida. Por exemplo, em Apocalipse 12:9 somos informados de que o dragão representa o “diabo ou Satanás”. Mas a maioria dos símbolos do Apocalipse não são acompanhados de descrições que nos ajudem a compreender o que eles significam. Então, como é que o Apocalipse pode fazer sentido para nós se não é tão fácil descobrir o significado de muitos dos seus símbolos? Na verdade, o sentido de alguns é mais ou menos óbvio. Por exemplo, em nossa cultura moderna, bem como na cultura romana de 2 mil anos atrás, uma coroa representa uma autoridade governante. O mesmo se aplica a um trono. Portanto, quando lemos algo sobre coroas e tronos no Apocalipse, podemos estar certos de que esses símbolos representam alguma forma de governo. O trono de Deus aparece repetidamente nesse livro, o que significa que Deus tem um governo que abrange todo o Universo, ao passo que as autoridades terrestres dominam apenas sobre um pequeno território do mundo. Pode-se também determinar o sentido de um símbolo no Apocalipse examinando a forma como ele é usado em outras partes da Bíblia. Essa abordagem será utilizada em certos momentos neste livro. A guerra é um dos símbolos mais frequentes no Apocalipse e uma metáfora óbvia para conflito. Nesse livro, a guerra é geralmente uma representação do conflito entre as forças do bem e do mal. Começamos a examinar essa guerra no capítulo anterior e vimos que ela começou no Céu: “Houve peleja no Céu. Miguel e os Seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e seus anjos” (Ap 12:7). Miguel é o líder do exército celestial de Deus, enquanto que o dragão é Satanás. Este perdeu a guerra no Céu. O Apocalipse diz que ele “foi atirado para a Terra, e, com ele, os seus anjos” (v. 9). Confira o seguinte trecho de um verso posterior, cujo tom é bastante admoestador:

S

Ai da terra e do mar, pois o diabo desceu até vós, cheio de grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta (v. 12). Nosso mundo está mergulhado nessa guerra há milhares de anos. Satanás está furioso porque perdeu a guerra no Céu, e sua ira o está impulsionando com maior intensidade a ganhar aqui a batalha que perdeu lá. No tocante à maioria das pessoas, Satanás já ganhou a guerra, já que os seus aliados são muitos. O objeto de sua ira hoje é o grupo de pessoas que ainda resiste a ele. Este livro trata da guerra contra o povo de Deus que será travada em nosso planeta pouco antes da volta de Jesus. Apocalipse 12:17 apresenta essa fase final do conflito: “Irou-se o dragão contra a mulher e foi pelejar com os restantes da sua descendência, os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus.”

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O dragão, nesse verso, é Satanás, e a mulher representa o povo de Deus. Esse texto confirma a afirmação de que os principais participantes do conflito final na Terra serão Satanás e o povo de Deus. Nesse momento, a ira de Satanás atingirá o nível máximo. Os fiéis que estiverem vivos durante esse conflito terão de lidar com um inimigo extremamente hostil. Mas será que isso é tudo o que sabemos sobre o conflito final? De modo algum! Apocalipse 12:17 apresenta apenas uma introdução. O capítulo 13 é que nos fornece uma grande quantidade de detalhes. Esse texto foi examinado de maneira geral no capítulo anterior deste livro. Agora, é hora de atentarmos às minúcias. No restante deste capítulo, analisaremos a besta que surge do mar com o propósito de expor a base bíblica para a compreensão adventista da besta do mar e do seu papel durante a crise final que ocorrerá na Terra. Identificando a besta do mar A maioria dos estudiosos atuais das profecias afirma que a besta do mar representa o Império Romano (intérpretes preteristas) ou um anticristo futuro, secular e ateu que emergirá durante a “grande tribulação” (intérpretes futuristas). Mas os adventistas do sétimo dia entendem que a besta do mar representa o papado. Chegamos a essa interpretação ao comparar a besta do mar com o chifre pequeno de Daniel 7. Em Daniel 7, o profeta descreve uma visão envolvendo quatro animais que subiam do mar. Esses animais estão listados a seguir na coluna do lado esquerdo. A coluna do lado direito mostra o reino que cada animal representa: Leão (Dn 7:3, 4) Babilônia Urso (v. 5) Média-Pérsia Leopardo (v. 6) Grécia Animal terrível (v. 7, 8) Roma Em sua descrição da besta do mar (Ap 13:2), João utilizou palavras usadas por Daniel para descrever os quatro animais: • A besta do mar tinha “boca como de leão” (ênfase acrescentada). • Tinha “pés como de urso” (ênfase acrescentada). • A besta como um todo “era semelhante a leopardo” (ênfase acrescentada). • “E deu-lhe o dragão o seu poder, o seu trono e grande autoridade” (ênfase acrescentada). Ao falar sobre a besta do mar em Apocalipse 13, João obviamente tinha em mente a visão de Daniel sobre os quatro grandes animais, o último dos quais tinha dez chifres. Daniel viu que um chifre pequeno surgiu e arrancou três dos dez outros chifres, a fim de abrir espaço para si próprio. Daniel 7:25 apresenta uma descrição detalhada desse chifre pequeno. Apocalipse 13:5-7 introduz quatro símbolos adicionais baseados em Daniel 7:25. O gráfico a seguir compara as palavras relevantes de cada passagem.

SEMELHANÇAS ENTRE O CHIFRE PEQUENO E A BESTA DO MAR Chifre pequeno Daniel 7

Besta do mar Apocalipse 13

Blasfema contra Deus “Neste chifre havia [...] uma boca que falava com insolência” (v. 8). “Proferirá palavras contra o Altíssimo” (v. 25).

Blasfema contra Deus “Foi-lhe dada uma boca que proferia arrogâncias e blasfêmias” (v. 5). “E abriu a boca em blasfêmias contra Deus” (v. 6).

Persegue o povo de Deus “Magoará os santos do Altíssimo” (v. 25).

Persegue o povo de Deus “Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos” (v. 7).

Vence o povo de Deus

Vence o povo de Deus Foi permitido que “vencesse” os santos

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(v. 7). É-lhe concedido um período de tempo “Os santos lhe serão entregues nas mãos, por um tempo, dois tempos e metade de um tempo” (v. 25, ênfase acrescentada) – isto é, 1.260 dias.

É-lhe concedido um período de tempo “Foi-lhe dada [...] autoridade para agir quarenta e dois meses” (v. 5, ênfase acrescentada) – isto é, 1.260 dias.

As semelhanças entre o chifre pequeno de Daniel 7 e a besta do mar de Apocalipse 13 não deixam dúvida alguma de que ambos simbolizam o mesmo poder terrestre. Alguns intérpretes afirmam que o chifre pequeno representa o anticristo do tempo do fim. Contudo, os intérpretes adventistas têm consistentemente relacionado o chifre pequeno ao papado medieval. Se essa compreensão está correta, é evidente a conclusão de que a besta do mar de Apocalipse 13 também representa o papado. Com que base, então, os adventistas estabelecem essa identificação? O chifre pequeno é realmente o papado? O chifre pequeno de Daniel 7 cresceu na cabeça do quarto animal, que representa o Império Romano. Portanto, é necessário estudar mais atentamente esse animal. Eis a forma como Daniel descreveu sua visão: Depois disto, eu continuava olhando nas visões da noite, e eis aqui o quarto animal, terrível, espantoso e sobremodo forte, o qual tinha grandes dentes de ferro; ele devorava, e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que sobejava; era diferente de todos os animais que apareceram antes dele e tinha dez chifres. Estando eu a observar os chifres, eis que entre eles subiu outro pequeno, diante do qual três dos primeiros chifres foram arrancados; e eis que neste chifre havia olhos, como os de homem, e uma boca que falava com insolência (Dn 7:7, 8). De acordo com o texto, estes eram os primeiros três animais da visão de Daniel: leão, urso e leopardo. Contudo, a quarta besta era tão incomum, tão diferente de qualquer coisa que ele já havia visto, que não conseguiu dar nome a ela; só pôde descrevê-la. Podemos chamá-la de dragão. A forma poderosa desse animal torna-o um símbolo adequado do Império Romano. Por isso estamos interessados nos dez chifres do dragão, especialmente em seu chifre pequeno. Os dez chifres representam as tribos bárbaras que invadiram o Império Romano entre os anos 300 e 500 d.C. Daniel disse que um chifre pequeno surgiria entre os dez, arrancando três deles nesse processo. A descrição detalhada do chifre pequeno revela seu significado: “Os dez chifres [da cabeça do dragão] correspondem a dez reis que se levantarão daquele mesmo reino; e, depois deles, se levantará outro, o qual será diferente dos primeiros, e abaterá a três reis. Proferirá palavras contra o Altíssimo, magoará os santos do Altíssimo e cuidará em mudar os tempos e a lei; e os santos lhe serão entregues nas mãos, por um tempo, dois tempos e metade de um tempo” (Dn 7:24, 25). Esses versos fornecem sete especificações do chifre pequeno que dizem respeito ao papado: 1. “Depois deles, se levantará outro.” As tribos bárbaras estavam bem estabelecidas no Império Romano na metade do 5º século (do ano 401 ao 500 d.C.). O Império Romano Ocidental caiu diante das tribos bárbaras em 476 d.C., e o poder político do papado começou em 538, como veremos no próximo capítulo. Portanto, o papado se encaixa perfeitamente na profecia de Daniel, uma vez que “depois deles [após o estabelecimento das tribos bárbaras no Império Romano], se levantará outro” reino. De fato, o papado se ergueu com poderosa força política na Europa após a conquista do Império Romano pelas dez tribos. 2. “Será diferente dos primeiros.” O papado se diferencia dos dez chifres por deter tanto o poder religioso quanto o político. As nações da Europa que não estiveram sob a jurisdição do clero eram organizações estritamente políticas. 3. “E abaterá a três reis.” Todas as tribos bárbaras que venceram Roma acabaram se convertendo ao cristianismo, mas três delas – os visigodos, os vândalos e os ostrogodos – adotaram o arianismo,1 uma posição teológica sobre Cristo condenada pelo Concílio de Niceia (325 d.C.) e por outros concílios subsequentes da igreja. Clóvis, rei dos francos, venceu os visigodos em 508. A pedido dos papas, o imperador romano Justiniano enviou seus exércitos para eliminar as duas outras tribos heréticas: os

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imperador romano Justiniano enviou seus exércitos para eliminar as duas outras tribos heréticas: os vândalos, que desapareceram em 534, e os ostrogodos, extintos em 538.2 Em virtude disso, podemos afirmar que o papado eliminou essas tribos bárbaras. 4. “Proferirá palavras contra o Altíssimo.” Os intérpretes historicistas da profecia bíblica apontam para várias reivindicações do papado que cumprem a predição de Daniel de que o chifre pequeno proferiria “palavras contra o Altíssimo”. Uma delas é a de que os papas são vigários de Cristo. A palavra vigário, que significa “substituto”, tem a mesma raiz da palavra vice, como em vice-presidente, vocábulo esse que remete ao substituto do presidente. Ao afirmar ser vigário de Cristo, o papa está dizendo que ele é o representante pessoal do Filho de Deus na Terra durante o tempo em que Cristo está no Céu. Contudo, Jesus disse especificamente que enviaria o Espírito Santo para representá-Lo na Terra em Sua ausência (Jo 16:7, 8). Portanto, esse tipo de reivindicação faz com que o papa ocupe o lugar que pertence ao Espírito Santo. A análise de dois outros ensinos do papado bastarão para mostrar que ele cumpre a predição de Daniel, no sentido de pronunciar “palavras contra o Altíssimo”. O primeiro diz respeito à afirmação de que, por meio da confissão, os sacerdotes católicos têm o poder de perdoar pecados – uma prerrogativa que pertence somente a Deus. O segundo refere-se à doutrina de que o sacerdote sacrifica o corpo e o sangue literais de Cristo no altar durante o serviço da missa. Esse ensino não apenas contradiz a verdade de que Cristo Se ofereceu uma vez para sempre (Hb 9:25, 26), mas também dá ao sacerdote católico autoridade para trazer Cristo do Céu a fim de sacrificá-Lo. 5. “Magoará os santos do Altíssimo.” O poder representado pelo chifre pequeno iria perseguir o povo de Deus. De fato, o papado cumpriu amplamente essa predição ao se utilizar do poder do Estado para perseguir e, em muitos casos, executar supostos hereges. A maioria desses “hereges” simplesmente criticava os erros doutrinários do papado e as práticas imorais dos papas. A Inquisição Espanhola é provavelmente o exemplo mais conhecido dessa perseguição. 6. “Cuidará em mudar os tempos e a lei.” A reivindicação católica de que a igreja tem autoridade para mudar a lei de Deus ratifica essa afirmação da profecia. Vale notar que a igreja removeu o segundo mandamento (que condena o uso de imagens de escultura) inteiramente de seu catecismo, e, ao substituir o sábado do quarto mandamento pelo primeiro dia da semana, o domingo, cumpriu a predição de Daniel cujo foco é a mudança dos tempos.3 7. “Os santos lhe serão entregues nas mãos, por um tempo, dois tempos e metade de um tempo.” A palavra aramaica para “tempo”, nesse verso, é iddan, que significa “um ano”. Um “tempo” equivale a um ano, “dois tempos”, a dois anos, e “metade de um tempo”, a seis meses. De acordo com esse cálculo profético, um ano tem 360 dias.4 Nas profecias apocalípticas, um dia representa um ano; portanto, um ano simbólico representa 360 anos. Veja: 1 ano = 360 dias simbólicos, ou 360 anos literais 2 anos = 730 dias simbólicos, ou 720 anos literais ½ ano = 180 dias simbólicos, ou 180 anos literais Total = 1.260 dias simbólicos ou 1.260 anos literais Veremos essa questão de forma mais detalhada no próximo capítulo. Por enquanto, basta dizer que os 1.260 anos começaram em 538 d.C., quando entrou em vigor o decreto do imperador romano Justiniano declarando o bispo de Roma, o papa, como o chefe de todas as igrejas espalhadas por todo o império. O período terminou 1.260 anos mais tarde, em 1798, quando o general de Napoleão, Berthier, aprisionou o papa Pio VI. A informação de que o chifre pequeno de Daniel surge e estabelece seu poder em um momento determinado ajuda a confirmar o fato de que esse chifre representa o papado. Observe que ele surge na cabeça do quarto animal, constituindo-se numa parte deste. Essa é uma boa representação de como se originou o papado. Enquanto Babilônia, Média-Pérsia, Grécia e Roma conquistaram, cada qual, o império que a precedeu, o papado nasceu em Roma, tornando-se uma extensão do império exatamente como o chifre pequeno, que passou a ser parte constituinte da cabeça do animal. Quando Roma caiu, o papado preencheu o vácuo político existente. Muitos estudiosos protestantes afirmam que o chifre pequeno representa um anticristo que aparecerá no futuro, embora essa interpretação deixe uma lacuna de mais de 1.500 anos entre a queda do Império Romano Ocidental, em 476, e os eventos finais da história da Terra. No entanto, não houve lacunas

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substituiu imediatamente o predecessor. Da mesma forma, o papado substituiu imediatamente o Império Romano; não houve nenhum vácuo histórico entre seu surgimento e a queda do império. Em resumo, o chifre pequeno de Daniel 7 é claramente um poder político-religioso, e o papado é o único poder político-religioso que surgiu após a vitória das tribos bárbaras sobre o Império Romano Ocidental. Uma vez que o papado insere-se no contexto das especificações do chifre pequeno registradas nos versos 24 e 25, é natural ver esse chifre como símbolo do poder papal. De volta à besta do mar de Apocalipse A maioria dos intérpretes conservadores do Apocalipse entende que a besta do mar representa um poder intolerante que surgirá na Terra próximo ao fim da história mundial. Muitos asseguram que a besta do mar representa o ateísmo e o secularismo. Os adventistas a têm identificado historicamente ao papado. Essa interpretação baseia-se na semelhança entre a besta do mar e o chifre pequeno de Daniel 7, fato que nos permite afirmar que ambos representam o mesmo poder. Se essa conclusão está correta – e eu creio que está –, de acordo com Apocalipse 13 podemos esperar vários desdobramentos dela nos próximos anos: • “Deu-se-lhe [à besta do mar] ainda autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação” (v. 7). Isso significa que o poder papal exercerá influência sobre o mundo todo. • “E toda a terra se maravilhou, seguindo a besta; [...] adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem pode pelejar contra ela?” (v. 3, 4). Esse trecho afirma que o mundo reconhecerá a liderança espiritual do papado e lhe prestará homenagem. • “Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse” (v. 7). Em outras palavras, o poder papal perseguirá os que se opuserem à sua autoridade. A pergunta é: Será que essas predições espantosas sobre o papado realmente se cumprirão? É realista a afirmação de que o papado dominará de forma absoluta, que o mundo todo reconhecerá sua liderança espiritual e que ele perseguirá todos os que lhe recusarem obediência? Será que isso pode realmente acontecer? A resposta curta é “sim”. A resposta mais longa ocupará o restante deste livro. Os próximos três capítulos examinarão a história política do papado: da queda do Império Romano até o presente. Após isso, dedicarei dois capítulos à teoria política católica. Então partiremos para um exame da besta da terra e da marca da besta em Apocalipse 13. Para concluir o livro, voltaremos ao papel da besta do mar nos dias finais da história da Terra, abordando inclusive sua associação com a besta da terra numa perseguição conjunta ao povo de Deus.

1 Os arianos negavam a plena igualdade entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, bem como a natureza divina do Filho e do Espírito Santo. Eles criam que Jesus é um ser criado e, assim, por natureza, inferior a Deus, o Pai. Os antitrinitarianos ainda são às vezes chamados de arianos. 2 Ver William Shea, Daniel: A Reader’s Guide (Nampa: Pacific Press, 2005), p. 116, 117. 3 Ibid., p. 120-122. Shea provê documentação significativa quanto à reivindicação do papado de ter autoridade para mudar o dia de descanso do sábado, o sétimo dia da semana, para o domingo, o primeiro dia. 4 Um ano do calendário consiste de 365 dias. Contudo, o Apocalipse apresenta o período de tempo profético de três maneiras: (1) como uma repetição da expressão “um tempo, dois tempos e metade de um tempo” de Daniel, que equivale a três anos e meio (Ap 12:14; 3,5 x 360 = 1.260); (2) como 1.260 dias (Ap 12:6); e (3) como quarenta e dois meses (Ap 13:5; quarenta e dois meses equivalem a 1.260 dias).

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reio que você teria achado interessante ser um cristão mil anos atrás. As coisas eram diferentes naquela época. Se hoje tudo ocorresse como naquele tempo, o presidente dos Estados Unidos escolheria o presidente mundial da Igreja Adventista, e ele ou outros oficiais do governo também apontariam os presidentes das divisões e uniões da igreja. Da mesma forma, o presidente mundial da igreja escolheria o presidente dos Estados Unidos e dirigiria a cerimônia de posse. De acordo com o costume daquela época, quando um papa morria, o imperador aprovava a nomeação daquele que o substituiria e dava seu consentimento para a nomeação de cardeais, arcebispos e outros oficiais da igreja. Por outro lado, quando o imperador morria, o papa nomeava o próximo soberano e o consagrava. Entretanto, pouco depois do início do segundo milênio d.C., a igreja decidiu que devia nomear seus próprios papas independentemente da vontade do imperador. Surgiu uma oportunidade para isso em 1059, ano em que a igreja precisou apontar um novo papa. Um concílio da igreja em Roma decretou que, daquele momento em diante, todos os papas seriam eleitos pelo Colégio de Cardeais – um método de escolha que perdura até o presente. Como o imperador Henrique IV na ocasião ainda era criança, não pôde se opor à decisão da igreja. Isso ocorreu de forma relativamente tranquila. Contudo, a nomeação de cardeais, arcebispos e postos menores ainda estava nas mãos do imperador, e a igreja também desejava assumir essa responsabilidade. Para conseguir isso, em 1075 o papa Gregório VII decretou que o imperador não mais apontaria qualquer oficial da igreja. Henrique IV, que, nessa época, já era adulto, desafiou-o, nomeando o bispo de Milão. Também escreveu a Gregório uma carta informando-lhe que haveria a eleição de um novo papa, já que ele seria destituído de seu posto. Gregório não iria receber essa ameaça e ficar sentado sem fazer nada. Respondeu com uma carta na qual excomungava Henrique, depunha-o do cargo de imperador e instruía seus súditos de que não mais lhe deviam lealdade. O conflito talvez teria se prolongado por mais algum tempo se alguns nobres alemães, vendo oportunidade de obter de Henrique o que desejavam, não tivessem exigido que ele fizesse as pazes com o papa, caso não quisesse perder o apoio deles. Com o propósito de pressionar ainda mais o imperador, esses nobres organizaram uma reunião em Augsburgo e convidaram o papa a presidir a sessão. Henrique, vendo a escrita na parede, rendeu-se. Iniciou a travessia dos Alpes em direção a Roma, no auge do inverno, para fazer as pazes com Gregório. Nesse ínterim, Gregório recebeu o convite para presidir o concílio de Augsburgo. Percebendo a oportunidade de promover sua causa, o papa aceitou-o alegremente e iniciou a travessia dos Alpes, durante o inverno, em direção à Alemanha. Depois de iniciada a viagem, recebeu a notícia de que Henrique também estava cruzando os Alpes e que ambos provavelmente se encontrariam em algum ponto. Temendo que Henrique quisesse fazer- lhe mal, hospedou-se num castelo fortificado em Canossa. Henrique, que, havia empreendido a travessia dos Alpes não para fazer guerra, mas para pedir perdão, ao ouvir a notícia de que o papa estava refugiado no castelo de Canossa, dirigiu-se para lá. O papa, contudo, não estava inclinado a receber o rei imediatamente. Durante três dias, de 25 a 27 de janeiro de 1077, vestido como um penitente, Henrique permaneceu chorando no portão do castelo, e suplicando o perdão do papa. A tradição conta que o rei, descalço, ficou ajoelhado na neve durante esses três dias. No terceiro dia, Gregório lhe concedeu uma audiência, perdoou-o e suspendeu a excomunhão. Entretanto, exigiu que Henrique lhe fornecesse uma escolta e lhe garantisse uma passagem livre e segura até a Dieta. Depois que Henrique se submeteu à vontade do papa, pôde voltar à Alemanha com seu reinado restaurado.

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Essa história ilustra a relação que existiu entre a igreja e o Estado ao longo do período medieval europeu. O papa era uma poderosa figura política capaz de exercer domínio sobre reis e príncipes. Daniel predisse que o chifre pequeno, que representa o papado, teria poder durante três anos e meio. Esses três anos e meio são simbólicos e representam 1.260 anos literais (538-1798 d.C.). O papado obteve o controle político da Europa no início desse período, mas perdeu-o no decorrer do tempo. Apocalipse 13:3 diz: “Então, vi uma de suas cabeças [da besta do mar] como golpeada de morte, mas essa ferida mortal foi curada”. Se a ferida da cabeça da besta do mar representa a “ferida” do papado, que evento ou eventos históricos se encaixam nesse quadro, e o que significaria a cura da ferida? Neste capítulo, examinaremos brevemente esses 1.260 anos, durante os quais houve o início e o término do domínio do papado na política europeia. Os adventistas entendem que o declínio e a queda do papado – processo que ocorreu entre o século 16 e o 18 – corresponde à ferida mortal da besta do mar. Para compreender plenamente esse conceito, é necessário voltar à origem da relação igreja-Estado que resultou no choque entre o papa Gregório VII e o rei Henrique IV. Vários detalhes analisados neste capítulo fornecerão a base para a compreensão de futuros capítulos; portanto, esteja atento. Começando pelo início Em Seu julgamento, Jesus disse a Pilatos: “O Meu reino não é deste mundo. Se fosse, os Meus servos lutariam” (Jo 18:36, Nova Versão Internacional). Jesus nunca teve a intenção de que os apóstolos e seus herdeiros espirituais alcançassem poder político no mundo. A ordem que lhes deu não foi a de conquistar todas as nações, mas a de proclamar a todas as nações as boas- novas da salvação (Mt 24:14; 28:19, 20; At 1:8). O cristianismo não desfrutava de liberdade legal no Império Romano antes de 313 d.C.; por isso, os cristãos não exerceram poder político durante esse tempo. Quando Constantino reconheceu o cristianismo como religião legal, o papel dessa crença no império mudou quase da noite para o dia. Esse reconhecimento modificou a relação entre igreja e Estado. Nossa moderna compreensão ocidental da independência do Estado em relação à igreja era completamente alheia ao pensamento de qualquer pessoa naquela época. Durante centenas de anos, o imperador havia sido oficialmente o chefe da religião do império, a qual exigia dos cidadãos a adoração do soberano. Ou seja, havia uma união íntima entre religião e governo. Todos esperavam que o Estado interferisse nos assuntos religiosos, e vice-versa. Nunca ocorreu a ninguém, inclusive aos cristãos, que pudesse haver um arranjo melhor. Contudo, a mudança de status legal do cristianismo levou a uma importante pergunta: Qual era a religião do Estado: o paganismo ou o cristianismo? Dentro de um século, o cristianismo já havia substituído o paganismo, tornando-se a religião oficial do Império Romano. Será que os cristãos viam algum problema nisso? É claro que não! Era exatamente isso que eles esperavam que acontecesse. A posição de Agostinho sobre a igreja e o Estado O conceito da igreja como força política ganhou forte apoio teológico de Aurélio Agostinho (354-430), conhecido como Santo Agostinho. Esse bispo da igreja que atuou no norte da África ainda é considerado um dos maiores teólogos da história cristã. Para entender o pensamento de Agostinho, no tocante à relação entre igreja e Estado, precisamos conhecer algo sobre sua compreensão das profecias.1 Durante os primeiros séculos da Era Cristã, os cristãos eram prémilenaristas, isto é, criam que Jesus voltaria no início dos mil anos de Apocalipse 20. Eles entendiam que o sonho de Nabucodonosor (Dn 2) representa a destruição de todos os reinos terrestres, que desaparecerão na segunda vinda de Cristo, momento em que Ele estabelecerá Seu reino eterno (Dn 2:44, 45). Em outras palavras, os cristãos acreditavam que o milênio teria início com o retorno de Jesus. Naquela época, eles pensavam também que a volta de Cristo ocorreria em breve. Contudo, à medida que o tempo foi passando sem que Jesus voltasse, houve uma mudança na maneira de se compreender a segunda vinda. Num livro chamado Cidade de Deus, Agostinho propôs que a igreja, estabelecida na primeira vinda de Cristo, era a pedra que atingiria os pés da estátua, tornando-se o reino eterno de Deus. Uma vez que, no sonho, a pedra destruiu todos os reinos terrestres, a missão da igreja durante o milênio envolveria a destruição de todos os reinos terrestres, a transformação do mundo todo numa sociedade cristã e o estabelecimento de si mesma como o reino eterno de Deus na Terra. “A igreja, agora mesmo, é o reino de Cristo e o reino dos Céus”, disse Agostinho. “Consequentemente, agora mesmo Seus santos reinam com Ele.”2 O modo como Agostinho

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entendeu Daniel 2 e as implicações dessa compreensão para a missão da igreja são importantes conceitos teológicos aos quais retornaremos neste livro. A interpretação profética de Agostinho se harmoniza muito bem com a relação estabelecida na época entre a igreja e o império. Os imperadores eram cristãos. O império era oficialmente cristão. Além disso, enquanto esse bispo escrevia, o Império Romano estava se desintegrando por causa das invasões de tribos bárbaras do Norte. À medida que o poderio romano se enfraquecia, a igreja se erguia para preencher o vácuo político. De modo geral, todas essas tribos bárbaras se tornaram cristãs, o que pareceu ser mais um indicativo de que a interpretação profética desse teólogo estava correta. Agostinho propunha que, no decorrer do tempo, a igreja converteria toda a sociedade, venceria os sistemas políticos do mundo e estabeleceria o governo do reino de Deus em toda a Terra. Quando todas as nações do mundo já houvessem se submetido à autoridade da igreja, Jesus voltaria – no fim do milênio. Isso não significa que a igreja afirmava ser o Estado. A igreja reconhecia que entidades políticas ainda eram necessárias para a organização da sociedade, a criação de exércitos e a manutenção de serviços públicos. O papel da igreja era o de fornecer ao Estado orientação moral e garantir que ele imporia os princípios morais da igreja aos cidadãos, que deveriam permanecer doutrinariamente ortodoxos. Qualquer pessoa que ousasse desafiar a autoridade da igreja ou discordar de suas doutrinas era encaminhada para o Estado a fim de ser punida como herege. Começam os 1.260 anos No tempo de Agostinho, as igrejas locais estavam espalhadas por cidades e aldeias em todo o império, e as catedrais das grandes cidades – Alexandria, Éfeso, Constantinopla, Atenas, Roma, etc. – já exerciam grande influência em suas respectivas regiões. Entretanto, ainda havia um grande problema: nenhuma igreja era considerada a líder oficial de todas as igrejas cristãs do império. Os cristãos, especialmente os da parte ocidental do Império Romano, muitas vezes buscavam a liderança do bispo de Roma, mas não havia nada de oficial nessa prática. Em 330 d.C., Constantino mudou a capital do império, de Roma para Constantinopla. Isso possibilitou que a igreja rapidamente ampliasse seu poderio em Roma. Historiadores modernos, tanto religiosos quanto seculares, afirmam que o bispo de Roma, com sua igreja, passou a exercer a função do imperador, o que o levou a se tornar o cabeça de todas as igrejas do império. É por isso que a Igreja Católica é oficialmente conhecida como a Igreja Católica Romana. Até hoje, o papa é oficialmente o bispo da igreja local de Roma. Uma vez que a capital do império agora era Constantinopla, o bispo dessa cidade começou a reivindicar o direito de representar todo o cristianismo. Iniciou-se, assim, uma disputa entre o bispo de Roma e o de Constantinopla pela liderança das igrejas cristãs de todo o império. A guerra teve fim quando o imperador Justiniano resolveu a questão em 533 com uma carta que confirmava o bispo de Roma como o “cabeça de todas as santas igrejas” e o “cabeça de todos os santos sacerdotes de Deus”.3 Nessa época, a tribo bárbara dos ostrogodos controlava a cidade de Roma. Eles eram arianos, ou seja, negavam a igualdade de Cristo com o Pai. Por isso, eram considerados hereges pela Igreja Católica Romana. É fácil notar, portanto, que o decreto de Justiniano que tornava o bispo de Roma o cabeça de todas as igrejas cristãs não teria valor enquanto os ostrogodos controlassem Roma. Para solucionar também esse problema, Justiniano enviou seu exército para a Itália, e, em 538, seus soldados expulsaram os ostrogodos de Roma.4 Assim, a cristandade passou a ter um cabeça oficial que podia verdadeiramente atuar. Isso não significa que o papa, de repente, tenha se envolvido em política pela primeira vez. Os bispos cristãos, especialmente o de Roma, já influenciavam a política laica havia mais de duzentos anos. O que ocorreu é que, agora, a igreja finalmente tinha um cabeça oficial que podia representar todo o corpo de cristãos, no que tange aos assuntos políticos e aos religiosos. O decreto de Justiniano conferiu ao bispo de Roma – o papa – a autoridade que este precisava para estender seu poder religioso a toda a cristandade e, eventualmente, seu controle político a toda a Europa. Os acontecimentos do ano 538 possibilitaram ao bispo de Roma a obtenção do domínio político da Europa. Por isso, 538 d.C. é o ponto inicial dos 1.260 anos mencionados em Daniel 7:25 (e em outros textos de Daniel e Apocalipse). O presente do rei ao papa O poder político do papado foi ampliado de forma significativa em 752 d.C. por meio da ação de

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Pepino III (o Breve). Nesse período, um homem chamado Childerico era oficialmente o rei dos francos – que habitavam a atual França –, e Pepino era o prefeito (essa palavra não denotava, na época, aquilo que conhecemos hoje). Contudo, embora não fosse o rei, a posição de Pepino o autorizava a tomar decisões reais. Por isso, em 752, ele fez uma pergunta ao papa Zacarias: Quem deveria ser o governante oficial do reino franco: a pessoa com título de rei ou o governante com poder de rei? O papa concordou com o fato de que o poder de tomar decisões era mais importante que o título. Com a bênção do papa Estêvão II, que o consagrou, Pepino foi eleito rei por uma assembleia de líderes francos.5 Esse incidente mostra o poder político da igreja naquela época, pois o papa foi o árbitro final numa disputa pelo trono. Vale ressaltar que, quando Pepino foi eleito, o papa oficiou em sua cerimônia de posse. Em 754, desejando expressar sua gratidão pelo apoio do papa, Pepino deu a ele um território independente na Itália. Esse evento também é muito significativo, porque pela primeira vez o papa exerceu poder político como governante temporal (ao interferir em assuntos terrestres). Agora ele se tornara o cabeça não apenas de uma igreja, mas também de um território – um reino. Isso lhe possibilitou interagir com outros governantes laicos como se fosse “um deles”. Os papas que vieram a seguir continuaram a governar os Estados Papais (nomenclatura que passou a ser utilizada na época), no centro da Itália, por mais de mil anos, até 1870, quando, sem o consentimento do papado, esses Estados foram incorporados ao moderno Estado da Itália. Vale ressaltar, neste ponto, o já mencionado conflito ocorrido em 1075 entre o papa Gregório VII e o rei Henrique IV da Alemanha. Gregório, um dos maiores papas da história política da Igreja Católica Apostólica Romana, afirmou: A Igreja Romana nunca errou e nunca pode errar, e o papa é o supremo juiz, que não pode ser julgado por ninguém. Não há mudança em suas decisões, somente ele tem direito à homenagem de todos os príncipes, e somente ele pode depor reis e imperadores.6 Essa afirmação demasiadamente arrogante não poderia ter vindo de um líder da igreja cristã. E, novamente, é um indicativo do poder político que o papado obteve naquela época. Seria um erro supor que, desse momento em diante, os papas sempre conseguiram fazer prevalecer sua vontade no tocante aos assuntos políticos que envolviam a igreja e os vários governantes da Europa. Porém, nosso argumento essencial é que o papado se tornou uma poderosa organização política com a qual todo governante temporal era forçado a lidar. O auge do poder político papal A máxima influência política do papado na Europa se deu durante o século 13. Inocêncio III, que liderou de 1198 a 1216, conservou a prática da coroação de reis e imperadores. Reconheceu Frederico como rei da Sicília e mediou uma disputa entre Filipe da Suábia e Oto IV pelo trono imperial. Acabou favorecendo Filipe, mas, quando este foi assassinado, apoiou Oto, que foi coroado na cidade de Roma em 1209. Um ano mais tarde, Oto invadiu alguns dos territórios papais na Itália e tentou obter o controle da Sicília. Por isso, Inocêncio o excomungou e promoveu um homem chamado Frederico, que foi coroado em 1215. Transpondo esse contexto político para a realidade de hoje, é como se o presidente mundial da Igreja Adventista pudesse depor o presidente dos Estados Unidos e instalar nesse cargo o candidato de sua escolha. Isso denota um grande poder político, poder esse obtido com a utilização da autoridade espiritual da igreja e da excomunhão, cujo propósito era o alcance de um fim civil/político. A mesma coisa aconteceu na Inglaterra alguns anos depois. Quando o rei John se recusou a aceitar o cardeal Stephen Langton como arcebispo da Cantuária (em inglês, Canterbury), o chefe da Igreja Católica o excomungou, deixando a Inglaterra sob interdito. Em outras palavras, o papa proibiu as igrejas da Inglaterra de ministrar os sacramentos a qualquer pessoa do reino. Na teologia católica, os cristãos recebem a graça de Deus por meio dos sacramentos; assim, os crentes a quem são recusados os sacramentos são essencialmente cortados dos meios de salvação. Um interdito, portanto, impossibilita a salvação de uma nação inteira! Ameaçado pela oposição de seus nobres, John se rendeu. Entregou o território ao papa e recebeu-o de volta como feudo papal. Imagine que o papa aponte como cardeal de Nova York alguém a quem o presidente dos Estados Unidos se recusa a aceitar. Por causa disso, o papa diz a toda a população católica dos Estados Unidos que ela não poderá receber os sacramentos da igreja até que seu presidente

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aceite a escolha do papa. Foi essencialmente isso que ocorreu nesse episódio que envolveu o papa Inocêncio III e o rei John da Inglaterra, no que diz respeito à nomeação do arcebispo da Cantuária. Isso é poder político alcançado por meio de uma poderosa ameaça espiritual. Mantenha esse evento em mente, pois voltaremos a ele mais tarde neste livro. A filosofia política de Inocêncio se harmonizava com seus atos enquanto papa. Ele declarou que “a liberdade eclesiástica é mais bem preservada quando a Igreja Romana tem pleno poder tanto em assuntos temporais [políticos] quanto espirituais”.7 Ele também decretou que o papa tem o direito de decidir se um rei é digno de sua coroa. Bonifácio VIII, o próximo grande papa, governou a igreja cem anos mais tarde (1294-1303). Nessa época, o poder dos governantes políticos da França e Inglaterra aumentava cada vez mais, ao passo que a autoridade política do papado sobre a política europeia começava a diminuir. Quando o rei Filipe IV, da França, impôs tributos ao clero, Bonifácio emitiu uma bula declarando que os reis não podiam fazer isso sem o consentimento do papa. Filipe, então, retaliou suspendendo as contribuições da França a Roma. Ao enfrentar essa grande perda financeira, Bonifácio recuou, uma vez que, já naquele tempo, o dinheiro falava alto! Num conflito com Filipe em 1302, Bonifácio emitiu sua famosa bula Unam Sanctam (Una, Santa), a qual declarava que o papa tem autoridade sobre os governantes laicos: “Com a verdade como nossa testemunha, é da competência do poder espiritual [o papado] estabelecer o poder terrestre [político] e desaprová-lo se este não for bom.”8 Entretanto, quando Bonifácio excomungou Filipe, o rei francês convocou uma assembleia na qual 29 acusações foram feitas contra o papa. Nesse momento, cinco arcebispos e 21 bispos tomaram o partido de Filipe. Em setembro de 1303, um bando de dois mil mercenários atacou o palácio papal e aprisionou Bonifácio. Uma semana mais tarde ele foi liberto e voltou a seu palácio, mas em meados de outubro contraiu uma violenta febre e morreu. Razões para o declínio O que causou a diminuição do poder político do papado? Mais do que qualquer outra coisa, ela decorreu de uma renovação do conhecimento intelectual. De modo geral, a maioria dos pensamentos grego e romano foram esquecidos durante parte da Idade Média – aproximadamente de 500 a 1000 d.C. Porém, o século 12 presenciou a redescoberta de uma antiga literatura: a de Platão, Aristóteles, Sócrates e de outros pensadores gregos. Isso acabou levando ao Renascimento, que se iniciou no século 14, perdurando até o 16. O humanismo – que enfatiza a importância das soluções racionais para os problemas humanos, em detrimento das soluções ditadas pela religião e pela igreja – desenvolveu-se a partir desse resgate do antigo saber. O Renascimento deu início a um processo de secularização que atingiu o ápice em nossos dias. Essa secularização levou ao fim do poder político papal. Dada a sua importância, retornaremos a essa questão várias vezes no restante deste livro. A invenção da imprensa por Gutenberg, na metade do século 15, propiciou uma explosão intelectual que muito contribuiu nesse processo. Em 1500, casas impressoras já haviam sido estabelecidas em toda a Europa. Antes de Gutenberg, alguém só poderia obter a cópia de um livro como a Bíblia se um escriba fosse contratado para copiá-la de forma manuscrita: palavra por palavra. Podia levar um ano inteiro para se produzir uma única cópia da Bíblia! Obviamente, poucas pessoas possuíam livros naquele tempo. Na verdade, a maioria dos indivíduos nem sabia ler. De repente, Gutenberg tornou possível a produção de centenas de cópias da Bíblia ou de qualquer outro livro numa questão de semanas, de forma que qualquer pessoa de condição financeira modesta podia adquirir uma pequena coleção de livros, e indivíduos ricos podiam montar uma biblioteca considerável. Cada vez mais pessoas aprenderam a ler, e o conhecimento começou a se espalhar rapidamente. O nascimento da ciência moderna no fim do século 15 e início do 16 também deu impulso ao processo de secularização. Não podemos deixar de mencionar, neste ponto, o matemático e astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) que desenvolveu a teoria de que os planetas giram em torno do Sol, contrapondo-se à ideia de que o Sol e os planetas giravam em torno da Terra. Na época, o papado se opôs ferrenhamente a Copérnico, porque sua teoria contradizia o conteúdo de certas passagens da Bíblia que davam a entender que o Sol gira em torno da Terra e que esta é o centro do Universo.9 Essas passagens, no entanto, descrevem apenas a observação do nascer e pôr do sol. É claro que Copérnico estava certo, e a igreja, errada. De modo geral, os estudiosos afirmam que sua descoberta deu origem à moderna revolução científica. Todo esse avanço no conhecimento fez com que pessoas de todos os lugares começassem a pensar

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por si mesmas. E quando seres humanos começam a pensar, questionam, e quando questionam, começam a desafiar a autoridade estabelecida. E a religiosa é uma das primeiras que começam a ser contestadas. O papado ainda era uma força poderosa na política europeia em torno de 1500, mas sua autoridade passou a ser desafiada pela secularização. Nesse contexto, surgiu Martinho Lutero. Lutero não tinha nenhuma intenção de começar uma reforma quando pregou suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg, na Alemanha, em 31 de outubro de 1517. Ele escreveu suas declarações em latim, mas elas foram imediatamente traduzidas para o alemão. Se dentro de duas semanas as teses já haviam sido impressas e espalhadas por toda a Alemanha, dentro de dois meses elas já haviam sido traduzidas para várias línguas europeias, impressas e espalhadas por todo o continente. Quando Roma percebeu o que estava acontecendo, era tarde demais para deter o movimento popular a que Lutero inadvertidamente deu início. O rompimento de Lutero com Roma teria sido impossível sem a imprensa, que permitiu a rápida propagação de informações. O ponto importante é que o aumento de conhecimento instigou as pessoas a desafiar a autoridade; nesse caso, a autoridade papal. A imprensa possibilitou, portanto, que esse movimento desse um gigantesco salto. Embora Lutero fosse profundamente religioso, seu rompimento com Roma também contribuiu para o processo de secularização. O papa Leão X declarou heréticos os conceitos de Lutero e o convocou a uma entrevista em Roma. Entretanto, Lutero tinha o apoio de Frederico III, o eleitor da Saxônia, o qual, sabendo que Lutero seria provavelmente aprisionado e executado em Roma, recusou-se a enviá-lo. O papa não teve outra escolha a não ser enviar representantes para confrontar Lutero na Alemanha. Várias dietas (reuniões), nas quais Lutero apresentou suas ideias aos representantes papais, foram realizadas. Como se previa, todos eles declararam que as ideias do reformador eram heréticas. Em 1521, Lutero foi excomungado da Igreja Católica Romana. Contudo, Frederico o protegeu. Esse foi um grande desvio da maneira com que príncipes, reis e imperadores haviam lidado com hereges no passado. Durante centenas de anos, a igreja também havia confiado ao Estado a tarefa de punir os hereges, mas Frederico se recusou a executar a punição que a igreja havia decretado contra Lutero. A secularização estava em andamento. O poder do papado sobre os políticos europeus sofrera um severo golpe. A era do Iluminismo À medida que o saber aumentava, a autoridade política do papado diminuía. Durante o século 18, surgiu um movimento chamado Iluminismo (também conhecido como Era da Razão). Seus proponentes desafiaram os conceitos básicos do cristianismo e promoveram o racionalismo nos pensamentos filosófico, político e econômico. O Iluminismo desencadeou o rápido avanço da secularização. Você talvez reconheça alguns dos nomes de maior destaque nesse movimento: • Voltaire (cujo verdadeiro nome era François-Marie Arouet) • Jean-Jacques Rousseau • Baruch Spinoza • René Descartes • David Hume • Immanuel Kant • Thomas Jefferson • Benjamin Franklin • John Locke • Thomas Paine Humanistas seculares passaram a questionar e minar a autoridade tanto do catolicismo quanto do protestantismo. Sua força gradualmente fez com que o papado se ajoelhasse politicamente, levando, próximo ao fim do século 18, a dois eventos marcantes que mudaram a face da política ocidental por mais de duzentos anos: a Revolução Norte-Americana (1775-1783) e a Revolução Francesa (17891799). O resultado primário da Revolução Norte-Americana foi a criação de uma forma representativa de governo baseada numa Constituição em que há equilíbrio entre os poderes legislativo, executivo e judiciário. No sistema norte- americano, não há uma igreja oficial. O Estado e a esfera religiosa operam

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de forma independente, cada qual em seu âmbito de atuação. Há uma boa razão para a divisão entre religião e governo. Os excessos papais levados a cabo nos mil anos anteriores e a perseguição aos dissidentes nos Estados Unidos durante o período colonial fizeram com que os “Pais Fundadores” da nação temessem que a religião pudesse uma vez mais controlar o governo. Por isso, embora o governo norte-americano nunca tenha atacado a religião, sua constituição é claramente uma reação ao controle excessivo que a religião e a igreja exerceram sobre a política europeia ao longo de mais de mil anos. Vários fatores contribuíram para o desencadeamento da Revolução Francesa. Para nosso estudo, no entanto, o fator religioso é o mais relevante. Esse episódio foi, de fato, uma rebelião secular violenta contra o catolicismo romano. A igreja, que havia sido a maior possuidora de terras na França, viu suas propriedades serem confiscadas pelo governo francês. Houve uma severa repressão ao clero, incluindo o aprisionamento e massacre de sacerdotes em todo o país. O resultado de tudo isso foi uma transferência massiva do poder político da Igreja Católica para o Estado laico. O clímax se deu em 1798, quando o general de Napoleão, Louis Alexandre Berthier, entrou em Roma e exigiu que o papa Pio VI renunciasse à sua autoridade sobre os Estados Papais. Quando o chefe da igreja se recusou a fazê-lo, Berthier o levou prisioneiro para a França, onde morreu um ano e meio mais tarde.10 Assim começou o que o escritor jesuíta Malachi Martin chamou de “duzentos anos de inatividade que foram impostas ao papado pelas principais potências seculares do mundo”.11 O que Martin está dizendo é que o papado não mais foi capaz de exercer uma influência dominadora sobre os governos da maneira como havia feito durante os 1.200 anos anteriores. Esse aniquilamento da autoridade política do papado e sua transferência para o Estado laico é o que os adventistas sempre entenderam como a ferida mortal da besta do mar (Ap 13:3). O período de um tempo, dois tempos e metade de um tempo (1.260 dias simbólicos ou 1.260 anos literais) de Daniel 7:25 começou em 538 d.C., quando o bispo de Roma conseguiu exercer autoridade sobre todas as nações cristãs. Esse poder havia sido conferido pelo imperador Justiniano cinco anos antes. Nos 700 anos seguintes, o domínio político do papado gradualmente se tornou mais forte até atingir o seu auge no século 13. Desse ponto em diante, o domínio da Igreja Católica declinou gradualmente até que, em 1798, o general de Napoleão levou o papa como prisioneiro. A perda da autoridade política em 1798 marcou o fim dos 1.260 anos de supremacia papal profetizada por Daniel. Como veremos no próximo capítulo, isso não quer dizer que o papado se tornou totalmente inativo no campo político depois de 1798. Nos últimos dois séculos tem predominado uma filosofia laica e democrática de governo, particularmente no mundo ocidental. Isso significa que a lei civil passou a ser a autoridade final nos assuntos do Estado, em contraste com a ideia papal e medieval de que o poder da igreja deve ser superior ao do Estado. Nos Estados laicos, o poder concentra-se nas mãos de um ditador; no caso das democracias, teoricamente, nas mãos do próprio povo. No governo laico, tratando-se de ditaduras ou democracias, a religião subordina-se ao poder civil e não exerce domínio algum sobre ele. Numa democracia, os princípios morais que formam as leis do Estado têm origem na compreensão comum do povo; portanto, não estão baseados nos princípios religiosos/morais do catolicismo ou de qualquer outra religião. As instituições públicas educacionais das nações ocidentais são controladas pelo Estado e não pela igreja. O princípio que impera é o de que deve haver um distanciamento entre igreja e Estado. É extremamente importante notar que, mais do que qualquer outra coisa, foi a secularização do governo que levou à liberdade religiosa que o mundo ocidental tem conhecido durante os últimos duzentos anos ou mais. Contudo, essa filosofia de governo tem sido rejeitada pela Igreja Católica, que afirma ser a única depositária das verdades morais nas quais as leis de todo bom Estado devem estar baseadas. Reivindicando o direito de exigir que os Estados imponham às pessoas os princípios morais católicos, a igreja se opõe ao distanciamento entre religião e governo, a exemplo do existente nos Estados Unidos. A ferida mortal que foi infligida à besta do mar é a incapacidade da Igreja Católica, nestes últimos duzentos anos, de impor seus princípios e sua filosofia de governo aos Estados laicos, tanto às ditaduras quanto às democracias. Contudo, o Apocalipse profetizou que a ferida mortal seria curada e que o papado recuperaria a autoridade política perdida. Nos últimos 150 anos os adventistas têm predito que isso irá acontecer. Na década de 1850, quando se começou a propagar essa verdade, a ideia parecia um absurdo. Fazia apenas uns 50 anos que as nações da Europa haviam destituído o papado dos últimos vestígios de sua autoridade política sobre elas. E, então, vieram os adventistas dizendo que, antes da volta de Cristo, o papado obteria autoridade política sobre o mundo todo. Muito embora esse conceito

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parecesse bastante improvável, nós começamos a proclamá-lo porque ele é predito na profecia. Mas será que isso pode realmente acontecer?

1 LeRoy E. Froom apresenta um excelente panorama da interpretação profética de Agostinho em The Prophetic Faith of Our Fathers (Washington, DC: Review and Herald, 1950), v. 1, p. 465-491. 2 Ibid., p. 483. Meus comentários sobre a interpretação de Agostinho sobre profecias estão baseados na obra de Froom. 3 Citado em The Seventh-day Adventist Bible Commentary (Washington, DC: Review and Herald, 1955), v. 4, p. 827. 4 O general romano Belisário ocupou facilmente a cidade de Roma em 536, uma vez que a maioria das forças dos ostrogodos estava lutando contra os francos no norte da Itália. Contudo, os ostrogodos não demoraram muito a voltar e, sendo muito superiores em número, sitiaram a cidade. Obviamente, nessa situação o papa ainda não podia exercer sua autoridade sobre as igrejas cristãs de todo o império. Contudo, em 538 Belisário recebeu reforços que o capacitaram a libertar Roma permanentemente do poder dos ostrogodos. 5 Zacarias morreu pouco tempo após ter respondido à pergunta de Pepino. 6 The Seventh-day Adventist Bible Commentary, v. 4, p. 837. 7 Citado em C. J. Barry, ed., Readings in Church History (Westminister, MD: The Newman Press, 1960), v. 1, p. 438. 8 Bula do papa Bonifácio VIII, promulgada em 18 de novembro de 1302. Papal Encyclicals Online, Unam Sanctam, http://www.papalencyclicals.nt/Bon08/B8unam.htm. 9 Veja, por exemplo, Salmo 93:1; 104:5; Eclesiastes 1:5. 10 Berthier assumiu o controle dos Estados Papais, mas eles foram restituídos ao papado dois anos depois, e pelos próximos setenta anos o papado teve o controle deles ora sim, ora não, até 1870, quando os perdeu permanentemente para o moderno Estado da Itália. 11 Malachi Martin, The Keys of this Blood: The Struggle for World Dominion Between Pope John Paul II, Mikhail Gorbachev, and the Capitalist West (Nova York: Simon and Schuster, 1990), p. 22.

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o tocante ao aprisionamento do papa Pio VI em 1798, não era a primeira vez na história cristã que um papa havia sido levado prisioneiro. Antes dessa data, quando governantes laicos encarceravam chefes católicos, o papado sempre voltava a se impor; dentro de alguns anos, geralmente, recuperava grande parte da autoridade política que havia perdido. No entanto, isso não ocorreu em 1798, e é por isso que o aprisionamento do papa nessa data constitui a “ferida mortal”, que persistiu durante todo o século 19. Quando o Congresso de Viena se reuniu em 1815, o papado, que duzentos anos antes teria exercido uma influência significativa, teve apenas uma participação secundária por intermédio de seu representante, o cardeal Ercole Consalvi. O propósito do Congresso foi restabelecer as fronteiras dos reinos desfeitas pelas guerras de Napoleão. Quando a Rússia, a Áustria e a Prússia formaram uma “Santa Aliança” para encorajar as outras regiões da Europa a fundamentar seus governos em princípios cristãos, a maioria dos outros reinos aderiu.1 Tudo o que o papa pôde fazer foi condenar a proposta, já que se recusava a fazer um acordo com tantos “hereges”. Portanto, a Revolução Francesa realmente quebrou o poder do papado sobre a política europeia. Durante o restante do século 19, a Igreja Católica Romana ficou na defensiva no âmbito da política mundial.

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A democracia e o Estado laico Além de eliminar o poder político do papado, a Revolução Norte- Americana e a Francesa deram impulso ao novo paradigma político que examinamos no capítulo anterior, ou seja, ao modelo em que a democracia e os Estados laicos devem manter a religião separada do governo. Ora, o papado estava acostumado a exercer domínio em Estados em que o catolicismo era a religião oficial e o governo impunha os princípios morais e doutrinários da igreja. O papado não estava habituado à atuação num Estado laico no qual era alheio ao governo. De acordo com o antigo paradigma, nos países em que o catolicismo era a religião estatal, o intercâmbio entre a religião e o governo, às vezes, levava a disputas entre o Estado e a igreja, que estava acostumada a resolver essas questões com reis, imperadores e príncipes “tomando uma rápida decisão na antessala de um palácio”.2 Era muito mais fácil para a igreja fazer acordos com um rei ou um imperador do que ter de negociar com grandes corporações de representantes eleitos em parlamentos e congressos, especialmente quando o catolicismo nem mesmo era a religião oficial do Estado. Agora, reis e imperadores não tinham mais de prestar contas a ninguém, exceto a si mesmos. Sua decisão era lei, a despeito do que os súditos pudessem pensar. Por outro lado, os representantes nos parlamentos e congressos tinham que dar satisfação a seus eleitores, uma vez que a opinião do povo é muito importante nesse sistema de governo. Nesse contexto, se há um número expressivo de católicos entre os eleitores, os interesses do papado podem ser protegidos – embora não haja garantia nem mesmo disso. Porém, o domínio católico certamente não é exercido quando os cidadãos são, em grande parte, protestantes ou não religiosos, ou até mesmo antirreligiosos. Os Estados Unidos e sua forma republicana de governo surgiram poucos anos antes da Revolução Francesa, e isso estabeleceu um parâmetro para o restante do mundo ocidental no século 19. Paulatinamente, as monarquias e ditaduras da Europa e América Latina foram substituídas por governos laicos e democráticos baseados numa constituição. O poder político agora, teoricamente, pertencia ao povo, não mais ao rei ou ao papa. De modo geral, a Igreja Católica Romana atacou verbalmente essa tendência. Pio IX (o papa que atuou de 1846 a 1878), em seu “Sílabo de Erros”,3 condenou a separação entre igreja e Estado e o fato de o governo laico estar livre da supervisão da igreja. Esse chefe católico objetou vigorosamente à

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afirmação de que “em caso de leis conflitantes promulgadas pelos dois poderes, a lei civil prevalece”. Também protestou veementemente contra o conceito político de que os líderes do governo estão isentos para com a autoridade da igreja e de que a igreja e o Estado devem permanecer separados.4 Leão XIII (o papa que atuou de 1878 a 1903) insistiu em que o Estado deve proteger a Igreja Católica para o bem da sociedade.5 O historiador Owen Chadwick, em seu livro The Secularization of the European Mind in the Nineteenth Century [A Secularização da Mente Europeia no Século 19], descreveu bem o problema: A igreja e o Estado sempre haviam esbarrado um no outro [antes do século 19] com certo grau de atrito, o que, ocasionalmente, provocava crises explosivas geralmente mantidas dentro de limites toleráveis por causa da sorte e das concessões mútuas. Os governos representativos estabeleceram novos limites entre igreja e Estado. As formas comuns de concessões mútuas tornaram- se impossíveis. O antigo mundo regulara seu “toma lá, dá cá” com menos desconforto, porque o governo era declarada e abertamente cristão, quer fosse católico ou protestante. Os líderes da igreja aceitavam as restrições à liberdade propostas pelo governo porque o próprio Estado prestava lealdade à igreja. Mas nenhum governo representativo podia ser abertamente cristão da maneira como havia ocorrido anteriormente. Mesmo que o rei ou o primeiro ministro fossem devotos ou piedosos, [...] o governo tinha de ser neutro; precisava tratar imparcialmente todas as religiões; e lidar imparcialmente com todas as religiões significa tratar imparcialmente também a irreligião.6 Outro fator que contribuiu para o enfraquecimento do poder político da igreja durante o século 19 foi a crescente separação entre ciência e religião. Os cientistas nunca esqueceram – nem perdoaram – a punição que a igreja infligiu a Galileu por este haver confirmado a teoria copernicana de que a Terra e os outros planetas giram ao redor do Sol. Esse episódio confirmou o fato de que a igreja havia permitido que o dogma dominasse sobre a razão. Um dos acontecimentos políticos mais significativos com os quais o papado teve de lidar no século 19 foi a perda dos Estados Papais. No capítulo anterior, mencionei que Pepino III deu esses territórios ao papa em 754 d.C., os quais foram governados pela Igreja Católica por mais de mil anos. Em 1869, as forças italianas antagônicas ao governo papal conquistaram uma grande porção dos Estados Papais, e, em 1861, o rei Vítor Manuel deu os primeiros passos para o estabelecimento da moderna nação laica da Itália. Quase dez anos depois, em setembro de 1870, essa nação declarou guerra ao que restava dos Estados Papais, incluindo a cidade de Roma, na qual as tropas italianas chegaram no dia 20 de setembro. Na ocasião, o papa Pio IX apresentou uma resistência simbólica com seu minúsculo exército, mas, depois de três horas, as forças italianas entraram em Roma e tomaram os Estados Papais. O papa ficou furioso. Nos 59 anos seguintes, os papas que sucederam a Pio IX exigiram a devolução dos Estados Papais, mas o governo italiano recusou-se firmemente a fazê-lo. Por isso, durante esses 59 anos os papas protestaram, permanecendo confinados no Vaticano. Esse conflito entre o papado e o governo da Itália passou a ser conhecido como a “Questão Romana”. Entretanto, o século 20 presenciou uma mudança radical na relação do Vaticano para com a política mundial. Seria impossível neste capítulo nos aprofundarmos numa simples fração das atividades políticas exercidas pelo Vaticano durante esse século. Mas é válida a abordagem de três dos exemplos mais importantes: (1) o Tratado de Latrão, feito entre o Vaticano e a Itália de Mussolini em 1929, acordo esse que restaurou a condição de Estado do Vaticano; (2) a concordata do Vaticano com a Alemanha de Hitler em 1933; (3) a contribuição do Vaticano para a queda do comunismo na Europa Oriental e na Rússia no fim da década de 1980 e início da década de 1990. O Tratado de Latrão A história do Tratado de Latrão, feito em 1929, teve início 59 anos antes dessa data, quando a Igreja Católica perdeu os Estados Papais para o Estado emergente da Itália. Nesse momento, juntamente com a maioria dos outros Estados europeus, a nação italiana estava empenhada na luta pelo liberalismo, pela democracia, pelo anticlericalismo e pela condição de Estado laico. O papado se opunha fortemente a essa tendência, uma vez que preferia lidar com governos autoritários que estabelecessem o catolicismo como a religião oficial e lhe dessem um papel importante na vida civil. Os papas proclamavam que o

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liberalismo, a democracia e a liberdade de expressão e de imprensa eram ideais pecaminosos. Além disso, declaravam que qualquer pessoa que votasse em favor de um Estado laico italiano cometia um pecado que automaticamente resultava em condenação eterna.7 Na primeira década do século 20, o Vaticano deixou de proibir o voto dos italianos. Na verdade, devido ao fato de que o socialismo – o qual o Vaticano também detestava – estava rapidamente ganhando terreno na Itália após a Primeira Guerra Mundial, o Vaticano permitiu que os católicos organizassem um partido político que teria por objetivo anular a influência socialista. Conhecido como Partito Populare [Partido Popular], e liderado por um sacerdote siciliano chamado Don Sturzo, logo se tornou uma força poderosa na política italiana. Aproximadamente nessa mesma época surgiu o Partito Fascista [Partido Fascista] italiano, e, em 22 de outubro de 1922, seu líder, Benito Mussolini, assumiu o controle do governo italiano. Entre outras coisas, Mussolini e os fascistas lutaram contra o socialismo e o comunismo. O Vaticano, incluindo o recém-empossado papa Pio XI, observou esse acontecimento com grande satisfação, pois, se havia algo que o papado odiava mais que a democracia, era o socialismo e o comunismo, ambos com filosofia ainda mais secular que a dos governos democráticos. O comunismo se constituía em algo particularmente odioso, porque declarava, nas palavras de Karl Marx, que a religião é “o ópio do povo”. Os papas estavam bem conscientes das atrocidades cometidas contra a igreja pelo governo comunista da Rússia. Mussolini, que desejava obter poderes ditatoriais, sofreu resistência de uma coalizão composta por socialistas e pelo Partito Populare católico. Pio XI, vendo nos fascistas de Mussolini um poderoso oponente do socialismo e do comunismo, apoiou os fascistas contra seu próprio partido católico. Ele advertiu todos os católicos italianos de que qualquer aliança com os socialistas era pecado, e ordenou a todos os sacerdotes que eram membros do partido católico que o abandonassem. Mussolini conseguiu sua ditadura. O Partito Populare estava condenado. O Tratado de Latrão. O Vaticano estava ansioso para resolver a controvérsia de sessenta anos com o governo italiano sobre os Estados Papais. Em outubro de 1926, Pio XI iniciou negociações com Mussolini que resultaram no Tratado de Latrão, assinado pelo Vaticano e pelo governo italiano em 11 de fevereiro de 1929. Esse acordo consistiu em três documentos: o tratado em si, chamado de “Tratado de Conciliação”; uma “Convenção Financeira”; e uma “Concordata”.8 O primeiro artigo do tratado estabeleceu o catolicismo como a religião oficial do Estado. Embora a relação entre a igreja e o Estado delineada no tratado ainda não fosse a ideal, segundo os padrões de Roma, houve um grande passo nessa direção. Os artigos 3 e 4 do tratado deram à Santa Sé completa e soberana autoridade sobre a cidade do Vaticano, garantindo que o governo italiano não interviria nos negócios internos do papado. A Convenção Financeira estipulou que o governo italiano daria 7,5 milhões de liras italianas ao Vaticano como compensação pela perda dos Estados Papais em 1870. O artigo 11 da Concordata reconheceu os dias de festa instituídos pela igreja, incluindo “todos os domingos”. O artigo 34 estabeleceu a lei canônica católica como a base para o casamento e o divórcio.9 O artigo 36 conferiu à Igreja Católica controle sobre toda a instrução religiosa dada nas escolas públicas da Itália. A Concordata também estipulou que os casamentos civis deveriam ser regidos por essa lei. O resultado disso foi a adoção da lei canônica católica – no tocante à educação e ao casamento – como a política oficial do governo italiano. Em essência, a lei religiosa se tornou a lei italiana. Isso foi de extrema importância para o Vaticano, pois, novamente, alguns dos mais importantes princípios morais católicos deveriam, pelo menos em teoria, ser impostos por um governo civil, muito embora este fosse um governo laico. Um dos efeitos primários do Tratado de Latrão foi a restauração do Vaticano enquanto Estado independente. Agora, o papa, como legítimo chefe de Estado, poderia uma vez mais realizar negócios com outras nações do mundo, inclusive a troca de embaixadores. Alguns adventistas do sétimo dia, ouvindo a notícia do Tratado de Latrão em 1929, proclamaram que a ferida mortal havia sido curada. De fato, o acordo possibilitou o início da cura da ferida mortal; porém, essa recuperação ainda está em andamento. A concordata com a Alemanha A Alemanha emergiu da Primeira Guerra Mundial como uma nação democrática chamada República de Weimar. Vários partidos competiam pela influência no Reichstag – o parlamento ou congresso

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alemão. Entre esses estava o Partido do Centro, o Partido Alemão dos Trabalhadores (que Hitler, mais tarde, denominou Partido Socialista Nacional Alemão dos Trabalhadores), o dos Democratas Sociais e o dos Comunistas. O Partido do Centro, o equivalente alemão do Partito Populare italiano, era católico. Eugenio Pacelli. Em 1920, o Vaticano enviou Eugenio Pacelli, um de seus mais talentosos diplomatas, como núncio10 ao estado alemão da Bavária. Três anos depois, ele foi designado para Berlim, onde se tornou o núncio da igreja na Alemanha. Nessa função, conseguiu exercer uma influência significativa na política alemã. Uma das grandes ambições de Pacelli durante a década de 1920 foi a negociação de uma concordata com a República de Weimar. Vale ressaltar que ele conseguiu estabelecer uma concordata com a Bavária, para onde havia ido como núncio em 1920, devido ao fato de que a maior parte dos habitantes desse país é católica. No caso da Alemanha, porém, em que dois terços da população são protestantes, o governo democrático de Weimar não se interessou em estabelecer uma concordata com o Vaticano que sujeitasse os protestantes da Alemanha a uma lei canônica que desse à igreja controle sobre a educação pública e o casamento. Por isso, Pacelli nunca conseguiu fazer esse acordo com a República de Weimar. Mas teria muito mais sucesso com Hitler. Adolf Hitler. Na época da juventude desse homem, certamente ninguém imaginava que ele seria um futuro líder mundial. Hitler desejava se tornar um artista, mas fracassou completamente nesse sentido. Não conseguiu nem ser aceito numa razoável faculdade de Artes. Ao longo da maior parte do período da Primeira Guerra Mundial, foi visto como um derrotado que mal conseguia se sustentar em Viena. Contudo, era um orador talentoso que arrebatava multidões e um exímio político. Por causa disso, em 1919 uniu-se ao Partido dos Trabalhadores (que logo se tornaria o Partido Nazista), transformando-se em um ardente defensor dessa causa. Em 1921, já havia alcançado tal preeminência no partido que foi nomeado seu líder. Assim, aproximadamente na mesma época em que Mussolini obteve poder ditatorial na Itália, Hitler emergiu como uma força menor na política alemã. Dois importantes fatores contribuíram para a posterior ascensão de Hitler ao poder. O primeiro diz respeito aos termos severos do Tratado de Versalhes, que os governos Aliados forçaram a Alemanha a assinar no fim da Primeira Guerra Mundial. O segundo, às horríveis condições econômicas da Alemanha durante a década de 1920, que resultaram na Grande Depressão da década de 1930. As duas estiveram intimamente relacionadas. O Tratado de Versalhes limitou severamente as forças militares da Alemanha, impôs ao país a perda de grandes porções do território alemão e, o mais importante, exigiu que a Alemanha pagasse enormes quantias pelo dano que sua guerra havia causado às nações europeias. O povo alemão se sentiu humilhado, e sua economia, que já cambaleava sob o pesado fardo do custo da guerra, foi arruinada. Milhões de pessoas ficaram desempregadas. A inflação subiu a tal ponto que um barril cheio de marcos (moeda alemã) mal dava para comprar um pão. O colapso econômico mundial de 1929 fez a Alemanha se prostrar de joelhos. Nesse contexto, Hitler, um eloquente orador, hipnotizou o povo alemão com sua brilhante promessa de acabar com o pagamento das reparações, reconstruir o exército alemão e recuperar o território que havia sido tomado da Alemanha no momento da assinatura do Tratado de Versalhes. No fim da década de 1920, ele já estava emergindo com uma poderosa força na política alemã. Hitler e a Igreja Católica. À medida que obtinha poder político na Alemanha, Hitler compreendia que teria de lidar com a oposição moral a suas políticas por parte dos protestantes e católicos da Alemanha, particularmente no que diz respeito a suas políticas antijudaicas. Em virtude disso, passou a considerar a concordata que o Vaticano negociou com a Itália em 1929 como um modelo que poderia usar para neutralizar o poder político dos católicos. Assim, logo no início de sua carreira política, Hitler determinou que estabeleceria uma concordata com o Vaticano. Primeiro, porém, ele precisava se tornar o líder do governo alemão, transformando-o numa ditadura chefiada por ele mesmo. Ao longo da década de 1920, o Partido Nacional Socialista exerceu pouca influência na política alemã. No entanto, após o colapso econômico mundial de 1929, à medida que a Alemanha mergulhava em um caos econômico, as promessas de restauração do poder militar alemão e, especialmente, as do término dos pagamentos esmagadores das reparações, que intensificaram as dificuldades econômicas da nação, passaram a ter grande popularidade entre o povo alemão. O resultado foi que, na eleição de setembro de 1930, os nazistas conquistaram 107 cadeiras no Reichstag, fato que os tornou o segundo maior partido político da nação. Hitler estava quase realizando o seu desejo de governar a Alemanha. Entretanto, a maioria do povo católico, dos bispos e arcebispos ainda se opunha fortemente às políticas nazistas, condenando-as em público. Felizmente, Hitler tinha um aliado no Vaticano.

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O Vaticano e os nazistas. Em 1930, o papa Pio XI chamou Eugenio Pacelli de volta a Roma e o nomeou secretário de Estado do Vaticano. Pacelli e Pio tinham a ambição prioritária de estabelecer uma concordata com a Alemanha. E viram a ascensão de Hitler ao poder como um meio de satisfazê-la. Também viram em Hitler um poderoso aliado contra os comunistas, a quem eles temiam e odiavam. Esses foram os dois fatores dominantes que moldaram o relacionamento do Vaticano com a Alemanha no início da década de 1930. No livro The Churches and the Third Reich [As Igrejas e o Terceiro Reich], Klaus Scholder11 explica: “Toda a administração alemã era julgada por Roma, sobretudo, tendose em vista duas questões: a de quão resolutamente ela lutava contra o comunismo ateísta e a de quão preparada estava para concluir uma concordata com o Reich.”12 Entretanto, como mencionei antes, a República de Weimar não estava interessada em fazer um acordo com o Vaticano. Não houve problemas, no que tange à concordata com o estado alemão da Bavária, porque a maioria dos seus habitantes era católica. Entretanto, dois terços da população da Alemanha eram protestantes. Por isso, a democrática República de Weimar não poderia impor a eles uma concordata que favorecesse os católicos. Uma visita do chanceler alemão Heinrich Bruening a Pacelli, em agosto de 1930, indica tanto a importância que o Vaticano atribuía à negociação de uma concordata com a Alemanha como a resistência do governo alemão a tal acordo. Embora ele próprio fosse católico, Bruening se opunha fortemente a uma concordata, e por boas razões: ele sabia que a constituição alemã não a permitiria, uma vez que compreendia a política alemã. Em resumo, Bruening tinha a consciência de que o governo alemão nunca aceitaria uma concordata com o Vaticano. Embora essa questão tenha sido esclarecida, o catolicismo de Bruening, por um lado, e sua oposição à concordata, por outro, era uma dicotomia que Pacelli não conseguia entender. Muitos anos após a visita, Bruening publicou suas recordações sobre a conversa que tiveram. Klaus Scholder descreve o impasse em detalhes: Pacelli levantou a questão de uma concordata com o Reich. [...] Bruening, no entanto, não queria que essa ligação ocorresse. Do seguinte modo este relatou o andamento da conversação: “Eu [Bruening] disse a ele [Pacelli] que era impossível para mim, como chanceler católico, em vista da tensão na Alemanha, até mesmo abordar esse assunto. [...] Se eu levantasse a questão de uma concordata com o Reich agora, instigaria o furor dos protestantes, por um lado, e, por outro, seria completamente mal entendido pela esquerda.” Scholder continua sua análise da entrevista: [A rejeição da exigência de Pacelli por Bruening] se pautou, é claro, numa avaliação precisa. Para Pacelli, porém, essas dificuldades alemãs eram, obviamente, sem importância. [...] Por mais de uma década ele havia devotado todas as suas energias a uma questão [à concordata com o governo alemão]. Agora, havia surgido uma nova situação política [a ascensão de Hitler ao poder], e Pacelli estava determinado a obter vantagem dela – pois sempre havia procurado levar vantagem em situações políticas. Com Bruening, no entanto, isso não pôde ser feito. Ao contrário, o chanceler respondeu firmemente ao cardeal que “ele estava equivocado quanto à situação política na Alemanha e, acima de tudo, quanto ao verdadeiro caráter dos nazistas”. A conversa se tornou ainda mais acalorada quando foi mencionada a questão dos tratados das igrejas protestantes. Bruening relata o seguinte: “Pacelli achava impossível que um chanceler católico fizesse um tratado com igrejas protestantes. Respondi bruscamente que, de acordo com o próprio espírito da constituição à qual eu havia jurado, eu tinha de proteger os interesses do protestantismo religioso com base na plena igualdade. O cardeal secretário de Estado [titular da Secretaria de Estado do Vaticano] agora condenava toda a minha política.”13 Essa conversa entre o chanceler alemão e o secretário de Estado do Vaticano é uma excelente ilustração do tipo de pressão que pode ser exercida pelo Vaticano sobre os católicos que são políticos, uma vez que a igreja espera que os políticos católicos apoiem as ambições do papado. Esse é outro ponto extremamente importante ao qual retornaremos em capítulos posteriores. Os eventos que se seguiram à visita de Bruening a Pacelli favoreceram este. Pouco depois de seu encontro com o secretário de Estado do Vaticano, as políticas econômicas impopulares de Bruening

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puseram fim à sua chancelaria. Contudo, na eleição de 31 de julho de 1932, os nazistas mais do que dobraram sua representação no Reichstag, a qual passou de 107 membros para 230. Hitler estava prestes a satisfazer sua ambição política de governar a Alemanha. A oposição dos bispos alemães a Hitler. Em contraposição ao Vaticano, os bispos e católicos alemães não apoiaram Hitler. Além disso, opuseram- se fortemente ao partido nazista. Os bispos católicos alemães fizeram uma conferência em agosto de 1932, pouco após a eleição que deu aos nazistas 230 cadeiras no Reichstag, e as atas desse encontro registram o seguinte: Todas as autoridades diocesanas desaprovam a participação nesse partido [nazista]. Primeiro, porque partes de seu programa oficial contêm falsas doutrinas no tocante à maneira com que devem ser compreendidas. [...] Segundo, porque as declarações de numerosos representantes e porta-vozes do partido são de caráter hostil à fé, expressando uma atitude contrária aos ensinos e às afirmações da Igreja Católica. [...] Terceiro, porque, de acordo com a opinião coletiva do clero católico e dos leais defensores católicos dos interesses da igreja na vida pública, se o partido alcançar o monopólio que tão ardentemente deseja na Alemanha, os interesses dos católicos em relação à igreja ficarão totalmente sem acolhida.14 A ascensão de Hitler ao poder. O Vaticano apoiou o nazismo, já que a ascensão de Hitler ao poder continuou a satisfazer os desejos do Vaticano. Em 30 de janeiro de 1933, ele foi nomeado chanceler da Alemanha, ficando mais próximo da obtenção do poder ditatorial. A República de Weimar e sua constituição democrática lhe barravam o caminho, mas havia uma solução para esse problema. A constituição da república incluía uma cláusula cujo conteúdo declarava que, numa emergência nacional, uma “Lei de Capacitação Plena” votada por dois terços do Reichstag poderia conferir poderes ditatoriais ao chanceler. Tendo isso em vista, Hitler necessitava do respaldo dessa Lei de Capacitação Plena. Só havia um problema: os membros de seu partido nazista não totalizavam dois terços dos votos no Reichstag. Sendo assim, para se valer de uma Lei de Capacitação Plena, os nazistas teriam de colaborar com outro dos partidos políticos da Alemanha – mas qual deles? Para Hitler, a resposta era simples: o Partido do Centro católico. A fim de conseguir a adesão desse partido, ele pensou em oferecer ao Vaticano uma concordata. O plano funcionou. Eugenio Pacelli, determinado como sempre a negociar uma concordata com o governo alemão, vendo Hitler como aliado no combate ao comunismo, concordou prontamente. O Partido do Centro católico emprestou seus votos aos nazistas, e, em 23 de março de 1933, o Reichstag deu a Hitler o poder ditatorial por meio da Lei de Capacitação Plena. Portanto, foi o Vaticano que contribuiu para a ascensão de Hitler ao poder no momento em que ele era o chanceler da Alemanha havia menos de dois meses. Klaus Scholder faz o seguinte comentário: “Os que questionam o fato de que houve uma relação entre a aceitação da Lei de Capacitação Plena e o estabelecimento da concordata com o Reich definitivamente parecem não ser convincentes.”15 No livro The Coming of the Third Reich [A Vinda do Terceiro Reich], Richard J. Evans escreve: O Partido [do Centro] recebeu a garantia, em dois dias de discussões com Hitler, de que os direitos da igreja não seriam afetados pela Lei de Capacitação Plena. [...] Essas promessas, combinadas com uma forte pressão da parte do Vaticano, foram suficientes para fazer com que os delegados do Partido do Centro passassem a apoiar a medida que, a longo prazo, viria a significar sua própria extinção política.16 É importante notar que a concordata foi estritamente estabelecida entre o Vaticano e o governo alemão, não entre o catolicismo alemão e o governo alemão. No que se refere a esse fato, vale notar as palavras de Scholder: Pacelli obviamente viu – provavelmente de maneira correta – que seus planos [para uma concordata] correriam perigo, se não ficassem fadados ao fracasso, por causa de uma inclusão prematura dos bispos alemães nas negociações da concordata. Por isso, nessa primeira fase ele conservou tudo o que tinha a ver com a concordata em segredo, evidentemente sem considerar o triunfo que seria para Hitler o fato de a Cúria ter mais confiança nele que em seus próprios bispos.17

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A distinção entre o Vaticano e os bispos católicos alemães pode, à primeira vista, parecer irrelevante. Contudo, ela é extremamente importante, pois nos ajuda a compreender o papel do Vaticano na política mundial. A concordata deve ser vista como um arranjo entre dois Estados ou nações: o governo alemão de Hitler e o governo do Vaticano. Não teve nada a ver com os católicos alemães e seus bispos, já que, no âmbito da estrutura hierárquica da Igreja Católica, quando o papa falava, os bispos eram obrigados a seguir, quer concordassem ou não com o que havia sido feito. O periódico católico Allgemeine Rundschau afirmou que “os bispos não podem lutar quando Roma conclui que deve haver paz”.18 Richard Evans salienta que, “na busca da prometida concordata, os bispos alemães retiraram sua oposição ao nazismo e emitiram uma declaração coletiva de apoio ao regime em maio [de 1933]”. Na conferência dos bispos, em 1º de junho, também expediram uma carta pastoral “dando as boas-vindas ao ‘despertamento nacional’ e à nova ênfase numa forte autoridade estatal”. No entanto, ainda davam atenção às questões que os haviam preocupado no ano anterior: a apreensão relacionada à “ênfase dos nazistas na raça e a iminente ameaça às instituições leigas católicas”.19 A concordata com o Reich. Em contraposição ao Tratado de Latrão, a concordata estabelecida entre o Vaticano e a Alemanha de Hitler não consolidou a Igreja Católica como a religião estatal. Isso teria sido impossível, uma vez que dois terços do povo alemão eram protestantes. Contudo, o primeiro artigo da concordata garantiu “liberdade de profissão e prática pública da religião católica”. Além disso, foi concedida à igreja liberdade para “administrar e regulamentar seus próprios negócios independentemente, e, dentro da estrutura de sua própria competência, publicar leis e ordenanças obrigatórias aos seus membros”. O artigo 3 assegurou a troca de embaixadores (núncios, na esfera católica) entre a Alemanha e o Vaticano. O artigo 4 outorgou à igreja a liberdade de publicar “instruções, ordenanças, Cartas Pastorais, boletins diocesanos oficiais e outras decretações relativas à orientação espiritual dos fiéis, propagadas pelas autoridades eclesiásticas no âmbito de sua competência [...] sem impedimentos”. De modo geral, vários artigos favoreceram Hitler. O artigo 16, por exemplo, declarava: Antes de os bispos assumirem suas dioceses, devem fazer um juramento de lealdade ao representante do Reich no estado em questão ou ao presidente do Reich, de acordo com as seguintes palavras: “Diante de Deus e dos santos evangelhos, juro e prometo, como é próprio de um bispo, lealdade ao Reich alemão e ao estado de [o nome de um estado alemão é inserido aqui]. Juro e prometo honrar o governo legalmente constituído e fazer com que o clero de minha diocese o honre. Na realização de meu ofício espiritual e em meu zelo pelo bem-estar e pelos interesses do Reich alemão, irei me esforçar para evitar todos os atos prejudiciais que possam colocá-lo em perigo.” Hitler desejava neutralizar o poder político do clero alemão. Para conseguir isso, valeu-se do artigo 32 da concordata, o qual declarava que “a Santa Sé prescreverá regulamentos para que os clérigos e os membros de ordens religiosas não pertençam a partidos políticos e não se engajem em suas atividades”. Um dos resultados da concordata foi a extinção do Partido do Centro católico. Scholder declarou: “O Partido do Centro se desintegrou com uma velocidade tão grande que surpreendeu até os socialistas nacionais [os nazistas].”20 Por outro lado, o artigo 21 beneficiou a igreja, pois estipulou que “a instrução religiosa católica, nas instituições de ensino elementar, avançado, secundário e técnico, constitui uma porção regular do currículo e deve ser ensinada de acordo com os princípios da Igreja Católica”. Esse artigo também deu ao clero autoridade sobre a escolha de livros para a instrução religiosa em escolas públicas e “o direito de investigar se os alunos estão recebendo instrução religiosa de acordo com os ensinos e as exigências da igreja”. A maioria das pessoas não está ciente do papel crucial que o Vaticano desempenhou ao ajudar Hitler a obter o poder na Alemanha. Por ser um exímio político, Hitler provavelmente teria cumprido sua meta de alguma outra forma, ainda que não tivesse sido por intermédio do papado. Historicamente, porém, é fato que a ansiedade do Vaticano para estabelecer uma concordata com a Alemanha foi um fator-chave em que levou Hitler ao poder. Esse líder nazista fez reviver um tipo de governante autocrático com o qual o papado historicamente estava acostumado a lidar. Naquela ocasião, o mundo mal podia imaginar as terríveis atrocidades que seriam cometidas por Hitler na Europa.

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O relacionamento do Vaticano com a República de Weimar e com Hitler remete a uma importante mudança da política papal, no que diz respeito às nações democráticas. Essa mudança se pauta no fato de que o Vaticano compreendeu que o ataque verbal à democracia e ao liberalismo político não o levaria a lugar algum. Em virtude disso, ele passou a buscar maneiras de alcançar seus objetivos políticos no contexto do processo democrático. Em resumo, durante o século 19 o Vaticano orientou seus membros a não participar do processo democrático. Ele chegou ao ponto de dizer-lhes que o ato de votar era pecado. Entretanto, pouco depois, o papado se uniu ao processo democrático, permitindo a organização de partidos políticos católicos cuja abordagem estivesse alinhada à política do Vaticano. O confronto entre Bruening e Eugenio Pacelli explicita o fato de que o Vaticano não poderia aceitar um político católico que colocasse a constituição e as leis de seu país acima das exigências da igreja. Por fim, o papado esteve disposto a sacrificar até seu próprio partido político, pois, com isso, alcançaria um de seus principais objetivos, a saber, uma concordata com a Alemanha de Hitler. Meu propósito em partilhar com você essa descrição do relacionamento entre Hitler e o Vaticano, bem como entre Mussolini e o Vaticano, é apresentar o papado como um agente expressivo na política mundial ao longo do século 20. Não foi minha intenção colocar o Vaticano em posição difícil, uma vez que só temos uma perspectiva completa dos fatos depois que eles ocorrem. Tendo isso em vista, embora houvesse sinais de advertência do que estava para acontecer na Alemanha de Hitler durante o início da década de 1930, ninguém poderia ter previsto Auschwitz, Dachau e o aniquilamento de seis milhões de judeus. Klaus Shcolder notou que, “enquanto os seres humanos não tiverem a capacidade de prever o futuro, nem defensores nem oponentes poderão ser inteiramente censurados por basearem suas decisões em experiências e padrões anteriores, em vez de se espelharem na figura de um homem que, à sua própria maneira, foi, sem dúvida, um tipo que aparece uma vez a cada cem anos”.21 Por ora, basta só um exemplo da crescente influência do Vaticano na política global durante o século 20. O Vaticano e a queda do comunismo Segunda-feira, 7 de junho de 1982, foi um dia histórico para o Vaticano e os Estados Unidos. Foi histórico, sobretudo, para a União Soviética e os seus partidários do leste europeu, embora não tenha sido provável que a União Soviética e os seus aliados estivessem cientes do que estava acontecendo. Nesse dia, Ronald Reagan passou cinquenta minutos com o papa João Paulo II na biblioteca do Vaticano. Conversaram sozinhos. Sem secretários, sem auxiliares, sem intérpretes. Foi o primeiro encontro entre o presidente e o papa, embora não tenha sido o último. O assunto da conversa? “Reagan e o papa fizeram um acordo para empreender uma campanha secreta cujo objetivo era apressar a dissolução do império comunista.”22 Estavam “convencidos de que a Polônia podia se desprender da órbita soviética se o Vaticano e os Estados Unidos utilizassem seus recursos com a finalidade de desestabilizar o governo polonês”.23 Também criam que, se pudessem derrubar o regime comunista na Polônia, o mesmo ocorreria com outras nações do leste da Europa, ocasionando, possivelmente, a extinção da União Soviética. Solidariedade. A estratégia que Reagan e João Paulo II adotaram foi o apoio ao Sindicato Solidariedade. Essa organização teve suas origens numa greve ilegal dos trabalhadores que ocorreu no estaleiro polonês de Gdansk24 em 1970. Para combatê-la, o governo comunista enviou a tropa de choque, o que resultou em mais de oitenta mortes. Ainda assim, Lech Walesa, um dos membros da comissão de greve, continuou a organizar pequenos sindicatos clandestinos, os quais ampliaram o número de manifestações por todo o país, visto que a economia polonesa se deteriorou rapidamente no fim da década de 1970. Não podemos deixar de mencionar a greve que ocorreu no estaleiro de Gdansk em agosto de 1980. Nessa ocasião, Walesa escalou um muro com o propósito de desafiar o governo, fato que o tornou instantaneamente um herói nacional. Greves espontâneas logo se seguiram por toda a Polônia. Em setembro, o governo assinou um acordo com os grevistas que permitiu a organização legal da Comissão de Coordenação Nacional do Sindicato Comercial Livre Solidariedade. Walesa se tornou o presidente da comissão, e logo o número de membros rapidamente subiu para nove milhões. Apesar disso, a Polônia continuou a se afundar em um caos econômico que resultou em escassez de alimentos, racionamento e aumento do desemprego. As greves continuaram, e, em 31 de dezembro de 1981, o líder do governo, o general Wojciech Jaruzelski, valeu-se da lei marcial para suspender as atividades do sindicato. No mês de outubro do ano seguinte, ele a baniu. Seiscentos líderes do Sindicato Solidariedade

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foram presos, e centenas de membros foram acusados de traição. Entretanto, alguns milhares foram abrigados por sacerdotes e bispos em igrejas e mosteiros. Seis meses depois, Reagan se encontrou com João Paulo II na biblioteca do papa. João Paulo II e Ronald Reagan. O Sindicato Solidariedade era, acima de tudo, um movimento do povo polonês, e não morreu enquanto esteve proscrito. Apenas funcionou de forma clandestina. Por causa de razões políticas, João Paulo II e Ronald Reagan decidiram manter o movimento vivo e ajudá-lo a crescer. O Sindicato Solidariedade seria o punhal deles no coração do regime comunista. O presidente norte-americano e o papa dariam, cada um, sua própria contribuição. De um lado, os Estados Unidos forneceriam os auxílios financeiro e tecnológico que fossem necessários, ao passo que João Paulo II daria a inspiração moral. De outro, a igreja na Polônia proveria a sede geral e os locais de encontro para as uniões clandestinas de todo o país. E assim aconteceu. Usando canais secretos, os Estados Unidos enviaram toneladas de equipamento para os poloneses: máquinas de fax, prelos, fotocopiadoras, computadores e software. Os equipamentos eram frequentemente enviados primeiro para a Suécia e Dinamarca. De lá, eram transferidos para grandes contêineres e reenviados com endereço escandinavo para o porto polonês de Gdansk por meio de um navio. Os trabalhadores dos armazenamentos dos portos que eram agentes clandestinos do Sindicato Solidariedade sabiam quais equipamentos continham o contrabando e, por intermédio de sacerdotes e de outros canais da igreja, faziam-no chegar aos prédios dos sindicatos secretos em toda a Polônia. João Paulo II encorajou Walesa a conservar vivo seu sindicato clandestino. A estratégia da igreja consistiu no impedimento de um confronto com o governo polonês enquanto cooperava com os Estados Unidos ao exercer crescente pressão sobre a ditadura polonesa. Tendo isso em vista, o papa disse a Walesa que os membros de seu sindicato deviam evitar os confrontos abertos com o governo nas ruas. Tais confrontos, segundo o chefe católico, só forçariam o governo a intervir com o envio das tropas russas, que teriam por objetivo dissolver a rebelião. Em junho de 1979, três anos antes de sua visita a Reagan, João Paulo II viajou à Polônia onde foi recebido por milhões de católicos poloneses, e, em junho de 1983, um ano após seu encontro com Reagan, o papa retornou à sua terra natal. Ao percorrer o país, exigiu direitos humanos e elogiou o Sindicato Solidariedade, atraindo a atenção de multidões. Na ocasião, João Paulo II se deparou pela primeira vez com Jaruzelski, o qual percebeu que seu governo estava abalado. A pressão política exercida pelos Estados Unidos e pelo Vaticano sobre o regime totalitário fez com que, em 5 de abril de 1989, o governo assinasse um acordo que legalizaria novamente o Sindicato Solidariedade, possibilitando as eleições parlamentares dois meses depois. Em dezembro de 1990, Lech Walesa se tornou o presidente da Polônia. O Vaticano e o poder mundial Uma das razões primárias pelas quais o Vaticano apoiou Mussolini e Hitler foi a feroz oposição dos dois ditadores ao comunismo. No entanto, embora não tenha negado auxílio ao nazismo e fascismo, o papado acabou sendo desfavorecido com essa união. Por outro lado, quando o Vaticano se aliou aos Estados Unidos, teve sucesso. O acordo entre o Vaticano e Washington acabou vencendo o comunismo na terra natal de João Paulo II, a Polônia. Também é válido ressaltar que, no início de 1990, o comunismo já havia sido banido de toda a Europa ocidental e que, em dezembro de 1991, o comunismo da União Soviética chegou ao fim. Tendo em vista todas essas questões mencionadas, é razoável dizer que o Vaticano, cuja influência exercida na política europeia durante a Idade Média foi tão forte, novamente voltou a desempenhar um papel significativo na política mundial. Os três exemplos que citei neste capítulo sobre o envolvimento do Vaticano com a política são apenas alguns exemplos. Há muitos outros. No capítulo 16, você lerá algo sobre o atual relacionamento entre Igreja Católica e a política norte-americana. O envolvimento católico na política no século 21 difere significativamente da política de poder da Idade Média. Mil anos atrás, a igreja não tinha de se preocupar muito com a opinião pública. Exercia sua influência política entre reis e imperadores, favorecendo quem mais parecia ter probabilidade de realizar as ambições acariciadas pelo papado. Em contrapartida, o Vaticano atual tem de cooperar com as democracias e inspirar movimentos entre o povo. E já demonstrou ser hábil em trabalhar com as modernas realidades políticas, assim como o era ao lidar com as questões políticas de mil anos atrás. É interessante notar que, durante a época em que João Paulo II e Ronald Reagan estavam minando o comunismo polonês, o arcebispo Pio Laghi

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aconselhou um diplomata de Washington com as seguintes palavras: “Ouça o Santo Padre. Temos dois mil anos de experiência nisso.”25 O boletim online publicado por Stratfor26 declarou: “Os papas sabem como exercer a política do poder.”27 No capítulo 3, expliquei por que os adventistas entendem que a besta do mar representa o papado. Com base nessa interpretação, apresentei estas conclusões sobre o papado no tempo do fim: • “Deu-se-lhe [à besta do mar] ainda autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação” (v. 7). Isso significa que o papa exercerá influência política sobre o mundo todo. • “E toda a terra se maravilhou, seguindo a besta; [...] também adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem pode pelejar contra ela?” (v. 3, 4). Em outras palavras, isso quer dizer que o mundo reconhecerá a liderança espiritual do papado e lhe prestará homenagem. • “Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse” (v. 7). Esse texto remete ao fato de que o poder papal perseguirá os que se opuserem à sua autoridade. Será que essas surpreendentes conclusões são realmente corretas? Cem anos atrás, muitos estudiosos das profecias provavelmente consideravam extravagante e tola a predição adventista (baseada em Apocalipse 13) de que o papado obteria domínio político global durante o tempo do fim. Contudo, a influência política mundial do papado ao longo do século 20 tornou essa profecia muito mais razoável hoje. E o que dizer da predição de que o mundo reconhecerá a liderança espiritual do poder papal e da profecia de que o papado perseguirá aqueles que rejeitarem sua autoridade? Será que isso pode realmente acontecer? Para responder a essas perguntas, precisamos de um pouco mais de informação.

1 Sendo que na época a Europa era fortemente anticlerical, a maioria das nações zombou da proposta, mas acabou assinando-a assim mesmo. De qualquer forma, a Aliança durou cerca de dez anos. 2 Owen Chadwick, The Secularization of the European Mind (Cambridge: Cambridge University Press, 1975), p. 127. 3 “The Syllabus of Errors Condemned by Pius IX”, Papal Encyclicals Online, http://www.papalencyclicals.net/Pius09/p9syll.htm. 4 Veja especialmente a parte 6 do “Syllabus” intitulada “Errors About Civil Society, Considered Both in Itself and in Its Relation to the Church”. 5 Leão XIII, “On the Nature of True Liberty”. 6 Chadwick, The Secularization of the European Mind, p. 126. 7 Avro Manhattan, The Vatican in World Politics (Nova York: Gaer Associates, 1949), p. 108. 8 Uma concordata é um acordo formal. Às vezes o termo é usado especificamente para um acordo entre um governo e a Igreja Católica Romana quanto à relação entre ambos. 9 A Igreja Católica proíbe seus membros de se divorciarem, portanto a igreja autoriza anulações para casais que estejam separados. Tecnicamente, a anulação difere do divórcio porque declara que o casamento nunca existiu, enquanto o divórcio reconhece a existência do casamento e o rompe – algo que a teologia católica proíbe. Na prática, contudo, as anulações católicas têm o mesmo propósito que o divórcio; portanto, na realidade, não existe qualquer diferença entre os dois. 10 Um núncio católico é essencialmente o mesmo que um embaixador e serve também como a ligação principal do Vaticano com os bispos do país para o qual é nomeado. 11 Klaus Scholder (1930-1985) foi um historiador eclesiástico alemão e professor de História na Universidade Eberhad Karls de Tubingen. É especialmente conhecido por sua obra em dois volumes Die Kirchen und das Dritte Reich, cujo título em inglês é The Churches and the Third Reich. A maior parte do que digo sobre a relação do Vaticano com a Alemanha antes da Segunda Guerra Mundial é baseada em seu primeiro volume. 12 Klaus Scholder, The Churches and the Third Reich (Philadelphia: Fortress Press, 1988), p. 146. 13 Ibid., p. 152, 153. 14 Ibid., p. 157. 15 Ibid., p. 247, 248. 16 Richard J. Evans, The Coming of the Third Reich (Nova York: Penguin Press, 2004), p. 352; ênfase acrescentada. 17 Scholder, The Churches and the Third Reich, p. 392. 18 Nº 16, 19 de abril de 1933; citado em Guenther Lewy, The Catholic Church and Nazi Germany (Nova York: McGraw-Hill, 1964), p. 44. 19 Evans, The Coming of the Third Reich, p. 363. 20 Scholder, The Churches and the Third Reich, p. 396. 21 Ibid., p. 221. 22 Carl Bernstein, “Holy Alliance”, Time, 14 de fevereiro de 1992, p. 28. 23 Ibid. 24 Gdansk é a sexta maior cidade da Polônia e seu principal porto marítimo. 25 Bernstein, “Holy Alliance”, p. 33. 26 Stratfor representa Strategic Forecasting (Previsão Estratégica). Essa edição do boletim de Stratfor foi um comentário sobre as afirmações controversas que o papa Bento XVI fez ao islamismo em setembro de 2006. 27 George Friedman, “Faith, Reason and Politics: Parsing the Pope’s Remarks”, boletim online de Stratfor, 19 de setembro de 2006.

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o ler os principais jornais e revistas de notícias que circularam na semana da morte de João Paulo II, jamais se poderia concluir que o secularismo estava em alta, e a religião em baixa, no mundo ocidental. Imagens de pessoas chorando, orando, segurando velas e fazendo o sinal da cruz eram frequentes tanto na mídia impressa quanto na eletrônica. Em que outras circunstâncias a popular revista norte-americana Time publicaria estas palavras: “Jesus Cristo é a resposta para as interrogações da vida humana”? Ou a Newsweek faria uma matéria de capa intitulada “Vá com Deus”?1 Algumas semanas após o funeral de João Paulo II, ouvi adventistas em toda parte dizerem: “Toda a Terra se maravilhou, seguindo a besta” (Ap 13:3). Eles consideraram a vida desse papa e a fascinação mundial pelo seu funeral como um cumprimento profético. E com boas razões. Kenneth Woodward, da Newsweek, de modo brilhante afirmou que João Paulo II “transformou a figura do papa, que até então era um ícone distante, num rosto familiar: o rosto dele”.2 Durante sua eleição em 1978, João Paulo II, com 58 anos de idade, consagrou-se o mais jovem papa em 132 anos. Por ser muito dinâmico, três meses após sua nomeação visitou a República Dominicana e o México. Essa foi a primeira das 104 peregrinações que marcaram seus 26 anos de atuação como Pontífice Máximo.3 Durante esse tempo, ele viajou o equivalente a três vezes a distância da Terra à Lua.4 De acordo com David Van Biema, da revista Time, “o mundo era um palco, e o papa estava determinado a percorrer cada centímetro dele”.5 E o percorreu, pois, durante sua gestão, João Paulo visitou 129 dos quase 200 países do mundo.6 Esse papa fez mais viagens fora de Roma que todos os outros papas juntos7 e foi visto pessoalmente por mais pessoas que qualquer outra figura mundial, religiosa ou política. Ele se via como o sucessor não apenas de Pedro, mas também de Paulo, que “nunca conseguia ficar parado, estando sempre em constante movimento”.8 João Paulo II exercia grande influência sobre as pessoas. “Ele sabe que ninguém lê as encíclicas de um papa morto”, disse o arcebispo da Filadélfia, Justin Rigali. “É por isso que ele vai às ruas. Talvez dure apenas um minuto, mas é como se as pessoas tivessem dez horas da mais íntima experiência mística. Para muitas delas, esse era o momento em que elas poderiam dizer: ‘Vi outra possibilidade na vida.’”9 No que diz respeito a mim, embora nunca tenha sentido algo místico relacionado a João Paulo, uma vez que creio em uma doutrina diferente daquela apregoada pelos católicos, posso dizer que senti seu carisma, especialmente em seus primeiros anos de atuação. Eu gostava dele como pessoa. O programa de viagens de João Paulo II era suficiente para deixar exausta a maioria das pessoas. Contudo, houve outras realizações igualmente impressionantes: (1) ele falava oito línguas, e, quando conhecia a língua da pessoa que fazia uma pergunta, respondia naquela língua. Em 1989, quando se encontrou pela primeira vez com Mikhail Gorbachev, ele e o primeiro- ministro soviético conversaram durante oito minutos em russo; (2) os discursos e textos de João Paulo II compreendem 150 espessos volumes;10 (3) ele também completou uma difícil tarefa iniciada por seu predecessor, Paulo VI: a revisão do extenso código de lei canônica da igreja. Ele revisou, editou e corrigiu todo o documento, linha por linha.11 O impacto de João Paulo II em sua própria igreja foi bastante intenso. Durante seu pontificado, o número de membros da igreja aumentou 41% – de 737 milhões, em 1978, passou a 1,1 bilhão em 2003. O crescimento católico na África foi de 168%, e o número de sacerdotes africanos aumentou 237%.12 João Paulo II nomeou 150 cardeais durante sua gestão como papa, sendo que 44 foram empossados de uma só vez em fevereiro de 2003. Sete meses depois, em setembro, ele nomeou mais 31. João Paulo era famoso por ser doutrinariamente muito conservador. E seu conservadorismo inevitavelmente dominará a igreja nos próximos anos, pois, dos 117 cardeais de 52 países que se reuniram em Roma em 18 de abril de 2005 para escolher seu sucessor, 114 haviam sido nomeados por ele.13 Esse apego às

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tradições continua também com Bento XVI, pois, quando ainda prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (antigamente conhecida como Inquisição), no Vaticano, Bento XVI foi, ao longo de 25 anos, o responsável pela defesa da doutrina de João Paulo II. Ecumenismo Um dos objetivos de João Paulo foi estabelecer relações com outros grupos religiosos. Embora almejasse especialmente a união de todos os cristãos sob a bandeira papal, também esteve atento às religiões não cristãs. Sentia ter um laço especial com os judeus por estar familiarizado com os sofrimentos impostos a eles na Polônia dominada pelos nazistas ao longo da Segunda Guerra Mundial. Foi o primeiro papa a visitar uma sinagoga em Roma. Em 1984, encontrou-se com membros do B’nai B’rith, uma organização judaica dedicada aos direitos humanos. Dois anos depois, reuniu mais de 270 líderes religiosos, cristãos e não cristãos, para um serviço de adoração em Assis. Entre os presentes estavam sacerdotes hindus, xamãs tribais e o budista tibetano Dalai Lama, os quais tomaram assento ao lado do papa. Em 1993, estabeleceu relações diplomáticas entre o Vaticano e Israel. Em 2000, visitou esse país, onde orou no Muro das Lamentações e se encontrou com líderes judeus. Quatro anos depois, os principais rabinos de Israel retribuíram o favor visitando o papa no Vaticano. João Paulo II também iniciou contatos com os muçulmanos. Em 1996, ao ser presenteado com um exemplar do Alcorão pelo patriarca Rafael Bidawid, do Iraque, ele se inclinou e beijou o livro em sinal de respeito. Vale ressaltar que o papa cooperou com os islamitas no que se refere às questões de interesse comum. Na conferência das Nações Unidas realizada em 1994, em que um dos assuntos tratados foi a evolução dos direitos das mulheres, João Paulo II se uniu aos muçulmanos para pressionar a conferência a adotar, na resolução final, uma linguagem que protegesse os fetos. Além de tudo isso, João Paulo II era um exímio diplomata político. Enfrentou o comunismo e desafiou destemidamente seus líderes, fazendo com que todo o sistema no leste da Europa ruísse. A União Soviética, que, no auge de seu crescimento, foi uma das duas superpotências mundiais, não existe mais. E isso ocorreu, em grande parte, por causa das habilidades políticas de João Paulo II. Líderes de todas as grandes religiões do mundo viam João Paulo II como um grande homem. Billy Graham o chamou de “a consciência moral do Ocidente”14 e “a forte consciência de todo o mundo cristão”.15 Ao falar sobre um encontro que teve com o papa em 2002, Mufti Selim Mehmed, o líder da grande comunidade muçulmana da Bulgária, disse: “Cremos que o mundo precisa de João Paulo II porque ele fala em favor da paz, dos pobres e dos carentes.”16 O rabino James Rudin, da Comissão Judaica Norte-Americana, disse que o papa “compreendia os judeus não apenas com a mente, mas com o coração. Suas contribuições são históricas, e, provavelmente, ele é o melhor papa que os judeus já conheceram”.17 Observe as manchetes de uma série inteira de artigos publicados na Christianity Today, a principal revista do protestantismo evangélico norte-americano: • “Papa deu aos evangélicos o impulso moral que não tínhamos” • “Papa ‘alargou o caminho’ para evangélicos e católicos” • “Não mais ‘anticristo’: evangélicos elogiam papa” • “Ele era meu papa também” • “Protestantes elogiam papa por causa de suas posições ecumênicas e sociais” • “Funeral do papa coloca em foco afinidades entre católicos e evangélicos” O funeral de João Paulo É a partir desse pano de fundo que precisamos avaliar o funeral de João Paulo II e sua relevância profética. Por que estiveram presentes a esse evento quatro reis, cinco rainhas e mais de setenta primeiros-ministros? Por que estiveram presentes a ele 23 delegações da Igreja Ortodoxa e oito delegações protestantes, que se uniram a representantes do judaísmo, do islamismo e de outras religiões não cristãs? Por que três presidentes norte-americanos, inclusive o da época, ajoelharam-se por cinco minutos em frente ao ataúde do papa? Por que mais de setecentas pessoas ficaram em pé durante várias horas na Praça de São Pedro para assistir ao funeral do papa? E por que cerca de dois bilhões de pessoas ao redor do mundo o viram pela TV, sendo quatro milhões delas da cidade de Roma? A resposta é simples: por causa do modo com que as pessoas o viam como pessoa e da influência que exerceu no mundo. João Paulo II modificou a visão que o mundo tinha de seu cargo e sua igreja. É por

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isso que, muitos dias antes de sua morte, a TV, as rádios e os jornais ao redor do mundo apresentaram boletins diários, às vezes de hora em hora, sobre o agravamento de seu estado de saúde. Seu funeral foi o foco das notícias por mais de uma semana. A morte de João Paulo II e a escolha de seu sucessor mantiveram a Igreja Católica Romana nas principais páginas das mídias eletrônica e impressa durante todo o mês de abril de 2005. Inclusive a morte de papas anteriores foi relembrada em todo o mundo. É realmente intrigante o fato de quatro reis, cinco rainhas, 70 primeiros-ministros, 23 delegações Ortodoxas e oito delegações protestantes irem ao funeral. Quatro milhões de pessoas assistirem ao funeral somente em Roma, e dois bilhões ao redor do mundo? Concordo com aqueles que interpretam esse evento como parte do cumprimento da profecia de que “toda a Terra se maravilhou, seguindo a besta” (Ap 13:3). De fato, o funeral de João Paulo remeteu diretamente ao contexto bíblico estudado neste livro! É importante notar que Apocalipse 13 diz que todos “adoraram a besta” (v. 4). Na conclusão do capítulo intitulado “Apocalipse 13 e a besta do mar”, sugeri que, pouco antes do fim, o mundo todo reconhecerá a liderança espiritual do papado. Essa predição pode ter parecido extravagante e tola cem anos atrás, mas os acontecimentos mundiais que delineei neste capítulo e no anterior tornam essa conclusão muito mais razoável hoje. Apocalipse 13:7 prossegue dizendo que foi permitido que a besta do mar “pelejasse contra os santos e os vencesse”. Em outras palavras, o papado do fim dos tempos se tornará um poder intolerante e perseguidor que castigará com penalidades civis os que não se submeterem aos seus interesses espirituais e morais. Será que isso pode realmente acontecer? Para responder a essa pergunta precisamos de mais evidências. Os próximos dois capítulos nos ajudarão nisso, mas a resposta completa nos será dada no fim deste livro.

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David Van Biema, “Pope John Paul II, 1920-2005: A Defender of the Faith”, Time, 11 de abril de 2005, 36; Newsweek, 18 de abril de 2005, p.

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Kenneth L. Woodward, “Beloved and Brave”, Newsweek, 11 de abril de 2005, p. 35. Em latim, “Pontifex Maximus” era originalmente o título do sumo sacerdote da religião estatal do Império Romano. Do tempo de César Augusto em diante, o imperador passou a usar esse título, e com a queda do Império Romano Ocidental em 476 d.C., o título passou ao bispo de Roma, o papa. 4 Andrew Nagorski, “Freedom Matters”, Newsweek, 11 de abril de 2005, p. 46. 5 Van Biema, “Pope John Paul II, 1920-2005”, p. 39. 6 Esse é o número de países independentes alistados pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos em maio de 2005 no site http://www.estate.gov/www/regions/independent_states.html. 7 Woodward, “Beloved and Brave”, p. 42. 8 Jeffery L. Sheler, “Pope John Paul II: pastor to the world, he led a revolution of conscience”, U.S. News & World Report, 11 de abril de 2005, p. 31. 9 Citado em Van Biema, “Pope John Paul II, 1920-2005”, p. 39. 10 Woodward, “Beloved and Brave”, p. 44. 11 Ibid., p. 43. 12 Van Biema, “Pope John Paul II, 1920-2005”, p. 40. 13 Ibid., p. 42. Num artigo de notícia na Internet em 18 de abril de 2005, a CNN apresentou o número de 115. 14 Woodward, “Beloved and Brave”, p. 39. 15 Van Biema, “Pope John Paul II, 1920-2005”, p. 36. 16 Ibid. 17 Ibid., p. 42. 3

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esta altura, precisamos considerar a compreensão católica da relação que deve existir entre a igreja e o Estado. Isso é necessário a fim de compreendermos os objetivos do papado no mundo atual. Dividi a discussão em duas partes. Neste capítulo, examinaremos a teoria católica sobre a relação igreja-Estado e a liberdade religiosa existente antes do Concílio Vaticano II (1962-1965) e, em alguns casos, após esse concílio.1 No próximo capítulo, analisaremos declarações católicas referentes à separação entre igreja e Estado, bem como à liberdade religiosa, feitas durante o Concílio Vaticano II e em período posterior.

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Superioridade da Igreja Católica A compreensão católica dessas duas questões mencionadas há pouco é construída com base em várias premissas importantes. A primeira diz respeito à afirmação de que o cristianismo é a única religião verdadeira e a de que a Igreja Católica é a única igreja cristã verdadeira. O papa Pio IX declarou categoricamente: “A religião da Igreja Católica é a única religião verdadeira.”2 Em sua encíclica “Sobre a Promoção da Verdadeira Unidade de Religião”, promulgada em 6 de janeiro de 1928, Pio XI disse: “A Igreja Católica é a única que mantém o verdadeiro culto. Ela é a fonte da verdade, o domicílio da fé e o templo de Deus.”3 O papado também ensina que só há salvação por meio da Igreja Católica. O Catecismo da Igreja Católica, publicado durante o pontificado de João Paulo II, declara que a “igreja, peregrina na Terra, é necessária à salvação. [...] Não podem se salvar aqueles que, sabendo que Deus, por intermédio de Jesus Cristo, fundou a Igreja Católica, se recusam a fazer parte dela ou a nela perseverar.”4 Pio XI disse: “Se alguém não trilhar esse caminho ou dele se desviar, não terá a esperança da vida e salvação.”5 O autor católico George La Piana, que também é um crítico, disse que a igreja se considera “a agência divina exclusiva da salvação, o órgão exclusivo da graça divina, o canal exclusivo do divino Espírito”.6 Os católicos não são os únicos a afirmar que a sua é a única igreja verdadeira. Algumas igrejas protestantes também têm reivindicado a mesma coisa. Entretanto, há vários problemas decorrentes dessa asserção, e o menor deles não é a arrogância e exclusividade às quais ela muitas vezes leva. A questão que enfocarei neste livro é o efeito prejudicial que surge quando o conceito da “igreja verdadeira” é combinado com outros aspectos da teoria política católica, que examinaremos nas páginas seguintes. Suprema autoridade do papa A segunda grande premissa da teoria política católica é a que o papa deve ser a suprema autoridade, tanto no que tange aos assuntos religiosos quanto aos temporais (ou políticos). Ninguém questionará o direito que o papa tem de exercer domínio no âmbito religioso. Mas a Igreja Católica insiste no fato de que o papa deve ter autoridade também sobre os governantes políticos. Inocêncio III, o qual liderou de 1198 a 1216, disse: “A liberdade eclesiástica é mais bem preservada quando a Igreja Romana tem pleno poder para resolver tanto assuntos temporais [políticos] quanto os espirituais.”7 Cem anos mais tarde, em 1302, Bonifácio disse na Bula Unam Sanctam: “Com a verdade como nossa testemunha, é da competência do poder espiritual [do papado] estabelecer o poder terrestre [político] e desaprová-lo se este não for bom.”8 O papado baseia em Romanos 13:1 sua reivindicação da autoridade sobre os assuntos seculares. Nesse verso, ao abordar a questão do poder dos governantes políticos, Paulo afirma: “As autoridades que existem foram por Ele [Deus] instituídas”. Na encíclica de Leão XIII publicada em 1881, “Sobre a Autoridade Governamental”, ele apresentou esta ideia: “No que diz respeito ao poder político, a igreja

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corretamente ensina que ele vem de Deus.”9 Ao se valer desse conceito bíblico, o papado vai ainda além, pois afirma que Deus exerce Sua autoridade sobre reis e reinos por intermédio da igreja e que o papa tem autoridade sobre os governantes políticos, já que ele é o cabeça da igreja. No século 13, Tomás de Aquino disse as seguintes palavras: “O poder secular [político] está sujeito ao poder espiritual como o corpo está sujeito à alma.” E acrescentou: “Na figura do papa, o poder secular está unido ao espiritual. Ele sustenta o vértice de ambos os poderes.”10 O papa Leão XIII reforçou essa ideia em sua encíclica de 1888, “Sobre a Natureza da Verdadeira Liberdade”. Ele salientou que, se as autoridades seculares e religiosas partilham da mesma clientela, seus interesses às vezes coincidem. Tendo isso em vista, declarou: “Precisa existir necessariamente alguma ordem ou modo de procedimento para remover as ocasiões de divergência e conflito, a fim de se garantir a harmonia em todas as coisas. Não se pode considerar inapropriado o fato de que essa harmonia foi comparada à que existe entre o corpo e a alma.”11 O ponto principal enfatizado por Tomás de Aquino e Leão XIII é o de que tanto os poderes políticos quanto os religiosos são ordenados por Deus, embora o poder religioso (espiritual) seja superior ao político (secular). Em virtude disso, o papa deve ter autoridade sobre o rei, e, nos momentos de conflito, o poder papal deve predominar. Essa é a filosofia que norteou a política europeia durante a Idade Média. Os reis nem sempre se curvavam à vontade dos papas. Contudo, como vimos em capítulo anterior, os papas tinham o poder da excomunhão e do interdito, por meio do qual exerciam intensa pressão sobre os governantes para que eles se submetessem à igreja. Segundo o papado, a proteção da igreja é uma das atribuições mais importantes do Estado. O papa Pio XI, cujo pontificado se estendeu de 1922 a 1939, disse: “O poder real foi dado não apenas para o governo do mundo, mas, acima de tudo, para a proteção da igreja.”12 De maneira geral, nossos modernos governos democráticos também são responsáveis pelo funcionamento das igrejas, sinagogas e mesquitas. Mas isso simplesmente significa que o Estado é responsável pela criação de um ambiente seguro no qual a religião possa ser praticada. É fato que Pio XI e outros papas queriam dizer algo completamente diferente quando afirmaram que “o poder real foi dado [...] acima de tudo, para a proteção da igreja”. Na verdade, eles propagaram o conceito de que, num Estado ideal, a Igreja Católica deve ser a única religião oficial, e o Estado precisa garantir a superioridade da Igreja Católica em relação a todas as outras. União entre igreja e Estado Obviamente, o Vaticano prefere a união entre igreja e Estado, sendo totalmente contra o moderno princípio político da separação entre ambas as instituições. Além disso, segundo a ótica do papado, uma vez que a Igreja Católica é a única religião verdadeira, o catolicismo deve ser a religião estatal; o ideal é que seja a única permitida pelo Estado. Com base nesse pensamento, Pio IX afirmou que um dos principais erros de nosso tempo é a ideia de que “na atualidade não é mais essencial que o catolicismo seja considerado a religião do Estado, com exclusão de todas as outras formas de culto”.13 Nos Estados Unidos e na maioria dos outros países ocidentais atuais, o Estado é propositalmente não religioso. Em outras palavras, é secular ou laico. O Estado laico não é hostil à religião; na verdade, protege-a, proporcionando liberdade para todas as igrejas levarem avante sua missão do modo como acharem apropriado, sem qualquer interferência do poder secular. Entretanto, de acordo com a teoria política católica, é essencial que o Estado proporcione meios e oportunidades pelos quais a comunidade possa ser habilitada a viver adequadamente, ou seja, de acordo com as leis de Deus. Pois, uma vez que Deus é a fonte de toda bondade e justiça, é totalmente inaceitável o fato de o Estado não prestar atenção a essas leis ou torná-las infrutíferas ao promulgar leis contrárias.14 Segundo esse pensamento, ao qual retornaremos em capítulos posteriores, o Estado deve ser abertamente religioso, impondo as leis de Deus e não meramente as leis seculares. Pio XI, que esteve na função papal de 1922 a 1939, disse que “a dignidade real [de Cristo] exige que o Estado leve em consideração os princípios de Deus, tanto ao elaborar leis quanto ao exercer justiça”.15 E, uma vez que a religião católica seria a única verdadeira, os mandamentos de Deus e os princípios morais sobre os quais o governo está baseado devem estar em harmonia com a compreensão católica. Leão XIII, que exerceu o pontificado de 1878 a 1903, exortou fervorosamente os governantes a “defender a religião e consultar os interesses de seus Estados ao dar à Igreja [Católica] aquela liberdade

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que não pode ser tirada sem prejuízo e ruína para a comunidade”.16 Em outras palavras, visto que a autoridade espiritual da igreja deveria ser superior à do Estado, ela teria o direito de ditar as verdadeiras leis morais que governarão as nações e os seus povos. Segundo a concepção católica, um Estado que promulgue leis em desacordo com o ensino moral da igreja está equivocado e, pelo bem comum da sociedade, precisa mudar seus princípios a fim de que eles estejam em harmonia com as normas impostas pelo papado. É por isso que o catolicismo se opõe tão fortemente à separação entre igreja e Estado. Pio IX declarou que outro dos “principais erros de nossa época” é a ideia de que “a igreja deve ser separada do Estado, e o Estado, da igreja”.17 Leão XIII considerou esse conceito como um “princípio fatal”.18 George La Piana disse que a Igreja Católica condena a separação entre igreja e Estado “como uma ofensa à lei de Deus e uma fonte inevitável de males”.19 Oposição à liberdade de consciência A consequência natural do pensamento católico é a rejeição da ideia da liberdade religiosa, que pressupõe liberdade de consciência e de culto, segundo a escolha individual. Pio IX disse que um dos principais erros de nossa época consiste na ideia de que “todo homem é livre para adotar e professar a religião que, guiado pela luz da razão, considerar verdadeira”.20 Gregório XVI, que exerceu o ofício papal de 1841 a 1846, declarou que “essa vergonhosa fonte de indiferentismo [o liberalismo e a democracia] dá origem à absurda e errônea afirmação de que a liberdade de consciência precisa ser mantida para todos”.21 Nesse sentido, Pio IX também discordou do conceito de que “a liberdade de consciência e culto é um direito pessoal de cada homem que deve ser legalmente proclamado e afirmado em toda sociedade corretamente constituída”. De acordo com ele, essa é “uma opinião errônea, muitíssimo desastrosa quanto a seus efeitos sobre a Igreja Católica e a salvação de almas, sendo, por isso, chamada de doutrina insana por nosso predecessor Gregório XVI”.22 É evidente que a liberdade de consciência para todo cidadão é um dos preceitos fundamentais do Estado democrático laico, cujo princípio básico de governo é a separação entre igreja e Estado. A oposição do papado à liberdade de consciência, portanto, é outro ponto chave que abordaremos de forma mais ampla neste livro. Oposição ao governo do povo Tendo em vista a ideia de que não se pode confiar na capacidade humana de escolha conscienciosa da própria religião, a conclusão mais óbvia é a de que também não se pode esperar que as pessoas tenham competência para escolher seu próprio governo. Afinal de contas, a autoridade para governar vem de Deus, não do povo. Com base nesse conceito, o papado se opõe fortemente ao “governo do povo, pelo povo e para o povo” (trecho extraído do famoso Discurso de Gettysburg, de Abraham Lincoln). Nesse ponto, vale ressaltar a seguinte declaração do papa Leão XIII, presente em sua encíclica “Sobre a Autoridade do Governo”. De fato, em época mais recente, ao andarem nas trilhas daqueles que, no passado, atribuíram a si mesmos o nome de filósofos, muitos dizem que todo o poder vem do povo. Dessa maneira, aqueles que exercem autoridade no Estado, fazem-no porque o poder lhes foi concedido pelo povo. Portanto, segundo essa regra, a autoridade pode ser revogada pela vontade do próprio povo. No entanto, os católicos discordam dessas pessoas, afirmando que o direito de governar vem de Deus, como um princípio natural e necessário.23 Leão XIII prosseguiu dizendo que, quando “a lei que determina o certo e o errado está à mercê da maioria, [...] ela é simplesmente uma estrada que leva direto à tirania”.24 Afirmamos, alguns parágrafos atrás, que o papado baseia sua teoria de governo em Romanos 13:1, texto de Paulo que declara o seguinte: “As autoridades [governamentais] que existem foram por Ele [Deus] instituídas.” Isso ocorre porque, segundo a interpretação católica, esse verso afirma que um governo eleito pelo povo não pode ter sido indicado por Deus. Embora não ocorra nada neste mundo sem a permissão de Deus, vale lembrar que Paulo não disse como uma autoridade governamental deveria vir à existência. Historicamente, os governos obtiveram controle dos Estados de várias formas: com base em uma linhagem real, no caso da monarquia; por meio de eleição, com participação do povo; por meio de revolução, etc.

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A propósito das formas de governo instituídas, as ações praticadas por qualquer organização política têm por objetivo manter a ordem na sociedade. Para que isso ocorra, a obediência às leis seculares não podem entrar em conflito com a observância das leis de Deus. A pressuposição não declarada na teoria católica de um governo apontado por Deus é que a mais alta autoridade na Terra é o papa; e, uma vez que ele é o representante de Deus, qualquer governo que deseje legitimidade precisa ter sua bênção. Por isso, os papas preferem a existência de reis à de presidentes e parlamentos. Afinal de contas, os governos eleitos são mais difíceis de ser controlados pelo papa. Para ser justo, devo mencionar que recentemente alguns papas deram apoio, com ressalvas, à democracia, considerando-a uma forma legítima de governo. O primeiro papa a se pronunciar a respeito foi Leão XIII. Em sua encíclica intitulada “Sobre a Autoridade Governamental”, de 1881, ele afirmou: “É importante, contudo, notar que pessoas às quais se dá autoridade sobre um Estado podem, em certos casos, ser escolhidas pela vontade e decisão da multidão, sem que haja oposição à doutrina católica ou contestação por parte dela.”25 Vale ressaltar que ele aceitou, sob certas circunstâncias, o fato de o povo poder escolher seus próprios governantes quando não houver “oposição à doutrina católica ou contestação por parte dela”. Do ponto de vista do papado, a legitimidade da autoridade governamental se dá na medida em que há concordância com as doutrinas e os princípios morais católicos. O ideal é que o governante esteja disposto a se submeter à autoridade do papa. Portanto, o que parecia uma mudança de atitude papal e uma aprovação irrestrita à moderna democracia, não é algo tão convincente assim. Ou seja, um governo cujos princípios devem estar em conformidade com os pressupostos papais não é uma democracia – pelo menos não a democracia laica norte-americana. Governo mundial Postas essas informações, percebe-se que o alvo supremo do papado é a obtenção do governo mundial e a imposição do conceito da união entre igreja e Estado. Em sua encíclica “Sobre a Festa de Cristo Rei”, Pio XI escreveu: O império de nosso Redentor abrange a todos. Nas palavras de nosso imortal predecessor, o papa Leão XIII: “Seu império inclui não apenas as nações católicas, não apenas as pessoas batizadas que, embora por direito pertençam à igreja, tenham sido desviadas pelo erro ou separadas por causa de seu cisma, mas também todos aqueles que não adotaram a fé cristã; de forma que, verdadeiramente, toda a humanidade está sujeita ao poder de Jesus Cristo.” No tocante à esse assunto, não há diferença entre o indivíduo, a família e o Estado, pois todos os homens, coletiva ou individualmente, estão sob o domínio de Cristo. NEle está a salvação do indivíduo, nEle está a salvação da sociedade.26 O seguinte resumo das palavras de Leão XIII torna o assunto ainda mais claro: • “O império de nosso Redentor abrange a todos”, não apenas os católicos ou cristãos. • “Toda a humanidade está sujeita ao poder de Jesus Cristo.” • “Todos os homens [...] estão sob o domínio de Cristo.” Em certo sentido, é correto dizer que “toda a humanidade está sujeita ao poder de Jesus Cristo” e que “todos [...] estão sob o domínio de Cristo”. No entanto, Pio XI não quis afirmar apenas que Deus é o Governante supremo do mundo; que, na segunda vinda de Cristo, todo ser humano “dará contas de si mesmo a Deus” (Rm 14:12); que Cristo irá “ferir as nações” e “as regerá com cetro de ferro” (Ap 19:15). O raciocínio de Pio XI, na verdade, abrange os seguintes conceitos: (1) as leis das nações precisam estar baseadas na Bíblia, que deve ser corretamente compreendida; (2) a Igreja Católica é a única igreja cristã verdadeira e a autoridade suprema no que diz respeito ao significado da Bíblia; (3) a autoridade do papa é superior à dos governantes seculares. Portanto, a conclusão lógica é a de que todos os seres humanos e todas as nações devem se sujeitar à autoridade do papa, o representante de Deus na Terra. Afirmei em um dos capítulos anteriores que Agostinho modificou radicalmente a interpretação da profecia de Daniel 2. Por trezentos anos a igreja havia considerado a pedra que atingiu os pés da estátua como um símbolo da segunda vinda de Cristo, na qual, Ele “esmiuçará e consumirá todos estes reinos [terrestres]” (Dn 2:44). Segundo a nova interpretação de Agostinho, a pedra representa a primeira vinda

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de Cristo; portanto, a igreja é o reino eterno de Deus e o instrumento por meio do qual todos os reinos terrestres serão vencidos. Esse foi o conceito relativo à Bíblia e à profecia que levou a igreja, durante o período medieval, a exercer domínio sobre reis e reinos. E esse raciocínio ainda está vivo e ativo no pensamento católico, pois Pio XI – no século 20 – fez a seguinte declaração: “Se o reino de Cristo [isto é, a Igreja Católica] recebe, como deveria, todas as nações sob seu controle, não há razão pela qual devamos desistir de ver aquela paz que o Príncipe da paz veio trazer à Terra.”27 Pio XI também falou fortemente contra a democracia laica moderna, que destituiu a igreja de seu poder temporal. Ele chamou de “praga do anticlericalismo” a liberdade de religião proporcionada pela democracia laica, que tem existido no mundo nos últimos duzentos anos. Esse mau espírito, como vocês estão bem cientes, veneráveis irmãos, não veio à existência em um dia; faz tempo que ele está à espreita. O domínio do império de Cristo sobre todas as nações [isto é, o poder político do papado sobre a Europa durante o período medieval] foi rejeitado. O direito que a igreja recebeu do próprio Cristo, de ensinar a humanidade, de fazer leis, de governar os povos em tudo o que diz respeito à sua salvação eterna – esse direito foi negado. Gradualmente, a religião de Cristo [o catolicismo] veio a ser igualada às falsas religiões e a ser rebaixada de forma humilhante, ao mesmo nível delas. Foi então subordinada ao poder do Estado [em vez de o Estado ser submetido ao poder da igreja] e passou a ser tolerada em maior ou menor grau, segundo o capricho de príncipes e governantes.28 Até hoje a Igreja Católica não aprova o moderno Estado laico. Ela convive com ele porque não tem outra escolha. A separação entre a religião e o governo, nunca foi, e até hoje não é, aceita pelo papado, que apregoa o conceito de que, no Estado considerado ideal, o catolicismo deve ser a religião oficial do Estado, cuja função se pauta na imposição da moralidade e do dogma católicos. George La Piana resumiu deste modo a ambição papal: “Tendo em vista sua própria reivindicação, a Igreja Católica Romana é totalitária e espera conquistar o mundo com base no princípio de que ela é a agência divina exclusiva da salvação, o órgão exclusivo da graça divina, o canal exclusivo do divino Espírito.”29 Em resumo Antes do Concílio Vaticano II, a teoria papal da relação que deve existir entre a igreja e o Estado estava baseada no conceito de que o cristianismo é a única religião verdadeira e o catolicismo é a única igreja cristã verdadeira. A conclusão disso é que o papa tem suprema autoridade tanto em assuntos espirituais quanto seculares. Portanto, reis, presidentes e primeiros-ministros devem se sujeitar a ele – pelo menos em questões espirituais (ou morais). De acordo com essa visão, a igreja e o Estado devem se unir para que o governo secular imponha os princípios morais defendidos pelo catolicismo. As pessoas precisam se submeter à autoridade doutrinária da igreja; não têm o direito de crer e adorar como desejam. Deus é o Autor da autoridade do Estado, e a Igreja Católica, como a verdadeira representante de Deus na Terra, deve auxiliar o Estado a governar seus cidadãos. Ou seja, devido ao fato de ser a única religião verdadeira, deve dominar o mundo politicamente a fim de estabelecer o reino de Cristo na Terra. Diante dessas concepções, não hesito em dizer que, se o papado conseguisse fazer o que deseja, seu sistema totalitário dominaria a política de todas as nações da Terra. Isso porque a maior parte das fontes papais que citei não datam do período medieval. São declarações de papas e de católicos estudiosos que viveram nos últimos duzentos anos, sendo alguns deles do século 20. Apesar disso, talvez haja alguém que pense que o Concílio Vaticano II, no início da década de 1960, tenha mudado tudo isso; afinal de contas, nessa assembleia foram feitas algumas declarações notáveis sobre a liberdade religiosa. Para entender melhor essa questão, é necessário o exame dos pressupostos que nortearam as conferências desse Concílio.

1 Vaticano II foi um concílio geral da Igreja Católica Romana. Foi realizado no Vaticano (daí o nome “Vaticano II”) de 11 de outubro de 1962 a 8 de dezembro de 1965. O Concílio Vaticano I foi realizado entre 1869 e 1870. 2 Pio IX, “Syllabus of Errors Condemned by Pius IX”, Nº 21; Papal Encyclicals Online, http://www.papalencyclicals.net/Pius09/p9syll.htm. 3 Pio XI, encíclica, 26 de janeiro de 1928, “On Religious Unity” (Mortalium Animos), par. 11; Papal Encyclicals Online,

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http://www.papalencyclicals.net/ Pius11/P11MORTA.HTM. 4 Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 2000), par. 846. 5 Pius XI, “On Religious Unity”, par. 11. 6 George La Piana e John Swomley, Catholic Power vs. American Freedom (Amherst, NY: Prometheus Books, 2002), p. 20. 7 Citado em Readings in Church History, ed. C. J. Barry (Westminster, MD: The Newman Press, 1960), v. 1 , p. 438. 8 Bonifácio VIII, bula promulgada em 18 de novembro de 1302, Unam Sanctam, http://en.wikipedia.org/wiki/Unam_Sanctam. 9 Leão XIII, encíclica, 29 de junho de 1881, “On the Origin of Civil Power” (Diuturnum Illud), par. 8; Papal Encyclicals Online, http://www.papalencyclicals.net/ Leo13/113civ.htm. 10 Citado em Dino Bigongiari, ed., The Political Ideas of St. Thomas Aquinas (Nova York: Hafner Publishing Company, 1953), p. xxiv. 11 Leão XIII, encíclica, 20 de junho de 1888, “On the Nature of Human Liberty” (Libertas Praestantissimum), par. 18; Papal Encyclicals Online, http://www.papalencyclicals.net/Leo13/113liber.htm. 12 Pio IX, encíclica, 8 de dezembro de 1864, “Condemning Current Errors”, também chamada “Forbidding Traffic in Alms” (Quanta Curd), par. 8; Papal Encyclicals Online, http://www.papalencyclicals.net/Pius09/p9quanta.htm; ênfase acrescentada. 13 Pio IX, “Syllabus of Errors”, nº 77. 14 Leão XIII, “On the Nature of Human Liberty”, par. 18. 15 Pio XI, encíclica, 11 de dezembro de 1925, “On the Feast of Christ the King” (Quas Primas), par. 32; Papal Encyclicals Online, http://www.papalencyclicals.net/ Pius11/P11PRIMA.HTM. 16 Leão XIII, “On the Origin of Civil Power”, par. 25. 17 Pio IX, “Syllabus of Errors”, nº 55. 18 Leão XIII, “On the Nature of Human Liberty”, par. 38. 19 George La Piana e John Swomley, Catholic Power vs. American Freedom (Amherst, N.Y.: Prometheus Books, 2002), p. 51. 20 Pio IX, “Syllabus of Errors”, nº 15. 21 Gregório XVI, encíclica, 15 de agosto de 1832, “On Liberalism and Religious Indifferentism” (Mirari Vos), par. 14, Papal Encyclicals Online, http://www .papalencyclicals.net/Greg16/g16mirar.htm; itálicos no original. 22 Pio IX, “On Current Errors”, par. 3; ênfase acrescentada. 23 Leão XIII, “On the Origin of Civil Power”, par. 5. 24 Leão XIII, “On the Nature of Human Liberty”, par. 16. 25 Leão XIII, “On the Origin of Civil Power”, par. 6. 26 Pio XI, “On the Feast of Christ the King”, par. 18. 27 Ibid., par. 20. 28 Ibid., par. 24. 29 La Piana e Swomley, Catholic Power vs. American Freedom, p. 20.

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árias afirmações presentes na “Declaração Sobre a Liberdade Religiosa” do Concílio Vaticano II são bastante surpreendentes em vista da história de intolerância da Igreja Católica e de sua compreensão das relações entre igreja e Estado que apresentei no capítulo anterior. Na verdade, alguns adventistas têm questionado a validade de nossa interpretação de Apocalipse 13 por causa de declarações positivas do Concílio Vaticano II sobre liberdade religiosa, como as duas que se seguem:

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Este Concílio Vaticano declara que o ser humano tem direito à liberdade religiosa. Essa liberdade significa que todos devem ser imunes à coerção por parte de indivíduos ou de grupos sociais e de qualquer poder humano, de tal forma que ninguém deva ser forçado a agir de maneira contrária a suas próprias crenças, particular ou publicamente, individual ou em associação com outros, dentro dos devidos limites.1 Todos devem ser impelidos pela natureza e também compelidos por uma obrigação moral a buscar a verdade, especialmente a religiosa. Cada pessoa tem a obrigação de aderir àquilo que é verdadeiro, uma vez que isso seja conhecido, e de ordenar toda a sua vida de acordo com as exigências da verdade. Contudo, ninguém pode cumprir essas incumbências em harmonia com sua própria natureza, a menos que desfrute de imunidade de coerção externa, bem como de liberdade psicológica. Portanto, o direito à liberdade religiosa tem seu fundamento não apenas na disposição subjetiva da pessoa, mas em sua própria natureza. Em consequência, o direito a essa imunidade continua a existir mesmo naqueles que não vivem à altura de sua obrigação de buscar a verdade e aderir a ela, e o exercício desse direito não deve ser impedido, contanto que a justa ordem pública seja observada.2 Vindas de uma instituição que tem uma história tão longa de perseguição àqueles que dela discordam, essas declarações são verdadeiramente afirmações notáveis sobre liberdade religiosa. Contudo, um exame mais minucioso mostra que essas declarações positivas sobre liberdade religiosa incluem frases e sentenças com ressalvas que poderiam, sob certas circunstâncias, ser usadas para negar o que elas parecem afirmar tão claramente. Não quero dizer que os bispos que formularam essas declarações católicas sobre liberdade religiosa tinham motivos desonestos. Prefiro atribuir a eles a melhor das intenções. Minha preocupação é com o uso que poderia ser feito dessas declarações sob circunstâncias que, no futuro, sejam diferentes das que prevalecem atualmente no mundo. Analisando as afirmações A primeira declaração inicia dizendo que “a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa”, mas termina declarando que essa liberdade está dentro de “limites”. É óbvio que a ideia de que existem limites à liberdade religiosa não é necessariamente má. A Suprema Corte dos Estados Unidos também tomou a posição de que, sob certas circunstâncias, o governo tem justificativas para impedir que as pessoas ajam em harmonia com suas crenças religiosas. Para usar um exemplo hipotético comum, uma pessoa não pode agir sobre a crença religiosa de que é seu dever dar um soco no nariz de outras pessoas. Um exemplo real é a prática do manuseio de cobras venenosas durante serviços religiosos, a qual as cortes americanas têm consistentemente defendido que o governo pode proibir. Assim, a pergunta relativa à frase “dentro dos devidos limites” não é se esse é um princípio errado. Em vez disso, a pergunta é: Quem estabelecerá esses “devidos limites”? Num governo democrático, laico, que não é controlado por pressuposições religiosas sobre o que é moralmente certo e errado, esses

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limites serão definidos de maneira muito estreita, e a liberdade religiosa será em grande parte protegida. Contudo, num Estado onde prevalece a filosofia católica da união entre a igreja e o Estado, a igreja será a entidade que define esses limites, e a liberdade religiosa daqueles que discordam poderia ser muito facilmente cerceada. A segunda declaração afirma que todos são “compelidos por uma obrigação moral a buscar a verdade, especialmente a verdade religiosa”, e que “também têm a obrigação de aderir à verdade, uma vez que seja conhecida”. Surge, é claro, a pergunta do que constitui a “verdade”, e para isso a Igreja Católica tem uma resposta pronta: como a verdadeira igreja de Cristo na Terra, ela tem o direito exclusivo, como vimos, de definir a verdade que todos são “compelidos por uma obrigação moral a buscar” e à qual têm a obrigação de “aderir [...], uma vez que seja conhecida”. A declaração prossegue dizendo, contudo, que “ninguém pode cumprir essas incumbências de maneira que esteja em harmonia com sua própria natureza, a menos que desfrute de imunidade de coerção externa, bem como de liberdade psicológica”. Além disso, “o direito a essa imunidade continua a existir mesmo naqueles que não vivem à altura de sua obrigação de buscar a verdade e aderir a ela”. Em outras palavras, as pessoas têm o direito de estar erradas! Vinda de um concílio da Igreja Católica, essa é de fato uma declaração notável que certamente podemos aplaudir. A frase que apresenta ressalvas na segunda declaração é a que diz: “contanto que a justa ordem pública seja observada”. Podemos entender que isso signifique simplesmente que ninguém tem o direito religioso de causar dano a outra pessoa. A verdadeira pergunta, como ocorre com a declaração anterior, é: A quem cabe definir o que constitui uma “justa ordem pública”? E sobre essa pergunta, é relevante uma declaração posterior do Concílio Vaticano II sobre liberdade religiosa: A sociedade tem o direito de se defender contra possíveis abusos cometidos sob o pretexto de liberdade religiosa. É especial dever do governo proporcionar essa proteção. Contudo, o governo não deve agir de maneira arbitrária ou com injusto espírito de partidarismo. Sua ação deve ser controlada por normas jurídicas que estejam em conformidade com a ordem moral objetiva. Essas normas surgem da necessidade de salvaguarda efetiva dos direitos de todos os cidadãos e da resolução pacífica de conflitos de direitos, e também da necessidade de cuidado adequado com a paz pública, que surge quando todos vivem juntos em boa ordem e verdadeira justiça, e finalmente da necessidade de uma proteção adequada da moralidade pública.3 Observe que “é especial dever do governo” defender a sociedade contra “possíveis abusos cometidos sob o pretexto de liberdade religiosa”. Novamente, podemos concordar com a declaração, contanto que entendamos o significado dela como sendo que ninguém tem o direito religioso de prejudicar outra pessoa ou colocar em risco a saúde e segurança públicas. O terrorismo, por exemplo, não pode ser aprovado, mesmo que os terroristas creiam firmemente que seus atos sejam cumprimento de um dever religioso. Mas a declaração do Vaticano vai além disso. Ela afirma que, ao defender a sociedade contra abusos cometidos sob o pretexto de liberdade religiosa, a ação do governo deve ser “controlada por normas jurídicas que estejam em conformidade com a ordem moral objetiva”, e que surgem “da necessidade de uma proteção adequada da moralidade”. Já vimos que a Igreja Católica considera sua autoridade espiritual como superior à autoridade do Estado da mesma forma que a alma é superior ao corpo. Portanto, em situações em que a Igreja Católica é favorecida pelo governo, a igreja tomará para si a responsabilidade de definir os princípios morais da “ordem moral objetiva” que o Estado deve proteger. Essa é uma importante ressalva às declarações positivas sobre liberdade religiosa que lemos há pouco. Em circunstâncias adequadas, essa ressalva poderia ser interpretada como dando à igreja a mesma autoridade sobre o governo civil que ela possuía durante a Idade Média. Outro fato importante a ser lembrado é que, apesar de todas as suas declarações elogiáveis em apoio à liberdade religiosa do indivíduo, o papado nunca renunciou a sua preferência pela união igreja-Estado. Em um país onde esta prática seja possível, a Igreja Católica ainda gostaria de ser a igreja oficial, com o Estado legislando e impondo os princípios morais católicos. Mas, é claro, a união igreja-Estado é um fator central em quase todas as perseguições. Num governo em que há união entre igreja e Estado, a liberdade religiosa está em perigo de ser cerceada em certo grau.4 O Catecismo Católico

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O Catecismo da Igreja Católica, cuja tradução para o inglês foi publicada em 1994, contém uma declaração que é relevante para nossa discussão: A doutrina da igreja elaborou o princípio dito da subsidiariedade. Segundo ele, uma comunidade de ordem superior não deve interferir na vida interna duma comunidade de ordem inferior, privandoa das suas competências, mas deve antes apoiá-la, em caso de necessidade, e ajudá-la a coordenar a sua ação com a dos demais componentes sociais, com vista ao bem comum.5 Essa declaração está completamente em harmonia com a filosofia medieval da igreja sobre a relação entre igreja e Estado. Ela descreve duas comunidades – uma de uma ordem superior, que é a igreja, e a outra de uma ordem inferior, o Estado. A palavra subsidiariedade na frase inicial é um termo sociológico. Significa que as funções que uma organização subordinada pode realizar efetivamente não devem ser assumidas por uma organização mais elevada, uma vez que a organização subordinada está mais próxima das situações locais. A filosofia católico-romana sobre a igreja e o Estado, é claro, considera o Estado como subordinado à igreja. Assim, o princípio da subsidiariedade significa que as funções que o Estado pode realizar melhor devem ser deixadas para ele. Isso soa bem à primeira vista, especialmente a declaração de que “uma comunidade de ordem superior [a igreja] não deve interferir na vida interna de uma comunidade de ordem inferior [o Estado], privando-a das suas competências”. Contudo, a declaração prossegue dizendo que a comunidade de ordem superior [a igreja] deve “apoiá-la, em caso de necessidade, e ajudá-la a coordenar a sua ação com a dos demais componentes sociais, com vista ao bem comum”. Isso poderia ser entendido como significando que a comunidade de ordem inferior (o Estado) ainda depende do apoio e coordenação da comunidade de ordem superior (a igreja). Portanto, a igreja estaria livre para intervir nos assuntos do Estado “em caso de necessidade”. E a questão de “necessidade” seria obviamente decidida pela comunidade de ordem superior – a igreja. Embora revestida em termos que são consideravelmente mais modernos, a teoria medieval da superioridade da igreja em relação ao Estado está contida nessa declaração, pronta para ser implementada sem receio quando as circunstâncias o permitirem. Malachi Martin Vários anos atrás, adquiri um livro chamado The Keys of This Blood [As Chaves Deste Sangue]. O autor, Malachi Martin, foi um sacerdote que, anteriormente, havia servido como professor do Pontifício Instituto Bíblico do Vaticano em Roma. Seu livro mais vendido, que foi publicado pela editora Simon and Schuster em 1990, é de grande significado para nossa discussão. Martin começa seu livro com a ousada declaração de que “dispostos ou não, prontos ou não, todos estamos envolvidos numa enérgica competição global de três vias que nada pode deter”. A competição, Martin explica, é sobre quem irá controlar o futuro governo mundial, o qual qualquer pessoa de 40 anos para baixo em 1990 viveria para ver. Ele então afirma: “O propósito escolhido do pontificado de João Paulo II é ser o vencedor nessa competição, que agora já está bastante avançada.”6 Segundo Malachi Martin, a mais elevada ambição de João Paulo II era que ele e sua igreja estivessem no comando do futuro governo mundial. E, dada a influência global que João Paulo II desenvolveu para si e a igreja durante seu pontificado, é fácil acreditar que Martin sabia do que estava falando. Posteriormente em seu livro, Martin faz várias outras declarações que são relevantes quando vistas à luz do que temos examinado sobre a compreensão católica das relações entre igreja e Estado: “É uma verdade segura e evidente para João Paulo II que ninguém tem o direito – democrático ou de outro tipo – de cometer um erro moral; e nenhuma religião baseada na revelação divina tem o direito moral de ensinar esse erro moral ou defendê-lo.”7 Interessante! Você e eu não temos o direito de crer – muito menos de praticar ou ensinar – algo que seja moralmente errado! A pergunta chave, obviamente, é: Quem decide o que é moralmente certo e errado? Eis a resposta de Martin: “A Igreja Católica Romana sempre reivindicou – e, sob a direção de João Paulo II, reivindica hoje – ser o árbitro supremo do que é moralmente bom e moralmente mau na ação humana.”8 Note que a Igreja Católica afirma hoje, como sempre afirmou, ser “o árbitro supremo”, não do que é moralmente bom ou mau para os católicos, mas do que é moralmente bom ou mau “na ação humana” – isto é, para todos os seres humanos.

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Então, o que a igreja de João Paulo II se propõe a fazer com respeito às pessoas que escolhem ensinar e defender um erro moral? É sensato pensar sobre a resposta de Martin e de sua igreja a essa pergunta. Coloquei em itálico algumas palavras-chave que analisarei depois. Eis o que Martin declara: O pré-requisito final para a capacidade georreligiosa [domínio religioso do mundo] é a autoridade. A instituição [Igreja Católica Romana], em suas estruturas e empreendimentos organizacionais, deve ter uma autoridade singular [controle político]: uma autoridade que seja autônoma em comparação com todas as outras autoridades no plano supranacional [global]; uma autoridade que traga consigo sanções que sejam eficazes para manter a unidade e objetivos da instituição [Igreja Católica Romana], enquanto ela desempenha sua tarefa de servir ao bem maior da comunidade como um todo e em todas as suas partes.9 Em uma análise atenta, essas palavras têm implicações sombrias. Martin disse no início de seu livro que o objetivo de João Paulo II era que ele e sua igreja dominassem o futuro governo mundial. Então ele afirma que, a fim de qualquer organização ter essa “capacidade georreligiosa”, é necessário ter uma autoridade que é “autônoma em comparação com todas as outras autoridades no plano supranacional”. Em outras palavras, a Igreja Católica Romana precisa ter uma autoridade que seja independente e superior em comparação com qualquer outra autoridade do mundo, de forma que esteja no controle e ninguém possa prevalecer sobre ela. Martin declara ainda que a Igreja Católica Romana precisa ter a capacidade de formular “sanções que sejam eficazes para manter a unidade e propósitos da instituição enquanto desempenha sua tarefa de servir ao bem maior da comunidade como um todo e em todas as suas partes”. Sanções é o que acontece quando uma autoridade superior impõe restrições às políticas e ações de uma autoridade subordinada até que a autoridade subordinada se submeta às exigências da autoridade superior. Um exemplo são as restrições (sanções) de importação e exportação que as Nações Unidas impuseram ao Iraque após a Guerra do Golfo em 1991, em uma tentativa de forçar Saddam Hussein a revelar seu programa de armas de destruição em massa. Malachi Martin acrescenta que “a instituição” – isto é, a Igreja Católica Romana – precisa ter autoridade para impor seus interesses morais ao restante do mundo (o que ele chamou de “plano supranacional”) e para impor sanções a qualquer nação que recuse se dobrar às exigências da igreja. Martin escolheu sua linguagem muito cuidadosamente, certificando-se de ser um pouco ambíguo com suas longas sentenças. Mas, em um exame atento, seu significado é óbvio: a Igreja Católica Romana precisa ter a autoridade de deter qualquer um que interfira em sua ambição global de servir ao que a igreja considera “o bem maior da comunidade como um todo e em todas as suas partes”. Em outras palavras, a igreja deseja o controle sobre todos os elementos da sociedade humana no mundo todo. Essa é a relação entre igreja e Estado que existia na Idade Média! É a filosofia da relação entre igreja e Estado que as encíclicas papais têm defendido nos últimos duzentos anos, embora a igreja tenha sido impedida de aplicá-la na maioria dos países. Alguns católicos sem dúvida argumentariam que Malachi Martin, que morreu em 1999, representava um elemento muito conservador do catolicismo que não é aceito pela maioria dos católicos hoje, especialmente na América do Norte e Europa ocidental. Isso certamente é verdade. Contudo, João Paulo II era um forte conservador, tanto em sua visão religiosa quanto política, e seu sucessor, Bento XVI, é tanto ou mais conservador. A visão conservadora de Martin está viva e ativa no catolicismo hoje, e, na presença de condições adequadas, ela poderia ganhar influência novamente em qualquer país e, em circunstâncias propícias, no mundo todo. Apocalipse 13:7 prediz que a besta do mar receberá “autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação”. Esse é um domínio político. Apocalipse 13 descreve o catolicismo romano no tempo do fim. Portanto, o Apocalipse está predizendo que a ferida mortal será completamente curada e que a Igreja Católica Romana alcançará domínio político do mundo todo durante os dias finais da história da Terra. Será que isso pode realmente acontecer? Essa conclusão parecia extravagante e tola no passado, e no clima de tolerância religiosa e atitude politicamente correta que vivemos hoje, estou certo de que ainda parece extravagante e tola para muitas pessoas. Porém, o exame que fizemos neste capítulo e no anterior sobre a filosofia política do catolicismo romano me leva à conclusão de que, numa crise global, isso pode realmente acontecer. À luz de nossa compreensão profética, nós, adventistas, cremos que irá acontecer.

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1 “Declaração sobre Liberdade Religiosa” do Concílio Vaticano II, nº 2; http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651207_dignitatishumanae_en.htm. 2 Ibid. 3 Ibid., nº 7. 4 Alguns países, como a Inglaterra, possuem uma igreja estatal estabilizada, mas oferecem plena liberdade religiosa a todos os cidadãos. 5 Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 2000), nº 1883, itálicos no original. 6 Malachi Martin, The Keys of This Blood: The Struggle for World Dominion Between Pope John Paul II, Mikhail Gorbachev, and the Capitalist West (Nova York: Simon and Schuster, 1990), p. 15, 17. 7 Ibid., p. 157. 8 Ibid., p. 287. 9 Ibid., p. 157, ênfase acrescentada.

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A Besta da Terra

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ara interpretar Apocalipse 13:11-18 adequadamente, temos que entender o significado de três símbolos: a besta que surge da terra, a imagem da besta e a marca da besta. Neste capítulo e nos próximos, examinaremos a besta da terra e a imagem da besta do mar. Examinaremos a marca da besta na última parte do livro. Há um século e meio os adventistas do sétimo dia têm identificado a besta da terra como os Estados Unidos da América, e a imagem da besta como o protestantismo. Essas conclusões parecem muito estranhas, pois a besta da terra é extremamente intolerante. Devido à liberdade religiosa que tem caracterizado os Estados Unidos e o protestantismo norte-americano por mais de duzentos anos, parece incrível que a besta da terra e sua imagem simbolizem esse país e suas igrejas protestantes. Contudo, isso é o que temos dito e continuamos a dizer. Este capítulo analisará a base bíblica para nossa conclusão de que a besta da terra representa os Estados Unidos e a imagem da besta representa o protestantismo. Quatro características da besta da terra apoiam a conclusão de que ela representa os Estados Unidos da América: (1) a besta da terra é uma besta; (2) a besta da terra tem autoridade global; (3) a besta da terra é um poder do tempo do fim; e (4) a besta da terra é um poder cristão. Analisemos cada uma dessas características:

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A besta da terra é uma besta Parece simples demais – até redundante – dizer que a besta da terra é uma besta. Contudo, esse é um ponto significativo, pois uma besta em profecia bíblica representa uma nação, um poder político importante no mundo. Lembre-se de que besta, na Bíblia, não é necessariamente um termo negativo ou uma ofensa, mas apenas outra palavra para se referir a animal. Daniel 7 descreve um sonho que Daniel teve, no qual ele viu quatro grandes animais (ou bestas) saírem do mar: um leão, um urso, um leopardo e um animal indescritível que pode ser chamado de dragão. O anjo que interpretou o sonho de Daniel lhe disse que esses quatro grandes animais representavam “quatro reis [ou “reinos”, v. 23] que se levantarão da Terra” (Dn 7:17): Babilônia, Média-Pérsia, Grécia e Roma (veja Dn 8:20, 21). A besta da terra também representa um poder político, e os Estados Unidos são um poder político. Contudo, alguém poderia argumentar que a besta da terra representava o Império Romano nos dias de João ou qualquer poder político importante que tenha se seguido nos 2 mil anos desde então. Precisamos de evidências adicionais para concluir que ela representa os Estados Unidos. A besta da terra tem autoridade global Apocalipse 13 mostra claramente que a besta da terra tem autoridade política global: • “Exerce toda a autoridade da primeira besta na sua presença” (v. 12). Vimos num dos capítulos anteriores que a primeira besta de Apocalipse 13 é um poder político global. Portanto, a besta da terra, que “exerce toda a autoridade da primeira besta”, também precisa ser um poder político global. • “Faz com que a Terra e os seus habitantes adorem a primeira besta” (v. 12). A besta da terra tem o poder político necessário para impor uma falsa adoração, não só dentro de suas fronteiras, mas também à “Terra e seus habitantes”. • “Seduz os que habitam sobre a Terra” e diz “aos que habitam sobre a Terra que façam uma imagem à besta, àquela que, ferida à espada, sobreviveu” (v. 14). A besta da terra tem o poder de ordenar ao mundo inteiro que faça uma imagem à besta do mar.

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Dito em palavras atuais, a besta da terra é uma superpotência global. Contudo, o fato de que a besta da terra é uma superpotência global ainda não identifica os Estados Unidos, porque no tempo em que João escreveu o Apocalipse, o Império Romano era uma superpotência. Nos últimos séculos, a França e a Inglaterra foram importantes superpotências mundiais. E, no século 20, a União Soviética foi uma superpotência global. Portanto, a besta da terra poderia representar qualquer uma destas superpotências globais: o Império Romano, a França, a Inglaterra e a União Soviética. Precisamos de evidências adicionais para identificar a besta da terra como os Estados Unidos. A besta da terra é um poder do tempo do fim Apocalipse 13:16 e 17 declara que a besta da terra forçará todas as classes de pessoas a receberem “certa marca sobre a mão direita ou sobre a fronte, para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tem a marca, o nome da besta”. Em Apocalipse 16, a primeira das sete pragas é dirigida sobre os “homens portadores da marca da besta e adoradores da sua imagem” (v. 2). Essas sete pragas são os últimos eventos a acontecer no mundo antes da segunda vinda de Cristo. Assim, a marca da besta claramente é um fenômeno do tempo do fim, e, portanto, a besta da terra que impõe a marca precisa ser uma superpotência do tempo do fim. Além dos Estados Unidos, as nações que mencionei no parágrafo anterior já não são superpotências; portanto, não se encaixam na descrição do Apocalipse sobre a besta da terra. Como os Estados Unidos são uma superpotência do tempo do fim, eles cumprem essa especificação da profecia. Outra evidência muito significativa estabelece claramente os Estados Unidos como a besta da terra de Apocalipse 13:11-18. A besta da terra é um poder cristão A palavra cordeiro ocorre trinta e uma vezes no Apocalipse e, com exceção de uma, é símbolo de Cristo. A única exceção é Apocalipse 13:11, que descreve a besta da terra como tendo “dois chifres, parecendo cordeiro”. A besta da terra não é Jesus Cristo – nem poderia ser, pela maneira que persegue os verdadeiros adoradores de Cristo. Contudo, ela é descrita como “parecendo cordeiro”. Aplicando-se isso a uma nação, podemos dizer que a nação representada pela besta da terra é alegadamente uma nação cristã. Quando reunimos as quatro características da besta da terra, torna-se muito evidente que ela representa os Estados Unidos: • A besta da terra é um poder político no mundo, uma nação. • Tem autoridade global – é uma superpotência global. • É uma superpotência do tempo do fim. • É uma nação cristã. Somente uma nação do mundo se encaixa em todas essas especificações: os Estados Unidos da América. Não há nenhum outro candidato. Algumas outras conclusões Se a besta da terra representa os Estados Unidos durante o tempo do fim, podemos tirar várias outras conclusões significativas sobre o futuro desse país. Durante a maior parte da história norte-americana, essas conclusões pareceram inacreditáveis, e a maioria delas provavelmente ainda parece inacreditável para a maioria das pessoas. É por isso que os críticos do cenário profético adventista têm chamado nossa predição sobre o futuro dos Estados Unidos de “extravagante” e “tola”. Contudo, antes que você termine de ler a terceira parte deste livro, creio que verá que essas conclusões são bastante sensatas. O “braço direito” do papado. A Idade Média da história europeia foi um tempo de supremacia papal. O papa tinha o poder de estabelecer e remover reis, e era dever dos governos europeus impor a doutrina e a ordem moral do papado. A maioria das pessoas conhece as severas perseguições que ocorreram por causa da Inquisição, incluindo a execução de hereges por métodos tão cruéis que incluíam queimar pessoas vivas na estaca. Contudo, o papado em si geralmente não executava os hereges. Os tribunais religiosos do papado ouviam as acusações contra o réu e davam a sentença para os que eram considerados culpados, mas nesse momento a igreja entregava o réu à autoridade secular para que fosse punido. Assim, o Estado era o “braço direito” da igreja.

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Essa é precisamente a relação que existe entre a besta da terra e a besta do mar em Apocalipse 13. O verso 12 diz que a besta da terra “faz com que a Terra e os seus habitantes adorem a primeira besta”. O verso 15 acrescenta que foi dado poder à besta da terra para “comunicar fôlego à imagem da besta, para que não só a imagem falasse, como ainda fizesse morrer quantos não adorassem a imagem da besta”. Em outras palavras, a besta da terra impõe a adoração e os ensinos da besta do mar. Uma união entre igreja e Estado. A Constituição dos Estados Unidos exige que a religião e o governo permaneçam separados um do outro. Embora o cristianismo seja a religião dominante nos Estados Unidos, nunca foi a religião legal e oficial da nação. Contudo, se a besta da terra de Apocalipse 13 representa os Estados Unidos, podemos concluir que a histórica separação entre governo e religião que existe nesta nação irá acabar um dia. Certos aspectos desenvolvidos pela forma católica de cristianismo se tornarão parte da religião dos Estados Unidos. Isso é claramente evidente na descrição que o Apocalipse faz da besta da terra, pois diz que a besta da terra fará uma imagem da besta do mar, e a imagem fará “morrer quantos não adorassem a imagem da besta”. Esse tipo de perseguição religiosa só pode acontecer quando a religião e o governo estão intimamente ligados. Assim, de acordo com Apocalipse 13, um dia a igreja e o Estado estarão unidos nos Estados Unidos. Um poder perseguidor. O Apocalipse diz que a besta da terra imporá sua falsa adoração com punho de ferro. Qualquer pessoa que se recuse a receber a marca da besta será impedida de exercer qualquer atividade econômica, pois não será permitido a tais pessoas comprar ou vender. E aqueles que se recusarem a adorar da maneira politicamente correta serão ameaçados de morte! Sei que parece inacreditável hoje sugerir que os Estados Unidos um dia perseguirão aqueles que discordam de práticas religiosas, mas continue a leitura. A seguir, identificaremos a imagem da besta. Identificando a imagem da besta O Apocalipse diz que a besta da terra fará uma imagem à besta do mar e forçará o mundo todo a adorá-la. Qualquer pessoa que se recuse a adorar a imagem pode ser morta, ou no mínimo ser proibida de exercer atividades econômicas. O que é essa “imagem”? Os adventistas a têm historicamente identificado como sendo o protestantismo. Vamos examinar as evidências. Uma imagem é uma representação concreta – geralmente uma estátua, pintura ou fotografia – de alguma outra coisa. Provavelmente devamos entender a imagem em Apocalipse 13 como sendo uma estátua. Vários capítulos atrás enfatizei que Apocalipse 13 extrai muitos simbolismos de Daniel. O mesmo se aplica à imagem. Você com certeza se lembra de que, após o sonho da estátua de Nabucodonosor (Dn 2), ele construiu uma imagem inteiramente de ouro (Dn 3). Então reuniu todos os líderes do reino da Babilônia e ordenou que se inclinassem perante essa imagem, senão sofreriam a morte numa fornalha de fogo. Parece óbvio que, ao descrever a imagem que a besta da terra faz, o Apocalipse está fazendo referência a essa história de Daniel. Embora uma imagem seja uma representação concreta de alguma outra coisa, ela não é aquilo que representa. Para ser uma imagem, precisa ser ao mesmo tempo semelhante ao objeto que representa e distintamente diferente dele. Felizmente, o Apocalipse identifica o objeto que a imagem representa: é uma imagem da “besta [...] que, ferida à espada, sobreviveu” (v. 14) – isto é, a besta que surge do mar. Já identificamos a besta do mar como sendo o papado; portanto, a imagem precisa imitar o papado em certos aspectos-chave. Não esperamos que a imagem da besta seja uma estátua literal; ela representa uma entidade que tenha algumas das principais características do papado. Mencionarei cinco delas. 1. O papado é uma organização de seres humanos. Portanto, a imagem será uma organização humana de algum tipo. 2. O papado é uma organização religiosa. Podemos esperar que a imagem também seja uma organização religiosa. 3. O papado é uma organização religiosa cristã. Então, isso também deve se aplicar a sua imagem. 4. O papado do tempo do fim é intolerante: ele “[peleja] contra os santos” (v. 7), isto é, persegue aqueles que discordam dele. A besta da terra que faz uma imagem da besta do mar é terrivelmente intolerante. Por isso, podemos concluir que a imagem que ela faz também será intolerante contra aqueles que discordam dela. 5. O papado, ao longo de toda a sua história, tem sido uma organização muito política, e já vimos que o papado do tempo do fim terá poder político global. Portanto, sua imagem também terá poder político global.

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Então, se os Estados Unidos irão fazer uma imagem à besta, parece seguro concluir que a entidade que a imagem representa será uma organização religiosa cristã que tenha grande poder político e também seja intolerante. O cristianismo de hoje está dividido em três ramos principais: católico romano, católico ortodoxo e protestante. A imagem da besta do mar quase certamente será um desses. Obviamente, podemos excluir o catolicismo, uma vez que ele é o original, do qual a imagem é a cópia. Isso nos deixa com o cristianismo ortodoxo oriental e o cristianismo protestante. Podemos excluir o cristianismo ortodoxo, uma vez que os Estados Unidos são predominantemente uma nação protestante. Portanto, a imagem que a besta da terra erige será o protestantismo. Essa tem sido a interpretação adventista sobre a imagem da besta do mar descrita no Apocalipse. Em conclusão, será possível que no futuro o governo dos Estados Unidos persiga dissidentes religiosos? Seria concebível que o protestantismo norte-americano pudesse vir a refletir a natureza política do papado e sua intolerância? Ou será que o cenário adventista do tempo do fim é simplesmente uma especulação extravagante e tola? Será que isso pode realmente acontecer? Continue lendo!

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capitão Kemble havia acabado de retornar de uma viagem de três anos em alto-mar. Durante todo esse tempo, não havia visto sua esposa nem uma vez. Assim, quando ela abriu a porta para lhe dar as boas-vindas ao lar, o primeiro impulso dele foi tomá-la nos braços, e dar- lhe um abraço apertado e um beijo. E o fez. Infelizmente, sua comunidade desaprovou a demonstração de afeição do capitão Kemble por sua esposa. Esse ato “indecente” custou ao capitão Kemble duas horas no tronco por “comportamento obsceno e indecoroso”. Afinal de contas, ele havia beijado a esposa “publicamente” no dia de descanso! Você adivinhou. O capitão Kemble vivia na Nova Inglaterra, Estados Unidos, na metade do século 17, um tempo em que a cultura era dominada por noções puritanas sobre a observância adequada do dia de descanso (o domingo), que era imposta pelo governo civil. Um viajante chamado Burnaby teve sorte ainda pior. O código sobre a guarda do domingo (chamado por eles de “sábado”) em sua colônia estipulava que “quem quer que profane o dia do Senhor fazendo qualquer obra servil [isto é, comum] ou abusos semelhantes, perderá, para cada falta destas, dez xelins, ou será açoitado”. Assim, quando Burnaby beijou a esposa na rua em sua cidade da Nova Inglaterra em um domingo, foi duramente chicoteado. A seguir se encontram algumas das outras ofensas do dia de descanso que receberam punição na Nova Inglaterra puritana:

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• O capitão Dennison, de New Haven, Connecticut, foi multado em quinze xelins por não ter ido à igreja. • Um soldado foi multado em cinco xelins por “molhar um pedaço de chapéu velho para colocar no sapato” a fim de proteger o pé. • Elizabeth Eddy, de Plymouth, foi multada em dez xelins por torcer e pendurar roupas no varal. • Outro homem de Plymouth foi arrastado perante a corte porque puxou uma junta de bois “sem necessidade” no dia de descanso. • Em 1670, John Lewis e Sarah Chapman foram acusados e julgados por “se sentarem juntos no dia do Senhor sob uma macieira no pomar de Goodman Chapman”.1 Nem todos, porém, estavam felizes com a estrita teocracia da Nova Inglaterra. Roger Williams, por exemplo, cria que a religião devia ser totalmente voluntária. Era errado, afirmava ele, que o governo civil impusesse doutrinas e práticas religiosas. Williams foi um dos primeiros defensores da separação entre igreja e Estado, não apenas na história norte-americana, mas também na história mundial. Em 1635, Williams era o pastor atuante de uma igreja em Salém, Massachusetts, mas seus conceitos eram tão controvertidos que, em 9 de outubro, a colônia votou que o baniria no mês de janeiro seguinte. A união entre igreja e Estado ainda era forte demais nas colônias, e a ideia de um Estado laico era demasiadamente radical para as sensibilidades dos líderes puritanos. Temendo que pudessem mandá-lo de volta para a Inglaterra, Williams fugiu de Salém na metade do inverno, apesar de que havia acabado de se restabelecer de uma doença grave. Durante os meses seguintes, morou no deserto com amigos índios. Mais tarde escreveu: “Fiquei de um lado para outro durante catorze semanas, não sabendo o que era comer ou dormir.”2 No mês de junho seguinte, Williams negociou com os índios uma terra para estabelecer uma colônia. Ele deu a sua colônia o nome de Providence (“providência”, em inglês), porque cria que Deus havia cuidado dele e de seus seguidores, e havia lhes proporcionado a terra que haviam obtido dos índios. A

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carta régia que Williams elaborou para sua colônia fazia providências para liberdade de consciência e separação entre a autoridade eclesiástica e a civil. Posteriormente Rhode Island se uniu a Providence, sendo que completa liberdade de religião era elemento essencial da carta régia da colônia. Muitas pessoas vinham a Rhode Island em busca de liberdade para praticar sua religião de acordo com os ditames de sua própria consciência. Entre estes estavam batistas, quakers e judeus. Williams foi batizado como batista em 1639, e organizou a primeira igreja batista dos Estados Unidos. Williams versus puritanos Roger Williams e os puritanos refletem dois conceitos opostos do relacionamento que deve existir entre a religião e o governo, entre a igreja e o Estado. Williams, como vimos, foi um dos primeiros visionários de um Estado laico, com separação entre a religião e o governo. O conceito puritano dominou os anos coloniais. Um dos lados mais sombrios do conceito puritano sobre a relação igrejaEstado ocorreu em Salém, Massachusetts, entre janeiro de 1792 e janeiro de 1793. A maioria das pessoas já ouviu falar dos julgamentos das bruxas de Salém. Esses julgamentos não eram uma questão entre igreja e Estado no sentido estrito, porque as acusações contra as “bruxas” eram trazidas por indivíduos, não pela igreja. Contudo, as acusações, os julgamentos, as condenações e as resultantes execuções refletiam noções puritanas de uma religião adequada e da imposição dessa religião pelo governo. Os julgamentos ocorriam no contexto de uma histeria da comunidade com respeito a supostas atividades satânicas por parte dos acusados. Quando a histeria se acalmou, dezenove pessoas já haviam sido executadas – seis homens e treze mulheres. Felizmente, algumas pessoas reconheceram e condenaram essa loucura. Um clérigo puritano, Increase Mather, publicou em 1693 um documento intitulado “Casos de Consciência a Respeito de Espíritos Maus”, em que argumentava que “seria melhor dez suspeitos de bruxaria escaparem do que um inocente ser condenado”.3A declaração de Mather reflete o conceito de “inocente até que se prove o contrário”, que se tornou um princípio básico da jurisprudência norte-americana. O impacto dos julgamentos das bruxas de Salém “foi tão profundo que ajudou a acabar com a influência da fé puritana sobre o governo da Nova Inglaterra”.4 Contudo, a ideia de que o Estado deve apoiar a religião ainda estava viva e ativa na Nova Inglaterra no século 18. No tempo da Revolução Norte- Americana em 1776, sete das treze colônias originais haviam estabelecido igrejas cujos pastores eram pagos pelo governo colonial ou estatal.5 Quando essas colônias se tornaram estados, conservaram suas igrejas estabelecidas, mas em 1840 todas elas já haviam abandonado o apoio à religião. Assim, o conceito de Williams da relação entre igreja e Estado tem predominado durante a maior parte da história norte-americana. O conceito puritano, porém, sempre teve o apoio de uma minoria, e essa minoria está rapidamente ganhando influência nos Estados Unidos. Embora poucas pessoas hoje sejam a favor de um retorno a uma teocracia puritana, uma crescente minoria deseja mudar o histórico governo laico, com sua separação entre igreja e Estado, que tem caracterizado em grande parte os Estados Unidos desde 1776. Assim, é importante que examinemos o alicerce da liberdade religiosa na América hoje e busquemos entender a base sobre a qual ela está sendo desafiada. A singularidade do sistema de governo norte-americano A maioria dos americanos provavelmente considera seu sistema de governo algo tão natural que nunca reflete sobre os princípios sobre os quais ele está baseado. O princípio fundamental é este: o governo existe pelo consentimento dos governados. Em outras palavras, o povo cria o governo. Essa foi uma inovação radical na história das nações. Durante centenas de anos, os governos europeus tinham sido impostos sobre o povo por reis e papas. A autoridade fluía de cima para baixo; o governante fazia as leis e as impunha. O povo não tinha nenhuma escolha sobre quem seria o rei, porque, quer isso fosse bom, quer fosse mau, quando um rei morria, seu filho, ou ocasionalmente sua filha, o sucedia – ou isso, ou um usurpador conseguia tomar o trono à força. Se as pessoas não gostassem de seu rei e das leis que ele fazia, pouco ou nada podiam fazer para mudar. Como Richard Viguerie e David Franke mostram no livro America’s Right Turn [A Guinada Certa dos Estados Unidos], no princípio os Estados Unidos eram simplesmente uma extensão da ideia do Velho Mundo de que os grupos dominantes – quer puritanos, anglicanos ou agentes da coroa britânica – estabeleciam as regras, geralmente sob a reivindicação de direito divino. Cabia ao restante da sociedade trabalhar e

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viver dentro dessas regras.6 A singularidade do sistema norte-americano é que as pessoas criam seu próprio governo e escolhem seus governantes. Nesse país, uma constituição que define as responsabilidades dos governantes e os direitos do povo deixa clara a relação que existe entre os governados e aqueles que eles elegem para governá-los. E os governantes ocupam o cargo apenas por tempo limitado, após o qual precisam enfrentar a reeleição pelo povo. Se o povo não gostar da maneira como determinado governante exerceu seu mandato, pode substituí-lo na próxima eleição. Leonard W. Levy resume bem a situação: A majestosa abertura do preâmbulo [da Constituição dos Estados Unidos] – “Nós, o povo” – evoca a ideia ainda radicalmente democrática de que o governo dos Estados Unidos existe para servir o povo, não o povo para servir o governo. [...] Os cidadãos norte-americanos têm o dever, bem como o direito, de impedir que o governo caia em erro, e não o contrário.7 A separação entre igreja e Estado é outro princípio básico do governo norte-americano. Esse conceito significa pelo menos três coisas. Primeiro, significa que a religião e o governo devem operar em esferas separadas. A igreja não pode controlar o governo, e o governo não pode controlar a igreja – nenhum dos dois pode dizer ao outro o que fazer. Segundo, significa que o governo não irá financiar a religião. Não irá pagar o salário dos clérigos nem a promulgação de doutrinas religiosas. E terceiro, significa que as leis do Estado estarão baseadas em princípios morais laicos, não nos princípios morais de qualquer igreja ou livro sagrado. Quando os legisladores formulam leis que tratam de questões morais, devem consultar o senso comum dos cidadãos, não a Bíblia, ou o Alcorão, ou os ensinos de determinada religião ou igreja. Qualquer governo civil que tenha um tipo de separação entre igreja e Estado que inclua essas três características estará em grande medida livre de perseguição. Quando a Constituição dos Estados Unidos foi apresentada à nação por seus constituintes para ser ratificada, não continha nada sobre a relação entre governo e religião. Os delegados da Convenção Constitucional não criam que tal declaração fosse necessária. Diziam que o governo não poderia agir em qualquer área que não estivesse mencionada na Constituição, e uma vez que a religião não estava mencionada, o governo não poderia agir nessa esfera. Mas vários dos estados recusaram-se a ratificar a Constituição até que recebessem a certeza de que seria acrescentada uma carta de direitos que incluísse o direito à liberdade religiosa. Quando essa certeza foi concedida, o último dos nove estados necessários ratificou a Constituição, e ela tem sido a lei nacional nos Estados Unidos desde então. A Carta de Direitos é composta de dez emendas à Constituição, a primeira das quais declara: O Congresso não fará nenhuma lei referente ao estabelecimento da religião, ou proibindo o livre exercício dela; ou restringindo a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito de as pessoas se reunirem pacificamente, e de solicitarem ao governo a reparação de danos ou prejuízos. A razão da Primeira Emenda Nosso interesse está nas duas primeiras frases desta emenda, que trata da liberdade religiosa: “O Congresso não fará qualquer lei referente ao estabelecimento da religião, ou proibindo o livre exercício dela.” Por que a liberdade religiosa era tão importante que se tornou a primeira liberdade mencionada na Carta de Direitos?8 A resposta é muito simples: a lembrança da perseguição religiosa por parte tanto de católicos quanto de protestantes ainda estava fresca na mente dos cidadãos norte-americanos. Os protestantes ainda não haviam se esquecido da perseguição católica na Europa. E as minorias religiosas como os batistas e os quakers estavam ainda mais próximos da perseguição puritana que haviam enfrentado durante o período colonial. Vários quakers haviam sido enforcados em Massachusetts no final da década de 1650 e início da de 1660, incluindo Mary Dyer, que foi executada nos Jardins Públicos de Boston, Massachusetts, em 1º de junho de 1660, porque recusou renunciar à sua fé.9 No final do século 17, os anglicanos da Virgínia conseguiram a aprovação de leis que negavam aos quakers o direito “de batizar seus filhos, proibiam sua reunião para culto e garantiam sua execução se eles voltassem após terem sido expulsos”.10 E, é claro, houve os histéricos julgamentos das bruxas de Salém que mencionei alguns parágrafos atrás. Até a própria época da Revolução, os batistas em Massachusetts ainda eram frequentemente multados, açoitados e presos por “crimes” relacionados a sua fé.11 Entre 1765 e 1778, os clérigos na

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Virgínia tinham de obter licença do estado para realizar sermões, e a licença era recusada aos batistas. Mais de cinquenta ministros batistas foram presos durante esse período simplesmente porque pregavam sem licença. Cinco ministros batistas foram presos em Fredericksburg, Virgínia, em 1768, porque, como o perseguidor disse, “estes homens são grandes perturbadores da paz; não podem encontrar um homem na estrada que precisam enfiar-lhe um texto da Bíblia garganta abaixo”. O juiz se ofereceu para suspender a sentença sob a condição de os ministros batistas jurarem que deixariam de pregar por um ano e um dia. “Recusando-se a aceitar a condição colocada para sua liberdade, foram cantando hinos durante todo o caminho do tribunal até a prisão.”12 Os dissidentes religiosos foram perseguidos na Europa medieval e durante o período colonial norteamericano porque o governo apoiava a religião financeiramente e impunha as doutrinas e códigos morais desta. Além disso, os líderes religiosos tinham grande parte na elaboração das leis e indicação de governantes. Assim, as leis da religião se tornaram as leis do governo civil. O governo e a religião estavam entrelaçados num relacionamento ao qual chamamos de “união entre igreja e Estado”. Isso levou inevitavelmente à perseguição dos dissidentes e a conflitos entre os interesses do Estado e os interesses da igreja. Tudo isso estava na mente dos elaboradores do sistema de governo norte-americano quando escreveram a Declaração de Independência, a Constituição e a Carta de Direitos. Esse fato explica a importância, para eles, do princípio fundamental presente nas duas cláusulas religiosas da Primeira Emenda: o governo e a religião devem ser mantidos separados. Os cidadãos norte-americanos e seus líderes no fim do século 18 desejavam evitar a perseguição de dissidentes e os conflitos entre a religião e o governo que haviam caracterizado a história europeia e seu próprio período colonial, e por isso criaram um sistema no qual o governo e a religião foram separados um do outro. A religião devia manter suas mãos fora do governo, e o governo devia manter suas mãos fora da religião. Esse princípio é resumido na conhecida frase “separação entre igreja e Estado”. É um princípio extremamente importante, do qual os norte-americanos e outros países ocidentais simplesmente não podem esquecer se desejam manter as sociedades livres que temos hoje. A Revolução Francesa foi uma feroz rebelião contra toda religião. O parlamento francês baniu a religião e proclamou um Estado ateu – uma condição que existiu por vários anos durante a década de 1790. A Revolução Norte-Americana, que ocorreu entre dez e quinze anos antes da Revolução Francesa, foi muito diferente, pois ao manter a igreja e o Estado separados, os constituintes não estavam motivados por qualquer hostilidade para com a religião. Na verdade, eles reconheciam que sua experiência na democracia só poderia ser bem-sucedida em uma nação onde as pessoas fossem essencialmente religiosas. James Madison escreveu, por exemplo, que “a crença num Deus todopoderoso, sábio e bom é essencial para a ordem moral do mundo”.13 George Washington disse: “A razão e a experiência nos proíbem de esperar que possa prevalecer uma moralidade nacional com exclusão do princípio religioso.”14 John Adams afirmou: “Nossa Constituição foi feita somente para um povo moral e religioso. Ela é totalmente inadequada para o governo de qualquer outro povo.”15 Isso não quer dizer que os constituintes eram cristãos devotos que queriam converter os outros a todo custo e que iam à igreja toda semana. Eles eram um tipo singular de defensores do Estado laico que apreciavam a contribuição positiva que a religião poderia dar à vida da nação. Thomas Jefferson era um deísta16 que certa vez passou várias noites na Casa Branca com uma Bíblia numa das mãos e uma lâmina na outra, cortando fora os textos dos evangelhos que contradiziam sua compreensão dos ensinos de Jesus. Contudo, na introdução da Declaração de Independência, que ele escreveu, pôde falar das “leis da natureza e do Deus da natureza” e, no preâmbulo, disse: “Todos os homens são criados iguais [...] por seu Criador.” Benjamin Franklin também era um deísta que atacava o dogma religioso. Contudo, disse também: “Se os homens são tão ímpios com a religião, o que seriam sem ela?”17 E um dos itens de sua lista de virtudes a serem praticadas era “imitar Jesus [religião] e Sócrates [secular]”.18 Os elaboradores da Constituição dos Estados Unidos reconheciam a importância da religião, mas também estavam convencidos de que seu novo governo não podia patrocinar a religião. James Madison resumiu esse princípio em uma curta frase: “A religião floresce com maior pureza sem a ajuda do governo do que com ela.”19 Também disse: “O número, a operosidade e a moralidade do sacerdócio, bem como a devoção do povo, aumentam manifestamente pela total separação entre a igreja e o Estado.”20 O Estado deve permanecer fora do caminho da religião – libertá-la, deixá-la seguir seu próprio caminho. O papel do Estado é proteger a religião, não promovê-la. O Estado deve especialmente proteger a liberdade da religião para ensinar, persuadir e evangelizar, mas o Estado não deve se envolver

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com a pregação, o ensino ou a condução de quaisquer atos de adoração pública, nem deve financiar quaisquer dessas atividades. É isso que significa a expressão “separação entre igreja e Estado”. Laico e religioso nos Estados Unidos: separados, mas cooperantes É crucial entender que o tipo norte-americano de separação entre igreja e Estado foi resultado de uma cooperação singular entre o laicismo e a religião. Nos países comunistas, o laicismo predomina tanto que a religião é rigidamente controlada. No outro extremo, a igreja tem tido uma influência dominante sobre o Estado durante a maior parte da história da Espanha. É apenas nos Estados Unidos que o governo foi fundado sobre uma cooperação entre os dois. E o crédito disso pertence a pessoas tanto religiosas quanto não religiosas na época da fundação da República. Nem todas as pessoas religiosas estavam felizes com respeito à separação entre igreja e Estado. Os dois grupos religiosos majoritários no país, os episcopais e os congregacionalistas, não gostaram de renunciar ao apoio que recebiam do Estado. Contudo, os batistas, quakers e membros de outros grupos religiosos minoritários que haviam sido severamente reprimidos durante o período colonial eram fortes defensores da separação entre igreja e Estado. Por outro lado, fundadores como Jefferson, Franklin, Madison e outros eram pessoas não religiosas que reconheciam o bem tanto no laicismo quanto na religião. Em seu livro American Gospel [Evangelho Norte-Americano], Jon Meacham, editor-chefe da revista Newsweek, escreveu: Nem convenientemente devoto nem inteiramente descrente, Jefferson inspecionou e manteve sob vigilância um meio-termo norte-americano entre, por um lado, a ferocidade dos cristãos evangelizadores e, por outro, o desprezo à religião por parte dos philosophes seculares.21 Os da direita gostariam que Jefferson fosse um soldado da fé; os da esquerda gostariam que ele fosse como um Voltaire americano. Ele era, dependendo do momento, ambos ou nenhum dos dois; ele era, em outras palavras, grandemente semelhante a muitos de nós.22 Duas forças no século 18 contribuíram para a cooperação entre a religião e o laicismo. No lado religioso, desde o tempo em que os primeiros colonizadores se estabeleceram no continente norteamericano, o país sempre foi religioso. Uma notável manifestação disso – o Grande Reavivamento – ocorreu sob a liderança de Jonathan Edwards e George Whitefield no início do século 18. Ao mesmo tempo, durante a maior parte desse século, um movimento laico chamado Iluminismo estava ocorrendo em toda a Europa e América do Norte. Essas duas forças se fundiram na formação do governo norteamericano. A conclusão é que, historicamente, nos Estados Unidos, as pessoas religiosas têm apreciado as não religiosas, e estas têm apreciado as religiosas. Cada um se dispôs a dar e receber, e a ceder a fim de alcançar uma acomodação que deu a cada lado, em grande parte, o que desejavam. Cada um aceitou certa quantidade de expressão pública dos conceitos do outro como o preço a ser pago pela paz entre ambos. A religião civil A expressão pública da religião nos Estados Unidos tem sido tradicionalmente chamada “religião civil” ou “deísmo cerimonial”. Jon Meacham, em seu livro American Gospel, a chama de “religião pública”.23 A religião civil ou pública é o reconhecimento pelo governo de um Ser supremo, ao passo que este deixa a promoção da religião e a formulação de suas doutrinas às igrejas e ao crente individual. Por exemplo, na Declaração de Independência, Jefferson podia falar de um “Criador” e “das leis da natureza e do Deus da natureza”. A religião civil ou pública permite que existam as palavras “Em Deus confiamos” nas moedas norte-americanas e as palavras “uma nação sob Deus” no Juramento de Lealdade. Permite que haja capelães no Congresso norte-americano e no exército. Sempre houve tensão entre o laico e o religioso. Historicamente, algumas pessoas têm desejado mais religião no governo, e outras, menos. Mas os presidentes, legisladores e juízes da nação têm conseguido, ao longo da maior parte da história dos Estados Unidos, estruturar um equilíbrio que tem mantido a maioria dos habitantes do país razoavelmente satisfeitos, se não totalmente felizes. Os norte-americanos têm uma dívida de gratidão para com os adeptos do Iluminismo do século 18, que promoveram o Estado laico com sua separação entre religião e governo. Temos uma dívida de gratidão para com as pessoas fervorosamente religiosas exemplificadas pelo Grande Reavivamento do século 18, que reconheceram o valor de um governo laico com sua separação entre igreja e Estado.

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Seria difícil dizer quem fez a maior contribuição para esse grande projeto de nação: os laicos ou os religiosos. Nós, dos Estados Unidos, também temos uma dívida de gratidão para com os fundadores de nossa nação, que foram sábios o suficiente para estruturar uma constituição que incorporava um equilíbrio entre o laico e o religioso. E, finalmente, temos uma dívida de gratidão para com os líderes políticos e para com o povo comum que, por mais de duzentos anos, fizeram com que esse equilíbrio entre o laico e o religioso realmente funcionasse na vida da nação. É por causa desse delicado equilíbrio que temos desfrutado tanta liberdade religiosa ao longo de nossa história. Jon Meacham afirma: Uma democracia tolerante e pluralista na qual as forças religiosas e laicas continuamente contendem uma contra a outra pode não ser ideal, mas já se demonstrou o arranjo mais prático e permanente dos negócios humanos – e precisamos guardar bem esse arranjo.24 A separação entre igreja e Estado na história dos Estados Unidos De modo geral, os norte-americanos têm apoiado o princípio da separação entre igreja e Estado desde o princípio da história da nação. Há pouco mencionei uma declaração de James Madison de que “o número, a operosidade e a moralidade do sacerdócio, bem como a devoção do povo, aumentam manifestamente pela total separação entre a igreja e o Estado”. Numa carta datada de 1º de janeiro de 1802, Thomas Jefferson escreveu para a Associação Batista de Danbury, na Virgínia: Encaro com solene reverência o ato de todo o povo norte-americano que declarou que sua legislatura não devia fazer “nenhuma lei referente ao estabelecimento da religião, ou proibindo o livre exercício dela”, construindo assim um muro de separação entre a igreja e o Estado.25 O historiador e pensador político francês Alexis de Tocqueville, após viajar pelos Estados Unidos no início do século 19 e conversar com muitos clérigos norte-americanos, disse que “todos atribuíram o pacífico domínio que a religião exerce em seu país principalmente à completa separação entre igreja e Estado”.26 O presidente Andrew Jackson falou sobre a “segurança da qual a religião agora desfruta neste país em sua completa separação das preocupações políticas do Governo Geral”.27 O presidente John Tyler ofereceu suas ideias sobre religião e liberdade: “Os Estados Unidos entrou numa grande e nobre experiência, a da total separação entre igreja e Estado.”28 O presidente Ulysses Grant disse: “Deixem o assunto da religião para o altar da família. Que a igreja e a escola particular sejam sustentadas inteiramente por contribuições privadas. Mantenham a igreja e o Estado separados para sempre.”29 E mais recentemente, no lado religioso, o evangelista Billy Graham disse: “Nos Estados Unidos toda e qualquer religião tem o direito de existir e propagar o que defende. Desfrutamos separação entre igreja e Estado, e nenhuma religião denominacional jamais foi – e oramos a Deus que jamais seja – imposta a nós.”30 Desafios à separação Esses fatos não significam que não tem havido na história dos Estados Unidos desafios ao conceito da separação entre igreja e Estado. Em 1863, os Contratantes,31 um pequeno grupo que saiu da Igreja Presbiteriana em Allegheny, Pensilvânia, propôs uma emenda ao preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos. As palavras da emenda proposta estão entre colchetes: Nós, o povo dos Estados Unidos, [reconhecendo o Ser e atributos do Deus todo-poderoso, a divina autoridade das Sagradas Escrituras, a lei de Deus como a regra suprema, e Jesus, o Messias, o Salvador e Senhor de todos], a fim de formar uma união mais perfeita [...].32 Essa proposta não saiu do lugar, mas os Contratantes se mesclaram a outros partidos interessados para formar, em 1864, a Associação da Reforma Nacional (ARN). O objetivo primário da ARN era emendar a Constituição dos Estados Unidos de forma a reconhecer a Deus como a divina autoridade da nação e estabelecer o cristianismo como a religião oficial do país. O preâmbulo da constituição da ARN, embora um pouco extenso, é relevante à luz de esforços semelhantes que estão sendo feitos atualmente nos Estados Unidos:

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Crendo que o Deus todo-poderoso é a fonte de todo poder e autoridade no governo civil, que o Senhor Jesus Cristo é o Governante das nações, e que a vontade de Deus revelada é de suprema autoridade em assuntos civis; Lembrando que este país foi estabelecido por homens cristãos, com objetivos cristãos em vista, e que eles deram um caráter distintamente cristão às instituições que estabeleceram; Percebendo as tentativas sutis e perseverantes que são feitas para se proibir a leitura da Bíblia em nossas escolas públicas, para subverter nossas leis sobre o dia de descanso [domingo], para corromper a família, para abolir o juramento, a oração em nossas legislaturas nacional e estadual, dias de jejum e ações de graças e outras características cristãs de nossas instituições, e assim divorciar o governo norte-americano de toda ligação com a religião cristã; [...] Crendo que uma constituição escrita deve conter evidências explícitas do caráter e propósito cristão da nação que a elabora, e percebendo que o silêncio da Constituição dos Estados Unidos a esse respeito é usado como um argumento contra tudo que é cristão no costume e administração de nosso governo; Nós, cidadãos dos Estados Unidos, nos unimos sob os seguintes artigos, e nos comprometemos com Deus e uns com os outros, a trabalhar, por meios sábios e lícitos, para os fins aqui expostos.33 O documento prosseguia alistando vários artigos a serem incorporados. O artigo II é particularmente significativo: O objetivo desta sociedade será manter características cristãs existentes no governo norteamericano, promover as reformas necessárias na ação do governo no que respeita ao dia de descanso, à instituição da família, ao elemento religioso na educação, ao juramento e à moralidade pública, segundo afetada pelo tráfico de bebidas e outros males semelhantes; e assegurar uma emenda à Constituição dos Estados Unidos que declare a lealdade da nação a Jesus Cristo e sua aceitação das leis morais da religião cristã, e assim indicar que esta é uma nação cristã, e colocar todas as leis, instituições e costumes cristãos de nosso governo sobre uma inegável base legal na lei fundamental do país.34 Na verdade, a ARN conseguiu submeter sua proposta de emenda constitucional ao Comitê Judiciário do Senado no final de 1864. Contudo, o comitê se recusou a passá-la para o Senado. Minha razão para mencionar essa informação sobre a Associação da Reforma Nacional é chamar a atenção para o fato de que ela basicamente não chegou a lugar algum. A maioria dos leitores deste livro provavelmente nunca nem ouviu falar da Associação da Reforma Nacional. O ponto essencial é que o princípio de manter o governo e a religião separados um do outro – ou seja, a separação entre igreja e Estado – conseguiu sucesso, e o fez muito facilmente. O anticatolicismo e a separação entre igreja e Estado Um forte anticatolicismo permeou a opinião pública norte-americana ao longo de todo o século 19, especialmente durante a última parte do século, quando os imigrantes estavam chegando às praias, vindos de países católicos da Europa, particularmente Irlanda, Itália e Polônia. Esse anticatolicismo resultou em alguns incidentes lamentáveis de perseguição, que mencionarei num capítulo posterior. No entanto, o anticatolicismo norte-americano durante esse período surgiu em parte por medo de que o princípio católico da união entre igreja e Estado pudesse ser imposto nos Estados Unidos. Muito depois, em 1960, quando John F. Kennedy, um católico, foi candidato à presidência dos Estados Unidos pelo Partido Democrata, os protestantes conservadores do país, inclusive batistas do Sul e a maioria dos grupos carismáticos, ficaram tão receosos do perigo que seu catolicismo representava para uma separação entre igreja e Estado que se recusaram a apoiá-lo na eleição até que ele fizesse um voto endossando esse princípio constitucional. Kennedy fez esse voto numa reunião da associação ministerial de Houston, Texas, em setembro de 1960. Ele disse: Creio em um país onde a separação entre igreja e Estado seja absoluta, onde nenhum prelado

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católico diria ao presidente (caso ele seja católico) como agir, e nenhum ministro protestante diria aos membros de sua igreja em quem votar; onde nenhuma igreja ou escola confessional receba fundos públicos ou preferência política; e onde não seja negado a nenhuma pessoa um cargo público simplesmente porque sua religião difere da do presidente que o nomearia ou do povo que o elegeria. Creio em um país que oficialmente não seja nem católico, nem protestante, nem judaico; onde nenhum oficial público solicite ou aceite instruções sobre política pública do papa, do Concílio Nacional de Igrejas ou de qualquer outra fonte eclesiástica; onde nenhuma corporação religiosa procure impor sua vontade direta ou indiretamente à população geral ou aos atos públicos de seus oficiais; e onde a liberdade religiosa seja tão indivisível que um ato contra uma igreja seja tratado como um ato contra todas.35 O que pretendo mostrar é que, em 1960, a maioria dos protestantes conservadores e evangélicos dos Estados Unidos ainda apoiava fortemente o princípio da separação entre igreja e Estado. Infelizmente, hoje um número significativo de conservadores e evangélicos estão criticando fortemente a separação entre igreja e Estado. Como essa tendência tem se desenvolvido nos Estados Unidos será o assunto dos próximos capítulos.

1 Sobre a observância de um dia de guarda pelos puritanos, veja Alice Morse Earle, The Sabbath in Puritan New England (Project Gutenberg Literary Archive Foundation, 2005), capítulo 10, disponível em http://www.gutenberg.org/dirs/etext05/8sabb10h.htm#17. 2 “Roger Williams (theologian)”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Roger_Williams_%28theologian%29. 3 “Salem witch trials”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Salem_Witch_Trials. 4 Ibid. 5 Connecticut, Geórgia, Massachusetts, New Hampshire, Carolina do Norte, Carolina do Sul e Virgínia. 6 Richard Viguerie e David Franke, America’s Right Turn: How Conservatives Used New and Alternative Media to Take Power (Chicago: Bonus Books, 2004), p. 20. 7 Leonard W. Levy, Original Intent and the Framers’ Constitution (Chicago: Ivan R. Dee, 1988), p. x. 8 A Carta de Direitos original, que foi apresentada pelo Congresso aos estados, tinha doze emendas, as primeiras duas das quais não passaram no processo de ratificação. Foi assim que a emenda referente à religião se tornou a primeira. 9 “Mary Dyer”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Mary_Dyer. 10 Mark R. Levin, Men in Black: How the Supreme Court is Destroying America (Washington, DC: Regnery Publishing, 2005), p. 36. 11 Forrest Church, ed., The Separation of Church and State: Writings of a Fundamental Freedom by America’s Founders (Boston: Beacon Press, 2004), p. 17. 12 Ibid., p. 3, 4. 13 Jon Meacham, American Gospel: God, the Founding Fathers, and the Making of a Nation (Nova York: Random House, 2006), p. 228. 14 Address of George Washington, President of the United States… Preparatory to His Declination (Baltimore: George and Henry S. Keatinge, 1796), p. 22, 23. 15 Charles Frances Adams, ed., The Works of John Adams, Second President of the United States (Boston: Little, Brown and Company, 1854), v. 9, p. 229. 16 Os deístas possuíam a compreensão do “Deus relojoeiro”: Deus criou o mundo e o abandonou para ser conduzido pelas leis estabelecidas por Ele. 17 Numa carta a Thomas Paine; veja “Benjamin Franklin’s Letter to Thomas Paine”, WallBuilders, http://www.wallbuilders.com/resources/search/detail.php?ResourceID=93. 18 “Benjamin Franklin”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Benjamin_Franklin#Public_life. 19 James Madison, carta a Edward Livingston, 10 de julho de 1822, citado em “Pure Religion”, Liberty, dezembro de 2005, p. 13. 20 Citado em Church and State, abril de 2006, p. 24. 21 Os philosophes (palavra francesa para “filósofos”) eram intelectuais franceses do Iluminismo do século 18 que criam na supremacia da razão humana e questionavam a autoridade religiosa. Muitos deles eram deístas, e alguns deles eram totalmente críticos do cristianismo. Veja http://en.wikipedia.org/wiki/Philosophes. 22 Meacham, American Gospel, p. 4. 23 Ibid., p. 25. 24 Ibid., p. 33. 25 Ibid., p. 264. 26 Ibid., p. 78, 80. 27 Ibid., p. 111. 28 Ibid., p. 134, 135. 29 Ibid., p. 143. 30 Ibid., p. 214. 31 Covenanters: os membros da Igreja da Escócia que assinaram o Pacto Nacional Escocês de 1638, que os obrigava a manter a Igreja da Escócia como foi organizada durante a Reforma, isto é, presbiteriana (N. do T.). 32 “The NRA (National Reform Association) and the Christian Amendment”, http://candst.tripod.com/nra.htm. 33 Ibid. 34 Ibid.

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Citado em George J. Marlin, The American Catholic Voter: 200 Years of Political Impact (South Bend: St. Augustine’s Press, 2004), p.

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inda me lembro da eleição presidencial nos Estados Unidos em novembro de 1964. Na ocasião, eu era pastor de uma igreja muito pequena na ventosa cidade de Mojave, Califórnia. Minha esposa e eu fomos às urnas pouco antes de serem fechadas no final da tarde. Naquele momento já era óbvio pelos boletins dos noticiários que Lyndon Johnson havia obtido uma vitória esmagadora. Brinquei com um amigo que era quase inútil votar. Na eleição mais assimétrica desde 1824, Goldwater recebeu 38,5% dos votos contra 61,1% de Johnson. Barry Goldwater perdeu feio! Para os que estão familiarizados com a política norte-americana, Goldwater acumulou 52 votos eleitorais contra 486 de Johnson. Goldwater conseguiu a maioria dos votos apenas em seu estado natal, o Arizona, e em cinco estados do Sul: Alabama, Mississipi, Geórgia, Carolina do Norte e Louisiana. Porém, o que a maioria das pessoas considerou uma perda tremenda, para algumas pessoas foi um enorme sucesso. A história começou cerca de dez anos antes, em meados da década de 1950. Na época, os políticos liberais do leste controlavam tanto o partido Democrata quanto o Republicano. Contudo, um pequeno movimento conservador começou a crescer, alimentado pela crescente ameaça do comunismo. Os poucos cabeças-duras conservadores do país objetaram ao que consideravam ser a acomodação dos liberais ao comunismo, e começaram a conversar entre si. Escreveram alguns livros e publicaram várias revistas, as mais influentes das quais foram Human Events [Eventos Humanos] e a National Review [Revista Nacional], esta última de William F. Buckley. No final da década de 1950, Barry Goldwater emergiu como o líder desse movimento conservador. Na época da campanha presidencial de 1960, os conservadores haviam ganhado força suficiente para conseguir colocar, na Convenção Nacional Republicana, o nome de seu partidário como uma das possíveis opções para candidato à presidência. Goldwater não ganhou a nomeação para a candidatura, mas eletrizou suas tropas quando tomou a tribuna para fazer um discurso. Ele falou:

A

Este país, e a majestade que ele possui, é grande demais para qualquer homem, seja ele conservador ou liberal, ficar em casa e não trabalhar só porque não está de acordo. Vamos crescer, conservadores! Desejamos tomar novamente a posse desse partido, e acho que um dia conseguiremos. Ao trabalho!1 O mínimo que se pode dizer é que essa declaração foi um prenúncio das coisas que viriam. Em 1964, o movimento conservador já havia ganhado força suficiente para conseguir nomear Barry Goldwater como candidato à presidência. Entretanto, sendo que o movimento conservador estava em sua infância, e que tanto os partidos políticos quanto a imprensa e os meios eletrônicos de comunicação eram quase totalmente controlados pelos liberais, Goldwater teve sorte em haver vencido em seis estados. Longe, porém, de ficarem desencorajados pela esmagadora derrota do defensor de seus princípios, os conservadores ficaram exultantes – não pela perda, mas pelo fato de que haviam conseguido colocar um dos seus como candidato ao mais alto cargo do país. Essa foi uma vitória e tanto, e encorajou as tropas a seguirem em frente. Afinal, o próprio Goldwater não lhes havia dito: “Desejamos tomar novamente a posse desse partido, e acho que um dia conseguiremos”?2 As tropas decidiram que um dia conseguiriam. Afinal de contas, haviam acabado de persuadir mais de 27 milhões de eleitores norteamericanos a apoiar seu candidato. Não havia maneira, porém, de os conservadores fazerem sua mensagem chegar até o público norteamericano através da imprensa e dos meios eletrônicos de comunicação. Esses eram firmemente controlados por editores e políticos liberais. Portanto, os conservadores se voltaram para a mala direta a

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fim de “vender” seu produto. E havia uma vantagem nisso: era algo que não podia ser detectado. Os conservadores podiam construir seu movimento sem que os liberais percebessem o que estava acontecendo. Virando a maré E a vitória veio. Durante a década de 1970, Ronald Reagan substituiu Barry Goldwater como o político favorito dos conservadores, e o movimento continuou a crescer, especialmente através da mala direta. Em 1980, o movimento já havia evoluído a tal ponto que Ronald Reagan foi nomeado como o candidato presidencial do Partido Republicano e obteve uma vitória esmagadora: 50,7% dos votos populares contra 41% de Jimmy Carter. E o que é ainda mais significativo é que Reagan ganhou a eleição em todos os estados com exceção de seis, ou seja, ele acumulou 489 votos eleitorais contra os 49 de Carter. Quatro anos depois, Reagan ganhou em todos os estados exceto Minnesota, o estado natal de seu oponente democrata, Walter Mondale. Nessa eleição, Reagan ganhou 525 votos eleitorais contra 13 de Mondale! Parte do sucesso de Reagan era o próprio Reagan. Ele fazia jus a seu apelido: o Grande Comunicador. Entretanto, foram os conservadores que lhe deram projeção nacional. Apesar de todas as suas habilidades de comunicação, é improvável que tivesse sido eleito sem os incansáveis esforços do movimento conservador. George W. Bush (Bush pai) foi eleito presidente em 1988, novamente com a ajuda de conservadores. Contudo, Bush era apenas um conservador medíocre. Nunca teve o apoio caloroso da maioria dos eleitores conservadores, e quando veio o carismático Bill Clinton em 1992, derrotou Bush facilmente. Com a derrota de Bush, alguns especialistas políticos escreveram o epitáfio do movimento conservador. A eleição intermediária de 1994 os chocou, tirando-os de sua despreocupação. Os democratas haviam virtualmente monopolizado ambas as Casas do Congresso nos sessenta anos anteriores, mas em 1994 os democratas saíram e os republicanos entraram, tanto no Senado quanto na Câmara Federal! No Senado, os democratas perderam oito cadeiras para os republicanos, dando aos republicanos uma maioria de quatro cadeiras. A catástrofe dos democratas foi até pior na Câmara Federal, onde perderam quatro cadeiras para os republicanos, dando aos últimos uma maioria de 26 cadeiras. Todos os tipos de estudiosos políticos concordaram que foram os conservadores que fizeram a diferença. Os republicanos continuaram a dominar a Câmara Federal pelos próximos doze anos, e, com exceção do 108º Congresso, entre 2002 e 2004, dominaram também o Senado. Ainda mais significativa foi a eleição de George W. Bush, o filho de George H. W. Bush, como presidente dos Estados Unidos em 2000.3 Bush filho foi um verdadeiro conservador. Muito mais que seu pai e Ronald Reagan, ele se conformava com os padrões políticos dos conservadores. Em uma das decisões mais significativas de sua carreira como presidente, Bush nomeou dois juízes conservadores para a Suprema Corte dos Estados Unidos: John Roberts como presidente da Suprema Corte, e Samuel Alito como juiz associado. Com essas nomeações, os conservadores passaram a ter influência dominante nos três ramos de governo dos Estados Unidos. Os conservadores haviam finalmente saído da sombra! Programas de rádio Outra poderosa força política nos Estados Unidos hoje é o discurso conservador no rádio. Começou com Rush Limbaugh, cujo programa diário, o Rush Limbaugh Show, satiriza pessoas e causas liberais. Limbaugh começou a transmissão de seu programa em Sacramento, na Califórnia, em 1984. Vários anos depois, ele se mudou para a cidade de Nova York e, em 1988, começou a vender seu programa para várias emissoras de rádio locais. No momento em que escrevo (2007), a audiência de Limbaugh é estimada entre 14 e 20 milhões de pessoas por semana, tornando-a a maior audiência de um programa de rádio nos Estados Unidos.4 Outros apresentadores de programas conservadores durante a primeira década do século 20 foram Sean Hannity, Bill O’Reilly, Michael Savage e Laura Ingram. O programa de TV a cabo de O’Reilly, The O’Reilly Factor [O Fator O’Reilly], no Fox News Channel, atrai um número de espectadores estimado em 2,2 milhões. Esses programas promovem uma filosofia política conservadora e atacam a esquerda liberal. Não há dúvida em minha mente de que Limbaugh e os outros colegas apresentadores são uma força poderosa que está impulsionando o eleitorado norte-americano em direção a uma filosofia política conservadora que influenciará as eleições neste país durante os próximos anos.

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Contudo, o surgimento do movimento conservador nos Estados Unidos durante a última metade do século 20 é só uma parte da história. Ainda mais significativa para nosso estudo é a influência da religião no movimento conservador durante esse tempo. Como Timothy Byrne o expressou em seu livro Catholic Bishops in American Politics [Os Bispos Católicos na Política Norte-Americana], a aliança entre os líderes religiosos e os políticos atuantes que apareceram em cena no final da década de 1970 foi resultado de uma estratégia cuidadosamente implementada para mobilizar novos eleitores, construir novas coalizões políticas e efetuar um realinhamento duradouro do eleitorado norte-americano.5 O resultado dessa estratégia é história, como veremos.

1 Citado por Richard A. Viguerie and David Franke, em America’s Right Turn: How Conservatives Used New and Alternative Media to Take Power (Chicago: Bonus Books, 2004), p. 67. 2 Ibid., ênfase acrescentada. 3 George W. Bush na verdade obteve, nacionalmente, menos votos populares do que seu concorrente Democrata Al Gore, mas ganhou mais votos eleitorais. O estado-chefe foi a Flórida, onde o resultado dos votos foi tão próximo que os democratas o questionaram na justiça. Após várias idas e vindas, a Suprema Corte dos Estados Unidos autenticou os votos da Flórida, dando o ganho da eleição a Bush. 4 “Rush Limbaugh”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Rush_Limbaugh. 5 Timothy Byrne, Catholic Bishops in American History (Princeton: Prince​ton University Press, 1991), p. 90.

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eorge Rappleyea era o gerente de uma empresa de mineração, a Companhia de Carvão e Ferro Cumberland, no distante Tennessee de 1925. George gostava de publicidade; tinha talento natural para a dramaticidade. E viu uma oportunidade para isso na Lei Butler, que a legislatura estadual do Tennessee havia acabado de aprovar. A lei declarava:

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Será ilegal para qualquer professor, em qualquer das universidades, escolas normais e em todas as outras escolas públicas do estado que são mantidas inteiramente ou em parte pelos fundos públicos estaduais, ensinar qualquer teoria que negue a história da criação divina do ser humano ensinada na Bíblia, e ensinar, em vez disso, que o homem descendeu de uma ordem inferior de animais.1 Você provavelmente está pensando que tipo de oportunidade para publicidade George Rappleyea viu na lei antievolução do Tennessee. Precisamente isto: a União Norte-Americana pelas Liberdades Civis tinha se oferecido para defender qualquer pessoa que violasse a nova lei. George abordou os pais de alunos da cidade com uma proposta: Por que não combinar com um professor da escola secundária que ele ensinasse evolução em sua disciplina, fazer com que ele fosse preso e acusado, e depois chamar a União Norte-Americana pelas Liberdades Civis para defendê-lo? A controvérsia que o julgamento gerasse colocaria a cidade de Dayton em destaque no mapa. Os habitantes gostaram da ideia e encarregaram George de fazer os arranjos. Assim, George lançou a ideia para John Scopes, um professor de Ciências substituto na escola secundária local. Scopes concordou, e alguns dias mais tarde dedicou uma aula à teoria da evolução. Em 25 de maio, foi preso e acusado de violar a Lei Butler do Tennessee. Então a União Norte- Americana pelas Liberdades Civis cumpriu sua promessa. “O julgamento do macaco”, como se tornou conhecido, teria sido uma ocorrência incomum mas insignificante na história da jurisprudência norte- americana se não fosse por um simples fato: colocou a religião conservadora contra o liberalismo secular. A publicidade foi enorme. Os principais jornais da nação enviaram mais de uma centena de repórteres para fazer a cobertura do julgamento, e estes mandaram mais de 165 mil palavras telegrafadas por dia para seus escritórios jornalísticos. Durante dias o julgamento permaneceu na primeira página de quase todos os principais jornais do país, e de muitos dos jornais menores. A estação de rádio WGN de Chicago e seu anunciante, Quin Ryan, davam relatórios ao vivo diariamente sobre o andamento – a primeira cobertura ao vivo de um julgamento na história dos meios eletrônicos de comunicação.2 Dayton, no Tennessee, tem sido um nome famoso na cultura norte-americana desde então. Livros têm sido escritos sobre o julgamento; Hollywood fez um filme sobre ele; e a pequena e velha Dayton tem um lugar seguro garantido nos livros de história mundial até que o Senhor venha. A esta altura, você provavelmente deve estar perguntando o que esse julgamento do início da década de 1920 teve a ver com o surgimento da direita cristã nos Estados Unidos durante a segunda metade do século 20. Afinal de contas, o ridículo que os cristãos norte-americanos conservadores sofreram com o julgamento os conservou numa posição desvantajosa por várias décadas. Eles se esconderam, se afastaram da política e se mantiveram longe de controvérsias sociais. Como isso podia ajudar no surgimento da direita cristã cinquenta anos mais tarde? Permita-me falar um pouco sobre o contexto do julgamento de Scopes. O surgimento dos grupos conservadores nos Estados Unidos A teologia liberal fez profundas incursões no protestantismo norte- americano tradicional, começando

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na segunda metade do século 19 e avançando até o século 20. Os teólogos liberais negavam o sobrenatural, inclusive os milagres de Jesus, Seu nascimento virginal e Sua ressurreição corporal. Também negavam a inspiração e autoridade da Bíblia como a Palavra de Deus, e abandonavam cada vez mais o relato bíblico da criação, substituindo-o pela teoria da evolução. No início do século 20, os líderes religiosos conservadores responderam com uma coleção de quatro livros chamada Os Fundamentos. Esses livros exaltavam os ensinos cristãos tradicionais que o liberalismo negava. O movimento que surgiu com sua publicação veio a ser conhecido como fundamentalismo, e as pessoas que defendiam essas crenças ficaram conhecidas como fundamentalistas. O júri decidiu que John Scopes era culpado do crime do qual foi acusado. Assim, os fundamentalistas ganharam na corte legal. Mas perderam na corte da opinião pública. Até hoje o “julgamento do macaco” é considerado um ganho importante para a ciência e o secularismo e um enorme revés para a religião conservadora. As pessoas não religiosas lançaram ridículo sobre o fundamentalismo e os fundamentalistas. É por isso que, após o julgamento, os fundamentalistas se afastaram quase completamente da política e do envolvimento em questões sociais. Sua tarefa, diziam eles, era a proclamação do evangelho e a salvação de almas, não a ação política. Porém, embora em certo sentido o julgamento tenha sido uma perda imensa e embaraçosa, prestou aos conservadores religiosos um grande benefício: deu-lhes a causa perfeita em torno da qual arregimentar suas tropas.3 A questão não era simplesmente a controvérsia entre criação e evolução, importante como fosse. A questão era todo um interesse liberal, incluindo sua rejeição do sobrenatural, a negação do nascimento virginal de Cristo e Sua ressurreição, seu tratamento da Bíblia como qualquer outro exemplar de literatura em vez de a Palavra inspirada de Deus, etc. Todas essas questões estavam desafiando o cristianismo na época, especialmente o protestantismo.4 Assim, os fundamentalistas arregaçaram as mangas e puseram mãos à obra para conquistar interessados em seu tipo fundamentalista de religião. Entre 1926 e 1940, os batistas do Sul alcançaram 1,5 milhão de membros, e as Assembleias de Deus quadruplicaram o número de seus adeptos. Kevin Philips, no livro American Theocracy [Teocracia Norte-Americana], comentou que “os grupos evangélicos, fundamentalistas e pentecostais, longe de se evaporarem ou estagnarem durante o início do século 20, parecem ter sido uma força de ajuntamento, como uma maré que está subindo”.5 Durante esse mesmo período, a vertente principal do protestantismo encolheu de maneira tão significativa quanto o protestantismo conservador se expandiu. Mas há um importante aspecto a notar: apesar do declínio em seu número de membros, os pastores, sacerdotes e membros das denominações protestantes da vertente principal constituíam a elite culta da nação, e dominaram sua política durante os primeiros três quartos do século 20. Os evangélicos e os protestantes fundamentalistas não estavam interessados em política. Estavam muito ocupados ganhando almas. Estavam ocupados crescendo. Mas o crescimento dos protestantes fundamentalistas não estava sendo detectado. Poucos cientistas sociais prestavam qualquer atenção a eles. Afinal de contas, presumia a elite, eles eram simplórios, ignorantes – talvez úteis como servos e trabalhadores braçais, mas não muito mais do que isso. Assim, a maior parte da classe alta estava ingenuamente inconsciente do que estava acontecendo bem no seu quintal dos fundos. Deixaram de perceber que o declínio no número de membros de suas próprias denominações tradicionais e o dramático crescimento no número de membros das denominações fundamentalistas e evangélicas iria certamente se traduzir, com o tempo, numa significativa mudança de poder político. O surgimento da direita cristã Podemos dizer que a direita cristã nasceu num dia de neve em janeiro de 1979. Ed McAteer, Paul Weyrich, Howard Phillips e Robert Billings eram líderes do movimento conservador norte-americano que tinham a intenção de dar à política nacional um rumo mais conservador. Os quatro enfrentaram uma tempestade de neve para se encontrar com Jerry Falwell no Holiday Inn, em Lynchburg, Virgínia.6 O encontro estava programado para durar uma hora, mas terminou nove horas mais tarde. O propósito do encontro era alistar Falwell como um general no exército conservador. Introduzindo a conversa, Weyrich disse: “Lá fora se encontra o que poderíamos chamar de a maioria moral em nosso país, que concorda com os princípios dos Dez Mandamentos. A chave para qualquer tipo de impacto político é unir essas pessoas.”7 Falwell o interrompeu, dizendo: “O que foi que você falou?” Weyrich repetiu o que havia dito, inclusive as palavras maioria moral.

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“É isso!”, Falwell exclamou. “Esse é o nome da organização!” E com isso nasceu a Maioria Moral. Afirmei no capítulo anterior que o movimento conservador nos Estados Unidos começou em cerca de 1955, e que em 1964 os conservadores já haviam ganhado força e prática política suficientes para conseguir que o Partido Republicano nomeasse o senador Barry Goldwater como seu candidato presidencial na eleição daquele ano. Goldwater perdeu, é claro; mas isso não desencorajou os conservadores. O alvo deles era assumir o governo norte-americano. A nomeação de Goldwater deu aos conservadores um sabor de vitória. Contudo, logo perceberam que sua única esperança de ganhar controle do governo era expandir seu eleitorado. Precisavam que mais pessoas se unissem a sua causa. Mas onde poderiam encontrar essas pessoas? Fixaram-se em dois segmentos chave da população, os quais criam que podiam ganhar para seu lado: os democratas do Sul e os conservadores religiosos. O fato de Goldwater ter arrebatado cinco estados do extremo Sul – tradicionalmente uma fortaleza democrata – provava que os democratas do Sul podiam ser convencidos a votar no Partido Republicano. E de fato os democratas perderam em grande parte o Sul para os republicanos durante os últimos 25 anos do século 20. Os conservadores políticos também viam nos conservadores religiosos o potencial para um poderoso bloco de eleitores que podiam ser inspirados a apoiar sua causa. Os conservadores religiosos defendiam muitos dos mesmos valores que inspiravam os conservadores políticos. Os batistas do Sul e principalmente os pentecostais vinham se fortalecendo silenciosamente por meio século, enquanto o número de membros das denominações protestantes mais liberais havia estado declinando. O protestantismo liberal havia dominado os políticos norte-americanos durante a maior parte da história da nação, mas, com seu declínio e o aumento do protestantismo conservador, mais cedo ou mais tarde uma mudança política era inevitável. Um militante político conservador observou que os cristãos evangélicos e fundamentalistas eram “o maior trecho de madeira virgem da paisagem política”.8 Ed McAteer, Paul Weyrich, Howard Phillips e Robert Billings decidiram que havia chegado o momento de começar a extrair essa madeira. Esse fato explica a urgência de seu encontro com Jerry Falwell. Alguém poderia chamar a isso de uma proposta de casamento. Não foi um namoro fácil. Os conservadores religiosos haviam insistido, durante a maior parte do século 20, que sua tarefa era espiritual, não política: que Deus os havia chamado para evangelizar, não tratar de política. O próprio Falwell havia desdenhado o envolvimento político até março de 1965, declarando num sermão em sua igreja batista de Thomas Road que “os pregadores não são chamados a serem políticos, mas a serem ganhadores de almas”.9 Em 1976, Billy Graham insistiu que era “contrário à organização dos cristãos num bloco político”.10 E em 1980 Pat Robertson ainda declarava que “a política promovida por partidários ativos é o caminho errado para os verdadeiros evangélicos”.11 Contudo, a revolução sexual da década de 1960 fez os conservadores religiosos se convencerem de que os Estados Unidos estavam em uma derrocada moral. Entre os fatores que contribuíam para esse declínio, achavam eles, estavam as decisões da Suprema Corte em 1962 e 1963, que baniram a oração e a leitura da Bíblia das escolas públicas. De repente, o envolvimento político passou a não parecer uma ideia tão má assim! Era improvável que gritar do púlpito trouxesse muita mudança. Se os líderes religiosos conservadores realmente desejavam reverter o declínio moral do país através da legislação, teriam de arregaçar as mangas e pular na arena política. Jimmy Carter Os religiosos conservadores ficaram compreensivelmente entusiasmados quando Jimmy Carter foi nomeado o candidato democrata para a presidência em julho de 1976. Carter era batista do Sul. Compreendia a mente religiosa conservadora. Era um deles para travar as batalhas deles! Portanto, uniram-se sob sua bandeira. Contudo, Carter não cumpriu as promessas. Em seu primeiro ano na presidência, apoiou (ou pelo menos foi acusado de apoiar) uma regra da Receita Federal a qual estipulava que as escolas particulares que deixassem de cumprir certos padrões de integração social teriam seu status de isenção de impostos revogado. Carter também convocou uma Conferência sobre a Família Norte-Americana na Casa Branca à qual os religiosos conservadores se opuseram. Carter desejava que a conferência representasse um amplo espectro de pontos de vista, e tomou medidas para assegurar que a voz conservadora fosse ouvida. Mas isso não era suficiente para os conservadores. Eles desejavam que seu ponto de vista dominasse,

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ou pelo menos se igualasse em volume à voz dos liberais. Temiam, corretamente em vista do que aconteceu, que a conferência promovesse interesses amplamente liberais. Quando a conferência se reuniu no verão de 1980, um dos assuntos foi o planejamento familiar, que incluía aborto, e foi permitido aos homossexuais que expressassem sua versão de família. Assim, os conservadores sentiram de maneira muito forte que os delegados da conferência eram, como um participante conservador o expressou, “um monte de liberais empilhados”.12 O golpe final que pôs fim ao apoio dos conservadores a Carter veio em uma reunião que ele teve com vários líderes religiosos conservadores, incluindo Jerry Falwell, James D. Kennedy, Tim LaHaye e Oral Roberts. LaHaye perguntou ao presidente por que ele apoiava a Emenda de Direitos Iguais, quando ela era tão prejudicial à família, e Carter “deu uma resposta bizarra, dizendo que a Emenda dos Direitos Iguais era boa para a família”.13 Após a reunião, LaHaye fez uma oração silenciosa: “Deus, temos de tirar esse homem da Casa Branca e colocar alguém que aja de forma decisiva para trazer de volta os valores morais tradicionais.”14 Os outros ministros, como ele ficou sabendo mais tarde, acharam o mesmo, e trabalharam duro para derrotar Carter. Essa é uma das razões primárias pelas quais Carter perdeu sua aposta na reeleição em 1980. A Maioria Moral A decisão da Suprema Corte em 1973 no caso Roe versus Wade atingiu a Igreja Católica Romana como uma tonelada de tijolos, e os bispos imediatamente começaram a trabalhar para revertê-la. Por essa razão, muitos protestantes fundamentalistas e evangélicos ficaram inicialmente cautelosos quanto ao movimento antiaborto, considerando-o em grande parte uma questão católica. Em 1971, dois anos antes do caso Roe versus Wade, a Convenção Batista do Sul votou quase unanimemente em apoio a uma resolução que afirmava o direito de uma mulher de fazer aborto caso o dar à luz constituísse um risco físico ou emocional.15 Falwell não pregou nenhum sermão sobre aborto até 1978.16 Falwell adquiriu o gosto pela atividade política pela primeira vez em 1979, quando ajudou Anita Bryant com uma cruzada contra os homossexuais na Flórida. Contudo, seu verdadeiro envolvimento começou com o estabelecimento da Maioria Moral naquele mesmo ano. Essa foi uma mudança total em seu conceito sobre os cristãos em relação à política. Ed Dobson, um dos associados de Falwell, explicou que, tradicionalmente, os fundamentalistas tinham achado que “o mundo político – a praça pública – não devia ser parte da prioridade cristã”. Nossa prioridade é amar a Deus e a nosso próximo; esqueçam a política. Essa ideia pietista predominou entre os membros comuns que ocupavam os bancos das igrejas fundamentalistas nos Estados Unidos. O milagre da Maioria Moral foi que, simplesmente numa questão de meses, todo esse conceito foi destruído, e [os fundamentalistas] começaram a se registrar para votar e a se envolver.17 Nos anos seguintes, Falwell passou bem mais tempo viajando e promovendo os interesses políticos fundamentalistas do que pastoreando sua igreja batista de Thomas Road. Em alguns anos ele chegava a viajar 500 mil quilômetros, falando frequentemente várias vezes por dia em igrejas e encontros de pastores, e ajudando a estabelecer filiais de sua Maioria Moral ao redor do país. Falwell estava disposto a dar as mãos a qualquer pessoa que apoiasse interesses políticos conservadores, mesmo que fosse um judeu, mórmon ou católico. Alguns líderes conservadores ficaram chocados. O Dr. Bob Jones, da Universidade Bob Jones, achou que era “a coisa mais herética que já ouvi”. Contudo, Falwell tinha uma resposta: Não é uma violação de suas convicções, nem desagrada ao Senhor que você trabalhe com pessoas que não concordam com você teologicamente, se ao fazê-lo você melhora seu país, melhora sua sociedade, ajuda famílias e realiza coletivamente coisas que não conseguiria realizar sozinho.18 E funcionou. “Após um ano da explosão da Maioria Moral”, ele disse, “nosso povo compreendeu que isso era o que a oposição vinha fazendo o tempo todo”. E concluiu: “Levá-los da política como questão individual para a negociação e acordo coletivo foi um processo de cerca de um ano, mas foi feito, e não precisa ser feito novamente.”19 Quando os conservadores políticos partiram para a união com os conservadores religiosos, conectaram-se a um imenso reservatório de poder político que tem revolucionado a política norte-

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americana. Uma das primeiras histórias de sucesso advindas desse casamento foi a eleição de Ronald Reagan como presidente dos Estados Unidos em 1980. Ronald Reagan Inicialmente, os líderes da direita cristã amavam Ronald Reagan. Isso mudou em 21 de agosto de 1980. Nesse dia, a Mesa Redonda Religiosa patrocinou um encontro em Dallas, Texas, que lotou a Arena de Reuniões da cidade, com capacidade para 17 mil lugares. Todos os pesos-pesados do movimento conservador e do movimento da direita cristã estavam lá: Paul Weyrich, Ed McAteer, James Robison (que estava na liderança do evento), Phyllis Schlafly, Tim LaHaye, Jerry Falwell e Pat Robertson, para mencionar apenas alguns. Ronald Reagan, o candidato republicano na eleição presidencial daquele ano, foi o orador principal. Também presentes estavam 2.500 pastores de 41 estados. James Robison fez um poderoso discurso pouco antes de Reagan se levantar. “O palco está montado”, disse Robison. “Ou teremos uma tomada de poder do tipo Hitler, ou uma dominação soviética, ou Deus vai assumir o controle deste país. É hora de sairmos de detrás dos púlpitos e pararmos de olhar através de janelas de vitral.”20 Essas palavras incandescentes são características da maneira como os militantes da direita cristã abordam a política. Reagan estava sentado na plataforma atrás de Robison, aplaudindo cada palavra. E as pessoas notaram. Quando Reagan se levantou para falar, ele disse: “Vocês não podem me endossar, mas eu endosso vocês.”21 Com essas palavras, o candidato presidencial deu seu apoio aos interesses conservadores. Também não passou despercebido pelos líderes e pelas pessoas que Reagan apoiou a dispensa do imposto de educação para os pais dos alunos que estudassem em escolas confessionais, reclamou que a Suprema Corte havia expulsado Deus das salas de aula e endossou o ensino do criacionismo bíblico nas escolas públicas como alternativa à evolução. Todos os presentes também estavam cientes do comentário enigmático de Reagan de que “todos que são a favor do aborto já nasceram”.22 E assim Reagan fez o juramento de posse em 20 de janeiro de 1981. Contudo, para o desapontamento dos conservadores religiosos, Reagan foi mais um conservador político do que um conservador religioso. Durante a campanha ele honrou com os lábios as questões debatidas pelos religiosamente conservadores, tais como o aborto, a dispensa do imposto educacional para pais que tivessem filhos em escolas confessionais e a oração nas escolas públicas, mas depois de ter assumido o governo não implementou quase nada. Os militantes da direita cristã também ficaram desapontados porque ele nomeou poucos deles para os cargos importantes de gabinete,23 mas o presidente provavelmente teve pouca escolha. Os cristãos fundamentalistas e evangélicos haviam se mantido fora da política por mais de cinquenta anos, e poucos deles tinham a experiência necessária para assumir uma nomeação política importante no governo nacional. Reagan foi reeleito em 1984 por maioria esmagadora.24 Assim, os conservadores políticos tiveram seu representante na Casa Branca durante a maior parte da década de 1980. Os conservadores religiosos ainda precisariam esperar alguns anos. Pat Robertson Durante a campanha primária de 1988, Pat Robertson apostou que se tornaria o candidato republicano à presidência naquele outono. Seus dois principais rivais eram o vice-presidente de Reagan, George H. W. Bush, e o senador Robert Dole. Bush era considerado o que mais tinha chances de ganhar em Michigan, mas os conservadores fizeram uma campanha silenciosa e bem organizada em favor de Robertson que diminuiu consideravelmente as aparições de Bush nas primárias daquele estado.25 Por causa da cuidadosa organização de seus militantes, Robertson na verdade venceu Bush na reunião do partido em Iowa, ficando em segundo lugar em relação a Dole, com Bush no terceiro lugar. Robertson também ficou em primeiro ou segundo lugar nas primárias e reuniões do partido no Havaí, Nevada, Alaska, Minnesota e Dakota do Sul.26 De repente, quer apreciasse isso ou não, a mídia liberal da esquerda teve de prestar atenção a um conservador religioso. Robertson perdeu para Bush nas primárias da Super Terça-Feira, e Bush prosseguiu ganhando a nomeação na convenção republicana do mês de agosto seguinte. Contudo, Robertson provou o ponto de vista da direita cristã: os candidatos religiosos conservadores podiam fazer uma aparição eleitoral digna, e pretendiam ganhar algum dia.

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Em meados da década de 1980, a Maioria Moral já havia perdido sua influência, e deixou de existir em 1989. Esse fato, junto com a aposta presidencial fracassada de Robertson em 1988, fez com que os comentaristas liberais predissessem a morte do movimento conservador nos Estados Unidos. Não podiam ter estado mais errados, pois Pat Robertson continuou a partir do ponto em que a Maioria Moral parou. Sua campanha presidencial o havia deixado com uma imensa lista de endereços de milhares de doadores que o haviam apoiado. Além disso, seus auxiliares haviam criado uma grande máquina política com grupos organizados em setores por todo o país, e essas pessoas estavam prontas para trabalhar. Um amigo disse a Robertson no início de 1989: “Centenas de milhares de pessoas, que você trouxe para a política pela primeira vez na vida delas, estão olhando para você em busca de liderança. Você precisa fazer alguma coisa.”27 Robertson já havia começado a fazer alguma coisa.

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Tennessee Sixty-Fourth General Assembly, 1925, House Bill nº 185, http://www.law.umkc.edu/faculty/projects/ftrials/scopes/tennstat.htm. Para detalhes sobre o julgamento, veja “Scopes Trial”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Scopes_trial. 3 Outro benefício que os fundamentalistas ganharam com o “julgamento do macaco” de Scopes foi a relutância dos editores de livros didáticos em lidar com a teoria da evolução durante as próximas três décadas, a fim de não serem levados a julgamento. Só foi na década de 1960 que os livros didáticos das escolas públicas passaram a tratar extensivamente da evolução. 4 Os adventistas do sétimo dia partilham das convicções básicas dos cristãos conservadores, inclusive a confiabilidade do relato de Gênesis sobre a criação e o dilúvio, o sobrenatural, o nascimento virginal e a ressurreição de Cristo, e a inspiração da Bíblia. 5 Kevin Philips, American Theocracy (Nova York: Viking, 2006), p. 115. Philips é a fonte, neste capítulo, para as estatísticas sobre o crescimento do protestantismo fundamentalista e o declínio da vertente principal do protestantismo. 6 Veja Connie Paige, The Right to Lifers (Nova York: Summit Books, 1983), p. 155. William Martin afirma que esse encontro ocorreu em maio de 1979; veja seu livro With God on Our Side: The Rise of the Religious Right in America (Nova York: Broadway Books, 1996), p. 200. 7 William Martin, With God on Our Side: The Rise of the Religious Right in America (Nova York: Broadway Books, 1996), p. 200. 8 Ibid., p. 191. 9 Ibid., p. 70. 10 Ibid., p. 153. 11 Ibid., p. 259. 12 Ibid., p. 181. 13 Ibid., p. 189. 14 Ibid. 15 Ibid., p. 156. 16 Ibid., p. 195. 17 Ibid., p. 202. 18 Ibid., p. 204. 19 Ibid. 20 Ibid., p. 216. 21 Ibid., p. 217. 22 Ibid. 23 James Watt, secretário de Assuntos Internos, era membro das Assembleias de Deus. 24 Os republicanos venceram em todos os estados exceto Minnesota, a terra natal do oponente democrata de Reagan, Walter Mondale. E Mondale ganhou em seu próprio estado por menos de cinco mil votos! 25 Robertson afirma que ele ganhou Michigan, “mas a ‘velha guarda’ estava lá e eles roubaram isso de nós”. Veja Martin, With God on Our Side, p. 285. 26 Ibid., p. 2. 27 Ibid., p. 299. 2

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eorge H. W. Bush (Bush pai) mal havia baixado a mão após o juramento presidencial em janeiro de 1989, quando Pat Robertson se sentou à mesa de jantar com Ralph Reed, fundador e presidente de uma organização chamada Students for America [Estudantes para os Estados Unidos]. Os dois conversaram sobre a campanha presidencial fracassada de Robertson, e Reed disse a Robertson muito francamente o que achava que este havia feito certo e o que achava que havia feito errado. Robertson ficou impressionado. Ali estava um jovem que ele mal conhecia e que, no entanto, tinha a coragem de dizer o que pensava. Além do mais, o que Reed disse fazia sentido politicamente, pois a essa altura a direita cristã estava começando a perceber que colocar um deles na Casa Branca seria apenas um sucesso parcial. Outras batalhas, muitas delas mais importantes, ainda estariam por ser travadas. A Maioria Moral de Falwell havia concentrado a maior parte de sua atenção em fazer com que seus líderes fossem eleitos em nível nacional. Mas Reed salientou para Robertson que “seria necessário mudar o enfoque do movimento ‘pró-família’, ou do movimento conservador religioso, para fora de Washington e do Escritório Oval e ir às raízes: comissões escolares, comitês municipais, comissões estaduais, e assim por diante”.1 Como Paul Weyrich o expressou, “a única maneira de se tomar Washington é tomando a área rural”.2 Antes de terminar a noite, Robertson havia convidado Reed para ser o líder no estabelecimento de uma nova organização que substituiria a Maioria Moral e também mudaria o enfoque da política da direita cristã: em vez de eleger presidentes, eleger membros de comissões estaduais e de comissões escolares. O resultado foi a Coalizão Cristã, que sem dúvida foi a mais bem-sucedida organização política da direita cristã durante a última década do século 20 e que continua a ter influência significativa na política religiosa conservadora no início do século 21.

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A Coalizão Cristã Poucas pessoas hoje estão cientes de que a Coalizão Cristã começou como algo muito, muito pequeno. Robertson conseguiu com vários doadores a soma inicial de mil dólares, e Reed pagou com seu próprio cartão de crédito os primeiros telefones da organização. O esforço inicial deles foi enviar por mala direta uma mensagem a todos os que haviam doado para a campanha presidencial de Robertson. Reed levou as cartas para seu grupo de estudo bíblico das quartas-feiras à noite, e, após a reunião, as pessoas permaneceram lá e ajudaram a colocar as cartas nos envelopes e selá-los. À medida que o dinheiro entrava, eles passaram a colocar anúncios de página inteira no New York Times, Washington Post e USA Today, exigindo que o Congresso aprovasse leis impedindo a National Endowment for the Arts de usar dinheiro federal para apoiar a pornografia e outras obras de arte que fossem ofensivas a seu eleitorado religiosamente conservador. “Se vocês continuarem a votar a favor dessas coisas”, os anúncios advertiam os representantes do Congresso, “terão de se ver com os eleitores em novembro de 1992.”3 Reed também viajou pelo país, estabelecendo grupos de ação política e dando treinamento às pessoas sobre como se envolver na política local. E funcionou. Um militante político da direita cristã expressou o resultado nas seguintes palavras: “Havia pessoas por toda o país que haviam estado politicamente envolvidas pela primeira vez [na campanha presidencial de Robertson], e haviam sido picadas pelo inseto da política. Desejavam continuar.”4 Paul Weyrich resumiu a abordagem de Robertson e Reed: Eles aprenderam o que todos esses outros líderes [da direita cristã] nunca compreenderam, isto é: se você deseja ter influência sobre a política neste país, então eleja pessoas em nível local. Faça o

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movimento crescer de baixo para cima. Não se preocupe com a presidência; a presidência cuidará de si mesma no devido tempo. Robertson e Reed, segundo ele, “levaram a sério minha recomendação de que deviam primeiro ser ativos na política local”.5 No final de 1991, a Coalizão Cristã já havia alistado mais de 82 mil membros. Pouco depois disso, veio seu primeiro grande teste político. George H. W. Bush havia nomeado o politicamente conservador Clarence Thomas, um juiz negro, para substituir o presidente da Suprema Corte, Thurgood Marshall, também um negro, que estava se aposentando. A mídia da esquerda e os políticos liberais ficaram horrorizados, não porque Thomas fosse negro, mas por causa de seu conservadorismo político. Eles fizeram todos os esforços possíveis para garantir que ele não fosse confirmado. Mas a Coalizão Cristã também estava fazendo todos os esforços possíveis para garantir que ele fosse confirmado. Guy Rogers, assistente de Ralph Reed, resumiu o que foi realizado por eles: Sabíamos que a votação [sobre Thomas] ia ser muito apertada; portanto fizemos o que faria qualquer boa organização levada avante pelo povo. Identificamos [os senadores] que achávamos que ainda estavam indecisos e mobilizamos nosso pessoal nesses estados para que fizessem ligações telefônicas. Fizemos dezenas de milhares de ligações, e realizamos o tipo certo de ligação. Quando Thomas foi confirmado, isso realmente impressionou nosso povo. Eles compreenderam que quando lhes dissemos: “É assim que se faz”, estávamos dizendo: “Vocês têm ideias a respeito disto. Agora podem fazer alguma coisa. A voz de vocês não será uma voz clamando no deserto; será uma voz coletiva que soará muito alto na Colina do Capitólio.” O juiz Thomas foi alvo de uma tremenda campanha difamatória por parte dos liberais. Não perceberam que ali havia um gigante adormecido que tomaria esse homem como seu paladino.6 A direita cristã estava aprendendo que podia ganhar em nível nacional atuando em nível local. O próximo grande desafio para a Coalizão Cristã veio em 1992, o ano em que George H. W. Bush iria se candidatar à reeleição. Embora Bush tivesse deixado de cumprir os interesses conservadores da direita cristã, estes compreenderam que ele ganharia a nomeação na convenção republicana. Bush também era preferível ao candidato democrata, Bill Clinton. Assim, os conservadores religiosos, em vez de tentarem conseguir a nomeação de um candidato mais conservador, passaram a colocar na plataforma republicana questões conservadoras, como a questão antiaborto. Reed fez um apelo apaixonado à comissão da plataforma do partido, advertindo-os de que eles perderiam os votos dos conservadores religiosos a menos que incluíssem linguagem pró-família na plataforma republicana. Vários conservadores fizeram discursos durante a convenção, inclusive Pat Robertson e Pat Buchanan. Este, em especial, fez um discurso militante no qual advertiu: Há uma guerra religiosa em andamento neste país. É uma guerra cultural tão importante para o tipo de nação que seremos como a própria Guerra Fria. Essa guerra é pela alma dos Estados Unidos. E nessa guerra pela alma do país, Clinton e Clinton estão do outro lado, e George Bush está do nosso lado.7 Os republicanos liberais ficaram horrorizados com o discurso de Buchanan. Contudo, as pesquisas do dia seguinte refletiram o impacto que ele causou. Como geralmente é o caso durante as convenções políticas, a posição do candidato presidencial cresce a cada dia. No caso de Bush, o maior aumento veio no dia seguinte aos discursos de Robertson e Buchanan. Infelizmente para Bush, não foi suficiente. Na eleição de novembro, ele perdeu para Bill Clinton, que se sentaria no Escritório Oval pelos próximos oito anos. Entretanto, mesmo nas más notícias os conservadores viram algo de bom. Guy Rogers, assistente de Ralph Reed, disse: O que o povo norte-americano não sabe é que, pela primeira vez na história deste país, acabaram de eleger para a presidência um liberal que é a favor do aborto e dos direitos homossexuais. Agora vocês terão uma amostra do liberalismo moderno, e todo mundo vai poder vê-lo de uma forma em que não o haviam visto antes.

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Outro militante da direita cristã observou: “Que maneira melhor há de galvanizar suas tropas do que ter Bill Clinton para lutar contra?”8 Os novos vencedores Desse ponto em diante, graças, em grande parte, às habilidades políticas de Ralph Reed, os conservadores religiosos começaram a ganhar eleições no país inteiro. Uma das primeiras foi uma eleição especial na qual Paul Coverdale se tornou o segundo senador republicano a representar a Geórgia no Congresso Norte-Americano desde a Reconstrução (1865-1877), período que ocorreu após a Guerra Civil. A Coalizão Cristã arregimentou suas tropas na Geórgia para distribuir mais de um milhão de guias para eleitores e para telefonar a todas as pessoas que constavam em seu cadastro como eleitores da ala conservadora. Coverdale ganhou a eleição. No entanto, o verdadeiro sucesso das forças da Coalizão Cristã e da direita cristã veio nas eleições intermediárias,9 em novembro de 1994. Embora seja comum que o partido que está na Casa Branca perca força no Congresso nas eleições intermediárias, a eleição de 1994 foi um desastre absoluto para os democratas. Como observei em um capítulo anterior, os democratas perderam oito cadeiras no Senado, dando aos republicanos uma maioria de quatro cadeiras, e na Câmara Federal perderam 44 cadeiras, dando aos republicanos uma maioria de 26 cadeiras! O Partido Republicano também elegeu onze governadores e 472 deputados estaduais em todo o país. E há claras evidências de que a Coalizão Cristã teve grande influência no sucesso republicano. Dos eleitos, 26 senadores e 114 deputados federais haviam recebido nota máxima no Cartão de Avaliação dos Congressistas publicado pela Coalizão Cristã, ou eram novatos que haviam recebido forte aprovação da Coalizão.10 Os especialistas políticos em toda parte, muitos dos quais haviam predito a extinção da direita política cinco anos antes, agora reconheciam seu poder. Seis meses após a eleição de 1994, a revista Time publicou uma matéria de capa com Ralph Reed, acompanhada das palavras: “A Mão Direita de Deus: Conheça Ralph Reed. Sua Coalizão Cristã está numa cruzada para assumir a política dos Estados Unidos – e está funcionando”.11 O artigo descrevia a Coalizão Cristã como “formidável”, e “uma das mais poderosas organizações populares da política norte-americana”.12 O artigo citou as seguintes palavras do principal estrategista de Bob Dole, William Lacy: “Sem ter o apoio significativo da direita cristã, um republicano não pode conseguir tornar-se candidato ou ganhar a eleição geral.”13 A Time concluiu seu artigo com a declaração de que “a direita cristã está se movendo em direção ao palco central na vida secular norte-americana”.14 Os conservadores religiosos estavam finalmente obtendo a atenção – e o respeito forçado – da imprensa secular liberal! Um grupo de deputados federais conservadores conseguiu deixar irado o público norte-americano durante seus primeiros dois anos de mandato ao manter refém de suas estreitas exigências o orçamento federal de 1996 de Bill Clinton, e muitos deles não foram reeleitos em 1996. O apagado Bob Dole foi o oponente de Clinton em 1996, e Clinton ganhou novamente. Contudo, durante o resto da década de 1990 os republicanos permaneceram no controle de ambas as casas do Congresso dos Estados Unidos. Provavelmente nenhum norte-americano se esquecerá tão cedo da eleição presidencial de 2000, quando a disputa entre George W. Bush (o filho do ex-presidente George H. W. Bush) e Al Gore foi finalmente resolvida pela Suprema Corte em favor de Bush. O significado da presidência de Bush é que ele foi o primeiro presidente a tratar os conservadores religiosos como seu eleitorado principal, a quem tinha de agradar acima de todos os demais. Embora isso não receba grande destaque da imprensa, não é segredo para os conhecedores da política que Bush consultava semanalmente os conservadores, tanto católicos quanto protestantes, seja em pessoa ou por meio de seus conselheiros. Durante seu mandato, Bush promoveu vários temas que são estimados pela direita cristã, incluindo uma emenda na Constituição dos Estados Unidos relativa ao casamento, a oração nas escolas, a dispensa de impostos educacionais15 para alunos de escolas confessionais e a limitação do aborto. Porém, a contribuição mais duradoura de Bush para a causa da direita cristã foi sem dúvida as duas nomeações que ele fez para a Suprema Corte durante seu segundo mandato: John Roberts no lugar de William Rehnquist, que falecera; e Samuel Alito no lugar de Sandra Day O’Connor, que se aposentara. Tanto Roberts quanto Alito são conservadores e católicos. Com a nomeação deles, cinco dos nove juízes da Suprema Corte são católicos. Creio que a nomeação desses dois católicos por Bush não foi acidental. O lobby católico nos Estados Unidos é muito forte, e os protestantes da direita cristã hoje veem os católicos como aliados na guerra cultural norte- americana. Assim, a nomeação de dois católicos por Bush deixou ambos os lados muito felizes.

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Mas o que tudo isso tem a ver com a profecia bíblica? Continue lendo!

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William Martin, With God on Our Side: The Rise of the Religious Right in America (Nova York: Broadway Books, 1996), p. 300. Ibid., p. 331. 3 Ibid., p. 304. 4 Dick Weinhold, citado em ibid., p. 306. 5 Martin, With God on Our Side, p. 308. 6 Ibid., p. 317. 7 Ibid., p. 325. 8 Ibid., p. 329. 9 Eleições que não coincidem com a eleição presidencial (N. da T.). 10 Martin, With God on Our Side, p. 339, 340. 11 Jeffrey H. Birnbaum, “The Gospel According to Ralph”, Time, 15 de maio de 1995, p. 1. 12 Ibid., p. 28, 30. 13 Ibid., p. 30. 14 Ibid., p. 35. 15 Normalmente os cidadãos que pagam escolas particulares têm de também pagar os impostos relativos à educação pública (N. da T.). 2

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encionei no capítulo 10 que, quando John F. Kennedy estava concorrendo à presidência em 1960, enfrentou a Associação Ministerial de Houston em setembro daquele ano para defender o que pensava sobre a separação entre igreja e Estado. “Creio”, disse Kennedy, “em um país onde a separação entre igreja e Estado seja absoluta, onde nenhum prelado católico diria ao presidente (caso ele seja católico) como agir, e nenhum ministro protestante diria aos membros de sua igreja em quem votar.”1 Mas observe o seguinte, porque isto é extremamente importante: ao dizer essa frase, Kennedy, um católico, foi contra o ensino de sua própria igreja. Na verdade, alguns católicos ficaram bastante descontentes com ele por suas palavras. Mas Kennedy sabia que estava enfrentando um grande eleitorado protestante – especialmente batistas do Sul e carismáticos – que temia que seu catolicismo fizesse com que ele, como presidente, comprometesse a separação entre igreja e Estado. Assim, Kennedy não teve escolha a não ser fazer essa ousada declaração. No entanto, os batistas do Sul e os carismáticos dos Estados Unidos deram uma meia-volta. Esses mesmos grupos estão agora na vanguarda da batalha contra a separação entre igreja e Estado. Nos parágrafos seguintes, citarei algumas de suas declarações mais enfáticas.

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Pat Robertson: “Eles [os liberais e secularistas] nos têm mantido submissos porque falam sobre a separação entre igreja e Estado. Não existe isso na Constituição. É uma mentira da esquerda, e não vamos mais tolerá-la.”2 “Foi-nos imposta uma distorção nos últimos anos pelos esquerdistas que têm se prendido ao sistema judiciário. E nos tem sido imposta uma mentira de que há, incrustado na Constituição, algo chamado separação entre igreja e Estado.”3 “[As cortes] estão tirando de nós nossa religião sob o disfarce de separação entre igreja e Estado.”4 Herry Falwell: “A separação entre igreja e Estado tem sido há muito tempo, o grito de batalha dos libertários civis que desejam purgar nossa gloriosa herança cristã da história de nossa nação. O termo, é claro, não aparece uma única vez em nossa Constituição e é uma moderna maquinação discriminatória.”5 W. A. Criswell, ex-pastor titular da Primeira Igreja Batista de Dallas: “Não existe algo como separação entre igreja e Estado. É meramente uma ficção imaginária dos incrédulos.”6 D. James Kennedy, pastor presbiteriano em Fort Lauderdale, Flórida: “Se estamos dedicados a levar de volta a nação aos valores morais cristãos, e estamos envolvidos nisso, não há dúvida de que podemos testemunhar a queda, não só do muro de Berlim, mas do ainda mais diabólico ‘muro de separação’ que tem levado à secularização, impiedade, imoralidade e corrupção em nosso país.”7 Francis Schaeffer, preeminente filósofo cristão do final do século 20, escreveu: “Hoje a separação entre igreja e Estado nos Estados Unidos é usada para silenciar a igreja.”8 Os líderes religiosos não são os únicos a liderar o ataque à separação entre igreja e Estado. Note os seguintes exemplos: William Rehnquist, ex-juiz associado da Suprema Corte dos Estados Unidos. Serviu como presidente da Suprema Corte de 1986 a 2005: “O ‘muro de separação entre a igreja e o Estado’ é uma metáfora baseada numa interpretação errada da história, uma metáfora que se tem demonstrado inútil como diretriz para a tarefa de julgar. Deve ser franca e explicitamente abandonada.”9 Antonin Scalia, juiz associado da Suprema Corte dos Estados Unidos: o site TheocracyWatch

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chama a atenção para um discurso feito por Scalia em 12 de janeiro de 2003, num evento alusivo ao Dia da Liberdade Religiosa, no qual ele disse que o princípio da separação entre igreja e Estado não estava embutido na Constituição e, portanto, devia ser acrescentado democraticamente, o que significa por meio de uma emenda constitucional. O site observa, corretamente, que uma emenda à Constituição sobre a separação entre igreja e Estado seria impossível de ser alcançada no atual clima político e, portanto, o argumento é destituído de sentido.10 Tom DeLay, ex-líder da maioria na Câmara Federal, em um discurso no salão da Câmara: “Afirmar que nossos Pais Fundadores [os fundadores dos Estados Unidos] eram a favor da separação entre igreja e Estado é reescrever a história, ou é ser muito ignorante sobre ela.”11 Jay Alan Seculow, conselheiro-chefe do American Center for Law and Justice: “Estou farto dos infames ataques da União Norte-Americana pelas Liberdades Civis à herança religiosa de nossa nação e a nosso direito de expressar publicamente nossa fé. [...] O frustrante sobre isso é que todo o argumento deles está baseado no princípio totalmente falso da ‘separação entre igreja e Estado’. [...] Não há nenhum ‘muro’ de separação!” “O fato é que a frase ‘separação entre igreja e Estado’ não se encontra na Constituição dos Estados Unidos, que forma a estrutura de nossa liberdade. [...] Demasiadas vezes se permite que a frase ‘separação entre igreja e Estado’ tome o lugar de nossas verdadeiras provisões constitucionais.”12 Esses líderes da direita política e religiosa afirmam que a separação entre igreja e Estado é uma mentira da esquerda radical. Afirmam que os defensores do Estado laico o tomaram emprestado da Constituição da União Soviética e o impuseram aos norte-americanos. Será que eles têm amnésia? Será que se esqueceram do que os líderes religiosos conservadores exigiram de John F. Kennedy quando estava concorrendo à presidência? A verdade é que a separação entre igreja e Estado tem sido um princípio da legislação e jurisprudência norte-americana desde a fundação do país. Os adeptos da direita cristã radical é que são os revisionistas radicais. Em 1960, os batistas do Sul eram alguns dos mais fortes defensores da separação entre igreja e Estado. Hoje, os batistas do Sul conservadores estão na vanguarda da oposição à separação entre igreja e Estado. E muitos dos líderes evangélicos e fundamentalistas dos Estados Unidos são tão diametralmente opostos à separação entre igreja e Estado que estão lutando para vê-la derrotada. Por que a mudança O que aconteceu? O que causou essa dramática mudança em tão curto período de tempo? Vários fatores são responsáveis por isso. Mencionarei três, mas tenho certeza de que há outros. O secularismo versus o cristianismo conservador. Os Estados Unidos sempre foram uma nação formada tanto por pessoas religiosas quanto por pessoas secularizadas, que têm se dado bem umas com as outras apesar de suas diferenças religiosas e espirituais. Contudo, uma mudança significativa no equilíbrio de poder ocorreu durante o século 20. Por um lado, o secularismo ganhou em grande parte o controle das principais instituições da nação, inclusive a educação, o entretenimento e a mídia eletrônica e impressa. Por outro lado, como mostrei no capítulo 12, uma grande proporção do povo norteamericano aceitou a religião conservadora com seus valores morais conservadores. Um choque entre essas duas forças culturais era inevitável. Ele começou com os ativistas políticos conservadores. Na década de 1970, esses ativistas, que eram em grande parte não religiosos, estavam procurando blocos significativos de pessoas no país que pudessem estar dispostas a se unir a eles em seus esforços para obter domínio político sobre o governo norte-americano. Os cristãos conservadores, que nos cinquenta anos anteriores haviam evitado o envolvimento político e cujos números haviam estado crescendo rapidamente, estavam prontos para ser colhidos. Só foi preciso um pouco de persuasão para ganhar Jerry Falwell, Pat Robertson e outros da direita cristã. Se esses cristãos conservadores tivessem adotado os interesses dos conservadores não religiosos, a separação entre igreja e Estado não teria sido ameaçada, pois, como observei no capítulo 10, a versão norte-americana da separação entre igreja e Estado é resultado de uma mistura singular entre o religioso e o laico. Contudo, os cristãos conservadores levaram todo o movimento conservador para uma direção significativamente diferente. Querem que o governo norte-americano e suas principais instituições sejam controladas por mais do que uma filosofia política conservadora. O objetivo deles é um interesse religioso conservador. D. James Kennedy afirmou:

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Nossa tarefa é recuperar os Estados Unidos para Cristo, qualquer que seja o custo. Como os representantes de Deus, devemos exercer domínio e influência piedosos sobre nossa vizinhança, nossas escolas, nosso governo, nossa literatura e arte, nossos ginásios esportivos, nossa mídia de entretenimento, nossa mídia de notícias, nossos esforços científicos – em resumo, sobre todos os aspectos e instituições da sociedade humana.13 A separação entre igreja e Estado é especialmente ameaçada pelo esforço da direita cristã de “exercer domínio e influência piedosos sobre [...] nosso governo”. A legislação de direitos civis das décadas de 1950 e 1960, que à primeira vista parece não ter relação nenhuma com a separação entre igreja e Estado, na verdade contribuiu significativamente para a mudança de atitude da direita cristã em relação a esse princípio. Vejamos o porquê. Durante o século 19 e grande parte do 20, o apoio protestante à separação entre igreja e Estado incluía a recusa de destinar fundos do governo para a educação religiosa confessional, que era em grande parte católica na época. Os católicos haviam estabelecido seu sistema de escolas para que seus filhos não fossem expostos ao protestantismo que tendia a permear a educação pública. Eles objetaram (corretamente) que estavam sendo forçados a pagar duas vezes pela educação de seus filhos: uma vez através dos impostos que mantinham as escolas públicas, e uma segunda vez através do estipêndio e dos subsídios que tinham de pagar para manter suas próprias escolas confessionais. Os protestantes responderam que esse era o preço que as igrejas que mantinham escolas confessionais tinham de pagar para que o país mantivesse a separação entre igreja e Estado. Os protestantes acharam fácil dizer isso, porque não possuíam muitas escolas confessionais. Então veio a legislação de direitos civis das décadas de 1950 e 1960, e as decisões da Suprema Corte que exigiam a integração das escolas públicas, mesmo que significassem que os estudantes tivessem de ir de ônibus de uma parte da cidade para outra. E os pais de etnia branca ficaram furiosos! Eles não queriam que seus filhos tivessem de sair de ônibus de seus distritos escolares só para alcançar equilíbrio racial. Os brancos do Sul, que ainda mantinham muitos de seus preconceitos contra os negros, ficaram particularmente irados. O resultado foi um movimento difundido de escolas confessionais entre os protestantes evangélicos. As igrejas em toda parte começaram a estabelecer suas próprias escolas. Essas escolas forneciam dois benefícios: conservavam as crianças perto de casa e tornavam possível que as crianças estudassem em suas escolas a Bíblia e os conceitos bíblicos da criação, da sexualidade humana e outras questões morais. De repente, o sapato estava no outro pé. Agora os protestantes conservadores começaram a compreender o embaraço financeiro de pagar duas vezes pela educação de seus filhos,14 e o argumento da separação entre igreja e Estado, contra o uso de fundos públicos para a educação confessional, perdeu seu brilho. Esse é um importante fator na meia-volta dos conservadores protestantes sobre a separação entre igreja e Estado. Decisões da Suprema Corte. Várias decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos durante a segunda metade do século 20, e uma decisão do Tribunal de Justiça de Massachusetts, também tiveram uma poderosa influência sobre a atitude da direita cristã quanto à separação entre igreja e Estado. A primeira, no caso Everson versus Secretaria de Educação, foi dada pela Suprema Corte no início de 1947. Uma frase nessa decisão deixou especialmente irados os conservadores da direita cristã. O juiz Hugo Black, escrevendo para a maioria, disse: “Nas palavras de [Thomas] Jefferson, a cláusula contra o estabelecimento da religião por lei tinha a intenção de erigir um muro de separação entre a igreja e o Estado.” Os conservadores religiosos responderam veementemente: “Não há muro de separação!” Duas decisões da Suprema Corte no início da década de 1960 também irritaram os conservadores religiosos: uma em 1962, que proíbe a oração nas escolas públicas que seja promovida pela própria escola,15 e outra em 1963, que proíbe a leitura da Bíblia em escolas públicas por ordem do estado.16 Ralph Reed, o diretor executivo da Coalizão Cristã, chamou a sentença judicial sobre oração nas escolas de “uma tentativa nacional de busca e destruição de práticas religiosas para os estudantes”.17 Duas outras decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos que deixou irada a direita cristã foram em relação ao caso Roe versus Wade em 1973, que permite às mulheres o direito de fazer aborto, e uma decisão em 2003, que descriminalizou a intimidade homossexual entre adultos que nela participassem por livre consentimento.18 Finalmente, há a decisão da Suprema Corte estadual de Massachusetts em 2004, que permite o casamento entre homossexuais.19 Roberta Combs, a presidente da Coalizão Cristã, chamou essa decisão de “repreensível” e de “um desrespeito à vontade da esmagadora maioria do povo norte-

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americano, que acredita ser o casamento uma união apenas entre um homem e uma mulher”.20 Essas decisões da Suprema Corte elevaram a ira da direita cristã contra a separação entre igreja e Estado a um estado de ebulição.21 Os processos de Michael Newdow contra as palavras “sob Deus” no Juramento de Lealdade ao país e às palavras “Em Deus confiamos” no dinheiro norte-americano só intensificaram os temores dos ativistas da direita cristã de que, em nome da separação entre igreja e Estado, a Suprema Corte também baniria do setor público esses símbolos da religião civil. A solução da direita cristã A solução da direita cristã para essas decisões da Suprema Corte é preocupante. Permita-me apresentar-lhe algumas evidências. Os conservadores religiosos acusam os chamados “juízes ativistas” da Suprema Corte, e de certas cortes inferiores, de “legislar para fora dos tribunais” e ignorar o intento original que estava na mente dos fundadores da república norte-americana quando escreveram a Constituição. De acordo com Mark Levin em seu livro Men in Black [Homens de Preto], os ativistas judiciais não são nada menos que radicais de toga – que desdenham a norma da lei, subvertendo a Constituição segundo seu desejo, e usando a confiança pública para impor à sociedade suas preferências sobre como esta deve ser governada. Na verdade, nenhum movimento político radical tem sido mais eficiente em minar nosso sistema de governo que o judiciário.22 Essa é uma declaração e tanto! Mas Levin não é o único a atacar as cortes. Em 14 de março de 2006, recebi o e-mail de uma organização chamada ConservativeAlerts.com [Alertas Conservadores]. O email tinha como título: “Altos crimes e contravenções: os juízes ativistas precisam ser removidos agora!” Passava, então, a acusar os liberais de “subverterem a Constituição, carregando as cortes federais com adeptos da ideologia liberal”, e prosseguia com exemplos de “alguns dos magistrados mais afrontosos e suas incríveis decisões”. Em seu programa de televisão 700 Club [Clube dos 700], Pat Robertson declarou: “O fato de que [as cortes] estão tentando ignorar a herança religiosa deste país é simplesmente horrível. Estão tirando de nós nossa religião sob o disfarce de separação entre igreja e Estado. Nunca houve qualquer intenção de que nosso governo fosse separado do Deus Todo-Poderoso. Nunca, nunca, nunca na história desta nação os fundadores deste país, ou os que vieram depois deles, pensaram que esse fosse o caso.”23 Segundo Tony Perkins, presidente e diretor geral do Family Research Council [Conselho de Pesquisas sobre a Família] de Washington, DC, a Suprema Corte “tem se tornado cada vez mais hostil ao cristianismo. Ela representa uma ameaça maior ao governo representativo do que qualquer outra força – mais do que déficits orçamentários, mais do que o terrorismo”.24 E Donald Wildmon, fundador e presidente da American Family Association [Associação Norte-Americana para a Família], diz: “Grupos antioração e anticristãos – como a ACLU [União Norte-Americana pelas Liberdades Civis] e NorteAmericanos Unidos para a Separação entre Igreja e Estado – uniram-se em cooperação com os juízes liberais da Suprema Corte dos Estados Unidos e estão removendo nossa liberdade religiosa.”25 Em 29 de março de 2005, recebi um e-mail da Conservative Petitions [Petições Conservadoras] me convidando para uma conferência nos dias 7 e 8 de abril, intitulada “Confrontando a Guerra Judicial contra a Fé”. William Greene, presidente da RightMarch.com e patrocinador da conferência, afirmava no e-mail que “os juízes ativistas estão minando a democracia, devastando famílias e atacando a moralidade judaico-cristã”. Ele concluía o e-mail dizendo: “Essa será uma conferência voltada para a ação que buscará um esforço amplo para salvar os Estados Unidos dos juízes.” Até o presidente George W. Bush fez uma declaração enfática sobre o judiciário: “Precisamos de juízes que tenham bom senso e que entendam que nossos direitos são derivados de Deus. Esse é o tipo de juiz que pretendo colocar no exercício da magistratura.”26 Ele teve sua chance em 2005, o que elevou a retórica da direita cristã a um estridente grito de guerra. Em uma reportagem sobre a situação, Debra Rosenberg, da Newsweek, escreveu: “Ultimamente a animosidade [contra os juízes tem] alcançado um estado de ebulição.” Com a especulação, na época, sobre uma possível cadeira vaga na Suprema Corte (e, no final, houve duas), Rosenberg disse: “As apostas e os ataques verbais estão mais acirrados que nunca.”27 As tensões contra a Suprema Corte aumentaram e alguns magistrados receberam ameaças de morte, o que os levou a solicitar à agência de policiamento norte-americano Marshals Services um

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reforço na segurança.28 O ministério Focus on the Family [Enfoque na Família], de James Dobson, comparou os magistrados de toga preta da Suprema Corte aos membros de túnica branca da Ku Klux Klan.29 Em um discurso gravado para uma conferência da direita cristã em Washington, DC, que tinha o objetivo de se livrar dos “juízes renegados que ultrapassam sua autoridade constitucional”, o líder da maioria no Senado, Tom DeLay, reclamou de “um judiciário que se comporta de maneira ultrajante”. Ele acrescentou que o Congresso precisa “reafirmar nossa autoridade constitucional sobre as cortes”.30 Na mesma conferência, Edwin Vieira, autor do livro How to Dethrone the Imperial Judiciary [Como Destronar o Judiciário Imperial], disse: “O maior dos tolos na Suprema Corte decide a questão e então, de acordo com eles, todas as demais pessoas do mundo precisam obedecer a essa decisão.” Vieira também criticou a corte por promover o “Marxismo-Leninismo-Stalinismo”.31 A conferência terminou com um ataque à separação entre igreja e Estado como “uma frase que não se encontra na Constituição e um conceito alheio à lei constitucional antes de 1947”.32 Uma carta destinada ao levantamento de fundos que recebi de Jerry Falwell reclamava sobre “cortes liberais descontroladas”. Roberta Combs, da Coalizão Cristã, afirmou: “O ramo [do governo] que os Pais Fundadores tencionavam que fosse o mais fraco dos três tem estado ditando para o povo norteamericano, há décadas, o que eles acham que é melhor para este povo.”33 Em outra carta destinada ao levantamento de fundos, que recebi pouco após o falecimento de Terri Schiavo, Combs disse que a morte de Schiavo “concentrou a atenção nacional na ameaça à vida e à liberdade que juízes federais fora de controle podem representar”. Os ativistas da direita cristã têm proposto vários métodos radicais para “refrear” as cortes e seus magistrados “fora de controle”. Uma é o de juízes cujas decisões eles não apreciarem. Outra é dar ao Congresso autoridade para derrubar qualquer decisão de uma corte federal por dois terços dos votos, mais o voto de dois terços das assembleias legislativas estaduais. Uma terceira sugestão é que o Congresso limite as verbas para as cortes. Uma quarta é que o Congresso aprove uma lei negando às cortes federais o direito de ouvir certos tipos de casos, especialmente casos religiosos.34 Por exemplo, D. James Kennedy, pastor presbiteriano em Fort Lauderdale, Flórida, exigiu que as cortes fossem impedidas de tomar decisões sobre “quaisquer assuntos pertencentes a Deus”.35 Essa “solução”, é claro, tornaria nula a Primeira Emenda da Constituição. O que tudo isso significa É importante refletir na implicação de toda essa retórica hostil da direita cristã contra as cortes norteamericanas, e especialmente contra a Suprema Corte. As palavras têm poder, e à medida que se multiplicam as vozes que as pronunciam, essas palavras se traduzem numa onda de poder político que ameaça invadir a paisagem política norte-americana e destruir muitas de nossas liberdades mais básicas. Por mais de 225 anos a Suprema Corte tem sido a guardiã da liberdade religiosa norte-americana. A direita cristã afirma que as cortes estão destituindo a nação de sua liberdade religiosa porque impedem que o Congresso e as várias assembleias legislativas estaduais promulguem leis de acordo com a visão religiosa e moral da direita cristã. Infelizmente, se a direita cristã conseguir o que quer, a proteção da Primeira Emenda contra leis religiosas será apenas uma vaga lembrança, e todos os tipos de iniciativas religiosas se tornarão a lei da nação. Por mais de cem anos os adventistas do sétimo dia têm ocupado a vanguarda no esforço de preservar a liberdade religiosa nos Estados Unidos. Nossa motivação tem sido uma compreensão singular sobre a besta da terra de Apocalipse 13, que cremos representar os Estados Unidos da América. Essa besta, que parece bondosa quando surge da terra – tem “dois chifres, parecendo cordeiro” (v. 11) – falará, contudo, “como dragão”. O verso 15 diz que a besta da terra fará “morrer quantos não adorassem a imagem da besta”. Também exigirá que todos os seres humanos recebam uma marca de lealdade na testa ou na mão, e aqueles que se recusarem a isto serão sujeitos a um boicote econômico – isto é, lhes será negado o direito de comprar ou vender (v. 16, 17). E a ameaça máxima na exigência de conformidade religiosa será a morte. Será que isso pode realmente acontecer? Cem anos atrás nossos críticos não adventistas afirmavam que para que os Estados Unidos renunciassem a seu histórico apoio à liberdade religiosa seria preciso acontecer “um milagre maior do que Deus fazer crescer um carvalho gigante num instante”.36 Mas os conservadores religiosos obtiveram tremendo poder político nos Estados Unidos durante os últimos 25 anos do século 20 e os primeiros

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anos do século 21. Pat Robertson afirma: “Desejamos liberdade neste país, e desejamos poder.” Ele queria dizer que os conservadores da direita cristã desejam liberdade e poder para transformar seu tipo de religião em lei. Creio que a afirmação de que a atual exigência por parte dos conservadores da direita cristã norte-americana de anular a separação entre igreja e Estado e destituir a Suprema Corte de sua autoridade para considerar casos que tratem de religião está levando este país em direção a um direto cumprimento da interpretação adventista da intolerante besta da terra de Apocalipse 13. Estou certo de que há aqueles que irão argumentar que a interpretação adventista de Apocalipse 13 é incorreta. Porém, diante dos eventos atuais, já não podem argumentar que ela é irrealista.

1 Citado em George J. Marlin, The American Catholic Voter: 200 Years of Political Impact (South Bend: St. Augustine’s Press, 2004), p. 254. 2 De um discurso de Pat Robertson feito em novembro de 1993, citado em Anti-Defamation League, The Religious Right: The Assault on Tolerance and Pluralism in America (Nova York: Anti- Defamation League, 1994), p. 4. 3 Pat Robertson em 12 de outubro de 2002, na Conferência “Caminho para a Vitória” da Coalizão Cristã; citado no site de Americans United for Separation of Church and State, “They Said It! Religious Right Leaders in Their Own Words”, http://www.au.org/site/DocServer/They_Said_It.pdf?docID=221. 4 Pat Robertson em seu programa de televisão Clube dos 700, em 19 de julho de 2005; citado por Rob Boston em “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”, Church and State, junho de 2006, p. 10. 5 Jerry Falwell, citado por Rob Boston em “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”, Church and State, junho de 2006, p. 14. 6 De uma entrevista da CBS de 6 de setembro de 1984, gravada um dia após ele ter dado a bênção na Convenção Nacional Republicana, citado em Anti-Defamation League, The Religious Right: The Assault on Tolerance and Pluralism in America, p. 4. 7 Citado em “They Said It! Religious Right Leaders in Their Own Words”. 8 Francis A. Schaeffer, A Christian Manifesto (Westchester: Crossway, 1981), p. 36. 9 William Rehnquist em Wallace v. Jaffree, 1984. 10 “Biblical Law”, http://www.theocracywatch.org/biblical_law2.htm. 11 Citado em Signswatch, Winter 2001, p. 3. 12 Ministry Magazine (não a adventista), outono de 2004; citado em “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”, p. 13. 13 Citado em The Rise of the Religious Right in the Republican Party, http:// www.theocracywatch.org; ênfase acrescentada. 14 Não é correto dizer que os pais que enviam os filhos para escolas confessionais têm de pagar duas vezes pela educação de seus filhos. Todos pagam os impostos que sustentam a educação pública, inclusive pessoas que não têm filhos: solteiros, casais recém-casados, idosos, etc. 15 Caso Engel versus Vitale. 16 Caso Distrito Escolar de Abingdom versus Schempp. 17 Ralph Reed, Contract With the American Family (Nova York: Random House, 1995), p. 6. 18 Caso Lawrence versus Texas. 19 Goodridge vs. Department of Public Health. 20 U.S. Newswire, “Christian Coalition Condemns Massachusetts Supreme Court’s Approval of Homosexual Marriage”, http://releases.usnewswire.com/ GetRelease.asp?id=23507. 21 A decisão da Suprema Corte permitindo a intimidade homossexual entre adultos que nela participassem por livre consentimento e a decisão da Corte de Massachusetts que permitiu o casamento homossexual não são questões ligadas à relação entre igreja e Estado, mas estavam entre uma série de decisões dos tribunais americanos em anos recentes que deixaram irados os protestantes e católicos da direita cristã que se opõem à separação entre igreja e Estado. 22 Mark R. Levin, Men in Black: How the Supreme Court is Destroying America (Washington, DC: Regnery, 2005), p. 22. 23 Pat Robertson em seu programa de televisão Clube dos 700; citado por Boston, “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”, p. 10. 24 Jerry Falwell na conferência “Confrontando a Guerra Judicial Contra a Fé”, 7 de março de 2005; citado por Boston, p. 13. 25 Donald Wildman numa carta para levantamento de fundos no outono de 2000; citado por Boston, “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”, p. 12. 26 Citado num e-mail que recebi de Lou Sheldon, cuja linha “assunto” dizia: “Ajude a Tomarmos de Volta Nossas Cortes da Esquerda AntiDeus”, e cujo título dizia: “Nosso plano de batalha: tomar de volta nossas cortes”. 27 Debra Rosenberg, “The War on Judges”, Newsweek, 25 de abril de 2005, p. 23. 28 Ibid., p. 23, 24. 29 Ibid., p. 23. 30 Rob Boston, “Judge Not”, Liberty, setembro/outubro de 2005, p. 6, 22; pode ser visto em http://www.libertymagazine.Org/article/articleview/519/l/85/. 31 Ibid. 32 Ibid. 33 Roberta Combs, em Washington Weekly Review, publicado por Christian Coalition of America, 26 de março de 2005. 34 Boston, “Judge Not”, p. 6, 22. 35 Daniel Eisenberg, “The Posse in the Pulpit”, Time, 23 de maio de 2005, p. 32, 33. 36 Theodore Nelson na introdução do livro de Dudley M. Canright, Seventh-day Adventism Renounced (Nashville: Gospel Advocate Company, 1914), p. 23.

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or favor, leia a citação seguinte, que é do Ato de Tolerância promulgado em 1649 por uma das treze colônias norte-americanas originais. Então, da lista que se encontra abaixo da citação, selecione a colônia que você acha que promulgou este generoso conceito de liberdade religiosa:

Sendo que o ato de forçar a consciência em assuntos de religião tem frequentemente se demonstrado ser de consequências perigosas nas comunidades onde tem sido praticado, seja, portanto, ordenado e promulgado que nenhuma pessoa dentro desta província que professe crer em Jesus Cristo será daqui por diante perturbada, molestada ou envergonhada de qualquer forma por sua religião ou a respeito dela, nem em seu livre exercício da mesma dentro desta província.

¨ Rhode Island ¨ Pensilvânia ¨ Nova York ¨ Maryland ¨ Virgínia Agora, da lista na página seguinte, selecione o líder norte-americano que você acha que fez esta declaração: “Tenho observado que, quando os ministros religiosos deixam os deveres de sua profissão para tomar parte ativa em assuntos políticos, geralmente caem em desprezo.”1

¨ George Washington ¨ James Madison ¨ John Carroll ¨ Thomas Jefferson ¨ Cotton Mathers Se você marcou Maryland para a primeira pergunta e John Carroll para a segunda, acertou. Essa resposta é significativa, pois Maryland era predominantemente uma colônia católica, e em 1789 o papa nomeou John Carroll como bispo de Baltimore. Carroll tornou-se, assim, o primeiro bispo católico norte-americano. Durante a maior parte do segundo milênio, a Igreja Católica havia dominado a política europeia, e por muito tempo havia anunciado sua oposição à separação entre igreja e Estado e à liberdade religiosa. Tendo em vista essa história, o que motivou essas extraordinárias declarações feitas por católicos? A resposta é simples. Os católicos eram uma pequena minoria religiosa no início da história da nação – menos de 1% da população na época da Guerra da Independência dos Estados Unidos (1775-1783). Muitos norte- americanos haviam chegado ao Novo Mundo para escapar da perseguição católica. Assim sendo, tinham forte preconceito contra os católicos, o que tornava extremamente difícil para os membros dessa igreja encontrar verdadeira liberdade religiosa. Como solução para esse problema, em 1649 Lorde Baltimore, um católico, estabeleceu Maryland como uma colônia onde eram bem-vindas as pessoas de todas as religiões, inclusive os católicos. O preconceito contra os católicos em todas as colônias era ainda muito forte 140 anos depois, quando John Carroll se tornou o bispo de Baltimore. Os

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católicos eram considerados um elemento estranho na terra dos livres, o que explica o comentário de Carroll sobre a importância de os clérigos se manterem fora da política. O que os católicos deviam fazer diante desses fortes sentimentos anticatólicos? Discutirei três estratégias que os líderes católicos adotaram. “Somos norte-americanos!” Carroll era o líder dos católicos norte-americanos nos anos que se seguiram imediatamente à Guerra da Independência. Uma de suas estratégias primárias foi disseminar um senso de que os católicos eram norte-americanos genuínos. Esse era um grande desafio, porque todo o problema do preconceito anticatólico era a ideia de que os membros dessa igreja, sendo sujeitos ao papa, não podiam ao mesmo tempo ser súditos leais do governo dos Estados Unidos. As pessoas temiam que, se tivessem a chance, os católicos tentariam transformar os Estados Unidos em uma teocracia que fosse leal ao papa. Para mitigar esse temor, os católicos norte-americanos tiveram de se distanciar da filosofia católica de união entre igreja e Estado e adotar o espírito norte-americano de liberdade religiosa. Outro líder católico que adotou essa política foi John England, que se tornou bispo de Charleston, Carolina do Sul, em 1820. England “trabalhou de maneira clara para comunicar a harmonia entre os princípios católicos e as bases constitucionais do governo norte-americano”.2 Ele citou a Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos no cabeçalho do primeiro número de seu boletim eclesiástico Catholic Miscellany [Miscelânea Católica]. E a Carta Pastoral de 1837 dos líderes católicos norte-americanos, escrita por John England, fez uma declaração notável: “Nós não reconhecemos qualquer supremacia ou poder civil ou político sobre nós por parte de qualquer potentado estrangeiro, mesmo que esse potentado seja o chefe-geral de nossa igreja.”3 England tinha boas razões para desejar demonstrar ao público norte- americano que os católicos eram leais ao governo dos Estados Unidos e não ao papa. A imigração irlandesa para os Estados Unidos já estava começando na década de 1830. Devido ao fato de que a maioria desses imigrantes era formada por católicos, os protestantes se sentiram ameaçados, e logo se desenvolveu uma forte reação militante anticatólica. Por exemplo, os católicos construíram um convento de freiras ursulinas em Charlestown, Massachusetts, em 1817, com o propósito de educar meninas entre seis e catorze anos. Tudo correu bem por mais de 15 anos, mas em 1834 espalhou-se um boato de que as freiras estavam maltratando suas alunas, e, em 14 de agosto, uma turba queimou completamente o convento. As autoridades não intervieram. O bispo John England escreveu a afirmação citada no parágrafo anterior três anos após o incidente. Durante a segunda metade do século 19, a imigração católica proveniente da Europa alcançou grandes proporções: não só vinda da Irlanda, mas também da Alemanha, Polônia, Itália e partes católicas dos Bálcãs. Esse afluxo de católicos provocou um forte movimento “nativista” entre os protestantes, os quais criam que os católicos defendiam conceitos políticos que eram uma ameaça ao estilo de vida norte-americano. Novamente, vários líderes católicos fizeram o máximo para apresentar os católicos ao público como leais norte-americanos.4 O arcebispo John Ireland, da cidade de St. Paul, Minnesota, fez a seguinte declaração em 1884: Não há conflito algum entre a Igreja Católica e os Estados Unidos. Eu não poderia proferir uma sílaba sequer que caluniasse, ainda que remotamente, a igreja ou a República, e quando afirmo, como solenemente agora o faço, que os princípios da igreja estão em completa harmonia com os interesses da República, sei, no fundo de minha alma, que digo a verdade.5 Essas são declarações notáveis, devido ao fato de que, durante o século 19 e início do século 20, o papado condenou fortemente a forma democrática de governo, como vimos no capítulo 7. Ratificar a experiência norte-americana com a democracia foi uma das formas de os católicos tentarem apresentar a si mesmos e sua igreja como verdadeiramente norte-americanos durante os primeiros 150 anos da história da nação. Apoio às guerras norte-americanas Historicamente, os católicos também tentaram se apresentar como leais cidadãos dos Estados Unidos ao darem forte apoio aos esforços de guerra da nação. John Carroll deu entusiástico apoio ao lado norteamericano na Guerra da Independência, e durante a guerra de 1812 “foi inabalável em sua defesa da

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causa norte-americana”.6 O escritor católico Timothy Byrnes comentou: O primeiro bispo católico dos Estados Unidos entendeu, como também muitos de seus sucessores, que nada seria mais eficiente para demonstrar a lealdade dos católicos norte-americanos a seu país do que o entusiástico patriotismo por parte dos líderes da igreja em tempos de guerra.7 Durante a Guerra Civil, os líderes católicos do Norte apoiaram a causa do norte, e os líderes do Sul apoiaram a causa do Sul. Até a Guerra Hispano-Americana de 1898 teve forte apoio católico – apesar do fato de que a Espanha, contra a qual os Estados Unidos estavam lutando, era uma nação católica. Antes da guerra, o papa, temeroso das consequências da guerra para os católicos espanhóis, alistou a ajuda do arcebispo John Ireland, de Minnesota, para fazer a mediação entre os governos norteamericano e espanhol. Infelizmente os esforços de Ireland fracassaram, e irrompeu a hostilidade entre os dois países. Contudo, depois que a guerra começou, “na tradição de apoio católico aos esforços de guerra norte-americanos, Ireland declarou que era ‘a favor da guerra – a favor da bandeira dos Estados Unidos’”.8 Assim, os bispos norte-americanos publicaram uma carta pastoral em maio de 1898 que incluiu o seguinte parágrafo, expresso em fortes palavras: Qualquer que possam ter sido as opiniões individuais dos norte-americanos antes da declaração de guerra, agora não pode haver duas opiniões quanto ao dever de todo cidadão leal. [...] Nós, membros da Igreja Católica, somos verdadeiros norte-americanos, e como tais somos leais a nosso país e a nossa bandeira, e obedientes aos mais altos decretos e à suprema autoridade da nação.9 A Primeira Guerra Mundial trouxe aos católicos norte-americanos tanto problemas quanto uma oportunidade singular. O problema foi o medo da comunidade protestante dos Estados Unidos de que os católicos de origem alemã fossem norte-americanos desleais. A guerra proporcionou uma oportunidade para os católicos demonstrarem sua lealdade. E eles o fizeram. Os bispos deram seu pleno apoio à guerra, e os soldados norte-americanos católicos se portaram bravamente em favor de sua nação no campo de batalha. A igreja foi um passo além e organizou um esforço nacional para apoiar a guerra. Em 1917, sob a liderança do cardeal Gibbons, os bispos estabeleceram o Conselho Nacional de Guerra Católico. O conselho capacitou os católicos norte-americanos a doarem fundos e dedicarem pessoas para prover cuidado espiritual e serviços de recreação aos que estavam servindo durante a guerra. O total apoio da igreja à guerra compensou. O anticatolicismo diminuiu significativamente após a Primeira Guerra Mundial. Timothy Byrnes comentou que, “durante a Segunda Guerra Mundial, novas alturas foram alcançadas na identificação do catolicismo com os objetivos de guerra norte-americanos”.10 O arcebispo Francis Spellman se distinguiu como capelão não oficial para as forças norte-americanas além-mar e serviu como representante pessoal do presidente Roosevelt junto ao Vaticano. Citando Byrnes novamente: Nada agradou mais a Spellman do que esta oportunidade de promover simultaneamente os interesses de sua igreja e os de sua nação, e de servir como uma personificação da compatibilidade entre os dois. Os sacrifícios dos católicos em geral em tempos de guerra ilustraram de tal forma essa compatibilidade que George Flynn argumentou que “o patriotismo dos católicos na grande cruzada [Segunda Guerra Mundial] seria tão brilhante que nunca mais ninguém ousaria questionar o norteamericanismo deles”.11 Assim, uma segunda forma em que muitos dentre os líderes católicos procuraram aquietar os temores anticatólicos dos protestantes norte-americanos foi dando irrestrito apoio a todas as guerras da nação. Uma terceira maneira foi protegendo seu povo através de ação política. Envolvimento político O grande número de imigrantes vindos da Europa durante a última metade do século 19 e as primeiras duas décadas do século 20 desafiou a liderança católica dos Estados Unidos de duas formas: primeiro, essas pessoas tiveram que fornecer apoio pastoral para esses vários grupos étnicos. E segundo, tiveram que defender seus membros contra o antagonismo nativista. Este último desafio foi tornado muito mais

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fácil pelo fato de que a maioria dos católicos imigrantes se congregou nas grandes cidades norteamericanas, especialmente Nova York, Boston e Chicago. Isso deu aos bispos católicos nessas cidades enorme poder político em nível local, e eles muitas vezes usaram esse poder eficientemente para proteger seus membros de ataques hostis. Quando os protestantes de Nova York ameaçaram fazer uma revolta contra os católicos durante a década de 1840, o bispo Hughes ameaçou a prefeitura da cidade, dizendo que se uma só igreja católica fosse danificada, seus membros incendiariam a cidade. Timothy Byrnes tirou a seguinte conclusão significativa: “Hughes entrou com os dois pés no processo político a fim de defender os interesses católicos que sentiu estarem sob ataque.”12 E, é claro, Hughes tinha todo o direito – e de fato a obrigação – de fazer tudo o que pudesse para proteger os membros de sua igreja. Várias décadas depois, Hughes desafiou a prática comum dos professores das escolas públicas da cidade de Nova York de ler cada dia para suas classes passagens da versão King James da Bíblia, que é protestante. Hughes afirmou que isso ofendia as sensibilidades dos católicos. Como os dirigentes das escolas recusaram-se a reconhecer isso, Hughes tentou conseguir com que o estado ajudasse financeiramente os católicos no estabelecimento de suas próprias escolas. Isso criou uma tempestade entre os protestantes, e Hughes formou sua própria chapa de candidatos para a Assembleia Legislativa do estado de Nova York e conclamou todos os católicos a votarem nela. Quando os candidatos do bispo perderam, ele ficou sem escolha, a não ser estabelecer seu próprio sistema de escolas confessionais sem o benefício do apoio estadual. Um incidente em Illinois em 1889 terminou muito melhor para os católicos. O Partido Republicano conseguiu aprovar um projeto de lei na Assembleia estipulando que a exigência de frequência compulsória à escola podia ser satisfeita apenas por alunos que frequentassem escolas aprovadas pela Secretaria de Educação local. Assim, se a comissão escolar de uma escola pública não aprovasse o currículo de uma escola católica, os alunos que frequentassem aquela escola seriam considerados não frequentadores. Os bispos de Illinois condenaram a lei como uma violação dos direitos dos católicos, e, na eleição de 1892, usaram seu voto para tirar os republicanos do poder. A lei foi logo revogada – como devia! O poder político dos católicos nas grandes áreas urbanas cresceu junto com o crescimento da população católica. A sociedade Tammany Hall, a máquina política democrata em Nova York, é um ótimo exemplo. Embora tenha sido muito caluniada, Tammany Hall forneceu aos imigrantes serviços sociais vitais. “Os políticos católicos compreenderam que seu povo estava preocupado com empregos, com a remoção do lixo, com moradia e com centenas de outros assuntos, grandes e pequenos. Os políticos que organizavam as subdivisões políticas de uma cidade estavam, especialmente através dos líderes de sua zona eleitoral, em íntimo contato com as necessidades do povo.”13 Tammany Hall era controlada pelos católicos, o que dava aos líderes enorme poder político. Nas grandes cidades, tornou-se quase impossível para qualquer candidato a um cargo político ganhar as eleições sem a aprovação do bispo ou do arcebispo. Para resumir, durante quase duzentos anos após o estabelecimento dos Estados Unidos como nação independente, os católicos do país e seus líderes fizeram todos os esforços para ser vistos como leais cidadãos. Fizeram isso através de fortes afirmações de apoio ao sistema democrático norte-americano e a seus conflitos militares. O único desafio que os católicos fizeram ao governo durante esse período foi em nível local, onde protegeram seu próprio povo do preconceito anticatólico por parte da maioria protestante. Essa era uma política essencial, dado seu pequeno número nos primeiros anos da república e dada a hostilidade exibida contra os católicos durante o século 19, enquanto os imigrantes católicos chegavam em grande número ao país, vindos da Europa. Contudo, na metade do século 20 as circunstâncias já haviam mudado dramaticamente. Os esforços para serem vistos como norte-americanos leais finalmente deu resultado, tornando possível aos líderes católicos adotarem uma abordagem muito diferente em relação ao país e a seu governo. Esse será o tema do próximo capítulo.

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Citado em Timothy A. Byrnes, Catholic Bishops in American Politics (Princeton: Princeton University Press, 1991), p. 13. Peter Guilday, The Life and Times of John England (Nova York: America, 1927), v. 1, p. vii, viii; citado em ibid., p. 14. 3 Ibid., p. 15; ênfase acrescentada. 4 Nem todos os líderes católicos da época apoiavam essa posição liberal. Alguns achavam que a igreja devia se isolar da cultura norte2

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americana. 5 James H. Moynihan, The Life of Archbishop John Ireland (Nova York: Harper, 1953), p. 33, 34; citado em Byrnes, Catholic Bishops in American Politics, p. 15. 6 Byrnes, Catholic Bishops in American Politics, p. 13. 7 Ibid., p. 13. 8 Ibid., p. 22. 9 Frank Reuter, Catholic Influence on American Colonial Policies, 1898-1904 (Austin: University of Texas Press, 1967), p. 7; citado por George J. Marlin em The American Catholic Voter (South Bend: St. Augustine’s Press, 2004), p. 150. 10 Byrnes, Catholic Bishops in American Politics, p. 31. 11 Ibid., p. 30. 12 Ibid., p. 16. 13 Marlin, The American Catholic Voter, p. 147.

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m 1788, o papa Pio VI] enviou um emissário a Paris a fim de se encontrar com um diplomata da nova república norte-americana, os Estados Unidos, que para ali havia sido recentemente designado. O diplomata era Benjamin Franklin, e a solicitação do papa a ele era curta e simples: “Estaria bem para o presidente George Washington se o papa nomeasse um bispo na nova terra?” Franklin obedientemente consultou o presidente George Washington, e veio a resposta para que ele dissesse ao papa que este podia nomear qualquer bispo que quisesse para os Estados Unidos, uma vez que a revolução nas colônias era exatamente em função disso – a liberdade, inclusive a liberdade religiosa. O papa prontamente nomeou o frei jesuíta John Carrol como o primeiro bispo católico dos Estados Unidos.1

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Você pode imaginar o papa Bento XVI fazendo humildemente uma solicitação como essa para o atual presidente dos Estados Unidos? Mas foi assim naquela época. E ainda é hoje. Afirmei no capítulo 10 que bem depois do início do século 20 os protestantes conservadores dos Estados Unidos ainda eram fortes defensores da separação entre igreja e Estado. Também estavam suficientemente temerosos em relação a qualquer comprometimento desse princípio por parte dos católicos para exigir que John F. Kennedy fizesse um voto favorecendo a separação entre a igreja e o Estado antes que pudessem apoiá-lo na eleição presidencial de 1960. Contudo, essa foi a última apreensão significativa dos protestantes com respeito às intenções católicas. A curta presidência de Kennedy apagou qualquer anticatolicismo que restasse por parte da maioria dos norte-americanos. Assim, 1960 foi um ano divisor de águas para os católicos dos Estados Unidos. Antes de 1960, uma importante função dos bispos católicos tinha sido proteger sua igreja e seus membros de sentimentos anticatólicos, e, durante o século 19, de incidentes isolados de franca perseguição. Desde 1960, contudo, o anticatolicismo virtualmente desapareceu, e houve apenas episódios ocasionais comumente tratados na mídia como violência de religiosos fanáticos. O voto de apoio de Kennedy à separação entre igreja e Estado e sua popularidade como presidente foram fatores importantes que contribuíram para a diminuição do anticatolicismo, mas vários outros fatores também estiveram envolvidos. Examinaremos dois: o crescimento demográfico católico e mudanças no Vaticano. Crescimento demográfico católico Durante o século 19 e primeira parte do século 20, os católicos dos Estados Unidos eram vistos principalmente como imigrantes, e eram em sua maior parte cidadãos da classe operária empregados nos escalões mais baixos da indústria, do governo, do comércio, etc. Entretanto, nos cem anos anteriores a 1960, os católicos tinham estado educando seus filhos em suas próprias escolas. Após a Segunda Guerra Mundial, essa educação começou a mostrar resultados, à medida que os católicos foram entrando nas profissões e posições um pouco mais elevadas do governo e da indústria. Além disso, antes de 1950, os católicos viviam mais nos guetos de cidades do interior; mas, após a Segunda Guerra Mundial, começaram a se mudar para os subúrbios, onde fizeram amizade com vizinhos protestantes da classe média e alta. Isso também quebrou preconceitos, à medida que os protestantes começaram a perceber que os católicos são pessoas normais. Em seu livro Catholic Bishops in American Politics [Os Bispos Católicos na Política Norte-Americana], Timothy Byrnes escreve: Os católicos deixaram a era da imigração para trás na década de 1960, no que [o bispo Andrew] Greeley denominou uma “notável história de sucesso”. Na verdade, eles emergiram de sua longa

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história de imigração como um dos setores da população mais bem remunerados e cultos dos Estados Unidos. “Se a igualdade com o desempenho nacional é um sinal de aculturação”, concluiu Greeley, “então os católicos norte-americanos estão agora plenamente aculturados à sociedade norte-americana”.2 Mudanças no Vaticano Alguns atos do Vaticano também contribuíram para a diminuição do preconceito contra os católicos. João XXIII foi extraordinariamente popular nos Estados Unidos durante seu curto pontificado (19581963), assim como João Paulo II o foi durante a última parte do século 20. Além disso, os vigorosos pronunciamentos do Concílio Vaticano II em apoio da liberdade religiosa do indivíduo deram fim à maioria dos temores que ainda restavam nos protestantes sobre os católicos e a separação entre igreja e Estado. Finalmente, a Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno, lançada no Concílio Vaticano II, revolucionou a maneira de a igreja encarar os governos democráticos. Durante 150 anos, os papas haviam atacado verbalmente as democracias e quase proibido os sacerdotes e bispos de se envolverem na política democrática. “O Vaticano havia repetidamente advertido os bispos norte-americanos a não envenenarem a igreja através do contato com a cultura do país.” No entanto, após o Concílio Vaticano II, “os bispos não mais deviam ver a cultura norte-americana como uma força contra a qual a igreja tinha de se defender. Ao contrário, deviam ver essa cultura como a própria arena na qual a igreja devia levar avante sua missão”.3 Durante duzentos anos antes disso, vários bispos norte-americanos haviam endossado a experiência democrática no país como compatível com o pensamento político católico. A Constituição Pastoral não chegou a esse ponto, mas “considerou a igreja como sendo desafiadora e crítica da cultura moderna”.4 A Constituição Pastoral incluiu uma lista de assuntos da cultura contemporânea nas quais encorajou a igreja a se concentrar – uma lista que Byrne diz que “parece um projeto esquematizado da agenda política dos líderes da igreja nos Estados Unidos nas décadas de 1970 e 1980”.5 Tudo isso se traduziu em outro benefício para os bispos: eles podiam dedicar mais de sua energia à atividade política sem ter que se preocupar com uma reação violenta por parte dos protestantes. Nem mesmo o escândalo de abuso sexual dos sacerdotes no final do século 20 e início do 21 provocou um preconceito anticatólico da maneira como o teria feito três ou quatro gerações antes. Atividade política nacional Na década de 1960, os bispos começaram a prestar atenção à política em nível nacional, bem como em nível local. Agora que não tinham mais de se preocupar com o perigo de que suas posições políticas gerassem intolerância contra os católicos, começaram a tomar uma posição mais crítica em relação ao governo nacional. Assim, enquanto no passado haviam colocado grande ênfase em se identificarem com a política do governo norte-americano, agora começaram a expressar seu próprio julgamento moral contra assuntos políticos que conflitavam com ensinos da igreja. E ninguém pareceu se importar. Como disse Byrnes, “a diminuição da segregação religiosa e da autoridade episcopal levou à diminuição do anticatolicismo e a uma oposição menos estridente às atividades políticas dos católicos e seu líderes clericais”.6 O resultado de tudo isso foi que, durante as duas décadas posteriores ao Concílio Vaticano II, os bispos norte-americanos publicaram várias cartas pastorais sobre tópicos como economia, moradia de baixa renda e trabalho rural, que tornavam claras as convicções morais e éticas da Igreja Católica nesses pontos. Em 1976, os bispos também prepararam um documento intitulado Political Responsability: Reflections on an Election Year [Responsabilidade Política: Reflexões sobre um Ano Eleitoral]. Esse documento afirmava a responsabilidade dos bispos de tomar uma posição firme sobre questões políticas atuais. Uma Resolution on Southeast Asia [Resolução sobre o Sudeste da Ásia], em 1971, expressou forte desacordo com o conflito no Vietnã. Em uma carta pastoral de 1983 intitulada The Challenge of Peace [O Desafio da Paz], os bispos tomaram firme posição contra o uso de armas nucleares. Essa carta foi uma resposta direta à plataforma de Ronald Reagan na eleição de 1980, que exigia uma série completamente nova de sistemas de armas nucleares. Um dos últimos parágrafos da carta declarava: As decisões sobre armas nucleares estão entre as questões morais mais urgentes de nossa época.

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[...] Bons fins (defender o próprio país, proteger a liberdade, etc.) não podem justificar meios imorais (o uso de armas que matam indiscriminadamente e ameaçam sociedades inteiras). Tememos que nosso mundo e nossa nação estejam tomando uma direção errada.7 Vimos no último capítulo que em todos os conflitos militares anteriores, da Guerra da Independência em 1776 à Segunda Guerra Mundial na década de 1940, os líderes católicos tomaram firme posição em apoio das guerras norte-americanas. Essa foi uma das formas em que eles apresentaram os católicos à nação como norte-americanos leais. O conflito no Vietnã foi a primeira guerra na qual os líderes católicos nos Estados Unidos se opuseram abertamente a uma guerra norte-americana, e o desafio à construção de armas nucleares norte-americanas foi a primeira vez em que eles confrontaram um procedimento militar importante. Nessa época, já não precisavam provar a lealdade católica. Aborto A iniciativa política que de longe foi a mais importante dos líderes católicos durante a última metade do século 20 e início do 21 envolveu o aborto. Antes da decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos em 1973 no caso Roe versus Wade, que afirmou o direito da mulher ao aborto, quase todos os atos políticos relacionados ao aborto aconteceram em nível estadual, e era nesse nível que os líderes católicos tinham de reagir. O caso Roe versus Wade trouxe o debate para o nível nacional. Coincidentemente, o Comitê de Defesa da Vida da Conferência Nacional dos Bispos Católicos se reuniu pela primeira vez no dia seguinte ao da decisão da corte sobre o aborto. O comitê condenou imediatamente a decisão da corte e insistiu para que fossem explorados todos os meios legais para revertê-la, inclusive a adição de uma emenda em defesa da vida à Constituição dos Estados Unidos. Os bispos também não pararam de fazer pronunciamentos oficiais. Em 1975, publicaram um Pastoral Plan for Pro-Life Activities [Plano Pastoral para Atividades de Defesa da Vida]. Esse ato “tem sido chamado de a mais ‘focada e agressiva liderança política’ já exercida pelos dirigentes católicos norteamericanos”.8 Um breve exame do plano revela que essa é uma avaliação válida. O Pastoral Plan pede ação por parte dos católicos em nível estadual, da diocese e da paróquia local. Alista as responsabilidades a serem cumpridas em cada um dos níveis, sendo o alvo final a reversão do caso Roe versus Wade pela Suprema Corte dos Estados Unidos e a adição de uma emenda em defesa da vida à Constituição do país. O Pastoral Plan declara: Líderes civis católicos que rejeitam ou ignoram o ensino da igreja sobre a santidade da vida humana o fazem com risco de seu próprio bem-estar. Nenhum oficial público, especialmente alguém que afirme ser um católico comprometido e fiel, pode responsavelmente advogar ou apoiar ativamente os ataques contra a vida humana inocente. O documento prossegue dizendo: As decisões sobre o aborto da Suprema Corte dos Estados Unidos precisam ser revertidas. [...] Nosso próprio compromisso não vacilará. Nossos esforços não cessarão. Falaremos em favor da santidade da vida em todos os lugares e momentos em que ela for ameaçada. A maioria dos norte-americanos não está ciente da extensão em que o Pastoral Plan e atividades semelhantes dos líderes católicos têm contribuído para as atividades antiaborto dos protestantes da direita cristã. Timothy Byrne o declarou da seguinte forma: Um relato adequado do papel político dos evangélicos e fundamentalistas no final da década de 1970 e início da de 1980 precisa incluir um reconhecimento do papel indireto mais importante que os líderes católicos desempenharam na estratégia da nova direita. Os bispos colocaram a base para a criação do movimento pró- família no final da década de 1970 através de seu papel na criação do movimento pró-vida durante a década precedente. Desde os primeiros estrondos da liberalização das leis do aborto na década de 1960, os bispos identificaram firmemente sua igreja e sua própria autoridade moral com a causa do direito à vida. Eles foram também a fonte dos primeiros fundos para o movimento do direito à vida. [...] Os bispos não

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concordavam com a nova direita em muitas questões sociais, mas quando a nova direita começou a moldar o movimento de direito à vida para novos propósitos políticos, ela estava lidando com um movimento cuja estrutura institucional original e cujos recursos financeiros haviam vindo diretamente da Conferência Nacional dos Bispos Católicos.9 Connie Paige escreve: A Igreja Católica Romana criou o movimento do direito à vida. Sem a igreja, o movimento não existiria como ele é hoje. A igreja forneceu a ele, desde o começo, a infraestrutura organizacional, a rede de comunicações, o apoio logístico, os recursos, a ideologia e as pessoas, bem como uma máquina política nacional já pronta que de outra forma seria impossível de duplicar. A igreja sempre contribuiu com grande quantia de dinheiro através de suas próprias organizações e através de doações para grupos independentes, mas relacionados à causa.10 Portanto, é correto dizer que o movimento do direito à vida nos Estados Unidos, que geralmente é considerado pelos norte-americanos como um movimento protestante fundamentalista, na verdade é, em grande parte, criação da Igreja Católica norte-americana e de seus bispos. Connie Paige estava certa. Sem o apoio da Igreja Católica em todos os níveis, o movimento pró-vida como o conhecemos hoje simplesmente não existiria. O eleitor católico Outro fator contribuiu para a influência política católica na política nacional durante o século 20: o crescente poder dos católicos como um bloco de eleitores. Durante a maior parte da história norteamericana, os líderes católicos não exerceram poder político significativo em nível nacional. Porém, através das urnas e dos votos católicos individuais, a igreja passou a ter influência significativa na política nacional já a partir da metade do século 19. À medida que a porcentagem de católicos nos Estados Unidos cresceu de menos de 1% em 1776 para pouco mais de 25% hoje, os líderes políticos norte-americanos de ambos os partidos se tornaram cada vez mais conscientes de que os católicos constituem um bloco eleitoral que vale a pena ser cultivado. Durante a primeira parte do século 20, a maioria esmagadora dos católicos dos Estados Unidos era formada por democratas e geralmente votava em candidatos democratas. As únicas exceções foram em 1952 e 1956, quando os católicos apoiaram o republicano Dwight Eisenhower. Em 1960, os católicos voltaram ao Partido Democrata, dando total apoio a John F. Kennedy, que se tornou o primeiro católico a obter a presidência dos Estados Unidos. Porém, um fator que foi pouco notado na época da eleição de 1964 indicava o início de uma tendência que continuaria até o fim do século. Na eleição daquele ano, os católicos brancos em algumas partes dos distritos nova-iorquinos do Queens, State Island, Brooklyn e Bronx, de fato, deram a Barry Goldwater sólidas maiorias.11 Em seu livro The American Catholic Voter [O Eleitor Católico Norte-Americano], George Marlin concluiu: “Democratas reformadores míopes não conseguiram ver que os católicos étnicos da classe operária nos anos 60 não mais se sentiam desejados no Partido Democrata.”12 Os católicos votaram fortemente em apoio a Ronald Reagan em 1980 e 1984, e Reagan recompensou os esforços deles de várias formas. A mais significativa foi o estabelecimento de relações diplomáticas entre o governo dos Estados Unidos e o Vaticano em 1984. Reagan também nomeou vários católicos para postos de gabinete e embaixadas, inclusive William Casey como chefe da CIA, Richard Allen e William Clark como conselheiros nacionais de segurança, Alexander Haig como secretário de Estado, Vernon Walters como embaixador itinerante para casos especiais, e William Wilson como o primeiro embaixador para o Vaticano.13 Eles estavam entre os membros-chave da equipe de política externa de Reagan. Essa equipe teve uma influência significativa na introdução de princípios éticos e morais católicos na política de governo norte-americana. A revista Time publicou que uma das conquistas da equipe em favor de sua igreja foi conseguir que a administração alterasse seu programa de ajuda externa para que esse se adequasse aos ensinos da igreja sobre controle de natalidade. [...] Os Estados Unidos deixaram de financiar, entre outras, duas das maiores organizações de planejamento familiar do mundo: a Federação Internacional de Paternidade Planejada e o Fundo das Nações Unidas para a População.14

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William Wilson, o embaixador do presidente para o Vaticano, declarou: “A política norte-americana foi mudada como resultado de o Vaticano não concordar com a nossa política.”15 E foram os católicos no governo que fizeram com que isso acontecesse em favor de sua igreja. Pense nisto: o governo dos Estados Unidos recuou diante da pressão católica e colocou em vigência um dogma moral católico! E eles alcançaram isso através dos esforços de membros da igreja que haviam sido nomeados para altas posições no governo. Cinquenta anos antes, esforços católicos semelhantes para influenciar uma política de governo teriam suscitado uma tempestade de protestos, e 150 anos antes poderiam ter suscitado até uma violenta perseguição. Mas, em meados da década de 1980, esses esforços passaram como uma suave ondulação na superfície da água. Mudança de partido Outra importante mudança ocorreu na década de 1980: os católicos começaram a mudar seu voto do Partido Democrata para o Partido Republicano. Entre 1980 e 1984, a proporção de católicos que se consideravam republicanos subiu de 17% para 26%.16 Obviamente, essa mudança de eleitorado não constituiu uma saída em massa do Partido Democrata, mas foi suficientemente significativa para a Organização Gallup concluir que “os católicos haviam se tornado uma igreja bipartidária” e “nenhum candidato, democrata ou republicano, pode tomar como certo o voto dos católicos”.17 Alguns capítulos atrás, vimos que as eleições intermediárias de 1994 deram aos republicanos fortes maiorias, tanto no Senado como na Câmara Federal, quebrando quase 60 anos de domínio democrata em ambas as casas do Congresso. Nessa eleição, os católicos apoiaram os candidatos republicanos por uma margem de 52% contra 48%. George H. W. Bush (Bush pai) tentou avidamente conseguir os votos dos católicos e os recompensou quando ganhou a eleição. Um mês após ter tomado posse, incluiu todos os cinco cardeais norteamericanos em reuniões realizadas na Casa Branca, e dois cardeais – Bernard Law, de Boston, e John O’Conner, de Nova York – passaram noites no local. Doug Wead, assistente especial do presidente, declarou que Bush “nomeou mais oficiais de gabinete católicos do que qualquer outro [presidente] da história norte-americana”.18 A eleição de 2000 foi tão apertada que a Suprema Corte dos Estados Unidos é que acabou decidindo-a a favor de George W. Bush. Uma das primeiras prioridades de George Bush nos meses seguintes foi cultivar o voto católico. Pouco depois de ter feito o juramento, ele se encontrou com responsáveis pelas Fundações de Caridade Católicas para discutir assuntos que estas tinham na área de dedução de impostos para organizações de caridade. Em 17 de março, Bush comemorou o Dia de São Patrício com oficiais católicos da República da Irlanda. No fim de março, convidou vários cardeais e bispos para irem à Casa Branca, onde elogiou o sistema educacional católico. Em abril, inaugurou o Centro Cultural João Paulo II em Washington, DC, e “falou de modo entusiasmado sobre a criança inocente que esperava para nascer”19 – um tema que ele tinha certeza que agradaria seus anfitriões. Algumas semanas mais tarde, Bush foi o orador principal nas cerimônias de formatura da Universidade de Notre Dame. George Marlin resumiu o apoio de Bush aos interesses católicos durante o primeiro mandato: Em seus quatro primeiros anos, o presidente Bush iniciou e promoveu programas e políticas que apelavam aos católicos. Ele reverteu as ordens executivas pró-aborto de Clinton, propôs iniciativas baseadas na fé, experiências com a isenção do imposto educacional e limites à pesquisa com célulastronco. Também assinou a lei proibindo o aborto com nascimento parcial.20 A eleição de 2004 Tudo isso foi compensado na eleição de 2004, que a sabedoria convencional dizia que Bush iria perder – mas não perdeu. E os católicos tiveram muito a ver com isso. As pesquisas de boca de urna em novembro de 2004 indicavam que 63% dos católicos votaram na eleição de 2004, em comparação com os 53% da população geral. E os católicos apoiaram George W. Bush contra John Kerry por uma margem de 52 a 47%, apesar do fato de Kerry ser católico. Dos que iam à missa uma vez por semana, 56% votaram em Bush. Cinquenta por cento dos que assistiam à missa com menos frequência também votaram em Bush.21 E no estado de Ohio, que foi fundamental para a decisão da eleição, Bush ganhou 53% dos votos dos católicos, contra 46% de Kerry.22 Tudo isso nos mostra o real significado da eleição de 2004. Afirmei no capítulo 13 que a eleição

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naquele ano estabeleceu a direita cristã como um bloco poderoso muito real na política norte-americana, que não podia mais ser ignorado ou tratado como uma aberração. Essa eleição também demonstrou o poder político dos católicos norte-americanos, que cooperaram com protestantes da direita cristã para colocar Bush outra vez no poder, apesar do fato de sua guerra do Iraque ser altamente impopular diante da maioria dos norte-americanos. Parte do problema para os democratas foi a posição de Kerry sobre o aborto e os direitos homossexuais, que o colocaram em desavença com a direita cristã e com os dirigentes de sua própria igreja. Esses líderes deixaram claro que preferiam ter um presidente protestante que apoiasse seus valores do que um presidente católico que não os apoiasse. Na verdade, vários bispos e arcebispos declararam publicamente que Kerry não precisava aparecer para tomar a comunhão (a santa ceia) em suas igrejas, porque isso lhe seria recusado. Um desses bispos, o arcebispo Raymond Burke de St. Louis, disse: “Qualquer legislador que esteja apoiando publicamente leis que favoreçam o aborto ou a eutanásia não precisa se apresentar para a santa comunhão.”23 Burke e seus colegas de liderança tinham o apoio do Vaticano. Por causa dos pontos de vista de Kerry sobre o aborto, o cardeal Theodore McCarrick, de Washington, DC, presidente da força-tarefa dos bispos sobre “Os Católicos na Vida Política”, pediu orientação ao Vaticano sobre como relacionar-se com Kerry e outros políticos que não apoiavam os princípios morais da igreja. O então cardeal Joseph Ratzinger respondeu que sacerdotes e bispos cujas congregações incluem políticos que apoiam o aborto ou a eutanásia devem dizer ao político que “ele não deve se apresentar para a santa comunhão até que ponha fim àquela situação objetiva de pecado, e devem adverti-lo de que, do contrário, a comunhão lhe será negada”.24 Assim, o cardeal Ratzinger, que é agora o papa Bento XVI, deu sua aprovação à posição do arcebispo Raymond Burke contra Kerry.25 Note o que Ratzinger falou: o político deve ser informado de que não apoiar os pontos de vista da igreja sobre o aborto ou a eutanásia é um pecado. Na teologia cristã, tanto protestante quanto católica, o pecado impede a pessoa de receber a vida eterna. Em 2002, o Vaticano lançou uma “Nota Doutrinária sobre Algumas Perguntas Relativas à Participação de Católicos na Vida Política”. A introdução dessa “Nota Doutrinária” afirma que ela é “dirigida a bispos da Igreja Católica e, de maneira especial, a políticos católicos e a todos os membros leigos dentre os fiéis que forem chamados a participar na vida política das sociedades democráticas”.26 Ela declara também: “Uma consciência cristã [leia-se: católica] bem formada não permite que alguém vote em um programa político ou uma lei individual que contradiga os assuntos fundamentais de fé e moral.”27 Em outras palavras, os legisladores católicos precisam falar e votar de acordo com os ensinos da igreja. A “Nota Doutrinária” continua dizendo: João Paulo II, continuando o constante ensino da igreja, reiterou muitas vezes que aqueles que estão diretamente envolvidos em um corpo legislativo têm “uma séria e clara obrigação de se opor” a qualquer lei que ataque a vida humana. Para eles, como para todo católico, é impossível promover tais leis ou votar a favor delas.28 Em 28 de fevereiro de 2006, 55 dos 73 membros da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos disseram aos principais bispos norte-americanos que “a primazia de sua consciência” os levou a apoiar os direitos ao aborto, e perguntaram aos bispos se não seria possível que a igreja lhes desse a liberdade de votar de acordo com sua consciência, apesar dos ensinos da igreja em contrário. A resposta, dada em 10 de março, foi um firme não.29 Vamos revisar o que comentei nos parágrafos anteriores: • O bispo Burke, com o apoio do Vaticano, disse que negaria a comunhão a John Kerry porque sua posição sobre o aborto contradizia a moralidade católica. • O cardeal Ratzinger (que se tornaria o papa Bento XVI) disse aos bispos católicos dos Estados Unidos que um político que deixe de votar em harmonia com a posição da igreja sobre o aborto e a eutanásia está pecando. • A “Nota Doutrinária sobre [...] Católicos na Vida Política”, publicada pelo Vaticano em 2002, declara que uma boa consciência católica não pode votar em leis que contradigam “assuntos fundamentais de fé e moral” – isto é, da fé e moral católicas. • João Paulo II disse que “é impossível” para os legisladores católicos promover ou votar em

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“qualquer lei que ataque a vida humana”. Ele quis dizer, é claro, qualquer lei que ataque a vida humana como a moralidade católica a define.30 • Quando 55 legisladores católicos pediram a seus bispos permissão para votarem contra o ensino católico no Congresso Norte-Americano, a resposta foi um direto e inequívoco não! Minha pergunta é esta: Que direito têm os legisladores de consultar os líderes de sua igreja e lhes pedir permissão para votar de determinada forma? Orientação? Sim, sem dúvida. Mas permissão? Em cada caso, os líderes católicos disseram a esses legisladores que, em seus deveres oficiais de governo, eles eram obrigados por sua igreja a votar em harmonia com os ensinos dela sobre determinados assuntos. O bispo Burke chegou ao ponto de dizer que recusaria a comunhão a um político que ousasse expressar opiniões e dar seu voto de maneira contrária aos ensinos da igreja. Na década de 1950 e talvez até na de 1960, uma declaração como essa teria causado uma tempestade de protestos por parte dos protestantes dos Estados Unidos. Mas não em 2004! Hoje, os protestantes da direita cristã teriam aplaudido. Talvez você concorde com os valores defendidos pelo papa João Paulo II e pelo bispo Burke. A questão não são os valores. A questão é se uma igreja deve negar – ou ameaçar negar – os sacramentos a membros que não apoiem seu ensino por meio de votos no Congresso dos Estados Unidos ou numa Assembleia Legislativa estadual. A questão é se uma igreja deve ordenar a seus membros que são juízes, legisladores, prefeitos, governadores e presidentes, que apoiem o ensino da igreja em suas decisões legislativas e judiciais, e se ela deve se recusar a dar-lhes permissão para participar da vida da igreja caso não concordem em fazê-lo. A questão é se uma igreja deve pressionar os legisladores a votar de certa forma dizendo-lhes que o voto “errado” é um pecado. De volta à Idade Média Mil anos atrás, o papa Gregório VII excomungou o rei Henrique IV, da Alemanha, quando o rei desafiou o papa com respeito à nomeação do bispo de Milão. O rei atravessou os Alpes no meio do inverno e ficou em pé na neve por três dias para pedir o perdão do papa a fim de que ele pudesse ser reinstalado no trono. Naturalmente, condenamos o ato do papa como um exercício de autoridade espiritual totalmente desapropriado a fim de alcançar um fim político. É um exemplo clássico de dominação do Estado pela igreja durante o período medieval. Contudo, o mesmo princípio da relação do poder espiritual para com o poder político está acontecendo diante dos nossos olhos no século 21, nos Estados Unidos, e achamos isso normal. É totalmente apropriado para qualquer igreja educar seus membros quanto aos princípios morais que ela defende. Também é apropriado para a igreja encorajar seus membros que estão num cargo político a apoiar os ensinos morais da igreja com sua voz e voto legislativos. Porém, é totalmente inapropriado para uma corporação religiosa controlar seus membros que estão em cargos políticos pela censura, negação dos sacramentos ou excomunhão desses membros que falam e votam de maneira contrária ao ensino da igreja. Foi isso que Gregório VII fez a Henrique IV mil anos atrás, e é o que líderes católicos estão fazendo nos Estados Unidos. Mas é tão impróprio hoje usar o poder espiritual para forçar um resultado político como o era então. Os protestantes do século 19 estavam profundamente preocupados com a possibilidade de que os governantes e legisladores católicos pudessem introduzir a doutrina da igreja na lei norte-americana. Preocupavam-se de que o papa, como chefe de um governo, usasse seu poder espiritual para controlar o governo dos Estados Unidos. Essa preocupação era legítima, apesar do lamentável preconceito anticatólico e, em alguns casos, da aberta perseguição aos católicos à qual isso levou. Em 1960, John F. Kennedy disse a um grupo de ministros protestantes conservadores em Houston, Texas, que ele cria “em um país [...] onde nenhum oficial público solicite ou aceite instruções sobre política pública do papa, do Concílio Nacional de Igrejas ou qualquer outra fonte eclesiástica”.31 Porém, hoje, aquilo que os protestantes mais temiam durante o século 19 e princípio do século 20, tornou-se realidade, e muito poucos deles se importam. Na verdade, muitos aplaudem! Agora, considere isto também: a população católica dos Estados Unidos continua a explodir através da imigração, hoje em dia, não vinda da Europa, mas do México, da América Central e do Caribe. À medida que continua a aumentar a porcentagem da população católica norte-americana, o que inevitavelmente irá acontecer, que tipo de pressão os líderes católicos poderão exercer sobre a política da nação e seus políticos no futuro? E até que ponto os futuros juízes da Suprema Corte interpretarão a Constituição dos Estados Unidos em harmonia com os princípios católicos de moralidade e da relação

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igreja-Estado católicos, em vez de com os princípios de separação entre essas duas instituições? A igreja católica nos Estados Unidos verdadeiramente tem dado uma meia-volta desde 1960. Seu poder político hoje é enorme, e ela está usando esse poder para desafiar o sistema político norteamericano como nunca antes. Os protestantes da direita cristã agora concordam com os católicos sobre várias questões-chave no que diz respeito à moralidade e à relação entre igreja e Estado. Não é demais dizer que, quando eles se unirem em determinada questão, os católicos e os protestantes da direita cristã terão influência para eleger a um cargo qualquer pessoa que desejarem, e de promulgar qualquer legislação que quiserem. Então, o que o futuro nos reserva? Os adventistas do sétimo dia têm uma sugestão.

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Jim Nicholson, “The United States and the Holy See: The Long Road, a Brief History of U.S.-Holy See Relations”; http://vatican.usembassy.it/text/policy/speeches/speech.asp?id=sp020007. 2 Timothy Byrne, Catholic Bishops in American History (Princeton: Princ​eton University Press, 1991), p. 36. As citações de Andrew Greeley são de Catholic Schools in a Declining Church (Kansas City, MO: Sheed and Ward, 1976), p. 74, 47. 3 Byrne, Catholic Bishops in American History, p. 40. 4 Ibid., p. 41. 5 Ibid. 6 Ibid., p. 37. 7 National Council of Catholic Bishops, “The Challenge of Peace: God’s Promise and Our Response – Part 2”, par. 332; http://www.osjspm.org/the_challenge_of_peace_2.aspx. 8 Byrne, Catholic Bishops in American History, p. 58. 9 Ibid., p. 90, 91; ênfase acrescentada. 10 Connie Paige, The Right to Lifers: Who They Are, How They Operate, Where They Get Their Money (Nova York: Summit Books, 1983), p. 51. 11 George J. Marlin, The American Catholic Voter (South Bend: St. Augustine Press, 2004), p. 59, 60. 12 Ibid., p. 268. 13 John W. Swomley, “One Nation Under God”; http://www.population-security.org/swom-98-05.htm. 14 “The U.S. and the Vatican on Birth Control”, Time, 24 de fevereiro de 1992, p. 35. 15 Ibid. 16 Marlin, The American Catholic Voter, p. 303. 17 Ibid., p. 306, 307. 18 Swomley, “One Nation Under God”. 19 Marlin, The American Catholic Voter, p. 333, 334. 20 Ibid., p. 334. 21 Center for Applied Research in the Apostolate, “Sixty-three Percent of Catholics Voted in the 2004 Presidential Election”, Georgetown University, 22 de novembro de 2004; http://www.georgetown.edu/research/cara/Press112204.pdf. 22 Joe Feuerherd, “Cardinal Ratzinger as Presidential Kingmaker”, National Catholic Repórter online; http://www.nationalcatholicreporter.org/washington/wnb042105.htm. 23 Rogers Cadenhead, “Bush Courts Catholics”, Workbench, http://www.cadenhead.org/workbench/news/2800/president-bush-courtscatholics. 24 Feuerherd, “Cardinal Ratzinger as Presidential Kingmaker”, ênfase acrescentada. 25 Ibid. 26 Congregação para a Defesa da Fé, “Doctrinal Note on Some Questions Regarding the Participation of Catholics in Political Life”; http://www.Vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20021124_politica_en.html. 27 Ibid. 28 Ibid. 29 Christian Century, 4 de abril de 2006, p. 17. 30 Os norte-americanos, tanto religiosos quanto seculares, defendem uma variedade de opiniões sobre aborto, eutanásia, pena de morte, pesquisa com células-tronco e contracepção. Porém, a despeito do que outros possam pensar, os bispos católicos norte-americanos não ficarão satisfeitos até que todos os seus princípios morais sejam parte da lei dos Estados Unidos, quer como legislação, decreto judicial ou emenda constitucional. 31 Citado em Marlin, The American Catholic Voter, p. 254.

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A Marca da Besta

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uando eu estudava no seminário teológico, pintava casas para custear as despesas. Pintar uma casa parece fácil à primeira vista: simplesmente pegar um pincel e um balde de tinta e pôr mãos à obra. Mas não é assim. Dependendo da condição da pintura anterior e do edifício em si, pode ser que 90% do trabalho do pintor seja preparar a superfície a ser pintada. É preciso raspar a velha tinta e lixar a superfície para que fique lisa. Os buracos precisam ser preenchidos, e as rachaduras, calafetadas. Se houver mofo nos beirais, é preciso eliminá-lo. Qualquer madeira descoberta tem de receber a primeira demão. Às vezes o edifício precisa de reparos, o que também precisa ser feito. Só quando esse trabalho preliminar é completado é que o pintor pode aplicar a tinta. Da mesma forma, você achará nosso estudo sobre a marca da besta muito mais fácil de entender se tomarmos tempo para fazer um exame preliminar de vários fatores que constituem o pano de fundo. Esse é o propósito do presente capítulo.

Q

Marca de qual besta? Apocalipse 13 apresenta duas bestas, uma que surge do mar e outra que surge da terra. A qual dessas bestas a marca pertence? Obviamente, antes de tentarmos identificar a marca da besta, precisamos saber de que besta estamos falando. Eis aqui uma boa pista: os versos 12 a 15 descrevem as ações realizadas pela besta da terra, enquanto que a palavra besta se refere à besta do mar. Veja: • “[A besta da terra] exerce toda a autoridade da primeira besta [...] [e] faz com que a Terra e os seus habitantes adorem a primeira besta” (v. 12, ênfase acrescentada). • “[A besta da terra] seduz os que habitam sobre a Terra por causa dos sinais que lhe foi dado executar diante da besta” (v. 14, ênfase acrescentada). • “Dizendo [a besta da terra] aos que habitam sobre a Terra que façam uma imagem à besta, àquela que, ferida à espada, sobreviveu” (v. 14, ênfase acrescentada). • “E lhe [a besta da terra] foi dado comunicar fôlego à imagem da besta” (v. 15, ênfase acrescentada). Nessas ocorrências da palavra besta, o Apocalipse a identifica pelas expressões “a primeira besta” e “a besta” “que, ferida à espada, sobreviveu” (v. 12, 14). Não há dúvida, portanto, sobre a besta mencionada no texto. Agora examinemos os versos 16 e 17, que novamente descrevem ações cujo sujeito é a besta da terra e também usam a palavra besta, dessa vez em conexão com a marca: “A todos, os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os livres e os escravos, [a besta da terra] faz que lhes seja dada certa marca sobre a mão direita ou sobre a fronte, para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tem a marca, o nome da besta ou o número do seu nome” (ênfase acrescentada). Como nos versos anteriores, as ações cujo sujeito é a besta da terra, no verso 16, claramente se referem à segunda besta. Contudo, a palavra besta no verso 17 não é identificada da mesma maneira como nos versos 12-15; portanto, poderia se referir tanto à besta do mar quanto à besta da terra. Mas três fatores ligam a marca à besta do mar: • Primeiro, uma vez que nos versos 12-15 as ações sempre se referem à besta da terra e a palavra besta sempre se refere à besta do mar, é natural presumir que o mesmo ocorra aqui. • Segundo, o verso 15 fala da “imagem da besta”, e o verso 17 fala de uma “marca [...] da besta”.

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No grego, as duas frases são quase idênticas e têm objetos idênticos (“besta”), o que sugere que ambas se referem à mesma entidade. • Terceiro, seria estranho que o texto dissesse que a besta da terra forçou todos a receberem uma marca da besta da terra. Se João quisesse dizer que a marca estava associada à besta da terra, pareceria mais apropriado que ele tivesse dito que a besta da terra forçou todos a receberem sua marca. É natural, portanto, concluir que a expressão “marca da besta” se refere à besta do mar, não à besta da terra. Isso, eu acredito, é como a maioria dos estudiosos da profecia a compreende. E definitivamente é como os adventistas entendem. Dois lados no tempo do fim Várias das parábolas de Jesus em Mateus nos fornecem vislumbres sobre o tempo do fim. Um tema comum perpassa essas parábolas: a população do mundo nessa época estará dividida apenas em duas classes – os justos e os ímpios. Jesus usou uma variedade de símbolos para representar os dois grupos. A lista abaixo apresenta alguns desses símbolos: • Trigo e joio (Mt 13:24-30, 36-43); • Peixes bons e peixes ruins (Mt 13:47-50); • Servo fiel e servo mau (Mt 24:45-51); • Virgens prudentes e néscias (Mt 25:1-13); • Servos fiéis e servo negligente (Mt 25:14-30); • Ovelhas e bodes (Mt 25:31-46). O Apocalipse também diz que durante o conflito final na Terra, o mundo estará dividido em duas classes de pessoas: os justos, que recebem o selo de Deus; e os ímpios, que recebem a marca da besta. Atualmente, há três tipos de pessoas no mundo: os que tomaram uma decisão definida ao lado de Deus, os que tomaram uma decisão definida contra Ele e os que ainda não tomaram nenhuma decisão. Apocalipse 7:1-4 descreve o selamento do povo de Deus. Nós os conhecemos como os 144 mil. Vemos esse grupo novamente em Apocalipse 14:1-5, onde são descritos como “os que não se macularam com mulheres, porque são castos. São eles os seguidores do Cordeiro por onde quer que vá [...] e não se achou mentira na sua boca; não têm mácula” (v. 4, 5). Por outro lado, os que receberem a marca da besta adorarão o dragão (Satanás), a besta do mar e sua imagem (Ap 13:4, 8, 14). E, se persistirem em sua rebelião contra Deus, sofrerão o derramamento de Sua ira sem mistura de misericórdia (Ap 14:9-11). Parece evidente que, a essa altura da história descrita em Apocalipse 13 e 14, os que estão em rebelião contra Deus ainda têm a oportunidade de se arrepender, aceitar Jesus e declarar sua lealdade a Seus mandamentos. Digo isso por causa de três anjos mencionados em Apocalipse 14. O primeiro anjo conclama os habitantes do mundo a adorar a Deus (v. 6, 7), e o terceiro anjo adverte sobre a vinda da ira de Deus (v. 9-11), que são as sete pragas (Ap 16). A mensagem do terceiro anjo está claramente chamando as pessoas a deixarem de adorar a besta e sua imagem para que não recebam a marca; portanto, nesse ponto ainda existe a oportunidade de fazê-lo. Qualquer que seja a marca, Deus deseja que as pessoas em toda parte evitem recebê-la. Condição espiritual Há um ponto extremamente importante sobre a marca da besta que precisamos compreender antes de tentar interpretá-la: ela simboliza uma profunda condição espiritual daqueles que a recebem. Afirmei no segundo capítulo deste livro que Satanás se rebelou contra Deus no próprio Céu e que ele envolveu a raça humana em sua rebelião quando foi atirado para a Terra. Assim, durante os últimos milênios nosso planeta tem sido o teatro no qual se desenrola o conflito entre o bem e o mal. A última metade do Apocalipse (capítulos 12-22) descreve os dias finais desse conflito. A linguagem é altamente simbólica e muito vívida. Mas, quando lemos cuidadosamente, podemos reconhecer que as questões durante o conflito final reunirão tudo o que a Bíblia tem a dizer sobre nosso relacionamento com Jesus: Estamos verdadeiramente convertidos? Temos fé nas promessas de Deus? Estamos dispostos a confiar em Jesus com o risco de

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nossa própria vida? Temos o compromisso de obedecer a Ele mesmo que isso signifique sofrer martírio? Os que permanecerem firmes ao lado de Deus durante o conflito final terão desenvolvido esse tipo de relação íntima com Jesus. O amor dessas pessoas por Ele será tão grande e a confiança nEle tão completa que, como os três hebreus, preferirão morrer a desobedecer a Deus. Satanás falhará em todos os seus esforços para forçá-los a desobedecer aos mandamentos de Deus. É por isso que o Apocalipse diz que o povo de Deus nos últimos dias “guardam os mandamentos de Deus” (Ap 12:17; 14:12). Um dos sentidos de Apocalipse 14:12 é que os verdadeiros cristãos do tempo do fim permanecerão “fiéis a Jesus” (NVI). “Fé em Jesus”, “fé de Jesus” e “fiéis a Jesus” são traduções corretas do texto grego. O povo de Deus que vive durante a crise final da Terra será tão dedicado a Ele que será fiel mesmo sob a mais intensa perseguição. Apocalipse 14:12 apresenta um vislumbre do caráter espiritual do povo de Deus nos últimos dias. Imediatamente após a terrível advertência do anjo contra a adoração da besta e sua imagem, ele descreve o povo de Deus: “Aqui está a perseverança dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus.” Várias características se destacam nesse verso. A obediência aos mandamentos de Deus aparece também em Apocalipse 12:17. O povo de Deus é descrito como tendo grande perseverança, e mantém a “fé em Jesus”. Uma conclusão que podemos extrair desse verso é que o povo de Deus que viver durante a crise final da Terra terá aprendido um equilíbrio correto entre fé e obras. Essas pessoas desejarão obedecer completamente a Deus, mas também reconhecerão que sua salvação depende inteiramente do sacrifício de Jesus por seus pecados e do fato de Ele lhe atribuir Sua justiça. Apocalipse 13:16 diz que os ímpios podem receber a marca da besta na testa ou na mão. Isto é, eles podem receber a marca da besta por convicção (na mente), ou podem recebê-la por questão de conveniência (na mão), cedendo à pressão espiritual da besta embora não creiam no discurso dela. Por outro lado, as pessoas podem receber o selo de Deus apenas na testa. Ninguém pode servir a Deus meramente por conveniência. A condição espiritual daqueles que recebem o selo de Deus é descrita ainda em Apocalipse 14:4, 5: “São estes os que não se macularam com mulheres, porque são castos. São eles os seguidores do Cordeiro por onde quer que vá. [...] e não se achou mentira na sua boca; não têm mácula”. Obviamente, essas pessoas desenvolveram um relacionamento muito íntimo com Jesus. Entretanto, é muito claro no Apocalipse que aqueles que receberem a marca da besta estarão em total rebelião contra Deus. Essa é também uma condição profundamente espiritual, mas no sentido negativo. Contudo, embora seja fácil supor que todos aqueles que se rebelarem contra Deus durante o conflito final serão ateus e outras pessoas secularizadas que O negam abertamente, a mais enganosa forma de rebelião contra Deus é a que passa como sendo uma forma de servi-Lo. Jesus disse que, quando Ele voltar, muitas pessoas irão Lhe dizer: “Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em Teu nome, e em Teu nome não expelimos demônios, e em Teu nome não fizemos muitos milagres? Então, lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de Mim, os que praticais a iniquidade” (Mt 7:22, 23). Por isso, sem dúvida muitos daqueles que receberão a marca da besta estarão se considerando como íntegros cristãos. A falsa adoração em Apocalipse 13 e 14 A adoração é outro indicativo da condição espiritual daqueles que recebem a marca da besta. A adoração é um dos temas centrais de Apocalipse 13 e 14, e são descritos dois tipos: a verdadeira adoração a Deus e uma falsa adoração à besta do mar e sua imagem. Antes de interpretarmos a marca da besta, será útil examinar o que o Apocalipse diz sobre essa falsa adoração. Os capítulos 13 e 14 mencionam várias vezes a falsa adoração. A primeira menção está em Apocalipse 13:4: “E adoraram o dragão porque deu a sua autoridade à besta; também adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem pode pelejar contra ela?” Esse verso fala de duas entidades que estarão recebendo adoração: o dragão e a besta. O dragão, obviamente, é Satanás (Ap 12:9). Sendo que a adoração descrita no verso 4 é dirigida em parte a ele, obviamente deve ser uma falsa forma de adoração. Apocalipse 13:8 confirma essa conclusão: Adorarão a besta “todos os que habitam sobre a Terra, aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo”. O “livro da vida” contém os nomes dos integrantes do verdadeiro povo de Deus (Ap 3:5). Assim, a adoração à besta é claramente uma falsa forma de adoração, porque somente aqueles cujos nomes não estão escritos no livro da vida participarão dela. O verdadeiro povo de Deus se recusará a

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adorar a besta. Também descobrimos um elo entre a falsa adoração e as atividades da besta da terra. Contudo, há uma diferença: enquanto a besta do mar aceita adoração, a besta da terra a impõe. Lemos sobre isso duas vezes na última metade de Apocalipse 13: “Exerce toda a autoridade da primeira besta na sua presença. Faz com que a Terra e os seus habitantes adorem a primeira besta, cuja ferida mortal fora curada” (v. 12). “E [...] foi dado [à besta da terra] comunicar fôlego à imagem da besta, para que não só a imagem falasse, como ainda fizesse morrer quantos não adorassem a imagem da besta” (v. 15). Observe que a besta da terra “faz com que a Terra e seus habitantes adorem a primeira besta”. Ela fazia “morrer quantos não adorassem a imagem da [primeira] besta”. De alguma forma, a besta da terra forçará os seres humanos a adorar a besta do mar. Durante o período medieval do papado, a igreja fazia as leis e o Estado as impunha. Às vezes a igreja até desculpava o aprisionamento e execução de “hereges” sob a alegação de que não era ela que punia esses indivíduos, mas o Estado (embora ela os entregasse ao Estado precisamente para serem punidos). Assim, durante o período medieval, o Estado era o braço de imposição da igreja. O Apocalipse prediz a mesma relação entre a igreja e o Estado para o tempo do fim: a besta da terra, que é uma entidade política, imporá a adoração à besta do mar, uma entidade religiosa. Porém, essa falsa adoração custará um preço terrível. Apocalipse 14:9-11 afirma: “Seguiu-se a estes outro anjo, o terceiro, dizendo, em grande voz: Se alguém adora a besta e a sua imagem e recebe a sua marca na fronte ou sobre a mão, também esse beberá do vinho da cólera de Deus, preparado, sem mistura, do cálice da Sua ira, e será atormentado com fogo e enxofre, diante dos santos anjos e na presença do Cordeiro. [...] Não têm descanso algum, nem de dia nem de noite, os adoradores da besta e da sua imagem e quem quer que receba a marca do seu nome.” A mensagem do terceiro anjo é a mais solene advertência, registrada em qualquer parte da Bíblia, que Deus já tenha feito a seres humanos. Portanto, o que quer que seja essa “marca da besta”, é melhor que você e eu nos informemos sobre ela e façamos tudo o que está ao nosso alcance para evitá-la.

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ários anos atrás, o professor Kevin Warwick andou até a porta de seu escritório na Universidade de Reading, em Reading, Inglaterra, e a porta se abriu automaticamente, as luzes de seu escritório se acenderam e uma voz disse: “Bem-vindo, professor Warwick!” Será que alguém, dentro do escritório do professor Warwick, viu-o se aproximar, abriu a porta, acendeu as luzes e pronunciou a saudação? Não. Será que uma câmera escondida captou seus movimentos e transmitiu a informação para um monitor em outra parte do edifício, fazendo com que um guarda de segurança acionasse um interruptor que abriu a porta e acendeu as luzes, e o guarda de segurança então o cumprimentou? Não. A história é ao mesmo tempo mais simples e mais complexa. Uma semana antes, o professor Warwick teve um microchip implantado debaixo da pele. Quando ele se aproximou do escritório, um scanner leu as informações armazenadas no microchip, e o scanner enviou a ordem que destrancou a porta, acendeu as luzes e acionou uma gravação digital que lhe deu as boas-vindas.1 Hoje em dia, milhões de cachorros, gatos, cavalos e exemplares bovinos têm microchips implantados debaixo da pele. Esses chips tornam possível que veterinários e agentes de controle animal identifiquem animais perdidos e roubados e os devolvam a seus legítimos donos. Algum dia talvez os pais possam mandar implantar esses chips em suas crianças, tornando possível identificá-las se alguma vez forem sequestradas. E os filhos adultos talvez possam monitorar as atividades de seus pais idosos: “Mamãe tomou seus remédios hoje de manhã? Papai escovou os dentes?” E se os pais caírem no chão ou saírem de casa e se perderem, o chip também poderia enviar um sinal para algum dispositivo que notificaria o filho adulto sobre o problema. E pode chegar o dia em que você não mais precise carregar um cartão de crédito na carteira ou na bolsa. Um scanner na loja irá ler as informações do chip que estiver implantado em alguma parte de seu corpo e autorizar a compra. O sistema seria tão seguro que você não precisaria nem assinar uma nota de compra! O nome dessa tecnologia é identificação por radiofrequência. Parece ótimo – e é. Contudo, os defensores da liberdade civil já estão expressando preocupação com o potencial para abuso que essa tecnologia apresenta. Suponha, por exemplo, que num esforço para controlar o terrorismo, o governo exigisse de todo cidadão que ele tivesse um número de identificação pessoal registrado num chip debaixo da pele. Teoricamente, o governo poderia rastrear você em quase qualquer lugar. E poderia monitorar e controlar todas as suas atividades econômicas. Isso seria ótimo como forma de rastrear terroristas e outros criminosos que desejam causar dano às pessoas. Não é tão bom assim para o resto de nós. Não gostamos da ideia de o governo saber tanto a nosso respeito! Desde que essa tecnologia se tornou exequível, alguns cristãos têm especulado que a marca da besta poderia ser um microchip implantado debaixo da pele. A ideia parece razoável numa leitura rápida do texto bíblico sobre a marca da besta: “A todos, os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os livres e os escravos, faz que lhes seja dada certa marca sobre a mão direita ou sobre a fronte, para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tem a marca, o nome da besta ou o número do seu nome” (Ap 13:16, 17). Dois elementos nos fazem lembrar de um microchip. Primeiro, a marca será colocada na testa ou na mão, sendo ambos locais lógicos para a implantação de microchips. Segundo, a marca, o que quer que seja ela, será usada para controlar o comportamento das pessoas, o que um microchip tornaria muito possível. Contudo, não creio que Deus estivesse predizendo microchips sob a pele quando deu a João a visão sobre a marca da besta. O que, então, é essa “marca da besta” que o Apocalipse apresenta com uma linguagem tão ameaçadora? Como posso evitar recebê-la?

V

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A verdadeira adoração em Apocalipse14 A maior parte dos textos sobre adoração em Apocalipse 13 e 14 diz respeito à falsa adoração. Das oito vezes que a palavra adoração ocorre nesses dois capítulos, sete são sobre a adoração ao dragão ou à besta e sua imagem, sendo que duas das sete são uma terrível advertência de Deus (Ap 14:9-11). Examinamos a falsa adoração no capítulo anterior. A oitava ocorrência da palavra adoração se encontra em Apocalipse 14:6 e 7, em que um anjo conclama o povo de Deus a adorá-Lo. Essa, obviamente, é a verdadeira adoração e, novamente, a questão é profundamente espiritual: “Vi outro anjo voando pelo meio do céu, tendo um evangelho eterno para pregar aos que se assentam sobre a terra, e a cada nação, e tribo, e língua, e povo, dizendo, em grande voz: Temei a Deus e dai-Lhe glória, pois é chegada a hora do Seu juízo; e adorai Aquele que fez o Céu, e a Terra, e o mar, e as fontes das águas”. O que é essa verdadeira adoração do verdadeiro Deus? Temos uma boa indicação na maneira em que o anjo menciona o verdadeiro Deus. Em realidade, ele não diz: “Adorai a Deus.” Ele diz: “Adorai Aquele que fez o Céu, e a Terra, e o mar, e as fontes das águas.” Portanto, o anjo está chamando os seres humanos em toda parte a adorarem a Deus como o Criador. Qualquer interpretação do Apocalipse precisa levar em consideração que literalmente centenas de alusões ao Antigo Testamento ocorrem ao longo do livro. Uma delas ocorre no chamado do anjo a adorar “Aquele que fez o Céu, e a Terra, e o mar, e as fontes das águas”, que é quase uma citação direta do quarto mandamento da lei de Deus (Êx 20:11). No quadro a seguir, o mandamento está no lado esquerdo, e as palavras do anjo no Apocalipse, no lado direito. Note especialmente as palavras em itálico:

Êxodo 20:11

Apocalipse 14:7

“Porque, em seis dias, fez o Senhor os Céus “Adorai Aquele que fez o Céu, e a e a Terra, o mar e tudo o que neles há” Terra, e o mar, e as fontes das águas” (ênfase acrescentada). (ênfase acrescentada). Aqui está o ponto importante: a adoração do verdadeiro Deus, a qual o anjo conclama no Apocalipse, está baseada no quarto mandamento, que é o mandamento do sábado. A partir dessa e de outras evidências, os adventistas concluem que o primeiro anjo de Apocalipse 14 está conclamando o mundo a guardar o sábado de Deus. Agora, associe isso ao fato de que o povo de Deus do tempo do fim será um povo que guarda os mandamentos: “Irou-se o dragão contra a mulher e foi pelejar com os restantes da sua descendência, os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus” (Ap 12:17, ênfase acrescentada). “Aqui está a perseverança dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus” (Ap 14:12, ênfase acrescentada). Esses dois textos nos dizem que o povo de Deus no tempo do fim guardará todos os Seus mandamentos. Contudo, isso não será uma mera observância legalista de regras e regulamentos. Apocalipse 14:12 declara que o povo de Deus nesse tempo guardará os mandamentos de Deus e também guardará a fé em Jesus. Mencionei no capítulo anterior que isso mostra que o povo de Deus no tempo do fim terá uma clara compreensão da justificação pela fé e da relação correta entre lei e graça. Essas pessoas terão aprendido como tornar a justificação pela fé real na experiência deles, conservando sua lealdade à lei de Deus e ao mesmo tempo reconhecendo que sua aceitação por Deus e sua salvação eterna estão fundamentadas na morte de Cristo na cruz e não na obediência deles. Os Dez Mandamentos e a adoração A primeira tábua dos Dez Mandamentos está relacionada à adoração. Apocalipse 13 alude ao segundo mandamento, que proíbe a adoração de imagens: a besta da terra faz uma imagem em honra à besta do mar e ordena aos habitantes da Terra que adorem a imagem. Os que se recusam a fazê-lo são ameaçados de morte (v. 14, 15). Isso é uma clara alusão à história descrita em Daniel 3, de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, que se recusam a adorar a imagem erigida pelo rei Nabucodonosor. O irado rei condenou os três à morte numa fornalha de fogo ardente. O Apocalipse aplica essa história

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aos verdadeiros cristãos do tempo do fim. Eles também serão informados de que devem adorar uma imagem, e serão ameaçados de morte se recusarem a fazê-lo. A obediência ao segundo mandamento é claramente um assunto fundamental em Apocalipse 13. Vimos que a obediência ao quarto mandamento também é um assunto fundamental no capítulo 14. Os versos 6 e 7 apresentam um “anjo voando no meio do céu” e conclamando o povo de Deus a adorá-Lo como o Criador – Aquele que fez “o Céu, a Terra, o mar e as fontes das águas”, como diz o quarto mandamento. Essa é a verdadeira adoração, em contraste com a falsa adoração da besta e sua imagem. Portanto, o que é essa falsa adoração? Se a verdadeira adoração no tempo do fim será caracterizada pela guarda do sábado do quarto mandamento, o que caracterizará seu oposto – ou seja, a adoração à besta e sua imagem? Por mais de 150 anos, os adventistas do sétimo dia têm dito que a falsa adoração durante a crise final na Terra será a observância do domingo, quando for imposta por lei. Uma das principais diferenças entre os cristãos atuais tem a ver com a escolha do dia de descanso. A maioria dos cristãos observa o primeiro dia da semana, o domingo, enquanto que os adventistas do sétimo dia e outros poucos observam o sétimo dia da semana, o sábado. Os adventistas argumentam que não há qualquer evidência bíblica de que Deus tenha mudado o dia de descanso do sábado para o primeiro dia da semana. Na verdade, cremos que Ele ainda pede a Seu povo que observe o sétimo dia.2 Ensinamos que a obediência a todos os mandamentos de Deus – uma das características de Seu povo nos últimos dias – requer que observemos o sábado de acordo com o mandamento. Cremos que a observância do domingo por parte da maioria dos cristãos, embora geralmente sincera, não satisfaz às especificações do quarto mandamento. É por isso que entendemos que a marca da besta seja a observância do domingo. Contudo, também insistimos que nenhum cristão hoje está recebendo a marca da besta por causa de sua observância do domingo. Somente quando o domingo como dia de adoração for imposto por lei, com penalidades para os que se recusarem a observá-lo, é que aqueles que continuarem a guardar o domingo receberão a marca da besta. Como eu disse no capítulo 9, os adventistas interpretam a besta da terra de Apocalipse 13 como os Estados Unidos da América, e é a besta da terra que impõe a marca da besta. Então, cremos que virá um momento em que o governo dos Estados Unidos promulgará leis estabelecendo o domingo como dia oficial de descanso e adoração. Eventualmente, esse país imporá duras penalidades àqueles que se recusarem a honrar o domingo como dia de descanso, e levará o mundo todo a essa falsa adoração. Pouco antes da volta de Cristo, aqueles que se recusarem a obedecer serão ameaçados de morte, e talvez alguns paguem com a vida por sua lealdade a Deus. Uma perseguição assim por parte do governo dos Estados Unidos parece inacreditável. Contudo, é o que nossa interpretação de Apocalipse 13 logicamente requer, pois a besta da terra ameaça de morte qualquer pessoa que se recusar a adorar da forma politicamente correta. Ellen White e a marca da besta Ellen White tinha bastante a dizer sobre a marca da besta. Ela advertiu que o mundo está se aproximando de uma terrível crise, ao fim da qual Cristo descerá à Terra e porá um fim à história das nações. A crise final que precede Sua volta dividirá o mundo todo em apenas duas classes: os que recebem o selo de Deus e os que recebem a marca da besta. E o que irá dividi-los, disse ela, será a controvérsia do sábado versus o domingo. Aqui estão duas das declarações mais sucintas e explícitas de Ellen White: A questão do sábado será o ponto controverso no grande conflito final em que o mundo inteiro será envolvido. [...] Cada instituição [sábado e domingo] traz o nome de seu autor, a marca indestrutível que revela sua autoridade.3 O sábado será a pedra de toque da lealdade; pois é o ponto da verdade especialmente controvertido. Quando sobrevier aos homens a prova final, será traçada a linha divisória entre os que servem a Deus e os que não O servem. Ao passo que a observância do sábado falso em conformidade com a lei do Estado, contrária ao quarto mandamento, será uma declaração de fidelidade ao poder que se acha em oposição a Deus. É a guarda do verdadeiro sábado, em obediência à lei divina, uma prova de lealdade para com o Criador. Ao passo que uma classe, aceitando o sinal de submissão aos poderes terrestres, recebe o sinal da besta, a outra, preferindo o

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sinal da obediência à autoridade divina, recebe o selo de Deus.4 Tudo isso, Ellen White disse, acontecerá através da legislação imposta pelo governo dos Estados Unidos que estabeleça o domingo como dia oficial de descanso e adoração: Quando nossa nação, em suas assembleias legislativas, promulgar leis que restrinjam a consciência das pessoas quanto ao seus privilégios religiosos, impondo a observância do domingo e exercendo poder opressor contra os que guardam o sábado do sétimo dia, a lei de Deus será, para todos os efeitos, invalidada em nosso país, e a apostasia nacional será seguida de ruína nacional.5 Os dignitários da igreja e do Estado se unirão para subornar, persuadir ou forçar todas as classes a honrar o domingo. A falta de autoridade divina será suprida por legislação opressiva. A corrupção política está destruindo o amor à justiça e a consideração para com a verdade; e mesmo na livre América do Norte, governantes e legisladores, a fim de conseguir o favor do público, cederão ao pedido popular de uma lei que imponha a observância do domingo.6 Quando as igrejas protestantes se unirem com o poder secular para amparar uma religião falsa, à qual se opuseram os seus antepassados, sofrendo com isso a mais terrível perseguição, quando o Estado usar seu poder para impor os decretos e apoiar as instituições da igreja – então a nação protestante dos Estados Unidos terá formado uma imagem ao papado, e haverá uma apostasia nacional que somente terminará em ruína nacional.7 Ellen White também disse que o próprio povo exigirá a aprovação de leis dominicais como forma de melhorar o nível moral da sociedade. Líderes religiosos irão alegar “que a corrupção que rapidamente se alastra é atribuível em grande parte à profanação do descanso dominical, e que a imposição da observância do domingo melhoraria grandemente a moral da sociedade”. Essa alegação, disse ela, será apresentada especialmente nos Estados Unidos.8 Ao longo dos setenta anos de serviço de Ellen White à Igreja Adventista do Sétimo Dia, ela nunca se desviou de sua advertência de que a crise final do mundo será caracterizada por um conflito relativo à lei de Deus, sendo que a questão primária será o mandamento do sábado. Marca da autoridade papal A marca da besta é um sinal ou marca de autoridade da besta do mar, que usa essa autoridade para impor sua adoração ao mundo. Os adventistas entendem que a besta do mar representa o papado; assim, a marca da besta será uma marca de autoridade do papado. Mas como devemos entender esse conceito? A resposta é muito simples. De acordo com a teologia católica romana, Jesus investiu Sua igreja de uma autoridade tão grande que a qualifica até a mudar a lei de Deus. Vemos uma indicação disso na profecia de Daniel 7. Expliquei no capítulo 3 por que os adventistas identificam o chifre pequeno como o papado medieval. O verso 25 diz que esse chifre cuidaria “em mudar os tempos e a lei” (ênfase acrescentada). Há muito os adventistas têm sustentado que a lei que a Igreja Católica mudou inclui especialmente o mandamento do sábado. Vários autores católicos têm afirmado que a mudança do dia de descanso do sábado para o domingo foi um ato legítimo de sua igreja e que, ao continuar a observância do domingo, os protestantes estão seguindo nos passos da Igreja Católica, que possui vários ensinos que eles vigorosamente rejeitam. A seguir estão vários exemplos: Cardeal James Gibbons: A instituição divina de um dia para descanso das ocupações comuns e para adoração religiosa, transferido pela autoridade da igreja do sábado, o último dia, para o domingo, o primeiro dia da semana, [...] é um dos sinais mais patentes de que somos um povo cristão.9 The Convert’s Cathecism of Catholic Doctrine [O Catecismo da Doutrina Católica para o Convertido]: P: Qual é o dia de descanso? R: O dia de descanso é o sábado.

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P: Por que observamos o domingo em vez do sábado? R: Observamos o domingo em vez do sábado porque a Igreja Católica transferiu a solenidade do sábado para o domingo.10 Plain Talk About the Protestantism of Today [Conversa Franca Sobre o Protestantismo de Hoje, livro de um autor católico]: Foi a Igreja Católica que, pela autoridade de Jesus Cristo, transferiu esse repouso para o domingo em lembrança da ressurreição de nosso Senhor. Assim, a observância do domingo pelos protestantes é uma homenagem que prestam, sem querer, à autoridade da Igreja [Católica].11 John A. O’Brien (professor de Teologia na Universidade de Notre Dame na metade do século 20): O terceiro mandamento [quarto mandamento em Êxodo 20 e para a maioria dos protestantes] é: “Lembra-te do dia de sábado para o santificar.” [...] A palavra “sábado” significa descanso, e é o sétimo dia da semana. Por que, então, os cristãos observam o domingo em vez do dia mencionado na Bíblia? [...] A igreja recebeu de seu Fundador, Jesus Cristo, autoridade para fazer a mudança. Ele solenemente conferiu à Sua igreja o poder de legislar, governar e administrar o poder das chaves dos Céus.12 Foi essa reivindicação dos próprios católicos que levou os adventistas a concluírem que a mudança do sábado para o domingo é uma marca da reivindicação de Roma à autoridade espiritual. Essa é uma das razões mais importantes pelas quais continuamos a afirmar que a marca da besta será a observância do domingo imposta durante a crise final do mundo. Mas é tão simplório! Algumas pessoas podem objetar que o dia de guarda é uma questão simplória demais para ser a terrível “marca da besta” do Apocalipse. Não necessariamente. O sábado é um dos Dez Mandamentos. Isso o torna muito importante! Além disso, os testes de obediência dados por Deus no passado sempre foram muito simples. Veja, por exemplo, o teste que Ele deu a nossos primeiros pais: “Não comam do fruto da árvore do bem e do mal” (veja Gn 2:17). Algumas pessoas podem argumentar que Deus certamente não teria rejeitado Adão e Eva por algo tão simples quanto comer um pedaço da fruta de determinada árvore. Mas se Deus tivesse dado a Adão e Eva algum teste muito difícil, como pular de um abismo, eles poderiam ter-se desculpado sob a alegação de que era um teste difícil demais. Foi a própria simplicidade do teste que o tornou tão eficiente. O teste para os três hebreus que enfrentaram o irritado Nabucodonosor também foi extremamente simples: apenas se curvem e adorem a imagem por alguns minutos. Os hebreus podiam ter-se abaixado para amarrar o cadarço de suas sandálias sem adorar a imagem. Mas a lealdade a Deus exigia que eles permanecessem de pé, eretos, para que todo mundo pudesse vê-los (veja Dn 3). Isso nos faz lembrar outra característica de testes semelhantes à marca da besta: eles geralmente envolvem um sinal exterior que tem grande visibilidade pública. Não houve dúvidas sobre a quem os três jovens escolheram obedecer. Toda a multidão – centenas e talvez milhares de pessoas – pôde vê-los de pé, eretos. Daniel podia ter deixado as janelas de sua casa fechadas quando foi ameaçado de morte por adorar ao Deus do Céu, mas abriu as janelas para que o mundo o visse de joelhos, cabeça curvada, voltado para Jerusalém. Durante os primeiros anos da história cristã, muitos dos mártires cristãos receberam um pouquinho de incenso e lhes foi ordenado que o atirassem no fogo em frente a um deus pagão, mas eles preferiram sacrificar a vida a desonrar o Deus do Céu. Todos esses testes tanto foram extremamente simples como grandemente visíveis. Por isso, a marca da besta também envolverá uma escolha que seja ao mesmo tempo muito simples e altamente visível – e a questão do sábado versus o domingo apresenta as duas características. É a própria simplicidade da questão e sua visibilidade que a torna uma candidata tão excelente para a marca da besta. Seria possível, é claro, guardar o sábado em casa, e ninguém notaria nada, assim como Daniel poderia ter mantido suas janelas fechadas e evitado a acusação de violar o decreto do rei. Mas os adventistas entendem que a questão será uma observância imposta do domingo, talvez envolvendo frequência à igreja, e aqueles que se recusarem a obedecer serão muito visíveis.

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Será que isso pode realmente acontecer? A compreensão adventista sobre marca da besta tem sido um dos ensinos mais controvertidos durante os últimos 150 anos. Mais de cem anos atrás, um de nossos críticos disse que um acontecimento como esse nos Estados Unidos “seria um milagre maior do que Deus fazer crescer um carvalho gigante num instante”.13 Outro crítico o chamou de “a mais extravagante” de nossas “extravagantes especulações proféticas”.14 Então, será que pode realmente acontecer? Muitos que conhecem o ensino adventista dizem “não”. E, de fato, parece incrível supor que o governo dos Estados Unidos algum dia aprove uma lei impondo a observância do domingo com penalidades severas para os desobedientes. Por exemplo, os Estados Unidos hoje se constituem uma nação muito secularizada, e uma lei dominical de qualquer tipo não seria bem recebida pelas pessoas secularizadas, muito menos uma lei que tivesse severas penalidades para os não conformistas. Entretanto, os adventistas continuam a crer que a marca da besta, como a entendemos, pode realmente acontecer – e, na verdade, vai acontecer. No mundo atual, essa ideia é muito mais crível do que era durante grande parte do século 20, como iremos ver.

1 Gail Russell Chaddock, “Microchip Under His Skin”, The Christian Science Monitor, 3 de setembro de 1998; http://www.csmonitor.com/1998/0903/090398.feat.feat.2.html. 2 Sobre a importância do sábado, veja o Apêndice B. O Apêndice C apresenta uma resposta adventista aos argumentos protestantes mais comuns para a observância do domingo. 3 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2005), v. 6, p. 352. 4 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001 [CD-Rom]), p. 605. 5 Ellen G. White, Eventos Finais, p. 133, 134. 6 Ellen G. White, O Grande Conflito, p. 592. 7 Ellen G. White, The Seventh-day Adventist Bible Commentary (Washington, DC: Review and Herald, 1957), v. 7, p. 976; parcialmente em White, Eventos Finais, p. 134. 8 Ellen G. White, O Grande Conflito, p. 587. 9 James Cardinal Gibbons, “The Claims of the Catholic Church in the Making of the Republic”; citado em John Gilmary Shea e outros, The Cross and the Flag, Our Church and Country (Nova York: The Catholic Historical League of America, 1899), p. 24, 25; ênfase acrescentada. 10 Peter Geirman, The Convert’s Catechism of Catholic Doctrine, edição de 1957 (St. Louis: B. Herder, 1930), p. 50. 11 Louis Gaston de Segur, Plain Talk About the Protestantism of To-day (Boston: Patrick Donahoe, 1868), p. 225; ênfase acrescentada. 12 Citado em William H. Shea, Daniel: A Readers Guide (Nampa: Pacific Press, 2005), p. 121, 122, ênfase acrescentada. 13 Theodore Nelson na introdução ao livro de Dudley M. Canright, Seventh-day Adventism Renounced (Nashville: Gospel Advocate Company, 1914), p. 23. 14 Canright, Seventh-day Adventism Renounced, p. 89.

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ichael Quitman passou trinta dias numa prisão na Geórgia, Estados Unidos, em 1878. As condições da prisão eram tão imundas que nesse curto tempo sua saúde se deteriorou, e um ano e meio mais tarde ele morreu. Sua ofensa? Havia trabalhado no domingo. Três homens, William Dortch, W. H. Parker e James Stem, estavam aprisionados no Tennessee em 1885, e passaram várias semanas trabalhando numa turma de prisioneiros acorrentados. Seu crime? Haviam violado a lei de observância do domingo de seu estado. Haviam trabalhado nesse dia. R. M. King foi preso no Tennessee em 1889 e novamente em 1890 por algo muito ofensivo: cultivar milho e capinar sua plantação de batatas – num domingo! Em 21 de maio de 1888, o senador H. W. Blair de New Hampshire apresentou um projeto de lei no Congresso dos Estados Unidos que, se tivesse sido aprovado, teria separado o domingo como dia nacional de adoração religiosa. Os opositores ao projeto salientaram que ele violava a proibição da Primeira Emenda contra o estabelecimento da religião, e com isso ele morreu. No ano seguinte, o senador deixou a linguagem religiosa fora do projeto de lei e reapresentou-o, mas este último projeto teve o mesmo destino do que ele havia apresentado no ano anterior. À primeira vista, esses episódios históricos triviais parecem pouco mais que ilustrações das crescentes dores dos Estados Unidos rumo ao estabelecimento da liberdade religiosa para todos. Porém, em vista da explicação da marca da besta que fiz no capítulo anterior, você percebe que toda a atividade relativa a uma lei dominical nacional entre 1888 e 1890 captou a atenção dos adventistas do sétimo dia. Naquela época, eles viram esses eventos como sinais da crise final e da breve volta de Jesus. A febre do fim dos tempos ardia no coração deles! Contudo, os sinais não perduraram. As leis dominicais permaneceram nos livros da maioria dos estados da União, mas lá pelo ano de 1900 seu cumprimento já havia deixado de ser imposto e, com uma exceção aqui e ali, permaneceram sem se fazer cumprir durante todo o século 20. Então, por que esperaríamos que tanto tempo depois essas leis fossem tiradas do papel, aumentadas e aplicadas? Além disso, o cenário proposto pelos adventistas requer não apenas leis dominicais estaduais, mas uma lei dominical nacional. Contudo, nos mais de duzentos anos desde a fundação da nação, o Congresso dos Estados Unidos nunca aprovou uma lei dominical nacional. Que razão há para esperar que agora irá fazê-lo?

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Separação entre igreja e Estado sob ataque Observe a razão pela qual, em 1888, o Congresso se recusou a aprovar o projeto de lei de H. W. Blair separando o domingo como dia nacional de descanso: uma lei assim teria violado a proibição da Primeira Emenda contra o estabelecimento de algo que tivesse cunho religioso. Assim, a separação entre igreja e Estado manteve esta proposta de lei fora da legislação do governo norte-americano. Creio que nunca poderá haver uma lei dominical nacional enquanto o Congresso dos Estados Unidos guiar sua legislação pelos princípios de separação entre igreja e Estado. A esta altura você provavelmente já entende uma das razões básicas pelas quais uma lei dominical nacional é uma expectativa realista hoje: como salientei no capítulo 14, o princípio da separação entre igreja e Estado está sendo ferozmente atacado pelos protestantes da direita cristã norte-americana. Considere as seguintes declarações, que citei naquele capítulo: Pat Robertson: “Não existe isso [separação entre Igreja e Estado] na Constituição. É uma mentira da esquerda, e não vamos mais tolerá-la.”1 D. James Kennedy: “Não há dúvida de que podemos testemunhar a queda, não só do muro de

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Berlim, mas do ainda mais diabólico ‘muro de separação’ que tem levado à secularização, impiedade, imoralidade e corrupção em nosso país.”2 W. A. Criswell: “Não existe algo como separação entre igreja e Estado. É meramente uma ficção imaginária dos incrédulos.”3 Francis Schaeffer: “Hoje a separação entre igreja e Estado nos Estados Unidos é usada para silenciar a igreja.”4 Essas são declarações extremamente significativas feitas por protestantes da direita cristã. Infelizmente, como afirmei no capítulo 14, eles não são os únicos a atacar a separação entre igreja e Estado. Considere novamente o seguinte: William Rehnquist: “O ‘muro de separação entre a igreja e o Estado’ é uma metáfora [... que] deve ser franca e explicitamente abandonada.”5 Tom DeLay: “Afirmar que nossos Pais Fundadores [os fundadores dos Estados Unidos] eram a favor da separação entre igreja e Estado é reescrever a história, ou é ser muito ignorante sobre ela.”6 Jay Alan Seculow: “Não há nenhum ‘muro’ de separação!”7 O ataque à separação entre igreja e Estado está acontecendo também no próprio Congresso dos Estados Unidos. As cortes continuam a bloquear o caminho para que a direita cristã alcance seu objetivo de uma teocracia cristã nos Estados Unidos. Por isso, vários legisladores simpáticos aos objetivos da direita cristã continuam a apresentar projetos de lei no Congresso dos Estados Unidos que restringiriam as cortes de julgarem casos relacionados a questões religiosas. Por exemplo, em 2005, Gresham Barrett, deputado federal pela Carolina do Sul, apresentou um projeto de lei chamado “Ato de Proteção à Oração Pública”. Esse projeto de lei declarava: A Suprema Corte não terá jurisdição para rever, por apelação, ordem de avocação (writ of certiorari8) ou outro meio, qualquer processo relacionado ao estabelecimento da religião que envolva uma entidade do governo federal ou de um governo estadual ou local.9 O projeto de lei do deputado Barrett também dizia que qualquer decisão de corte federal tomada antes ou depois da decretação da lei “não constitui um precedente obrigatório10 para a corte de qualquer estado, do Distrito de Colúmbia ou de qualquer comunidade, território ou possessão dos Estados Unidos”.11 Um site comentou que o projeto de lei de Barrett “na verdade tornaria a Primeira Emenda um artefato histórico sem qualquer força de lei”.12 Se o “Ato de Proteção à Oração Pública” se transformasse em lei, todas as decisões da Suprema Corte na história norte-americana que estivessem baseadas na Primeira Emenda se tornariam completamente nulas. Um projeto de lei semelhante que tem sido apresentado ao Congresso dos Estados Unidos todos os anos, desde 1994, é o chamado “Ato de Restauração Constitucional”. Esse projeto de lei, se aprovado, destituiria as cortes de todo direito legal de julgar casos relacionados à Primeira Emenda. Significativamente, o “Ato de Restauração Constitucional” foi escrito pelo presidente da Suprema Corte Estadual do Alabama, Roy Moore, que lutou sem sucesso para conservar um monumento dos Dez Mandamentos no edifício da Suprema Corte daquele estado.13 Em realidade, a Câmara dos Estados Unidos já afirmou algo semelhante. Na quarta-feira, 19 de julho de 2006, a Câmara aprovou um projeto que, se tivesse se tornado lei, teria impedido as cortes federais de julgar a constitucionalidade das palavras “sob Deus” no Juramento de Lealdade. A votação foi de 260 a 167, o que não é exatamente um resultado muito apertado.14 Felizmente, o Senado votou contra o projeto de lei. Se o Congresso dos Estados Unidos aprovasse algum desses projetos, transformando-os em leis, os não religiosos imediatamente questionariam a legislação, levando a luta até chegar à Suprema Corte. Estou praticamente certo de que a Corte, mesmo com Roberts e Alito na magistratura, quase certamente a rejeitariam. Mas a questão não é que precisamos temer uma revogação imediata da Primeira Emenda

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à Constituição dos Estados Unidos. A questão é que um segmento significativo da população norteamericana é abertamente hostil ao princípio da separação entre igreja e Estado. E se a oposição deles continuar e crescer, a separação entre igreja e Estado pode de fato um dia deixar de ser um princípio fundamental da legislação e jurisprudência norte-americana. Anos atrás, Ellen White predisse que chegará um dia em que os Estados Unidos irão “repudiar todos os princípios de sua Constituição, que fizeram deles um governo protestante e republicano”.15 O ataque à separação entre igreja e Estado por parte dos protestantes da direita cristã e seus esforços para impedir a Suprema Corte de julgar casos relacionados à Primeira Emenda são avanços alarmantes em direção ao cumprimento da predição de Ellen White. Em 1960, os líderes protestantes norte-americanos insistiram em que John F. Kennedy fizesse um voto apoiando uma separação entre igreja e Estado antes que eles o apoiassem em seu objetivo de chegar à presidência. Menos de 50 anos mais tarde, os líderes dessas mesmas denominações estão na vanguarda da oposição à separação entre igreja e Estado. Ao mesmo tempo, os católicos, que sempre favoreceram historicamente a união entre igreja e Estado e sempre se opuseram à separação entre os dois, estão rapidamente ganhando poder político nos Estados Unidos. Assim, é muito realista hoje em dia dizer que o histórico princípio norte-americano da separação entre igreja e Estado está, cada vez mais, em terreno perigoso. E isso está abrindo caminho para que sejam promulgadas leis religiosas nos Estados Unidos. Um projeto de lei que autorizasse uma lei dominical nacional dificilmente passaria no Congresso dos Estados Unidos hoje. Mas em vista do fato de que a principal barreira legal à legislação dominical nos Estados Unidos está sob ameaça, ele poderia passar facilmente num futuro não tão distante. Levando a nação de volta a Deus Durante a maior parte dos últimos duzentos anos, os valores judaico- cristãos da população norteamericana influenciaram fortemente suas leis. Em um ponto ou outro da história desse país, a expressão pública de vulgaridades já foi proibida, a pornografia já foi severamente regulamentada e os relacionamentos homossexuais já foram ilegais. Contudo, essas proibições foram em grande parte colocadas de lado nos últimos anos, e há um forte senso entre os protestantes da direita cristã de que os Estados Unidos estão numa derrocada moral. Nossos entretenimentos públicos estão cada vez mais cheios de violência, sexo e vulgaridade. A internet tem multiplicado exponencialmente a propagação da pornografia. O aborto sob demanda está matando milhões de bebês todos os anos. A homossexualidade está obtendo larga aceitação, e as uniões e casamentos homossexuais estão se tornando cada vez mais comuns. Ao mesmo tempo, a expressão religiosa está gradualmente sendo excluída das instituições do governo. No princípio da década de 1960, a oração e leitura da Bíblia patrocinadas pelos estados foram banidas das escolas públicas do país. Mais recentemente, a Suprema Corte decidiu contra a colocação dos Dez Mandamentos em propriedades do governo, e os não religiosos estão desafiando as palavras religiosas no Juramento de Lealdade e nas moedas norte-americanas. De repente, há um clamor nos Estados Unidos para levar o país “de volta a Deus”. Os protestantes da direita cristã estão exigindo uma “guerra cultural” que restaure a nação a sua herança cristã. Ênfase nos Dez Mandamentos Durante os últimos 150 anos, muitos protestantes se opuseram à prática adventista de observar o sétimo dia da semana, com o argumento de que “os Dez Mandamentos foram abolidos”. Ainda ouvimos essa objeção. Contudo, hoje está havendo, entre os protestantes conservadores do país, uma forte ênfase nos Dez Mandamentos como o fundamento do sistema legal norte-americano. Isso tem acontecido em grande parte por causa do declínio moral da nação. O resultado é que os Dez Mandamentos estão uma vez mais em voga. Escrevo este parágrafo na sexta-feira, 5 de maio de 2006. Daqui a dois dias será o Dia dos Dez Mandamentos, patrocinado pela Comissão dos Dez Mandamentos. O seguinte texto do site declara a razão para sua existência: Recentes decisões legais contra os Dez Mandamentos, bem como várias outras tendências perturbadoras que testemunhamos diariamente em nossa cultura, demonstram claramente que nosso país está se afastando dessa tradição. Essas ações têm ameaçado a própria essência e fundamento

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de nossa cultura e fé. Os Dez Mandamentos e todas as outras referências a Deus, que têm servido como o alicerce moral e a âncora de nosso grande país, estão sistematicamente sendo removidos de lugares públicos. As exibições públicas dos Dez Mandamentos e outros símbolos de nossa fé têm sido um poderoso testemunho visual do fato de que os Estados Unidos da América são “uma nação sob Deus”. Sua remoção dos lugares públicos mostra que aqueles que sustentam interesses humanistas seculares pretendem destruir a herança moral de nossa nação. Com os ataques realizados pelos humanistas seculares e com a iminente ameaça internacional do islamismo radical, as pessoas de fé se tornam a linha de defesa – este é o “Muro de Jerusalém”, e você é o atalaia que Deus colocou. Os que se importam com os valores tradicionais não podem se sentar passivamente e assistir à remoção dos próprios princípios que tornaram grande este país. Os Dez Mandamentos e o que eles representam constituem o âmago de todo código moral e precisam ser recolocados no âmago de nossa sociedade. Não devemos permitir que os oponentes dos valores tradicionais tenham êxito. A Comissão dos Dez Mandamentos foi fundada para se opor aos interesses secularizados e ajudar a restaurar os Dez Mandamentos e os valores judaico-cristãos a seu legítimo lugar em nossa sociedade.16 Os adventistas do sétimo dia têm corretamente dado forte apoio a esse interesse nos Dez Mandamentos. Afinal de contas, há 150 anos temos dado essa ênfase, mesmo diante de significativa oposição protestante. Assim, o chamado para uma restauração dos Dez Mandamentos como o fundamento da lei e da ordem social é inteiramente apropriada. Afinal de contas, Ellen White disse: “Em Sua lei Deus tornou conhecidos os princípios que sustentam toda verdadeira prosperidade, tanto das nações como dos indivíduos.”17 Certamente, uma volta aos Dez Mandamentos ajudaria a restaurar a ordem moral a uma nação que moralmente está cada vez mais fora de controle. E é precisamente por isso que a Comissão dos Dez Mandamentos foi organizada. A declaração em seu site diz: “Os Dez Mandamentos e o que eles representam constituem o âmago de todo código moral e precisam ser recolocados no âmago de nossa sociedade.” A reforma moral da sociedade Portanto, qual é o problema? O que tudo isso tem a ver com a legislação referente ao domingo? Leia cuidadosamente a seguinte frase: “A Comissão dos Dez Mandamentos foi fundada para se opor aos interesses secularizados e ajudar a restaurar os Dez Mandamentos e os valores judaico-cristãos a seu legítimo lugar em nossa sociedade.” Observe que coloquei em itálico a palavra sociedade. Há uma crescente ênfase entre os protestantes da direita cristã sobre a mudança da sociedade norte-americana e fazê-la voltar a suas raízes bíblicas. As seguintes citações ilustram essa verdade: Pat Robertson: “O plano de Deus é que Seu povo assuma o domínio. [...] O Senhor diz: ‘Deixarei que vocês redimam a sociedade.’”18 D. James Kennedy: “Nossa tarefa é recuperar os Estados Unidos para Cristo, qualquer que seja o custo. Como os representantes de Deus, devemos exercer domínio e influência piedosos sobre [...] todos os aspectos e instituições da sociedade humana.”19 Paul Weyrich: “Estamos falando sobre cristianizar os Estados Unidos. Devemos simplesmente propagar o evangelho num contexto político.”20 Francis Schaeffer: “O governo civil e, portanto, a lei, precisam estar baseados na lei de Deus dada na Bíblia. [...] O Estado deve ser administrado de acordo com os princípios da lei de Deus.”21 Randall Terry: “Nosso alvo é uma nação cristã. Temos um dever bíblico: somos chamados por Deus a conquistar este país.”22 O problema que vejo com essa ênfase em reformar a sociedade, conquistar os Estados Unidos e redimi-los para Cristo, é que ela pode facilmente levar à intolerância para com aqueles que discordam dessa ideia. Quando leio a história da queda da raça humana no Éden, fico impressionado com o fato de que Deus permitiu que Seus filhos Lhe desobedecessem se assim o escolhessem. Creio que os cristãos precisam conceder o mesmo privilégio hoje àqueles que rejeitam a Deus.

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A imoralidade era excessiva no Império Romano durante o 1º século de nossa era, incluindo a homossexualidade e o infanticídio (a matança de bebês indesejados). Mas em nenhuma parte do Novo Testamento os apóstolos sugeriram que os cristãos deviam tentar reformar a sociedade ou redimir o Império Romano, mudando suas leis de forma a refletir valores bíblicos. A igreja cristã primitiva não buscava a conversão da sociedade. Eles buscavam a conversão de indivíduos. Eventualmente os valores cristãos acabaram reformando a sociedade romana, mas só como resultado de trezentos anos de luta dos cristãos para converter indivíduos, um pagão de cada vez. O texto redigido pela Comissão dos Dez Mandamentos que citei anteriormente enfatiza a restauração da moralidade pública: “Os que se importam com os valores tradicionais não podem se sentar passivamente e assistir à remoção dos próprios princípios que tornaram grande este país. Os Dez Mandamentos e o que eles representam constituem o âmago de todo código moral e precisam ser recolocados no âmago de nossa sociedade.” Note a ênfase sobre a reforma moral da sociedade. Anos atrás, Ellen White disse que a reforma moral da sociedade norte-americana seria um dos argumentos apresentados pelos líderes protestantes para apoiarem uma lei dominical nacional. Ela disse que esses líderes religiosos iriam alegar que “a corrupção que rapidamente se alastra é atribuível em grande parte à profanação do descanso dominical, e que a imposição da observância do domingo melhoraria grandemente a moral da sociedade”.23 Alguns líderes da direita cristã já estão insistindo nesse argumento. Em seu livro Why the Ten Commandments Matter [Por Que os Dez Mandamentos Importam], D. James Kennedy escreveu um capítulo sobre cada um dos Dez Mandamentos, mostrando por que eles ainda são importantes no século 21. Seu capítulo sobre o quarto mandamento inclui uma seção na qual ele apresenta resumidamente os argumentos protestantes típicos em apoio à mudança do dia de descanso do sétimo para o primeiro dia da semana.24 Então diz: Os cristãos precisam compreender que observar o dia de descanso [domingo] na verdade cria um clima mais moral em nossa cultura. Promove uma conscientização de que Deus e Seus caminhos e leis são importantes para todos nós. Sem a moralidade pública, nossas leis seculares têm menos significado; o resultado é que a transgressão da lei aumenta, e nossa nação mergulha no crime, no medo, na desordem e na injustiça. A partir do testemunho da igreja primitiva, do testemunho de nossa vida desordenada e do testemunho de nossa sociedade que cambaleia à beira do colapso moral, vemos que a necessidade do dia de repouso é verdadeiramente urgente.25 É óbvio que os adventistas do sétimo dia apoiam a renovada ênfase nos Dez Mandamentos que está acontecendo nos Estados Unidos! Mas também argumentaremos que, por ignorar a santidade que Deus colocou no sétimo dia, a grande maioria dos cristãos, consciente ou inconscientemente, está na verdade transgredindo o quarto mandamento, que se encontra no centro dos dez. Estão transgredindo o quarto mandamento em nome da sua observância. O perigo é que, no interesse de melhorar a moralidade pública, o Congresso dos Estados Unidos possa legalizar o domingo como dia de descanso, contrariamente ao próprio quarto mandamento que ele deseja honrar. Assim, os adventistas veem aspectos tanto positivos quanto negativos nessa ênfase renovada sobre os Dez Mandamentos. Será que essa ênfase renovada nos Dez Mandamentos não poderia levar a uma legislação que imponha o domingo como dia oficial de descanso e adoração? Di es Domi ni Em 31 de maio de 1998, o papa João Paulo II publicou uma carta apostólica intitulada Dies Domini, que em latim quer dizer “dia do Senhor”. Nessa carta, ele insistiu com todos os católicos sobre a importância de santificar o domingo. O texto de João Paulo II tem muitas coisas que a recomendam. Por exemplo, ele salientou que uma correta teologia do sábado precisa levar em consideração que ele se originou na criação. “A fim de entender plenamente o significado do domingo”, ele disse, “precisamos reler a grande história da criação e aprofundar nossa compreensão da teologia do sábado.”26 Ele também salientou algo que os adventistas enfatizam há muito tempo: que “antes de decretar que algo seja feito, o mandamento [do sábado] insiste em que algo seja lembrado”.27 E finalmente, embora ele tenha aplicado o quarto mandamento ao domingo, o conselho de João Paulo

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II sobre como guardar o mandamento se assemelha às recomendações adventistas para a observância do sábado. Além da frequência aos serviços da igreja (para ele, a missa), o papa sugeriu que os cristãos se dediquem a obras de misericórdia e caridade: “Convidar para uma refeição pessoas que vivem sozinhas, visitar os doentes, proporcionar alimento para famílias necessitadas, passar algumas horas em serviço voluntário e atos de solidariedade.”28 Entretanto, a carta apostólica de João Paulo II também levanta algumas bandeiras vermelhas significativas. A respeito da lei dominical de Constantino, ele disse: “Os cristãos se regozijaram de ver assim removidos os obstáculos que até então tinham às vezes tornado a observância do dia do Senhor algo heroico. Eles podiam agora se dedicar à oração em comum sem impedimento.”29 E quanto a nossos próprios dias, ele disse: “Nesse assunto, meu predecessor, o papa Leão XIII, em sua encíclica Rerum Novarum, falou do descanso do domingo como um direito do trabalhador que o Estado precisa garantir.” Ele declarou também: “Nas circunstâncias particulares de nosso próprio tempo, os cristãos naturalmente se esforçarão para garantir que a legislação civil respeite seu dever de santificar o dia de guarda.”30 No capítulo 16, falei sobre a grande influência política que os líderes católicos norte-americanos exercem atualmente sobre o governo dos Estados Unidos. Essas pessoas estão determinadas a fazer com que sua compreensão da moralidade, incluindo o aborto, a eutanásia e a pesquisa com célulastronco, seja promulgada como lei nesse país. A esta altura, os líderes católicos norte-americanos não exigem uma legislação que proteja o domingo como dia de descanso religioso e adoração. Contudo, uma vez que esses outros princípios morais católicos tenham se tornado a lei do país – e estou convencido de que isso vai acontecer – será apenas um passo além o exigir a proteção legal do domingo. Isso é especialmente provável em vista da carta apostólica de João Paulo II, Dies Domini, que insta os governos a protegerem o domingo como dia de descanso e adoração. Também acho interessante que, em uma conferência ocorrida em 2005 e patrocinada pelo Conselho Judaico-Cristão para a Restauração Constitucional, o rabino Aryeh Spero “assumiu a atitude incomum de lutar por um dia de descanso cristão, dizendo à multidão: ‘Eu sugeriria que instituamos novamente o dia de descanso, o domingo, como era antes. Façam do dia de domingo um dia de fé.’”31 No contexto de uma conferência que exigia “Restauração Constitucional”, Spero estava claramente exigindo leis – talvez até uma emenda constitucional – que tornasse o domingo um dia de descanso religioso e adoração. Leis dominicais nos Estados Unidos Agora, no princípio do século 21, quando os protestantes da direita cristã e os católicos romanos trabalham juntos, eles têm poder político suficiente nos Estados Unidos para eleger quase qualquer pessoa que desejarem e promulgar quase qualquer lei que desejarem. Será que acabarão exigindo uma lei que imponha o domingo como dia de descanso religioso e adoração? No final do século 19, Ellen White fez uma declaração significativa. Ela disse que, “mesmo na livre América do Norte, governantes e legisladores, a fim de conseguir o favor do público, cederão ao pedido popular de uma lei que imponha a observância do domingo”.32 Essa declaração é ameaçadora à luz da pressão que os católicos e os protestantes da direita cristã já estão fazendo sobre os líderes do congresso norte-americano e os legisladores estaduais para promulgarem leis que imponham a moral cristã conservadora. Estou nas listas de e-mail de vários grupos conservadores, e constantemente recebo apelos para que pressione, nesta ou naquela questão, os deputados federais por meu estado. A internet tornou extremamente fácil fazer isso. E-mails insistindo com as pessoas para que entrem em contato com seus deputados federais geralmente incluem um link no qual as pessoas podem clicar e enviar mensagens preparadas para todos os senadores e/ou deputados federais eleitos por seu estado. A reforma da imigração foi um assunto de intenso debate público nos Estados Unidos durante o ano de 2006, e ilustra o poder que os norte-americanos – e mesmo os de outros países – têm hoje sobre os legisladores nacionais e estaduais. Os conservadores formam a base política do Partido Republicano, que em 2006 controlou a presidência e ambas as casas do Congresso. Contudo, existe também um imenso eleitorado hispânico nos Estados Unidos, que tanto republicanos quanto democratas procuram avidamente seduzir. Durante os dois primeiros trimestres de 2006, os conservadores norte-americanos fizeram tremenda pressão sobre seus senadores e deputados federais para que promulgassem leis de imigração severas. Eu sei, porque fui bombardeado com frenéticos e-mails me incitando – me suplicando, me pedindo – que contatasse os congressistas de meu estado em apoio à proteção de nossas

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fronteiras e a leis mais duras contra estrangeiros ilegais. Os pobres legisladores ficaram entre a cruz e a espada! Enquanto escrevo este capítulo, ainda resta saber em que direção o Congresso se inclinará, mas isso não vem ao caso. O que desejo que você observe é a tremenda pressão que ambos os lados colocam sobre o Congresso. A declaração de Ellen White, de que “mesmo na livre América do Norte, governantes e legisladores, a fim de conseguir o favor do público, cederão ao pedido popular de uma lei que imponha a observância do domingo”, assume novo significado à luz das exigências populares que estão sendo feitas de todos os lados, agora, sobre o Congresso, com respeito a outros assuntos. E então, será que o Congresso dos Estados Unidos em algum momento no futuro promulgará uma lei que imponha o domingo como dia de descanso religioso e adoração? Essa é uma pergunta sobre o futuro e, a partir de uma perspectiva estritamente secular, obviamente não posso responder “sim”. Porém, mesmo a partir de uma perspectiva secular, posso reconhecer que o fundamento cultural para uma lei como essa está se formando rapidamente. Como adventista do sétimo dia, não hesito em dizer que uma lei dominical nacional – que vimos predizendo há 150 anos e que tem parecido tão tola para tantas pessoas durante a maior parte desse tempo – agora é uma distinta possibilidade. Os adventistas estão seguros de que isso se tornará realidade em algum momento no futuro. Continue atento à leitura.

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De um discurso de Pat Robertson feito em novembro de 1993, citado em Anti-Defamation League, The Religious Right: The Assault on Tolerance and Pluralism in America (Nova York: Anti- Defamation League, 1994), p. 4. 2 Citado em “They Said It! Religious Right Leaders in Their Own Words”. 3 De uma entrevista da CBS de 6 de setembro de 1984, gravada um dia após ele ter dado a bênção na Convenção Nacional Republicana, citado em Anti-Defamation League, The Religious Right: The Assault on Tolerance and Pluralism in America, p. 4. 4 Francis A. Schaeffer, A Christian Manifesto (Westchester: Crossway, 1981), p. 36. 5 William Rehnquist em Wallace v. Jaffree, 1984. 6 Citado em Signswatch, inverno de 2001, p. 3. 7 Ministry Magazine (não a adventista), outono de 2004; citada por Rob Boston em “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”, Church and State, junho de 2006, p. 13. 8 O writ of certiorari é uma ordem escrita que uma Corte de apelação ou a Suprema Corte expede para uma Corte inferior no sentido de que lhe remeta um determinado caso a fim de ser revisto pela Corte superior, por se tratar de um possível erro legal. 9 RedSonja2000, “Dominionist Dream: Repeal the First Amendment”, 16 de dezembro de 2005, Talk to Action, http://www.talk2action.org/story/2005/12/l6/103532/64. 10 Binding precedent: decisão judicial de uma corte superior que constitui norma jurídica a ser seguida por todas as cortes inferiores em casos semelhantes (N. da T.). 11 RedSonja2000, “Dominionist Dream”. 12 Ibid. 13 Ibid. 14 Jim Abrams, “House Passes Bill Shielding Pledge of Allegiance”, The Idaho Statesman, 20 de julho de 2006, Main 15. 15 Ellen G. White, Testemunhos para a Igreja (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2004), v. 5, p. 451. 16 “The Ten Commandments Day”, http://www.tencommandmentsday.com. Nota: o conteúdo desse site muda ligeiramente a cada ano, por ocasião do Dia dos Dez Mandamentos. A citação que se encontra aqui é do Dia dos Dez Mandamentos de 2006. 17 Ellen G. White, Profetas e Reis (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001 [CD-Rom]), p. 500; ênfase acrescentada. 18 Comentário de Pat Robertson no programa de televisão Clube dos 700; citado em RedSonja2000, “Dominionist Dream”. 19 Citado em “Rise of the Religious Right in American Politics”, http://www.theocracywatch.org. 20 Signswatch, Winter 2001, p. 4; declaração de Paul Weyrich em agosto de 1980. 21 Francis A. Schaeffer, A Christian Manifesto (Westchester: Crossway, 1981), p. 100. Nessas frases, Schaeffer apresenta os conceitos do filósofo político do século 17, Samuel Rutherford (1600-1661), mas fica claro pelo contexto que ele partilha das ideias de Rutherford. 22 The News Sentinel, Fort Wayne, Indiana, 16 de agosto de 1993; citado em Anti-Defamation League, The Religious Right, p. 4. 23 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001 [CD-Rom]), p. 587; ênfase acrescentada. 24 Respondo a vários desses argumentos no Apêndice B. 25 D. James Kennedy, Why the Ten Commandments Matter (Nova York: Warner Faith, 2005), p. 81, 82 na cópia de leitura pré-publicação do editor. 26 João Paulo II, Carta Apostólica Dies Domini, 1:8; http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jpii_apl_05071998_dies-domini_en.html <http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jpii_apl_05071998_dies-domini_en.html>. 27 Ibid., 1:16. 28 Ibid., 4:69, 72. 29 Ibid., 4:64. 30 Ibid., 4:66, 67, ênfase acrescentada. 31 Citado por Rob Boston em “Judge Not”, Liberty, setembro-outubro de 2005, p. 23. 32 White, O Grande Conflito, p. 592.

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e você é como a maioria dos leitores deste livro, provavelmente não tem nenhuma ideia do que significam as palavras reconstrucionismo e dominionismo. Reconstrucionismo é o nome de um movimento ultraconservador iniciado por R. J. Rushdoony. Dominionismo é um conceito teológico no qual se baseia o reconstrucionismo. A maioria dos leitores deste livro provavelmente também nunca ouviu falar de R. J. Rushdoony. Alguns conhecem o nome de Francis A. Schaeffer. Schaeffer não era um reconstrucionista, mas era um dominionista em sua teologia. Ambos os homens tiveram um profundo impacto sobre o pensamento dos protestantes da direita cristã norte-americana. Começarei com Rushdoony.

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R. J. Rushdoony Rousas John Rushdoony nasceu em 25 de abril de 1916, na cidade de Nova York. Seus pais eram refugiados da Armênia. Na verdade, sua mãe estava grávida quando a família fugiu do genocídio na Armênia que estava sendo perpretado pelos turcos otomanos. Rushdoony nasceu pouco depois de ter chegado aos Estados Unidos. A família de Rushdoony, porém, não permaneceu em Nova York. Seu pai aceitou o compromisso de pastorear uma igreja presbiteriana armena em Kingsburg, Califórnia, e, portanto, Rushdoony cresceu na costa oeste. Graduou-se pela Universidade da Califórnia, em Berkley, onde se formou em Inglês e em Pedagogia. Também frequentou a Faculdade de Religião do Pacífico (também em Berkeley), pela qual se graduou em 1944. Tanto a Universidade da Califórnia quanto a Faculdade de Religião do Pacífico eram (e são) baluartes do liberalismo, mas Rushdoony não aceitou sua filosofia liberal. Aprendeu nelas o que significa o liberalismo, e o rejeitou. Após seus estudos em Teologia, Rushdoony entrou no ministério presbiteriano. Sua primeira designação foi para uma missão entre os chineses em São Francisco. Depois disso, ele aceitou convite para trabalhar com uma tribo de índios no norte de Nevada, onde passou oito anos. Rushdoony era um leitor infatigável. Leu um livro por dia, seis dias por semana, durante cerca de cinquenta anos! E não apenas lia. Fazia anotaçõs e produzia um índice pessoal na capa de trás de cada livro.1 No final da vida, ele já possuía mais de 33 mil livros, os quais guardava num espaçoso cômodo que era sua biblioteca particular. Rushdoony era também um autor prolífico. Seu primeiro livro, By What Standard? [Por Qual Padrão?], publicado em 1959, foi uma introdução aos conceitos do erudito holandês Cornelius Van Til, professor no Seminário Westminister da Filadélfia, Pensilvânia, cuja teologia influenciou Rushdoony fortemente. Nas duas décadas seguintes, Rushdoony escreveu mais de doze livros. Em 1965, mudou-se para Los Angeles, onde estabeleceu a Chalcedon Foundation [Fundação Calcedônia]. Em outubro de 1965, começou a escrever o Chalcedon Report [Relatório de Calcedônia], um boletim mensal que ao longo dos anos apresentou em detalhes a teologia e filosofia política do reconstrucionismo. O livro mais abrangente de Rushdoony foi Institutes of Biblical Law [Institutos da Lei Bíblica], de 900 páginas, que foi publicado em 1973. Ele consistia em grande parte de sermões que haviam sido pregados entre 1968 e 1972. Os Institutes de Rushdoony aplicam os princípios legais da Bíblia a condições do mundo moderno. Ele fundamentou sua filosofia da lei nos Dez Mandamentos, e depois fez aplicações das leis do Antigo Testamento, especialmente as do Pentateuco, ao mundo atual. Ele considerou que todas as leis do Antigo Testamento, exceto aquelas especificamente abolidas pelo Novo Testamento, estão em vigor hoje. Rushdoony faleceu em 8 de fevereiro de 2001. Os modernos críticos defensores do Estado laico da direita cristã são muito severos com Rushdoony. Eles o satirizam e falam dele e da Chalcedon Foundation nos termos mais ríspidos. É importante manter em mente, ao ler esses autores, que o evangelho não faz absolutamente nenhum sentido para eles. São

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tão prontos a satirizar você e eu, ou qualquer outro cristão evangélico por nossas crenças, como o estão para ridicularizar Rushdoony pelas dele. Embora eu partilhe da preocupação dos críticos sobre certos aspectos da filosofia de Rushdoony sobre igreja e Estado, primeiro gostaria de fazer um breve comentário sobre três áreas nas quais eu – e creio que a maioria dos adventistas – concordaria com ele. Pontos positivos de Rushdoony Primeiro, Rushdoony tinha um profundo interesse na educação cristã. Ele cria que a responsabilidade primária pela educação das crianças repousa sobre a família e a igreja, não sobre o Estado. Assim, ele era um forte defensor de as igrejas estabelecerem escolas cristãs, e também apoiava enfaticamente o ensino escolar doméstico (home schooling). Rushdoony compareceu como uma testemunha especialista (expert witness) em muitos casos de julgamento ao redor dos Estados Unidos em que a educação cristã estava sendo desafiada. Também compareceu a julgamentos que tratavam de educação escolar no lar e ajudou a estabelecer a legitimidade dessa forma de educação cristã. Assim, fez uma importante contribuição para o estabelecimento da legitimidade da educação cristã nos Estados Unidos. Os adventistas, por isso, têm uma dívida de gratidão para com Rousas John Rushdooony. A segunda área de acordo em Rushdoony e os adventistas está em sua compreensão do evangelho. A página da Chalcedon Foundation inclui um link sobre as crenças da instituição e, obviamente, de Rushdoony. A declaração de crenças da Fundação Calcedônia inclui um parágrafo sobre justificação que está em harmonia com a compreensão adventista. A declaração diz, em parte: Cremos que os pecadores são salvos unicamente com base na morte substitutiva e expiatória de Cristo e em Sua vida de cumprimento da lei – a obediência passiva e ativa de Cristo (2Co 5:21; 1Pe 2:24). Além disso, cremos que somente pela fé alguém pode se apropriar da justificação, ou seja, a aceitação legal do ser humano à vista de Deus como “inocente” (Rm 5:1; Ef 2:8-10). Sendo que a fé em si é um dom de Deus, nenhum tipo de guarda da lei ou de obras que uma pessoa possa realizar poderiam, de alguma forma, assegurar sua justificação ou aceitação perante Deus, ou contribuir para ela. Deus não coopera com o homem em salvá-lo. Deus salva pecadores; Ele não os ajuda a se salvarem. A guarda da lei e as boas obras são resultados essenciais da justificação; não são a base ou o meio de alguém se apropriar da justificação (1Co 6:9, 10; 1Jo 1:8). [...] O Deus que justifica também santifica, e a santificação significa obediência progressiva aos requisitos de Deus, Sua lei do Antigo e do Novo Testamentos.2 Finalmente, embora eu discorde completamente de alguns dos conceitos de Rushdoony sobre a lei, seu entendimento da relação entre lei e graça e do lugar da lei no plano da salvação é semelhante ao dos adventistas. Na introdução de seu livro The Institutes of Biblical Law, ele escreve: O propósito da graça não é colocar de lado a lei, mas cumprir a lei e capacitar o homem a guardar a lei. Se a lei era tão séria à vista de Deus que exigiria a morte de Jesus Cristo, o Filho único de Deus, a fim de fazer expiação pelo pecado do homem, parece estranho que Deus depois abandonasse a lei!3 Creio que os adventistas do sétimo dia podem afirmar completamente a ênfase de Rushdoony (e da Fundação Calcedônia) na educação cristã e a compreensão deles sobre a justificação e a relação entre lei e graça. E embora possamos discordar completamente de alguns outros aspectos dos ensinos deles, devemos evitar um ataque indiscriminado a eles. Contudo, outros aspectos me causam séria preocupação. Meu desacordo com Rushdoony Os críticos não cristãos de Rushdoony tendem a desprezá-lo. Eles o ridicularizam como um fundamentalista extravagante e tolo. Essa é uma atitude perigosa, porque Rushdoony não era nenhum tolo. Mesmo um exame casual de seu livro The Institutes of Biblical Law o revelam como um atento pensador cujos conceitos teológicos e políticos formavam um sistema de crenças muito lógico e coerente. Rushdoony era também um bom escritor. Expressava seus conceitos claramente. Seu estilo é muito fácil de se ler e compreender. A seguir, resumirei o sistema de crenças dele.

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Pós-milenarismo. Rushdoony cria que Cristo estabeleceu Seu reino eterno por ocasião de Sua ressurreição, e que o milênio descrito em Apocalipse 20 começou naquela época. Assim, ele entendeu que o milênio era figurativo da Era Cristã, e não uma contagem exata de mil anos. De acordo com esse cenário, a segunda vinda de Cristo ocorrerá em algum momento distante do futuro. Aperfeiçoamento da sociedade. Rushdoony cria que os cristãos conseguirão converter o mundo todo. Jesus virá a segunda vez quando o mundo todo tiver sido cristianizado e estiver preparado para Lhe dar as boas-vindas. E aqui está o ponto-chave: Rushdoony cria que os cristãos são responsáveis por aperfeiçoar a sociedade, inclusive seus governos civis, a fim de que Jesus possa retornar. Em seu livro The Institutes of Biblical Law, ele disse: “O ser humano é convocado a criar a sociedade que Deus requer.”4 Isso é semelhante à crença de Agostinho de que é responsabilidade da Igreja Católica cristianizar a sociedade, inclusive seus governos, para que Jesus possa voltar. Dominionismo. Rushdoony era um firme defensor do dominionismo, também conhecido como “teologia do domínio”. O dominionismo baseia-se na história do Éden em Gênesis. Quando Deus criou Adão e Eva, ordenou-lhes: “Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra” (Gn 1:28; ênfase acrescentada). Rushdoony cria que essa ordem de domínio ainda está em vigor hoje. Ele declara: A aliança de Deus com Adão exigia que ele exercesse domínio sobre a Terra e a subjugasse (Gn 1:26-28) sob a autoridade de Deus e de acordo com a lei (ou palavra) de Deus. Essa relação do ser humano para com Deus era uma aliança. [...] A restauração dessa relação de aliança era a obra de Cristo, Sua graça para Seu povo escolhido. O cumprimento dessa aliança é a grande comissão deles: subjugar todas as coisas e todas as nações a Cristo e à Sua lei-palavra. A ordem dada na criação foi precisamente o requisito de que o ser humano subjugasse a Terra e exercesse domínio sobre ela. Não há uma palavra na Bíblia indicando ou subentendendo que essa ordem tenha sido revogada.5 O propósito de Deus ao exigir que Adão exercesse domínio sobre a Terra permanece como Sua contínua palavra de aliança: o ser humano, criado à imagem de Deus, a quem foi ordenado que subjugasse a Terra e exercesse domínio sobre ela em nome de Deus, é novamente chamado a essa tarefa e privilégio por sua redenção e regeneração.6 Jesus disse a Seus discípulos: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” (Mt 28:19, 20). Rushdoony compreendia isso como uma repetição da ordem de domínio dada por Deus a Adão e Eva em Gênesis. Ele escreveu: “Os redimidos são novamente chamados ao propósito original do ser humano, de exercer domínio debaixo da autoridade de Deus.”7 Assim, no conceito de Rushdoony sobre o futuro, o cumprimento final da grande comissão de Cristo ocorrerá quando o mundo como um todo tiver se colocado sob o domínio de Cristo através dos esforços da igreja, e uma sociedade cristã tiver sido estabelecida em cada nação. Isso, ele argumentava, é o preparo pelo qual Jesus está ansiando para que possa voltar. A lei bíblica. Rushdoony não cria em um Estado laico, com suas leis que são baseadas na sabedoria humana. “Em qualquer cultura”, ele afirmou, “a fonte da lei é o deus dessa sociedade. Se a lei tem sua fonte na razão do homem, então a razão é o deus dessa sociedade.”8 Segundo Rushdoony, a razão também se torna a religião daquela sociedade. “Os fundamentos da lei são inescapavelmente religiosos”, ele declarou, pois “não existe nenhuma sociedade sem um fundamento religioso ou sem um sistema legal que codifica a moralidade de sua religião.”9 Assim, se a sabedoria humana é a religião de uma sociedade, então as leis daquela sociedade estarão baseadas na religião da sabedoria humana – isto é, humanismo e secularismo. Rushdoony não cria no governo norte-americano, com suas leis que são em grande parte baseadas em premissas seculares. Ele cria que as leis seculares têm sido “selvagens em [sua] hostilidade ao sistema de leis da Bíblia”.10 “A lei revelada [isto é, a lei bíblica]”, ele disse, “é necessidade e privilégio da sociedade cristã. É o único meio pelo qual o homem pode cumprir a ordem que lhe foi dada na criação, de exercer domínio debaixo da autoridade de Deus.”11 No novo mundo cristão de Rushdoony, a lei bíblica substituiria as leis seculares como o fundamento para o governo da sociedade. Ele escreveu: “A lei civil não pode ser separada da lei bíblica, pois a doutrina bíblica da lei inclui todas as leis: civis, eclesiásticas, sociais, familiares e todas as outras formas de lei.”12 A lei bíblica, ele concluiu, “é, portanto, a lei para o cristão e a sociedade cristã”.13 Ele ansiava

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pelo dia – embora não em sua época – em que o mundo inteiro estaria verdadeiramente convertido e as leis civis de todas as nações seriam baseadas na Bíblia. “Leis para casos específicos”. Rushdoony via os Dez Mandamentos como o fundamento para todas as leis bíblicas. Contudo, pelo fato de que esses mandamentos são breves, Deus expandiu seu significado por meio das leis levíticas e outras leis do Pentateuco, para que os israelitas pudessem entender tudo o que os Dez Mandamentos abrangiam. Rushdoony chamou essas leis adicionais de “leis para casos específicos”. Esse conceito é básico para a concepção de Rushdoony sobre a lei bíblica; portanto citarei um parágrafo de seu livro: Sem a lei para casos específicos, a lei de Deus logo seria reduzida a um escopo de significado extremamente limitado. Isso, é claro, foi precisamente o que aconteceu. Os que negam a presente validade das leis do Antigo Testamento fora os Dez Mandamentos têm como consequência uma definição muito limitada de roubo. Sua definição geralmente segue a lei civil de seu país, é humanista e não é radicalmente diferente das definições dadas pelos muçulmanos, budistas e humanistas. Mas, ao analisar as leis para casos específicos, que ilustram a lei “Não furtarás”, veremos quão amplo é seu significado.14 A “lei para casos específicos” à qual Rushdoony se referia era primariamente o restante das leis civis, religiosas, morais e de saúde que há no Pentateuco, embora ele também reconhecesse que “o conceito bíblico de lei é mais amplo que os códigos legais da formulação mosaica. O termo “lei” se aplica à palavra e instrução divina em sua totalidade”.15 Rushdoony considerava todas as leis bíblicas como sendo ainda aplicáveis durante a era cristã, a menos que, como as leis cerimoniais, elas tenham sido especificamente abolidas no Novo Testamento. Por exemplo, quanto ao mandamento levítico de que a mulher devia estar “impura” por vários dias após o nascimento de uma criança, Rushdoony disse: “Não há razão válida para a descontinuação desse rito.”16 Rushdoony também cria que, num mundo ideal, essas leis bíblicas para casos específicos seriam incluídas nas leis civis das nações. Dez capítulos nas quase 900 páginas de seu livro The Institutes of Biblical Law são dedicadas a uma análise de cada um dos Dez Mandamentos à luz das “leis para casos específicos” pertinentes a eles. Entre outras coisas, Rushdoony considerava as leis do Pentateuco que exigiam a pena de morte como aplicáveis ainda hoje. Ele disse: “Uma lei-ordem piedosa restauratá a pena de morte.”17 Ele chegou ao ponto de chamar a pena capital de um “aspecto do dever religioso do homem”.18 Três vezes em seus institutos da lei bíblica, ele alistou os crimes que requerem a pena de morte,19 e comentou sobre a maioria deles ao longo do livro.20 No modelo utópico de Rushdoony, o governo civil imporia todas essas leis bíblicas. Rushdoony ansiava pelo dia em que a maior parte da população do mundo seria formada por cristãos, e a lei bíblica seria a base para as leis civis de todas as nações do mundo. Ele cria que isso prepararia o mundo para a segunda vinda de Jesus. Análise de Rushdoony Em um exame cuidadoso, percebemos que algumas das principais premissas de Rushdoony são completamente falhas a partir de uma perspectiva bíblica, e constituem um coquetel para a perseguição daqueles que rejeitam suas ideias. O dominionismo e a Grande Comissão. Como mencionei anteriormente, Rushdoony cria que a ordem de Deus a Adão e Eva para que dominassem o mundo ainda está em vigor, e é novamente declarada à igreja por Cristo em Sua grande comissão. Contudo, ele não apresentou nenhuma base exegética para essa conclusão. Simplesmente a declarou. Essa é uma área na qual discordo completamente de Rushdoony. Não há nenhuma ligação exegética razoável entre o “domínio” que Deus ordenou em Gênesis 1 e Sua grande comissão em Mateus 28. Em Gênesis, Deus ordenou a Adão e Eva que dominassem “sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra” (v. 28) – em outras palavras, o reino animal. O domínio sobre as pessoas era papel de Deus. Em Mateus 28:19, Jesus ordenou a Seus seguidores que fizessem discípulos de todas as nações. Ele nem mesmo insinuou que eles devessem ter domínio sobre todas as nações.21 A “teoria do domínio” de Rushdoony enxerga no texto bíblico mais do que a linguagem do verso pode sustentar. Jesus repetiu Sua ordem aos discípulos em vários outros lugares do Novo Testamento, e em parte alguma Ele sequer deixou implícito que ela incluía o domínio sobre governos civis. Em Mateus 24:14, Ele disse: “E será

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pregado este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as nações.” Em Lucas 24:48, Ele disse a Seus discípulos que eles deviam ser “testemunhas destas coisas” – isto é, de Sua vida, morte e ressurreição. E, em Atos 1:8, Ele disse: “Sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até os confins da Terra” (NVI). A palavra-chave em todos esses textos é testemunho, não domínio. Esses textos simplesmente não apoiam a ideia de que Jesus pretendia que Seus seguidores tivessem domínio sobre as nações do mundo e seus governos civis. Um tempo do fim perfeito. Do ponto de vista otimista de Rushdoony, à medida que mais pessoas se converterem a Cristo, o mundo todo gradualmente se tornará cristão, inclusive seus governos civis. Esses governos estarão baseados em todas as leis bíblicas do Antigo e do Novo Testamentos, e esse será o sinal para que Jesus volte. Essa noção de um tempo do fim perfeito é refutada pelo ensino bíblico de que “nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis” (2Tm 3:1). Nos versos 1-5, Paulo apresenta uma longa lista dos pecados dos quais as pessoas nos últimos dias seriam culpadas. Jesus predisse que pouco antes de Sua volta os ensinos de falsos cristos e falsos profetas serão tão difundidos que até Seus próprios escolhidos estarão em perigo de sucumbir ao engano (Mt 24:23, 24). Pedro escreveu que “nos últimos dias, virão escarnecedores com os seus escárnios, andando segundo as próprias paixões” (2Pe 3:3). E de acordo com o Apocalipse, com exceção dos poucos remanescentes de Deus, o mundo todo seguirá a besta do mar em sua rebelião contra Deus (Ap 13:4, 8). É à malévola besta do mar que será dada “autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação” no tempo do fim, não ao povo de Deus (v. 7). O Novo Testamento deixa muito claro que o mundo, pouco antes da segunda vinda de Cristo, estará intensificando sua rebelião contra as leis de Deus, e não crescendo em sua lealdade a Ele. O dominionismo e a perseguição. Entretanto, minha principal preocupação com a “teoria do domínio” de Rushdoony é que ela é uma receita para a perseguição. Embora Rushdoony tenha reconhecido que a ordem de Cristo a Seus discípulos inclui a conversão dos indivíduos, em sua mente ela também inclui a conversão das sociedades e a moldagem de suas leis civis em conformidade com a lei bíblica. Foi precisamente esse ponto de vista da igreja que levou ao domínio católico da política europeia durante a Idade Média – incluindo seu funesto resultado, a horrível perseguição de “hereges” simplesmente porque eles discordavam da religião estatal. Creio que em qualquer momento que os cristãos trocarem a grande comissão de Cristo (o testemunho a todas as nações) para o domínio de todas as nações com leis bíblicas, mais cedo ou mais tarde o resultado será perseguição daqueles que discordam disso. A ordem que recebemos foi reformar indivíduos, não a sociedade. A sociedade será reformada nas culturas em que mais e mais indivíduos se tornarem cristãos. Mas a ordem permanecerá para sempre: a redenção de indivíduos, não da sociedade. A ideia de que os cristãos (e a igreja) devem reformar a sociedade é um caminho direto para a perseguição das pessoas, nessa sociedade, que escolherem não ser reformadas. Agora, aqui está um ponto que não podemos perder de vista: Rushdoony publicou seu livro The Institutes of Biblical Law em 1973, na época exata em que os conservadores políticos dos Estados Unidos estavam recrutando os conservadores religiosos para sua causa. Rushdoony forneceu a esses religiosos conservadores a justificação teórica e teológica que precisavam para se unir ao exército dos conservadores políticos. Isso não quer dizer que os cristãos conservadores de hoje adotam completamente a teologia de Rushdoony. A maioria dos cristãos da direita cristã de hoje são dispensacionalistas pré-milenaristas que creem num arrebatamento iminente e na breve volta de Cristo. Eles rejeitam o pós-milenarismo de Rushdoony. Além disso, a maioria dos líderes da direita cristã rejeita a aplicação extrema da lei bíblica que Rushdoony faz – especialmente sua exigência para a imposição de todas as leis levíticas que requerem a pena de morte. Ralph Reed, que durante grande parte da década de 1990 foi diretor executivo da Coalizão Cristã de Pat Robertson, criticou o reconstrucionismo de Rushdoony como “uma ideologia autoritária que ameaça as mais básicas liberdades civis de uma sociedade livre e democrática”.22 Porém, embora os cristãos da direita cristã, de maneira geral, rejeitem os pontos de vista mais extremos de Rushdoony, são muito atraídos para sua noção de que os governos devem ser cristãos e que as leis norte-americanas devem ser baseadas na Bíblia, tornando assim os Estados Unidos uma “nação cristã”. Francis Schaeffer

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Francis Schaeffer nasceu em 30 de janeiro de 1912 e cresceu em Germantown, na Pensilvânia. Como Rushdoony, era presbiteriano. Após sua graduação na faculdade, passou um ano estudando sob a tutela de Cornelius Van Til no Seminário Teológico de Westminster, na Filadélfia (Van Til, se você se recorda, teve uma grande influência na teologia e na filosofia política de Rushdoony. Na verdade, o primeiro livro publicado de Rushdoony, By What Standard?, é uma análise da teologia de Van Til). Schaeffer completou seus estudos teológicos no Faith Theological Seminary em Baltimore, Maryland, onde se formou em 1938. Depois de trabalhar como pastor na Pensilvânia e Missouri, mudou-se para a Suíça em 1955, onde estabeleceu uma comunidade chamada L’Abri – um termo francês que significa “o abrigo”. Schaeffer acabou se tornando um dos mais amplamente respeitados pensadores sociais, teológicos e políticos em círculos cristãos conservadores durante a segunda metade do século 20. Um admirador chamou-o de “o último dos teólogos modernos relevantes e verdadeiramente grandes”.23 Schaeffer não foi um discípulo de Rushdoony. Porém, tanto Schaeffer quanto Rushdoony possuíam conceitos dominionistas, cuja base filosófica aprenderam com Cornelius Van Til,24 e ambos defendiam uma volta da sociedade norte-americana, inclusive o governo, a suas raízes cristãs. A enciclopédia online Wikipedia (em inglês) comenta: “Schaeffer e Rushdoony leram os escritos um do outro, e até se encontraram. Schaeffer conduziu um estudo dos escritos de Rushdoony no instituto de Schaeffer [L’Abri] na Suíça.”25 Uma das quatro principais ênfases no ensino do instituto de Schaeffer, L’Abri, é esta: Sendo que o cristianismo é verdadeiro, ele fala à vida toda e não a uma esfera estreitamente religiosa, e muito do material produzido por L’Abri tem o objetivo de ajudar a desenvolver uma perspectiva cristã sobre as artes, a política e as ciências sociais, e assim por diante.26 Em seu livro A Christian Manifesto [Um Manifesto Cristão], Schaeffer argumentou de maneira apaixonada que os materialistas seculares, cuja filosofia ele afirmava controlar o governo norteamericano, “não têm base suficiente nem para a sociedade nem para a lei”.27 Ele queria dizer que o secularismo, que está baseado exclusivamente na sabedoria humana, é inadequado como uma base sobre a qual possam ser estruturadas as leis morais de uma nação. Ele então prosseguiu salientando o que considerava ser uma “base suficiente” para a lei: Essa base era a lei escrita de Deus, retrocedendo desde o Novo Testamento até a Lei escrita de Moisés; e o conteúdo e a autoridade dessa Lei escrita estão enraizados nAquele que é a realidade final. Assim, nem a igreja nem o Estado eram iguais a essa lei, e muito menos estavam acima dela. A base para a lei não é dividida, e ninguém, incluindo reis, o Estado e a igreja, tem o direito de colocar algo acima do conteúdo da lei de Deus.28 Em Romanos 13:1, Paulo declarou: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por Ele instituídas.” A partir desse versículo, Schaeffer argumentou que “o Estado deve ser administrado de acordo com os princípios da lei de Deus”.29 Esse conceito permeia o livro de Schaeffer. Em outra parte de seu livro ele disse: “A lei [civil] está fundamentada na lei de Deus”,30 e “o governo civil, como toda a vida, está debaixo da lei de Deus”.31 Schaeffer citou John Knox, o qual afirmou que o poder dos reis “é limitado pela Palavra de Deus”.32 Nos Estados Unidos, o governo é “do povo, pelo povo e para o povo”,33 o que significa que o povo formula suas próprias leis, que podem ou não se conformar em todos os aspectos à lei de Deus. Contudo, foi ao governo “do povo, pelo povo e para o povo” que Schaeffer objetou de maneira especial. Ele argumentou: Vivemos numa sociedade secularizada e numa lei secularizada e sociológica. Por lei sociológica queremos dizer lei que não tem base fixa, mas nessa lei um grupo de pessoas decide o que é sociologicamente bom para a sociedade em dado momento; e o que eles arbitrariamente decidem se torna lei.34

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Isso é precisamente o que o “governo do povo, pelo povo e para o povo” significa. Nos Estados Unidos, por mais de 200 anos, a lei tem refletido valores cristãos pelo fato de que a maior parte dos norte-americanos tem sido formada por cristãos. Schaeffer argumentou que essa base para a lei mudou durante a última metade do século 20. E em certo sentido, ele estava certo. Nossa cultura se tornou mais secularizada. Os próprios cristãos tendem a pensar em termos mais seculares hoje do que o faziam cem anos atrás, e as leis da nação e as decisões de suas cortes estão gradualmente vindo a refletir essa mudança. Isso foi precisamente o que Schaeffer achou tão objetável. Ele argumentou que “toda a estrutura judaico-cristã de nossa sociedade está sendo atacada e destruída. Estão dando a ela uma base inteiramente oposta, o que dá resultados exatamente opostos”.35 Assim, de acordo com Schaeffer, os Estados Unidos estão engajados em uma guerra cultural: “Essas duas religiões, o cristianismo e o humanismo, se colocam uma contra a outra como totalidades.”36 “Devíamos estar lutando e orando para que toda essa outra entidade – a visão de mundo que enfatiza o acaso e a energia material – possa ser repelida, juntamente com todos os seus resultados na totalidade da vida.”37 “Precisamos compreender que haverá uma batalha a cada passo do caminho. Eles [os materialistas seculares] estão determinados a fazer com que o que eles ganharam não seja repelido.”38 “Estamos em guerra.”39 A ideia de que a lei de Deus forma a base para a lei do governo civil está no fundamento de todas as teocracias. Posteriormente, Schaeffer afirmou que não estava “de maneira alguma falando sobre qualquer tipo de teocracia”.40 Tecnicamente, ele estava correto. Por definição, uma teocracia é um governo que é administrado por Deus ou pelo clero em nome de Deus. Mas, de qualquer forma, na compreensão dele, as leis de Deus se tornam as leis do Estado. Então, embora Schaefer possa não ter tido em mente um estado governado por sacerdotes, sua declaração de que ele não estava exigindo uma teocracia contradiz sua exigência de que a lei de Deus deve ser a base da lei civil. Novamente, como Rushdoony, Schaeffer entrou em cena como um importante pensador evangélico protestante exatamente no momento em que os conservadores políticos norte-americanos estavam recrutando os conservadores religiosos do país para sua causa. E juntamente com Rushdoony, Schaffer forneceu a esses conservadores religiosos a justificação teórica e teológica que eles precisavam para se unir ao exército dos conservadores políticos. Schaeffer estava ainda mais próximo da maioria dos protestantes evangélicos do que Rushdoony, porque Schaeffer era um pré-milenarista, enquanto que Rushdoony era um pós-milenarista. Schaeffer foi fortemente influenciado pelo dominionismo de Rushdoony. Ele simplesmente o adaptou ao pré-milenarismo.41 Um ponto-chave que não podemos passar por alto é que tanto Rushdoony quanto Schaeffer estavam convencidos de que as leis do Estado precisavam estar baseadas na Bíblia. Rushdoony disse: “A lei civil não pode ser separada da lei bíblica”, que “é, portanto, a lei para o cristão e a sociedade cristã.” E Schaeffer insistiu que “o Estado deve ser administrado de acordo com os princípios da lei de Deus” e que “a lei [civil] está fundamentada na lei de Deus”; “o governo civil, como a vida toda, se encontra debaixo da lei de Deus”. No capítulo 10, apresentei como assunto-chave o fato de que a separação entre igreja e Estado significa, entre outras coisas, que as leis do Estado estarão baseadas nos princípios morais laicos, não nos princípios morais de qualquer igreja ou livro sagrado. A filosofia de governo de Rushdoony e Schaeffer destruiria a separação entre igreja e Estado como a temos conhecido nos Estados Unidos. Rushdoony e Schaeffer são na verdade muito semelhantes aos muçulmanos fundamentalistas no tipo de governo que exigem. Em seu livro A Brief Guide to Islam [Um Breve Guia sobre o Islamismo], Paul Grieve escreve: O Estado laico no modelo ocidental é um conceito que vai diretamente contra as tradições muçulmanas, que remontam à comunidade original dos ‘ummah’ [os ‘fiéis’], estabelecida pelo profeta [Maomé] em Medina no 7º século. Aqui estava a sociedade muçulmana ideal sem quaisquer fronteiras nacionais e com uma religião e Estado mesclados, governados pelas leis de Deus.42 Uma “religião e Estado mesclados, governados pelas leis de Deus” foi precisamente o que Rushdoony e Schaeffer exigiram. A única diferença entre Rushdoony e Schaeffer, por um lado, e os muçulmanos, por outro, é que Rushdoony e Schaeffer desejavam que o governo civil norte-americano fosse governado pelas leis do Deus judaico-cristão em vez de pelas leis do Alá muçulmano. Eles desejavam que as leis dos Estados Unidos fossem baseadas na Bíblia em vez de no Alcorão. Desejavam que os

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Estados Unidos fossem governados por uma versão cristã da lei Sharia islâmica! E então? Apresentei uma palestra baseada neste capítulo para um grupo de adventistas na reunião campal de Redwood, no norte da Califórnia, no final de julho de 2006. Após haver concluído minhas considerações, uma senhora no fundo levantou a mão e perguntou: “Como podemos saber que a filosofia de governo de Rushdoony e Schaeffer teve algo a ver com as ideias da direita cristã de hoje?” Essa é uma boa pergunta, e há uma boa resposta. John W. Whitehead, o presidente da filial do Instituto Rutherford43 na Virgínia, em Charlottesville, trabalhou em íntima ligação com Francis Schaeffer antes de sua morte, ajudando-o na pesquisa de seu livro A Christian Manifesto, do qual fiz várias citações neste capítulo. Whitehead também conheceu Rushdoony em 1975, e, por um período de vários anos, teve muitas conversas profundas com ele.44 Ele disse: Os escritos de Rushdoony transformaram a maneira em que os cristãos pensavam sobre o envolvimento político, e em essência lançaram os fundamentos para o surgimento de um poder político da ala direita. Como observa o genro de Rushdoony, Gary North, seus escritos “são a fonte de muitas das ideias essenciais da nova direita cristã”.45 Whitehead salientou: “Embora Rushdoony e Schaeffer sejam virtualmente desconhecidos fora dos círculos cristãos da ala direita, seus ensinos, aceitos por aqueles que têm intenções políticas, ganharam vida própria.”46 Em um artigo sobre o reconstrucionismo cristão na revista Church and State, John Sugg47 escreveu: “Seria fácil descartar os reconstrucionistas como a orla lunática, que não desperta mais preocupação do que os remanescentes do Partido da Proibição.48 Mas, na verdade, eles têm extaordinário acesso e influência junto aos mais importantes líderes e instituições da direita cristã.”49 Seu artigo explica por que “o juiz dos Dez Mandamentos do Alabama, Roy Moore, está alinhado com essa congregação [os reconstrucionistas], e por que um terço dos republicanos do Alabama que votaram nas eleições primárias de junho o apoiou”.50 Muitos dos livros didáticos do ensino escolar doméstico são escritos por autores reconstrucionistas – um fato que não é de surpreender, dado o forte apoio de Rushdoony ao movimento em prol deste tipo de ensino. Herb Titus, um advogado formado por Harvard e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade Regent, de Pat Robertson, é um reconstrucionista; ele serviu como conselheiro legal do juiz Roy Moore. A Universidade Liberty, de Jerry Falwell, localizada em Lynchburg, Virgínia, emprega reconstrucionistas como professores. Roger Schultz, diretor do departamento de História da universidade, é um contribuinte regular do periódico reconstrucionista Faith for All of Life [Fé para a Totalidade da Vida]. Sugg disse que James Dobson “tem um relacionamento cordial com muitos do movimento [reconstrucionista], e admitiu ter votado no candidato reconstrucionista à presidência [dos Estados Unidos], Howard Phillips, em 1996”.51 O reconstrucionismo tem tido um profundo efeito sobre o pensamento dos protestantes da direita cristã. Note a ênfase na ideia de que os cristãos devem assumir o domínio sobre a sociedade: Pat Robertson: “O plano de Deus é que Seu povo, senhoras e senhores, assuma o domínio. [...] O que é domínio? Bem, domínio é senhorio. Deus deseja que Seu povo reine e governe com Ele, mas está esperando que nós ampliemos Seu domínio. [...] E o Senhor diz: ‘Deixarei que vocês redimam a sociedade. Haverá uma reforma.’ [...] Não toleraremos mais que aqueles utópicos dirigentes, que estão na Suprema Corte e em Washington com a intenção de nos coagir, dominem sobre nós. Não toleraremos essa situação. Diremos: ‘Desejamos liberdade neste país, e desejamos poder.’”52 D. James Kennedy: “Nossa tarefa é recuperar os Estados Unidos para Cristo, qualquer que seja o custo. Como os representantes de Deus, devemos exercer domínio e influência piedosos sobre nossa vizinhança, nossas escolas, nosso governo, nossa literatura e arte, nossos ginásios esportivos, nossa mídia de entretenimento, nossa mídia de notícias, nossos esforços científicos – em resumo, sobre todos os aspectos e instituições da sociedade humana.”53

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Onde Robertson obteve a ideia de que “o plano de Deus é que Seu povo [...] assuma o domínio”? Onde Kennedy obteve a ideia de que os cristãos devem “exercer domínio e influência piedosos [...] sobre todos os aspectos e instituições da sociedade humana”? Não conversei nem com Robertson nem com Kennedy, mas a filosofia política nessas declarações é um reflexo perfeito da filosofia política de Rushdoony e Schaeffer, e tenho certeza de que sei de onde eles obtiveram a ideia. Então, para onde é que todo o dominionismo está nos levando? Estamos nos aproximando do fim deste livro, mas ainda há algumas peças a serem encaixadas no lugar; por isso, continue lendo.

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Gary North, “R. J. Rushdoony, R.I.P.”, Lew Rockwell.com, http://www.lewrockwell.com/north/north33.html. “What Chalcedon Believes”, The Chalcedon Foundation, http://www.chalcedon.edu/credo.php; itálicos no original. 3 Rousas John Rushdoony, The Institutes of Biblical Law (Phillipsburg: P & R Publishing, 1973), p. 4. 4 Ibid. 5 Ibid., p. 14. 6 Ibid., p. 9; itálicos no original. 7 Ibid., p. 3, 4; ênfase acrescentada. 8 Ibid., p. 4; itálicos no original. 9 Ibid., p. 5. 10 Ibid. 11 Ibid. 12 Ibid., p. 4. 13 Ibid., p. 9; ênfase acrescentada. 14 Ibid., p. 12. 15 Ibid., p. 6. 16 Ibid., p. 12. 17 Ibid., p. 399. 18 Ibid., p. 221. 19 Veja páginas 77, 235, 402. 20 As leis mosaicas que requerem a pena de morte sobre as quais Rushdoony comentou incluem idolatria (p. 66), amaldiçoar os pais (p. 120), agredir os pais (p. 120), sequestro (p. 120), escravidão imposta (p. 120), transgressão do dia de descanso (p. 137, embora ele aparentemente cresse que essa pena de morte não seja mais válida – veja p. 235, 402), homossexualidade (p. 256), bestialidade ou zoofilia (p. 256); incesto (p. 399) e adultério (p. 399). 21 O texto grego afirma, literalmente: “Vão, portanto, fazer discípulos [de] todas as nações.” Se deixarmos de fora a palavra ‘de’, que os tradutores acrescentaram para que as palavras de Jesus fizessem sentido em nosso idioma, talvez fosse possível entender que Jesus quisesse dizer que as nações em si deviam ser tornadas em discípulos. Contudo, as palavras seguintes de Jesus excluem essa interpretação. Ele disse: “batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. É impossível batizar uma nação. O contexto é tanto o discipulado quando o batismo de indivíduos, e não de nações inteiras. 22 Citado em “Dominionism”, Religious Tolerance.org, http://www.religioustolerance.org/reconstr.htm. 23 David Hopkins, “Francis SchaefFer: The Last Great Modern Theologian”, http://www.next-wave.org/dec99/francis_schaeffer.htm. 24 Van Til negava ter qualquer interesse em movimentos político-religiosos. Veja “Dominionism”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Dominionism#Roots_and_branches. 25 “Dominionism”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Dominionism#Origin_of_the_Term. 26 L’Abri Fellowship, http://www.labri.org/history.html; ênfase acrescentada. 27 Francis A. SchaefFer, A Christian Manifesto (Westchester: Crossway, 1981), p. 26. 28 Ibid., p. 29; ênfase acrescentada. 29 Ibid., p. 28, 100. 30 Ibid., p. 99. 31 Ibid., p. 90. 32 Ibid., p. 98. 33 Do Discurso de Gettysburg, de Abraão Lincoln. 34 Schaeffer, p. 41. 35 Ibid., p. 101, 102. 36 Ibid., p. 54. 37 Ibid., p. 73, 74. 38 Ibid., p. 75. 39 Ibid., p. 116. 40 Ibid., p. 120. 41 “Dominionism”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Dominionism#Origin_of_the_Term. 42 Paul Grieve, A Brief Guide to Islam – History, Faith and Politics: The Complete Introduction (Nova York: Carroll and Graf Publishers, 2006), p. 22. 43 O Instituto Rutherford é uma organização em prol de liberdades religiosas que fornece serviços legais gratuitos a pessoas cujos direitos constitucionais e humanos foram ameaçados ou violados. 44 Adaptei os detalhes sobre a associação de Whitehead com Rushdoony e Schaeffer das informações biográficas sobre ele em seu artigo 2

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“The Rise of Dominionism and the Christian Right”, Liberty, julho/agosto de 2006, p. 6. 45 John W. Rutherford, “The Rise of Dominionism and the Christian Right”, Liberty, julho/agosto de 2006, p. 9. 46 Ibid. John W. Whitehead foi amigo íntimo de Francis Schaeffer. No artigo da edição de julho-agosto de 2006 da revista Liberty que citei neste capítulo, ele disse que Schaeffer “discordava das ideias dominionistas de Rushdoony”, e que “embora Rushdoony advogasse uma teocracia cristã, isso está muito longe dos pontos de vista de Schaeffer” (p. 9, 8). Talvez Whitehead estivesse muito mais familiarizado com Schaeffer do que eu jamais poderia estar. Contudo, as citações que apresentei neste capítulo, do livro de Schaeffer, A Christian Manifesto, fazem-me crer que suas ideias levam ao dominionismo e à teocracia, quer ele tenha ou não esposado essas doutrinas em si. 47 John Sugg é um dos editores-chefes de CL Newspapers em Atlanta, Charlotte, Tampa e Sarasota. 48 Partido político norte-americano fundado em 1869, mais bem conhecido por sua oposição ao consumo de bebidas alcoólicas (N. da T.). 49 John Sugg, “Warped Worldview”, Church and State, julho-agosto de 2006, p. 13. 50 Ibid., p. 11. 51 As informações sobre os laços da direita cristã com o reconstrucionismo que citei neste parágrafo são do artigo de Sugg, “Warped Worldview”, p. 11-13. 52 Comentário de Pat Robertson em seu programa de televisão Clube dos 700; citado em RedSonja2000, “Dominionist Dream: Repeal the 1st Amendment”, Talk to Action, http://www.talk2action.org/story/2005/12/l6/103532/64. 53 Citado em “The Rise of the Religious Right in the Republican Party”, http://www.theocracywatch.org.

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e vez em quando, ouvimos falar de uma igreja que afirma ser “a única igreja verdadeira”. Vimos anteriormente neste livro que os católicos de fato reivindicam isso para sua igreja. E eles não são os únicos. Alguns protestantes também reivindicam isso para sua denominação. Essa reivindicação é uma das características de uma filosofia chamada “triunfalismo”. Essa filosofia também pode incluir a crença de que “minha religião vai prevalecer sobre a sua”, ou até de que “minha religião vai vencer a sua”. Triunfalismo é uma atitude ou crença de que determinada doutrina, cultura ou sistema social é superior a todos os outros e deve triunfar sobre eles. A religião islâmica é muito triunfalista. Os muçulmanos creem que sua religião é a única verdadeira, e muitos, especialmente os terroristas, pensam que sua religião conquistará o mundo. Eles acreditam que chegará o dia em que todas as pessoas de todos os lugares serão muçulmanas, e isso trará o fim do mundo. Essa, na verdade, corresponde perfeitamente à visão de Rushdoony sobre o cristianismo. Com base no que acabei de dizer, talvez você ache que o triunfalismo é mau. Sem dúvida, não é politicamente correto na cultura ocidental de hoje que qualquer pessoa afirme que sua religião é a única verdadeira. Contudo, o triunfalismo não é necessariamente mau. O cristianismo é uma religião triunfalista, porque os cristãos creem que eles estão certos e que têm a responsabilidade de ganhar para Jesus Cristo o maior número possível de pessoas. Afinal de contas, a salvação eterna das pessoas depende disso. O triunfalismo cristão está baseado nas palavras do próprio Jesus Cristo, que disse: “Eu sou o caminho, a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por Mim” (Jo 14:6). Em outras palavras, se você deseja a salvação, precisa vir através de Jesus. Até hoje, muitos cristãos, especialmente os cristãos fundamentalistas e evangélicos, creem que é possível obter a salvação somente através de Jesus – uma convicção da qual os adventistas do sétimo dia partilham. O triunfalismo tipicamente leva a um senso de missão. A crença de que “estamos certos e todos os outros estão errados” e de que “a salvação está disponível apenas através de nossa religião” provê uma poderosa motivação para converter outros à fé. Em relação ao cristianismo, o próprio Jesus disse: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28:19). Talvez você já tenha ouvido falar do termo “destino manifesto”, que expressava a ideia do século 19 de que os Estados Unidos tinham a responsabilidade – quase uma ordem divina – de conquistar o Ocidente. Diferentemente do triunfalismo religioso, esse é um triunfalismo civil. A política norteamericana conservadora ainda contém uma tendência triunfalista. George W. Bush estava sendo triunfalista quando dizia acreditar que os Estados Unidos têm a responsabilidade de propagar a democracia no mundo. Alguns parágrafos atrás mencionei que os católicos tendem a ser triunfalistas porque creem que a Igreja Católica é a única igreja verdadeira. Não tenho problema em relação a isso. Os católicos têm o direito de crer que sua igreja é a única verdadeira. Não creio nessa ideia, mas a respeito. Também respeito os muçulmanos, que acreditam que sua religião é a única verdadeira. Afinal de contas, há uma tendência triunfalista no adventismo, como você talvez já tenha reconhecido. Temos algumas fortes convicções sobre a crise final, e cremos que é nossa missão advertir o mundo sobre o que entendemos com relação ao futuro.

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A tentação do triunfalismo O triunfalismo é um problema quando se torna arrogante, especialmente quando utiliza métodos antiéticos e abusivos para alcançar o triunfo. Os norte-americanos triunfalistas que conquistaram o Oeste dos Estados Unidos trataram os nativos de forma extremamente injusta. O triunfalismo religioso é

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particularmente perigoso quando se alia ao governo civil, porque aí se torna muito fácil usar o poder do Estado para impor o sistema de crenças daqueles que detêm o poder sobre aqueles que discordam. Esse foi o problema durante a Idade Média, quando os líderes católicos perseguiram os hereges que se recusaram a conformar-se com as doutrinas e o estilo de vida católico. Na verdade, até uma leitura casual de Apocalipse 13 torna óbvio que os dois poderes do tempo do fim, simbolizados por bestas, são muito triunfalistas. Eles irão combinar a religião e o governo civil numa única autoridade, que usarão para forçar o mundo todo a adorar da forma que eles consideram correta. Essa é uma expressão muito errada de triunfalismo. Como eu disse, os adventistas são em certo sentido triunfalistas e o triunfalismo é a chave de nosso sucesso. Somos impelidos pelo senso de que temos uma mensagem sobre uma crise estupenda que virá sobre o mundo e que envolverá questões espirituais que não são compreendidas pela maioria das pessoas. Na verdade, a própria interpretação profética que muitos têm achado tão extravagante e tola é a mensagem que nos sentimos compelidos a advertir o mundo. Para os batistas do sétimo dia, o sábado é simplesmente “o dia certo a ser guardado”. Para nós, o sábado será o ponto de controvérsia na crise final, e o destino eterno das pessoas dependerá da decisão que elas tomarem com respeito a isso. Esse é o contexto escatológico de nossas convicções sobre o sábado. Foi isso que impulsionou nosso senso de missão nesses últimos 150 anos. É por isso que temos hoje mais de 16 milhões de membros. Rushdoony, Schaeffer e o triunfalismo Um dos pontos mais significativos a se notar na filosofia política de R. H. Rushdoony e Francis Schaeffer é que ambos são muito triunfalistas porque, por definição, o dominionismo é triunfalista. Novamente, não há nada de errado nisso, contanto que os que defendem essa filosofia tratem os outros com respeito. Mas qualquer religião triunfalista que se alie ao governo civil está em grande perigo de se tornar antiética e abusiva na maneira como trata os que discordam dela. Esse é o problema que vejo com Rushdoony e Schaeffer. Eles acreditavam que as leis do governo civil precisam estar baseadas nas leis bíblicas e que os cristãos têm a responsabilidade de fazer isso acontecer exercendo domínio sobre a sociedade. Como expliquei no capítulo anterior, essa filosofia política tem tido profundo efeito sobre o pensamento dos evangélicos da direita cristã. Pat Robertson defende: “O plano de Deus é que Seu povo assuma o domínio”. Deus “deseja que Seu povo reine e governe com Ele, mas está esperando que nós ampliemos Seu domínio. [...] Desejamos liberdade neste país, e desejamos poder”.1 D. James Kennedy disse: “Nossa tarefa é recuperar os Estados Unidos para Cristo e exercer domínio e influência piedosos sobre [...] nosso governo [...] [e] sobre todos os aspectos e instituições da sociedade humana.”2 O dominionismo de Rushdoony, de Schaeffer e da direita cristã dos Estados Unidos é também muito triunfalista. E de maneira perigosa em minha opinião, porque, como as citações de Robertson e Kennedy mostram tão claramente, os conservadores da direita cristã estão determinados a assumir o governo civil norte-americano e usá-lo para impor sua agenda moral sobre a nação. À medida que a nação se afunda num caos moral – o que certamente está acontecendo – o dominionismo triunfalista de Rushdoony e Schaeffer parece muito atrativo para os cristãos conservadores, que o veem como a solução para o problema. Infelizmente, o dominionismo não é a solução. Os católicos também têm uma longa história de favorecimento à união entre igreja e Estado, e ainda consideram esse relacionamento como o ideal. Infelizmente, no passado, a união entre religião e política combinou com o triunfalismo católico, o que resultou em horríveis formas de perseguição, como a tortura e a execução por queima na estaca. Essas foram cometidas para com aqueles que discordavam da igreja em nome da salvação de sua alma. Não hesito em dizer que a união entre igreja e Estado, que Rushdoony, Schaeffer, os protestantes da direita cristã e os católicos olham com tão grande favor, é o fundamento de toda perseguição religiosa. Não tenho qualquer dúvida de que, se fossem perguntados, tanto católicos quanto protestantes da direita cristã assegurariam que não têm qualquer intenção de perseguir aqueles que discordam deles. Porém, note que Pat Robertson disse: “Desejamos poder.” Isso me faz lembrar as palavras de Lorde Acton, que disse: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente.”3 Em um mundo pecaminoso, nenhum indivíduo, igreja ou religião está imune a esse princípio. Sinceramente, eu não desejaria que minha própria Igreja Adventista se unisse à autoridade civil. É perigoso demais. Temo que mais cedo ou mais tarde permitiríamos que nosso tipo particular de triunfalismo nos levasse a impôlo sobre outros.

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A melhor garantia que qualquer um de nós pode ter contra perseguir a outros é, em primeiro lugar, evitar que nosso sistema de crenças religiosas se una ao poder civil. Essa tem sido a conduta norteamericana desde a fundação do país, e é por isso que há pouca perseguição religiosa desde 1776. O problema com a filosofia política dos católicos e dos protestantes da direita cristã não está com as intenções deles neste momento. Está com o sistema político-religioso que estão determinados a estabelecer e com o uso desse sistema depois de ter sido estabelecido. Será possível que a filosofia política dos católicos e dos protestantes da direita cristã possa levar, algum dia, à perseguição nos Estados Unidos?

1 Comentário de Pat Robertson no programa de televisão Clube dos 700, citado em RedSonja2000, “Dominionist Dream: Repeal the 1st Amendment”, Talk to Action, http://www.talk2action.org/story/2005/12/l6/103532/64. 2 Citado em “The Rise of the Religious Right in the Republican Party”, http://www.theocracywatch.org. 3 Esta é uma citação muito conhecida. Encontrei-a em “John Dalberg-Acton, 1st Baron Acton”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Lord_Acton.

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onstantino estava preocupado, e com razão. Seu pequeno exército enfrentava um inimigo muito maior: as forças de Maxêncio. Os dois cunhados (Constantino era casado com a irmã de Maxêncio, Fausta) estavam lutando pelo trono do imperador. Maxêncio governava em Roma desde a morte do último imperador, Constâncio I. Porém, Constantino era o filho desse falecido imperador, e achava que o trono devia ser seu. E assim, em outubro de 312, os dois homens, cada um com seu próprio exército, se encontraram na Ponte de Mílvia, a curta distância de Roma. O exército de Maxêncio era pelo menos quatro vezes maior que o de Constantino – e alguns estudiosos estimam que fosse dez vezes maior. De qualquer forma, o exército adversário excedia muito em número ao de Constantino, e é por isso que ele estava preocupado. Como poderia esse pequeno exército derrotar o exército de Maxêncio, que era muito maior? Constantino conhecia apenas um meio de isso acontecer. Naquela época, todos acreditavam que os deuses ajudavam o lado que favorecessem. Portanto, Constantino, que era pagão, buscou o favor do mais poderoso deus pagão. Mas a resposta que obteve não foi de maneira alguma a que ele esperava. No final da tarde de 27 de outubro, ele teve a visão de uma cruz emoldurada pelo sol poente. Próximo à cruz estavam as palavras gregas En toutō nika, que significam: “Com este sinal vencerás.” Incrível! Ele devia ir à batalha em nome do Deus cristão. Na manhã seguinte, Constantino ordenou a seus soldados que inscrevessem nos escudos as letras gregas X e P (o “R” grego se parece com nosso “P”), que são as primeiras duas letras de Xristos, a forma grega do nome Cristo. Mais tarde, no mesmo dia, o exército de Constantino derrotou o exército de Maxêncio, e Constantino se tornou o imperador de Roma. Constantino imediatamente professou fé em Cristo, e no ano seguinte, 313, proclamou o Edito de Milão, que dava liberdade para todas as religiões, inclusive o cristianismo. Após quase 300 anos de perseguição (com intervalos), os cristãos estavam finalmente livres para praticar sua religião sem medo de serem presos, encarcerados e, em alguns casos, mortos. Afinal, o imperador era agora um irmão de fé! A conversão de Constantino era apenas um pequeno tremor nos eventos da época, mas nos cem anos seguintes o tremor cresceu, tornando-se um gigantesco terremoto que mudou radicalmente o curso da história. H. A. Drake, professor de História na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, e autor do livro Constantine and the Bishops [Constantino e os Bispos], chama a conversão de Constantino e seu subsequente apoio ao cristianismo “uma das mais importantes transferências de poder na história ocidental”.1 O paganismo, e especificamente o culto ao imperador, havia sido a religião oficial do império nos séculos anteriores. O Edito de Milão colocou o paganismo e o culto ao imperador no mesmo nível que todas as outras religiões. Embora Constantino ainda fosse o Pontifex Maximus (Pontífice Máximo) e, assim, o chefe oficial no império do culto pagão ao imperador, era também agora um cristão, e isso deu ao cristianismo uma importante margem de vantagem sobre o paganismo. No fim do século, o cristianismo não só havia substituído o paganismo como a religião oficial do império, mas, em alguns casos, os cristãos estavam perseguindo os pagãos tão severamente como os pagãos haviam perseguido os cristãos cem anos antes.

C

Os primitivos cristãos e a liberdade de consciência Essa perseguição foi um desvio radical do cristianismo tradicional. Por quase 300 anos os cristãos haviam se apegado firmemente à convicção de que a conversão tinha de ser resultado da escolha voluntária de cada pessoa. O cristianismo era uma religião de amor, não de força. O próprio Jesus havia feito o convite “Vinde a Mim” (Mt 11:28, ênfase acrescentada). E, no Apocalipse, Ele disse: “E quem quiser receba de graça a água da vida” (Ap 22:17, ênfase acrescentada).

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A ideia de que as pessoas precisam escolher suas crenças religiosas livremente, sem coerção, era reforçada cada vez que os cristãos eram perseguidos por sua fé. Pessoas tentavam forçá-los a prestar obediência a deuses pagãos, mas os cristãos permaneciam fiéis. A adoração precisa ser prestada voluntariamente, ou não é adoração. Atanásio, conhecido por sua participação no Concílio de Niceia, disse que “aqueles que têm confiança no que creem não devem forçar e compelir os que não desejam aceitar. [...] A verdade não é pregada com espadas ou dardos, nem por meio de soldados; mas através de argumentação e conselhos”.2 Drake observa que os cristãos na época de Constantino tinham uma “crença inerente de que a verdadeira fé não podia vir de coerção”. Eles “herdavam como um artigo de fé a afirmação de que os inimigos precisam ser suportados e amados”.3 Constantino não se voltou contra os pagãos quando se tornou cristão, nem encorajou os cristãos a perseguir os pagãos.4 Embora ainda fosse o chefe oficial da religião estatal romana, também assumiu um papel significativo nos negócios cristãos. Durante seu reinado, presidiu o importante Concílio de Niceia em 325, bem como outros concílios menores. E, ao longo de tudo isso, tentou construir um clima no qual os diferentes pontos de vista religiosos pudessem coexistir. Constantino sem dúvida teria ficado surpreso com a prática norte- americana relativa à liberdade religiosa, e provavelmente a teria aprovado. Entretanto, cem anos após Constantino haver professado sua fé em Cristo, os cristãos estavam perseguindo pagãos, tentando forçá-los a se converterem à “fé”. Alguns pagãos até perderam a vida nas mãos dos cristãos!5 O que aconteceu? De que forma uma religião que iniciou com a convicção de que a crença religiosa precisa ser livremente escolhida se tornou uma religião que tentava impor a crença? Drake pergunta: “Se o cristianismo tolerante e inclusivo de Constantino conseguiu formar uma coalizão de cristãos e pagãos em favor do monoteísmo definido em termos amplos, então por que uma forma mais coerciva e intolerante de cristianismo já havia se instalado no fim do século?”6 Examinemos o processo. Como os cristãos começaram a perseguir Constantino governou o Império Romano por trinta anos, de 307 a 337 d.C., e, como já foi dito, tentou criar uma sociedade na qual várias crenças religiosas pudessem coexistir. Durante todo o seu governo, os cristãos conservaram a prática de que a conversão só poderia ocorrer por consentimento voluntário do indivíduo. O filho de Constantino, Constante, seguiu a prática de seu pai ao tolerar a todas as religiões. Durante essa época, o cristianismo progrediu. Os conversos vinham em multidão para a igreja, e os cristãos, especialmente os bispos, ganharam significativo poder político. Constante morreu em 350 e foi sucedido pelo irmão Constâncio II, um cristão mais radical que decretou que todos os templos pagãos deviam ser fechados e que fosse morta qualquer pessoa que oferecesse sacrifícios a deuses pagãos. Constâncio morreu em 361 e foi seguido por Juliano, que era pagão por escolha. Juliano governou por apenas dois anos e meio. Durante esse tempo, tentou reinstalar o paganismo como a religião do império. Em 362, expediu um edito garantindo liberdade de religião em todo o império, mas também reintroduziu os sacrifícios pagãos e começou a reduzir o poder dos bispos. Naturalmente, os bispos ficaram descontentes com essa redução de poder. Também se sentiram ameaçados pelo desafio de Juliano à sociedade cristã que eles haviam criado durante os 50 anos que haviam se passado desde a conversão de Constantino ao cristianismo. O governo de Juliano, embora muito curto, foi longo o suficiente para gerar temores de reversão ao paganismo na mente dos cristãos. Como resultado, extremistas na comunidade cristã que defendiam métodos mais radicais de conservar uma sociedade cristã, começaram a ganhar vantagem. Se Constantino havia suprimido essas tendências radicais, imperadores subsequentes as permitiram e até as encorajaram.7 No fim do século, os cristãos já estavam perseguindo severamente os pagãos. Comparações Acostumados como estamos à liberdade religiosa, e dedicados como somos à ideia de que a conversão deve resultar da escolha pessoal, nos é difícil imaginar que a perseguição possa um dia surgir nos Estados Unidos. Contudo, o fato de que o Império Romano e a igreja cristã mudaram da liberdade religiosa para a coerção religiosa durante a segunda metade do 4º século deve nos levar a reconhecer que, se isso pôde acontecer naquela época, pode acontecer agora; e, se pôde acontecer lá, pode acontecer aqui. Duas comparações entre aquela época e a atual nos fazem parar e pensar na direção tomada por algumas pessoas. Primeiro, hoje facilmente nos sentimos ameaçados pelos “pagãos” de nossos dias – os chamados ateus

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e secularizados – como os cristãos no 4º século se sentiram pelo paganismo de Juliano. Hoje ocorre uma “guerra cultural”. Reclamamos veementemente contra os “pagãos” atuais, assim como aqueles antigos cristãos reclamavam contra os deles. Recebo algumas das mais hostis correspondências e e-mails de cristãos que criticam amargamente os não religiosos por suas convicções morais. E tenho de me perguntar: Como esses zelotes religiosos tratariam as pessoas sem religião se obtivessem posição de poder político nos Estados Unidos? Uma comparação com zelotes cristãos semelhantes durante a segunda metade do 4º século d.C. me dá sérios motivos para preocupação. Segunda comparação: os protestantes da direita cristã e os católicos estão tão decididos a construir uma sociedade cristã hoje como os cristãos estavam naquela época. No início do 5º século (sendo que o século começou com o ano 401 d.C.), Agostinho escreveu o livro Cidade de Deus para argumentar que o cristianismo finalmente triunfaria sobre o paganismo na sociedade romana. Hoje, os cristãos da direita cristã pressionam para conseguir o triunfo final do cristianismo sobre o secularismo na sociedade norteamericana. Os católicos têm procurado moldar as nações de forma a torná-las sociedades católicas durante a maior parte dos dois últimos milênios, e alcançam resultados satisfatórios. Infelizmente, nos locais a que tiveram sucesso, com frequência houve intolerância àqueles que discordam deles. Você pode protestar dizendo que as fortes declarações em apoio da liberdade de consciência que vieram do Concílio Vaticano II devem impedir os católicos de jamais voltarem à perseguição. Porém, no capítulo 8, chamei a atenção para as ressalvas presentes naquelas declarações que, sob as condições certas (ou erradas), poderiam, mesmo agora, dar legitimidade à coerção. É também muito evidente que certos princípios morais singulares da Igreja Católica poderiam em algum momento se tornar lei nos Estados Unidos. Salientei em capítulos anteriores que os líderes católicos norte-americanos no século 21 estão exercendo pressão sobre os legisladores e juízes católicos para que façam leis e promulguem medidas judiciais que estejam em harmonia com o ensino católico. Isso é simplesmente uma forma menor da pressão espiritual que os papas usaram contra os governantes a fim de dominarem a política europeia durante a Idade Média – o que provocou a mais severa perseguição. Se a moral católica se tornar lei nos Estados Unidos, como penso que acontecerá, que consequências resultarão para aqueles cujas convicções os levam a um caminho moral diferente? Os protestantes da direita cristã também estão fazendo forte campanha para tornar a lei bíblica o fundamento do sistema legal da nação. Desejam que o Congresso e os vários estados promulguem leis que estejam baseadas na Bíblia, e desejam que os juízes interpretem as leis nacionais e estaduais de acordo com a Bíblia. Sugiro que todos nós, cristãos moderados, bem como os que se inclinam mais para a direita, necessitemos parar e olhar com cuidado para o futuro. Precisamos perguntar a nós mesmos aonde o caminho que estamos tomando nos levará. Richard Evans, em seu livro The Coming of the Third Reich [A Vinda do Terceiro Reich], levantou várias perguntas sobre os cidadãos da Alemanha durante os anos que antecederam a elevação de Hitler à liderança de seu país, perguntas estas que precisamos fazer sobre a direita cristã nos Estados Unidos hoje. Note especialmente as palavras em itálico no final da seguinte citação: “Como foi que uma nação avançada e altamente culta como a Alemanha pôde ceder à força brutal do Socialismo Nacional tão rapidamente e tão facilmente? Por que houve tão pouca resistência séria ao poder nazista? Como um partido da direita radical pôde subir ao poder de maneira tão dramaticamente repentina? Por que tantos alemães deixaram de perceber as consequências potencialmente desastrosas de ignorar a natureza violenta, racista e assassina do movimento nazista?”8 Admito que a direita cristã nos Estados Unidos é muito mais benigna que os soldados de Hitler eram na Alemanha pré-nazista e no início da Alemanha nazista. Porém, as vozes de intolerância estão lá, e a aparente benignidade da causa da direita cristã simplesmente mascara o perigo da direção para a qual ela se dirige. Estamos nós hoje, como os alemães nos anos que precederam a Segunda Guerra Mundial, deixando de perceber as consequências potencialmente desastrosas de ignorarmos a natureza intolerante e coerciva dos cristãos da direita cristã em sua proclamação de uma guerra cultural e em sua exigência de transformar os Estados Unidos numa sociedade baseada em princípios bíblicos? Creio que se uma parte insignificante da direita radical pudesse subir ao poder de maneira tão repentina e dramática como aconteceu na Alemanha, a mesma coisa poderia, sob as circunstâncias propícias, acontecer nos Estados Unidos hoje.

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A Bíblia prediz uma perseguição universal Para aqueles que ainda questionam a ideia de que a perseguição religiosa chegará aos Estados Unidos, oferecerei mais uma razão para minha certeza: o próprio Jesus o predisse. É claro que Ele não mencionou os Estados Unidos por nome. Ele simplesmente disse que Seus seguidores serão “atribulados, e vos matarão. Sereis odiados de todas as nações, por causa do Meu nome” (Mt 24:9, ênfase acrescentada). Preciso lembrar-lhes que os Estados Unidos são uma nação que deve ser incluída na predição de Jesus? Isso é particularmente verdade em vista do fato de que Jesus falou essas palavras em resposta à pergunta dos discípulos sobre os sinais de Seu retorno. Assim, podemos esperar que a predição de Jesus seja cumprida antes de Sua segunda vinda. Várias declarações do Apocalipse confirmam a profecia da perseguição no tempo do fim por parte de “todas as nações”. Os seguintes textos deixam muito claro que o povo de Deus em todo o mundo será severamente perseguido pouco antes da volta de Jesus: • “Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse. Deu-se-lhe ainda autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação” (Ap 13:7). • “E lhe foi dado [à besta da terra] comunicar fôlego à imagem da besta, para que não só a imagem falasse, como ainda fizesse morrer quantos não adorassem a imagem da besta” (Ap 13:15). • “Então, vi a mulher embriagada com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus” (Ap 17:6). Mesmo sem identificar os poderes políticos específicos representados pela besta do mar e pela besta da terra em Apocalipse 13 ou a meretriz do capítulo 17, é óbvio que o Apocalipse prediz uma perseguição mundial antes da segunda vinda de Jesus. A maioria dos intérpretes cristãos conservadores das profecias entende que estamos vivendo nos dias finais da história da Terra. Portanto, devemos esperar que os Estados Unidos, que hoje são a única superpotência mundial, estarão intensamente envolvidos na perseguição do fim dos tempos. A pergunta não deve ser se, mas como. Devemos, na verdade, estar alertas para reconhecer as tendências, tanto nos Estados Unidos quanto em outras partes do mundo, que indicam que essa perseguição se aproxima. Esse tem sido um de meus motivos primários para escrever este livro. Assim, não peço desculpas pela compreensão adventista de que a intolerância religiosa vai surgir nos Estados Unidos algum dia. Sob as circunstâncias certas, isso pode acontecer, e as tendências que já estão bem adiantadas neste país sugerem que vai acontecer e como vai acontecer. Muitos estudiosos conservadores das profecias interpretam as intolerantes bestas do Apocalipse como símbolos do ateísmo e do humanismo secular. Os livros de ficção de Tim LaHaye da série Deixados para Trás, por exemplo, retratam o anticristo como Carpathia, um malvado líder ateu das Nações Unidas. Os adventistas veem o Apocalipse 13 de maneira diferente. Entendemos que as duas bestas malévolas daquele capítulo representam poderes políticos cristãos que exercerão domínio sobre o mundo todo durante a crise final. Será possível que cristãos nos Estados Unidos possam um dia perseguir aqueles de quem eles discordam? Será que isso pode realmente acontecer? Ainda falta mais uma peça do quebra-cabeça para ser colocada no lugar.

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H. A. Drake, Constantine and the Bishops: The Politics of Intolerance (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2000), xv. Citado em ibid., p. 407. 3 Drake, Constantine and the Bishops, p. 402. 4 Muitos historiadores têm suposto que a aceitação dos pagãos por parte de Constantino sugere que seu cristianismo era mais uma estratégia política do que uma convicção pessoal. H. A. Drake contesta essa conclusão. Seu estudo o levou a concluir que Constantino era verdadeiramente um cristão, mas que ele sinceramente desejava conceder oportunidades iguais a todas as religiões no império. Veja Constantine and the Bishops, Drake, p. 11-27. 5 Por exemplo, em 415 d.C., uma turba de cristãos assassinou Hipácia, uma filósofa popular (e, segundo algumas informações, bela) de Alexandria. Veja “Hypatia of Alexandria”, Wikipedia, http://en.wilipedia.org/wiki/Hypatia_of_Alexandria. 6 Drake, Constantine and the Bishops, p. 408. 7 Para uma discussão mais completa deste assunto, veja ibid., p. 437-440. 8 Richard Evans, The Coming of the Third Reich (Nova York: Penguin Press, 2004), p. xxii; ênfase acrescentada. 2

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uero deixar algo muito claro. Embora eu já tenha dito isto em capítulos anteriores, irei repeti-lo: não creio que ninguém no mundo cristão hoje, seja protestante, católico ou ortodoxo, tenha qualquer intenção de perseguir alguém. Quando o papa João Paulo II se desculpou perante o mundo vários anos atrás pela perseguição que sua igreja infligiu aos judeus, protestantes, muçulmanos e outros em eras passadas, estava sendo sincero. Quando os cardeais e bispos reunidos no Concílio Vaticano II publicaram, em meados da década de 1960, sua declaração oficial em apoio à liberdade religiosa, estavam sendo sinceros. Se você fosse perguntar a Pat Robertson, D. James Kennedy, Jerry Falwell e outros líderes protestantes da direita cristã nos Estados Unidos se pretendem torturar os que discordam deles, estou certo de que responderiam com um veemente “não”! E estariam sendo sinceros. O ex-presidente George W. Bush declarou publicamente repetidas vezes que deseja ver a democracia e a liberdade espalhadas ao redor do mundo. Posso assegurar-lhe que a perseguição religiosa não faz parte dos interesses dele. Um grupo de líderes de liberdade religiosa da Igreja Adventista passou 45 minutos com o presidente Bush no Escritório Oval em 4 de abril de 2006. Jan Paulsen, então presidente mundial da Igreja Adventista do Sétimo Dia, disse que Bush “revelou com entusiasmo o que ele sente em relação à liberdade religiosa: liberdade de consciência, liberdade para a adoração, liberdade de pensamento”.1 Minha preocupação, como declarei em capítulos anteriores, é com a direção que está sendo tomada por católicos e protestantes da direita cristã. Em uma crise, tendências que são preocupantes hoje podem crescer até mesmo além das piores coisas que tememos. É inteiramente possível que pessoas que hoje não pensariam em fazer mal a uma mosca cometam alguns dos mais horríveis abusos amanhã, durante uma crise. Enquanto escrevo estas palavras, há um bom exemplo disso no noticiário. Um grupo de marinheiros norte-americanos é acusado de assassinar civis em Haditha, no Iraque. Enquanto estou escrevendo, essas acusações ainda não foram levadas perante um tribunal. Contudo, a despeito do veredito final, suspeito que esses jovens são basicamente norte-americanos dignos que, em circunstâncias normais, jamais cometeriam tal crime. Mas, se de fato eles o fizeram, foi a crise da guerra que obviamente os influenciou. Algo em sua mente foi acionado, e eles cometeram atrocidades que nunca pensariam em cometer sob circunstâncias normais. A Bíblia prediz que o mundo enfrentará uma terrível crise imediatamente antes da volta de Jesus, e é no contexto dessa crise que serão promulgadas leis e serão cometidas perseguições que hoje parecem inconcebíveis.

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Como as pessoas reagem à crise Vários anos atrás, li um livro intitulado The Addictive Organization [A Organização Viciada]. Nos últimos anos, tenho tido muito interesse no assunto de vícios, mas sempre havia pensado nos vícios como algo que acontece a pessoas. Nunca me havia ocorrido que organizações podem se tornar viciadas. Contudo, as autoras, Anne Wilson e Diane Fassel, apresentam bons argumentos para demonstrar sua proposta. Uma das maneiras que elas sugeriram para identificar uma organização disfuncional, viciada, é notar a maneira como seus administradores lidam com crises. Eis como elas descreveram o estilo de administração de uma organização viciada: Em tempos de crise permitimos que certas pessoas assumam o controle e adotem procedimentos incomuns. A crise se alimenta da ilusão de que o controle pode colocar a situação sob controle. As crises são usadas para desculpar ações drásticas e equivocadas por parte dos administradores. [...] Os indivíduos têm menos responsabilidades na crise à medida que a administração ganha mais poder

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para fazer face ao problema. Quando a norma é a crise, a administração tende a assumir uma quantidade perigosa de poder a cada dia.2 Se a administração superior consulta os supervisores dos escalões inferiores e elabora uma estratégia conjunta para resolver os problemas, a organização muito provavelmente é saudável. Por outro lado, se a administração superior tira o controle dos administradores dos níveis inferiores, tenta microgerenciar a organização, e nesse processo toma algumas decisões bastante tolas, a organização provavelmente é disfuncional e viciada. E mesmo quando você não sabe se a organização está enfrentando uma crise, ainda pode suspeitar que ela seja viciada se vê a administração superior tentando se apoderar do controle, microgerenciando e tomando decisões apressadas. Creio que isso nos ajude a compreender o comportamento das duas bestas de Apocalipse 13. Mesmo sem interpretar os símbolos, qualquer pessoa que leia esse capítulo pode imediatamente reconhecer que o comportamento das duas bestas não é normal. Algo as leva a agir de maneira muito equivocada. Elas são a “administração superior” do mundo, desejam freneticamente o controle e exibem um comportamento extremamente anormal para consegui-lo. A besta do mar persegue o povo de Deus e tenta conseguir o controle político do mundo todo, e a besta da terra ameaça matar qualquer pessoa que se recusar a adorar a besta do mar e sua imagem. Essas duas bestas estão fazendo o que Schaff e Fassel afirmam que as organizações viciadas fazem quando estão numa crise: buscam uma quantidade desordenada de poder e alimentam “a ilusão de que o controle pode colocar a situação sob controle”. O comportamento dessas duas bestas nos leva a suspeitar que há uma crise por trás de tudo. Outras partes do Apocalipse ajudam a compreender melhor o assunto. O capítulo 7:1-4 mostra “quatro anjos em pé nos quatro cantos da Terra, conservando seguros os quatro ventos da Terra, para que nenhum vento soprasse sobre a Terra, nem sobre o mar, nem sobre árvore alguma” até que um selo seja colocado na testa do povo de Deus – os 144 mil. Esses ventos simbolizam as forças destrutivas da natureza porque, após os servos de Deus serem selados e ser permitido que os quatro ventos soprem, a terra, o mar e as árvores serão danificados. Em outras palavras, a ecologia mundial será devastada. Temos um vislumbre adicional dessa crise no capítulo 16, que descreve sete terríveis pragas que cairão sobre a Terra no fim do tempo: as pessoas sofrerão terríveis úlceras na pele (v. 2), a água dos oceanos e fontes se transformará em sangue (v. 3, 4) e o sol esquentará tanto que queimará os homens com fogo (v. 8). No capítulo 18, descobrimos que essas pragas abalam a economia mundial. Os reis e mercadores da Terra “chorarão e se lamentarão” porque já ninguém compra sua mercadoria (v. 9, 11) e os pilotos de navios “lançaram pó sobre a cabeça e, chorando e pranteando, gritavam” ao ver a devastação que as pragas causaram (v. 19). O poder da natureza, quando se desencadeia, é devastador. Vimos exemplos disso com o tsunami no Oceano Índico em dezembro de 2004 e os furacões Katrina e Rita em agosto e setembro de 2005. Deus está segurando essas forças agora, como sugere a imagem de anjos segurando os ventos em Apocalipse 7, mas quando Ele as liberar, a devastação será global.3 Havia recursos suficientes disponíveis, de forma que o mundo foi capaz de reagir razoavelmente bem à destruição causada pelo tsunami e pelo furacão Katrina. Mas imagine se a destruição causada por esses eventos fosse multiplicada por cem. Os sistemas de enfrentamento do mundo ficariam totalmente sobrecarregados. O profeta Daniel, do Antigo Testamento, descreveu a crise final do mundo no capítulo 12 de seu livro. Ele disse: “Nesse tempo, Se levantará Miguel, o grande Príncipe, o defensor dos filhos do Teu povo, e haverá tempo de angústia, qual nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo; mas, naquele tempo, será salvo o Teu povo, todo aquele que for achado inscrito no livro. Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno” (Dn 12:1, 2). De acordo com Daniel, o pior tempo de angústia que o mundo já conheceu acontecerá imediatamente antes da ressurreição na segunda vinda de Cristo. Será precisamente durante essa angústia que as duas bestas de Apocalipse 13 atuarão de maneira mais intensa. Obtemos outra pista sobre a gravidade da crise final através de algumas palavras de Jesus em Mateus 24. Seus discípulos haviam Lhe perguntado sobre os sinais do fim, e uma das coisas que Ele lhes disse foi que viria sobre a Terra um tempo de grande angústia “como desde o princípio do mundo até agora não tem havido e nem haverá jamais” (v. 21). Jesus estava simplesmente parafraseando as palavras do profeta Daniel. Ele então prosseguiu, dizendo: “Não tivessem aqueles dias sido abreviados, ninguém seria salvo” (Mt 24:22, ênfase acrescentada). Observe palavras em itálico. O tempo de angústia que

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está para vir será tão severo que ameaçará a própria sobrevivência da raça humana. Se Deus não colocasse um fim na devastação, os seres humanos se tornariam a próxima espécie extinta. Essa é uma crise terrível! Obtemos mais evidências da crise final no texto de Lucas sobre os sinais do fim. Jesus disse que, por causa dos sinais no Sol, na Lua e nas estrelas, haverá “angústia entre as nações em perplexidade” e “homens que desmaiarão de terror e pela expectativa das coisas que sobrevirão ao mundo” (Lc 21:25, 26). As pessoas no mundo compreenderão que sua sobrevivência está por um fio, e reagirão de maneira muito previsível: entrarão em pânico. Como a crise afeta nossa maneira de pensar O medo faz com que as pessoas façam coisas que, em seu juízo perfeito, nunca sonhariam em fazer. Creio que o medo que Jesus predisse – nações em perplexidade e toda a raça humana desmaiando de terror – é a crise que está por trás das cenas em Apocalipse 13. Esse capítulo não descreve o clima político e religioso são e racional que o mundo ocidental conhece hoje. Descreve um mundo – um planeta inteiro – que está em pânico e está reagindo de maneira horrível, contudo previsível, diante da crise final. Vários anos atrás, li um livro chamado Disasters and the Millennium [Os Desastres e o Milênio], de Michael Barkun, professor de Ciências Sociais na Universidade de Nova York, em Buffalo. Barkun estudou o efeito que os desastres podem ter sobre a atitude das pessoas. Uma de suas conclusões mais significativas foi que “o desastre cria condições especialmente adaptadas à rápida alteração de sistemas de valores”.4 Eis aqui várias declarações semelhantes: O desastre produz o questionamento, a ansiedade e a sugestionabilidade que são requeridas [para a mudança]; somente como consequência de um desastre é que as pessoas são movidas a abandonar antigos valores do passado.5 O desastre, ao remover o ambiente familiar, remove precisamente as estruturas de referência pelas quais normalmente avaliamos afirmações, ideias e crenças. Sistemas de crença que talvez fossem rejeitados em condições livres de desastre, agora recebem consideração favorável.6 Uma população sujeita a um desastre sofre um senso temporário de incapacidade, vulnerabilidade e confusão. A estrutura social desmoronada torna as tradicionais relações de autoridade menos eficientes, e os status tradicionais, menos significativos. A vítima de desastre, para quem as pistas e marcos normais do viver foram removidos, fica passiva, receptiva à sugestão e necessitada de um ambiente substituto. Ela requer uma nova configuração de relações e valores sociais para explicar a situação difícil em que se encontra.7 Em uma situação de desastre, ideias sobre as quais, no passado, as pessoas teriam pensado duas vezes, e das quais poderiam até ter recuado horrorizadas, agora parecem razoáveis e apropriadas. Diante do desastre, a maioria das pessoas se torna mais passiva e aberta a novas relações de autoridade e a novos sistemas sociais. Assim, uma crise global provê uma oportunidade perfeita para que os líderes políticos do mundo consolidem seu poder a fim de colocar a situação sob controle. E essa, acredito, é a crise que está por trás de Apocalipse 13. Hoje, ninguém está pensando em perseguir pessoas por causa do dia que elas guardam – certamente não nos Estados Unidos! É ridículo sugerir que alguém esteja sequer cogitando tal ideia. Contudo, as tendências que já estão bem desenvolvidas nos Estados Unidos me preocupam até mesmo agora. Numa crise, essas tendências poderiam facilmente levar os líderes políticos e religiosos do mundo a fazer coisas que hoje consideraríamos inconcebíveis. Um decreto de morte? Há uma questão da qual precisamos tratar. Os adventistas afirmam que a marca da besta é a observância do domingo quando for imposta por lei e que, eventualmente, aqueles que persistirem em guardar o sábado serão ameaçados de morte. Será que o mundo, mesmo num pânico generalizado, reagiria tão drasticamente assim? A Bíblia descreve outro aspecto da crise final – o espiritualismo – que tornará isso possível.

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Conserve em mente o contexto espiritual da crise final que apresentei no capítulo 2 deste livro. Satanás e seus anjos se rebelaram contra Deus no Céu, e quando Deus os expulsou, eles vieram para a Terra, onde têm travado, desde então, uma guerra espiritual contra Deus. A crise final será seu último esforço defensivo.8 Satanás tentará ganhar para o seu lado o maior número de pessoas que puder, e dois de seus instrumentos principais serão a força e o engano. Já falamos a respeito do seu uso da força. Jesus também advertiu sobre os enganos de Satanás: “Porque aparecerão falsos profetas e falsos messias, que farão milagres e maravilhas para enganar, se possível, até o povo escolhido de Deus” (Mt 24:24, Nova Tradução na Linguagem de Hoje; ênfase acrescentada). Um dos traços de caráter que definem Satanás é o engano, e os enganos desses falsos cristos do tempo do fim serão tão sutis que até o povo de Deus estará em perigo de ser enganado. Paulo também advertiu sobre os enganos de Satanás no tempo do fim. Ele disse: “O perverso chegará com o poder de Satanás e fará todo tipo de falsos milagres e maravilhas. E enganará com todo tipo de maldade os que vão ser destruídos. Eles vão ser destruídos porque não aceitaram nem amaram a verdade que os poderia salvar. Por isso Deus envia o poder do erro para agir neles a fim de que acreditem naquilo que é falso. O resultado disso é que serão condenados todos os que não creem na verdade, mas têm prazer no pecado” (2Ts 2:9-12, Nova Tradução na Linguagem de Hoje; ênfase acrescentada). Paulo não deixou dúvidas quanto à fonte demoníaca desse engano. Ele o atribuiu ao “poder de Satanás” e afirma que as pessoas serão enganadas. Apocalipse 13 também comenta sobre esse engano. João diz que, em sua visão, a besta da terra “também fazia grandes sinais miraculosos, chegando a fazer descer fogo do céu à terra, à vista de todos. Com esses sinais que lhe foi permitido realizar em nome da primeira besta, ela enganou os habitantes da Terra. Ordenou-lhes que fizessem uma imagem em honra à besta que fora ferida pela espada e contudo revivera” (Ap 13:13, 14, Nueva Versión Internacional; ênfase acrescentada). João nos deu um pouco mais de informação a respeito desses falsos milagres. Falando da sexta praga, ele disse: “Então vi saírem da boca do dragão, da boca da besta e da boca do falso profeta três espíritos imundos semelhantes a rãs. São espíritos de demônios que realizam sinais miraculosos; eles vão aos reis de todo o mundo, a fim de reuni-los para a batalha do grande dia do Deus Todo-Poderoso” (Ap 16:13, 14, Nova Versão Internacional; ênfase acrescentada). Pouco antes da volta de Cristo, os espíritos maus de Satanás – seus demônios operadores de milagres – irão ajuntar os líderes políticos e religiosos para a última batalha espiritual contra o povo de Deus, que o Apocalipse chama de Armagedom (v. 16). Note que Jesus, Paulo e João predisseram que os enganos de Satanás no tempo do fim incluirão milagres (“sinais”, na Almeida Revista e Atualizada), ou seja, ocorrências sobrenaturais que surpreendem a raça humana e levam as pessoas a acreditar em uma mentira. Os adventistas creem que é no contexto desse engano demoníaco que os líderes mundiais promulgarão um decreto de morte contra aqueles que guardam os mandamentos de Deus, inclusive o quarto. Ellen White predisse que durante a crise final, Satanás se revelará pessoalmente, visivelmente à raça humana, e afirmará ser Cristo: Como ato culminante no grande drama do engano, o próprio Satanás personificará Cristo. A igreja [cristã] tem há muito tempo professado considerar o advento do Salvador como a realização de suas esperanças. Assim, o grande enganador fará parecer que Cristo veio. Em várias partes da Terra, Satanás se manifestará entre os homens como um ser majestoso, com brilho deslumbrante, assemelhando-se à descrição do Filho de Deus dada por João no Apocalipse (1:13-15). A glória que o cerca não é excedida por coisa alguma que os olhos mortais já tenham contemplado. Ressoa nos ares a aclamação de triunfo: “Cristo veio! Cristo veio!” O povo se prostra em adoração diante dele, enquanto este ergue as mãos e sobre eles pronuncia uma bênção, assim como Cristo abençoava Seus discípulos quando esteve aqui na Terra. Sua voz é meiga e branda, cheia de melodia. Em tom manso e compassivo apresenta algumas das mesmas verdades celestiais e cheias de graça que o Salvador proferia; cura as doenças do povo, e então, em seu pretenso caráter de Cristo, alega ter mudado o sábado para o domingo, ordenando a todos que santifiquem o dia que ele abençoou. Declara que aqueles que persistem em santificar o sétimo dia estão blasfemando de Seu nome, pela recusa de ouvirem Seus anjos a eles enviados com a luz e a verdade. É esse o poderoso engano, quase invencível.9

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Esse engano satânico é o que os adventistas entendem que levará o mundo a promulgar um decreto de morte contra aqueles que guardam o sábado. Os protestantes e católicos de hoje obviamente não têm tais pensamentos em mente e compreensivelmente reagem com horror diante da ideia de que um dia fariam isso. Mas, quando os adventistas falam sobre a futura perseguição do povo de Deus por causa do dia que eles guardam, não se referem aos tempos normais de hoje. Estamos falando sobre uma crise final em que forças satânicas desesperadas farão seu último esforço de resistência na história do conflito entre o bem e o mal. Esse é o curto período imediatamente antes da volta de Cristo, que Daniel disse seria o pior tempo de angústia que o mundo já conheceu. Nesse tempo, a raça humana estará em pânico e as forças demoníacas estarão operando seus milagres para enganar. Estamos falando sobre um tempo de angústia tão severo ao qual Jesus disse que ninguém sobreviveria se Deus não o abreviasse. Essa é a crise que os adventistas creem que o mundo enfrentará. Estamos nos referindo também a um tempo quando, sob a pressão da crise final com seus rigorosos desastres naturais, o fanatismo religioso levará os seres humanos a defender ideias e ações que hoje nem lhes passa pela mente. Você se recordará que um dos fatores para a transformação do cristianismo no 4º século, de uma religião de liberdade para uma religião de coerção, incluía cristãos fanáticos que obtiveram uma posição de poder na igreja e no Estado. Infelizmente, esse tipo de fanatismo está, agora mesmo, surgindo nos Estados Unidos. Observe as duas citações seguintes: Gary North, reconstrucionista e fundador do Instituto de Economia Cristã: “Sejamos francos: precisamos usar a doutrina da liberdade religiosa para obter independência para as escolas cristãs até que treinemos uma geração de pessoas que saibam que não há neutralidade religiosa, nem lei neutra, nem educação neutra, nem governo civil neutro. Então elas se ocuparão em construir uma ordem social, política e religiosa baseada na Bíblia, que finalmente negue a liberdade religiosa aos inimigos de Deus.”10 Randall Terry, fundador da Operação Resgate e candidato republicano ao Senado pelo estado da Flórida nas eleições primárias de 2006: “Simplesmente quero que vocês deixem uma onda de intolerância passar por vocês. Quero que vocês deixem uma onda de ódio passar por vocês. Sim, o ódio é bom. [...] Nosso alvo é uma nação cristã. Temos um dever bíblico, somos chamados por Deus para conquistar este país. Não desejamos um tempo igual para todos.11 Não desejamos o pluralismo.”12 Essas são palavras de luta. São palavras fanáticas. Contudo, são extremistas só em certo grau quando comparadas aos pontos de vista de Pat Robertson, Jerry Falwell, D. James Kennedy e outros da direita cristã. Isso me faz lembrar as palavras de Roland Hegstad, que por muitos anos durante a segunda metade do século 20 foi o diretor do departamento de Liberdade Religiosa da Associação Geral da Igreja Adventista do Sétimo Dia: “A perseguição não vem de pessoas más tentado tornar outras pessoas más. Vem de pessoas boas tentando tornar outras pessoas boas”. Ele está certo. E, infelizmente, essa é precisamente a mentalidade de muitos dos líderes da direita cristã hoje. Não duvido da sinceridade deles. Mas, em seu desejo de tornar os Estados Unidos uma nação religiosa, eles são boas pessoas que desejam tornar boas outras pessoas. E esse é o problema. Eu detestaria ver o dia em que pessoas com essa mentalidade obtivessem controle do governo norteamericano. Entretanto, a compreensão adventista de Apocalipse 13 nos leva a concluir que isso é precisamente o que irá acontecer. Os Estados Unidos estarão intimamente envolvidos na perseguição durante o conflito final. Isso não deve nos surpreender, pois Jesus disse que, antes de Sua segunda vinda, “todas as nações” odiarão e perseguirão o povo de Deus (Mt 24:9). Os enganos do tempo do fim farão com que até os Estados Unidos quebrem seu princípio fundamental de liberdade religiosa. E os adventistas veem tendências neste país que, agora mesmo, estão levando em direção a esses acontecimentos. Gostaria de repetir: aqueles que apoiam essa tendência na atualidade não têm qualquer intenção de perseguir pessoas que guardam o sábado. O que eles não percebem é que, em sua hostil oposição à separação entre igreja e Estado, estão colocando os alicerces para que essa própria perseguição aconteça durante uma futura crise. Essa perseguição ocorrerá sob circunstâncias dramaticamente diferentes das do mundo relativamente pacífico de hoje, e sob a direção de líderes

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fanáticos que não possuem as mesmas convicções que eles sobre liberdade religiosa. O papado No capítulo 3, falei de três conclusões que podemos extrair da descrição da besta do mar em Apocalipse 13: • “Deu-se-lhe [à besta do mar] ainda autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação” (v. 7). Isso significa que o papado alcançará influência política sobre o mundo todo. • “E toda a terra se maravilhou, seguindo a besta; [...] adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem pode pelejar contra ela?” (v. 3, 4). O mundo reconhecerá a liderança espiritual do papado e lhe prestará homenagem. • “Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse” (v. 7). O papado perseguirá os que se opuserem à sua autoridade. Se a besta do mar é um poder que atuará no tempo do fim, e se representa o papado, como os adventistas têm ensinado, então o papado cumprirá cada uma dessas especificações nos dias finais da história da Terra. Incrível como isso possa parecer, conserve em mente que o Vaticano historicamente sempre aspirou ao domínio global. Pio XI disse: “O império de nosso Redentor abrange a todos”, e: “A humanidade toda está sujeita ao poder de Jesus Cristo”.13 Pio XI também objetou fortemente ao moderno estado laico, que por cerca de duzentos anos tem tornado impossível ao papado exercer dominação global. Referindo-se ao fim da dominação política sobre a Europa que o papado havia exercido durante o período medieval, ele disse: O império de Cristo sobre todas as nações [isto é, o poder político do papado sobre a Europa durante o período medieval] foi rejeitado. O direito que a igreja recebeu do próprio Cristo, de ensinar a humanidade, de fazer leis, de governar os povos em tudo o que diz respeito a sua salvação eterna – esse direito foi negado. Então, gradualmente a religião de Cristo [o catolicismo] veio a ser igualada a falsas religiões e a ser colocada de forma humilhante no mesmo nível que elas. Foi então colocada sob o poder do Estado [em vez de o Estado ser colocado sob o poder da Igreja] e passou a ser tolerada em maior ou menor grau, segundo o capricho de príncipes e governantes.14 Obviamente Pio XI teria gostado de ver restaurada a autoridade política do papado sobre os governos civis do mundo. O autor católico George La Piana resumiu a ambição papal nestas palavras: “Por sua própria reivindicação, a Igreja Católica Romana é uma igreja totalitária que espera conquistar o mundo sobre o princípio de que ela é a agência divina exclusiva da salvação, o órgão exclusivo da graça divina, o canal exclusivo do divino Espírito”.15 O título do livro do autor jesuíta Malachi Martin, que mencionei em capítulos anteriores, também revela as ambições globais do Vaticano: The Keys of This Blood: The Struggle for World Dominion Between Pope John Paul II, Mikhail Gorbachev, and the Capitalist West [As Chaves Deste Sangue: A Luta pelo Domínio Mundial Entre o Papa João Paulo II, Mikhail Gorbachev e o Ocidente Capitalista].16 O livro de Martin, publicado em 1990, começa com a ousada afirmação de que um governo único mundial ocorrerá dentro de apenas algumas décadas, e João Paulo II estava competindo com Gorbachev e com o Ocidente capitalista pelo domínio desse governo. Martin escreve: “O propósito escolhido do pontificado de João Paulo II é ser o vencedor nessa competição, que agora já está bastante avançada.”17 De acordo com esse autor, o Vaticano deseja dominar o mundo politicamente para tirar ordem do caos moral em que este se encontra. É claro que, uma vez que o mundo se submeta à dominação moral/política do Vaticano, a perseguição dos que não concordam com ele acontecerá naturalmente, como sempre acontece quando a igreja e o Estado estão unidos. Então, como podemos entender as ousadas declarações em apoio à liberdade de consciência que vieram do Concílio Vaticano II? No capítulo 8, apresentei várias frases no documento sobre liberdade religiosa lançado pelo Concílio Vaticano II que, na presença das circunstâncias certas – ou erradas – poderiam levar à supressão da tolerância. Mas os eventos da crise que descrevi neste capítulo são o que, no final, levará as horrendas predições de Apocalipse 13 a seu cumprimento completo, incluindo a predição do Apocalipse sobre o papel do papado, do protestantismo e do governo dos Estados Unidos

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no tempo do fim. Malachi Martin concordaria com esse princípio, pois próximo do fim de seu livro ele disse claramente que João Paulo II estava esperando por um evento que irá dividir a história humana, separando o passado imediato do futuro iminente. Será um evento visto publicamente no céu, nos oceanos e nas massas continentais deste planeta. Envolverá particularmente nosso sol humano. [...] Essa divisão será como um evento, na convicção de fé de João Paulo II, pois anulará imediatamente todos os grandes planos que as nações estão fazendo agora e introduzirá o Plano Maior do Criador do homem. Então o tempo de espera e vigília de João Paulo II estará terminado. E então começará seu ministério como servo do Plano Maior.18 Martin disse que João Paulo II esperava que algum tipo de desastre natural trouxesse a dominação papal do mundo.19 Isso está em completo acordo com a conclusão adventista, que delineei neste capítulo, de que severos desastres naturais, que ultrapassarão a capacidade do mundo de lidar com eles, precipitarão a crise final.20 Não é uma hipótese implausível imaginar que as pessoas do mundo se voltariam para uma autoridade religiosa a fim de ajudá-las a sair das catastróficas consequências de desastres naturais sem precedentes. E que autoridade religiosa melhor do que a única que já tem influência e respeito globais? Isso nos traz novamente a outra variação das perguntas que tenho feito repetidamente ao longo deste livro: Quão realista é a predição adventista de que o papado obterá o controle do mundo algum dia e de que então esse controle resultará na perseguição dos dissidentes? Será que isso pode realmente acontecer? Por mais de 150 anos, os adventistas têm defendido firmemente que sim – que isso acontecerá nos dias finais da história da Terra.

1 “World Church: Adventist Leaders Meet with United States President at the White House”, Adventist News Network, http://news.adventist.org/data/2006/03/1144177860/index.html.en. 2 Anne Wilson Schaef e Diane Fassel, The Addictive Organization (San Francisco: Harper Collins Publishers, 1988), p. 160. 3 As opiniões diferem entre os estudiosos sobre o grau em que Deus será responsável pelos desastres naturais durante a crise final. 4 Michael Barkun, Disasters and the Millennium (New Haven: Yale University Press, 1974), p 113. 5 Ibid., p. 6. 6 Ibid., p. 56. 7 Ibid., p. 55, 56. 8 O último esforço defensivo de Satanás na verdade ocorrerá no final do milênio, mas seu último esforço na história de nosso mundo atual será durante a crise final, pouco antes da segunda vinda de Cristo. 9 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001 [CD-Rom]), p. 624, ênfase acrescentada. 10 Christianity and Civilization, primavera de 1982, ênfase acrescentada. 11 Uma referência à regra do tempo igual, a qual especifica que todas as estações de rádio e TV dos Estados Unidos forneçam uma oportunidade equivalente a quaisquer candidatos políticos opostos que a solicitarem. Isto significa, por exemplo, que se uma emissora der um minuto de tempo grátis para um candidato no horário nobre, precisa fazer o mesmo para outro candidato (N. da T.). 12 The News-Sentinel, Fort Wayne, Indiana, 16 de agosto de 1993; citado em Anti-Defamation League, The Religious Right: The Assault on Tolerance and Pluralism in America (Nova York: Anti- Defamation League, 1994), p. 4. 13 Pio XI, carta encíclica sobre a festa de Cristo o Rei, Quas Primas, par. 18. 14 Ibid., par. 24. 15 George La Piana e John Swomley, Catholic Power vs. American Freedom (Amherst: Prometheus, 2002), p. 20. 16 Malachi Martin, The Keys of This Blood: The Struggle for World Dominion Between Pope John Paul II, Mikhail Gorbachev, and the Capitalist West (Nova York: Simon and Schuster, 1990). 17 Ibid., p. 15, 17. 18 Ibid., p. 639. 19 Martin disse que João Paulo esperava ver essa predição cumprida durante sua existência. Obviamente, isso não aconteceu. Contudo, a predição deve ser entendida de maneira mais ampla, como o futuro papel do papado, em vez de como o futuro papel de qualquer papa específico. 20 Ellen White escreve: “Satanás também opera por meio dos elementos a fim de recolher sua colheita de almas desprevenidas. Estudou os segredos dos laboratórios da natureza, e emprega todo o seu poder para dirigir os elementos tanto quanto o permite Deus. [...] Ao mesmo tempo em que aparece aos filhos dos homens como grande médico que pode curar todas as enfermidades, trará moléstias e desgraças até que cidades populosas se reduzam à ruína e desolação. Mesmo agora está ele em atividade. Nos acidentes e calamidades no mar e em terra, nos grandes incêndios, nos violentos furacões e terríveis saraivadas, nas tempestades, inundações, ciclones, ressacas e terremotos, em toda parte e sob milhares de formas, Satanás está exercendo o seu poder. Destrói a seara que está a amadurar, e seguem-se fome, angústia. Comunica ao ar infecção mortal, e milhares perecem pela pestilência. Essas visitações devem tornar-se mais e mais frequentes e desastrosas.

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A destruição será tanto sobre o homem como sobre os animais. [...] E então o grande enganador persuadirá os homens de que os que servem a Deus estão motivando esses males. A classe que provocou o descontentamento do Céu atribuirá todas as suas inquietações àqueles cuja obediência aos mandamentos de Deus é perpétua reprovação aos transgressores. Será declarado que as pessoas estão ofendendo a Deus pela violação do descanso dominical; que esse pecado acarretou calamidades que não cessarão antes que a observância do domingo seja estritamente imposta; e que os que apresentam os requisitos do quarto mandamento, destruindo assim a reverência pelo domingo, são perturbadores do povo, impedindo a sua restauração ao favor divino e à prosperidade temporal” (O Grande Conflito, p. 589, 590; nota dos editores).

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m de meus passatempos favoritos é montar quebra-cabeças. Não que eu o faça com frequência. Contudo, nas raras ocasiões em que me sento para montar um quebra-cabeça, não vejo as horas passarem. Geralmente começo pelas beiradas. Já notei que a maioria das pessoas o faz, porque essas peças, sendo retas em um dos lados, são as mais fáceis de identificar. Uma vez que as beiradas estejam montadas, é hora de começar a montar a parte de dentro, e esse é o verdadeiro desafio. Felizmente, os fabricantes de quebra-cabeças imprimem uma versão em miniatura da figura na caixa, que dá uma boa ideia de como ficará o quebra-cabeça completo, e eu sempre procuro nessa figura padrões que possam aparecer nas peças. Talvez haja um estábulo vermelho na figura, ou um riacho cristalino, ou um trecho com várias margaridas amarelas. A maioria das paisagens também tem um pouco do céu na parte de cima. Procuro todas as peças com aquelas cores e padrões e as coloco amontoadas de um lado. É mais fácil achar as peças que se encaixam dentro desses padrões do que numa mesa cheia de peças que não têm nenhuma relação umas com as outras. Depois de algum tempo, consigo montar várias das partes maiores da figura, e as coloco no lugar a que pertencem na estrutura formada pelas peças da beirada. Essa é uma analogia do que tenho feito neste livro. No capítulo 1, apresentei um esboço geral da compreensão adventista sobre os eventos finais, particularmente nossa interpretação das duas bestas e da marca da besta de Apocalipse 13. Podemos comparar isso a olhar para a figura na caixa do quebracabeça. Nos capítulos seguintes, expliquei nossa interpretação sobre a besta do mar, a besta da terra e a marca da besta, e salientei como a história e os eventos atuais cumpriram ou estão cumprindo nossa compreensão desses símbolos proféticos. Podemos comparar esses temas às partes principais de nosso quebra-cabeça imaginário. Neste capítulo, eu gostaria de juntar essas partes principais umas às outras para formar uma figura completa. Obviamente, isso envolverá um pouco de repetição, mas acho que precisamos fazê-lo a fim de vermos a figura como um todo. Cada um dos intertítulos no restante deste capítulo é uma das partes principais da figura que estivemos montando.

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Ameaça à separação entre igreja e Estado A separação entre igreja e Estado é o fundamento da liberdade religiosa. Quando as leis do Estado estão baseadas em princípios morais religiosos, em vez de laicos, mais cedo ou mais tarde isso sempre resulta em perseguição àqueles contrários às ideias predominantes. Isso não quer dizer que as leis do Estado discordarão dos princípios religiosos. Em muitos casos, as duas serão iguais. Em outras palavras: quando os legisladores elaboram as leis do Estado, devem consultar o bom-senso das pessoas, não os livros sagrados que as pessoas levam consigo para igrejas, sinagogas ou mesquitas. Infelizmente, as tendências recentes nos Estados Unidos ameaçam reverter o histórico princípio norte-americano da separação entre igreja e Estado. Os católicos, que têm estado relativamente em silêncio durante a recente guerra cultural norteamericana sobre o assunto de separação entre igreja e Estado, têm historicamente favorecido a união entre igreja e Estado. Eles chegam à sua filosofia política de união entre igreja e Estado de maneira bastante natural. O paganismo já era a religião oficial no tempo em que Constantino se tornou cristão. Ninguém pensou, naquela época, em separar a religião do governo. Assim, após a conversão de Constantino, o cristianismo gradualmente substituiu o paganismo como a religião estatal, e ninguém viu qualquer problema nesse arranjo. Era simplesmente a forma como as coisas eram feitas. E continuou a ser a forma como as coisas foram feitas pelos próximos 1.400 ou 1.500 anos, até que o Iluminismo quebrou o poder da religião sobre o governo e criou as nações laicas que conhecemos hoje, em que

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religião e governo são separados. A reação dos papas a essa mudança foi compreensível: não gostaram dela. Ninguém gosta de mudanças – especialmente mudanças que desafiam nossa autoridade e contrariam a maneira como as coisas têm sido feitas durante um milênio e meio! Assim, os papas atacaram veementemente a separação entre igreja e Estado. Mas não havia quase nada que eles pudessem fazer a esse respeito; as nações da Europa haviam se tornado laicas, e haviam ganhado poder suficiente para se livrar do poder político que o papado havia exercido sobre elas por centenas de anos. A Revolução Francesa foi o clímax dessa tendência – a gota d’água que fez transbordar o copo para os católicos. Essa foi a “ferida mortal” que atingiu a besta do mar de Apocalipse 13 após cerca de 1.260 anos de dominação na política europeia. Contudo, o papado não mudou seu conceito sobre a relação com o governo civil. Até hoje os católicos veem o cristianismo como a única religião verdadeira e sua igreja como a única igreja cristã verdadeira, sendo o papa seu chefe. Até hoje, no Estado católico ideal a autoridade do papa seria respeitada como suprema, não apenas em assuntos religiosos, mas também em assuntos políticos. Afinal, assim como a alma é superior ao corpo, a igreja é superior ao Estado. Consequentemente, o Estado deve estar sujeito à igreja, pelo menos no que diz respeito a assuntos relacionados à teologia e à moral. E que dizer da liberdade de consciência? É fato que durante centenas de anos o papado condenou a ideia de que cada pessoa é livre para crer e adorar de acordo com os ditames de sua consciência. Mas será que o Concílio Vaticano II não trouxe uma notável mudança na compreensão do Vaticano sobre liberdade religiosa? Esse concílio de fato afirmou que “a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa” e que “ninguém deve ser forçado a agir de maneira contrária a suas próprias crenças”. Cada pessoa, disse o concílio, deve “desfrutar imunidade de coerção externa, bem como liberdade psicológica”, e essa “liberdade religiosa tem seu fundamento [...] na própria natureza [da pessoa]”. Porém, salientei no capítulo 8 várias frases contidas nos documentos do Concílio Vaticano II sobre liberdade religiosa que poderiam comprometer essas declarações positivas. De qualquer forma, a ameaça primária à liberdade religiosa que existe na compreensão política do Vaticano hoje é seu contínuo apoio à união entre igreja e Estado, pois o Concílio Vaticano II não abandonou esse princípio, e a união entre igreja e Estado é uma das pedras fundamentais da perseguição religiosa. Agora os protestantes da direita cristã também estão ativamente ocupados em promover a união entre igreja e Estado, pois estão atacando ferozmente o princípio da separação entre igreja e Estado. Pat Robertson declarou que essa separação “é uma mentira da esquerda, e não vamos mais tolerá-la”.1 Ele disse também que “[as cortes] estão tirando de nós nossa religião sob o disfarce de separação entre igreja e Estado”.2 Jerry Falwell disse: “A separação entre igreja e Estado tem sido, há muito tempo, o grito de batalha dos libertários civis que desejam purgar nossa gloriosa herança cristã da história de nossa nação”.3 W. A. Criswell, ex-pastor da Primeira Igreja Batista de Dallas, Texas, declarou que a separação entre igreja e Estado “é meramente uma ficção imaginária dos infiéis”.4 Outra recente ameaça à separação entre igreja e Estado é a exigência de Rousas Rushdoony e Francis Schaeffer de que as leis civis norte-americanas sejam baseadas na Bíblia e na lei de Deus. Rushdoony declara: “A lei civil não pode ser separada da lei bíblica”. A lei bíblica “é, portanto, a lei para a pessoa cristã e para a sociedade cristã”.5 Schaeffer insiste que “o Estado [...] deve ser administrado de acordo com os princípios da lei de Deus”.6 Rushdoony e Schaeffer estão simplesmente exigindo uma versão norte-americana da lei sharia muçulmana. Outras vozes, embora talvez o expressando de forma mais moderada, ecoam o mesmo sentimento. A Comissão dos Dez Mandamentos deseja “ajudar a restaurar os Dez Mandamentos e os valores judaico-cristãos a seu legítimo lugar em nossa sociedade”.7 Paul Weyrich deseja “cristianizar os Estados Unidos”.8 Pat Robertson deseja que os cristãos “redimam a sociedade”.9 E D. James Kennedy deseja “recuperar os Estados Unidos para Cristo”.10 Ao longo da maior parte da história norte-americana, os protestantes, incluindo os fundamentalistas e evangélicos, têm dado forte apoio à separação entre igreja e Estado. Ainda em 1960, recusaram-se a endossar John F. Kennedy para presidente até que ele fez um voto apoiando a separação entre igreja e Estado. Mas agora um bloco significativo de protestantes se une aos católicos ao se oporem à separação entre igreja e Estado. Os católicos hoje chegam a 25% da população dos Estados Unidos, e os protestantes da direita cristã ficam pouco atrás. Caso esses dois grupos se unam, poderão facilmente destruir a separação entre igreja e Estado nos Estados Unidos. E apesar de todas as declarações deles em apoio à liberdade de religião, com a separação entre igreja e Estado fora do caminho, a liberdade

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religiosa eventualmente daria lugar à perseguição religiosa. Talvez você esteja pensando na eleição intermediária de 2006, a qual quebrou o controle que o Partido Republicano havia exercido sobre o Congresso dos Estados Unidos durante os doze anos anteriores. Isso não enfraqueceu o poder que a direita cristã havia exercido sobre a política norteamericana durante esses doze anos? É claro que sim, mas isso é na verdade completamente irrelevante para o que quero demonstrar. O poder político está constantemente mudando de um lado para outro, e devemos evitar em qualquer momento dar demasiada importância a uma mudança em qualquer direção. Mas a conclusão que desejo apresentar é que a direita cristã surgiu na última metade do século 20 como uma poderosa força política na política norte-americana, que até mesmo os não religiosos não podem mais ignorar. É um poder que, dadas as circunstâncias certas, poderia emergir novamente a qualquer momento, e que numa crise poderia se voltar bem mais para a extrema direita do que a maioria dos próprios líderes da direita cristã atual gostaria de ver. O novo evangelismo O cristianismo sempre foi uma religião de evangelismo. O próprio Jesus ordenou a Seus seguidores: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28:19). Durante dois mil anos, os cristãos têm viajado por todo o mundo conquistando pessoas para Jesus. As cruzadas evangelísticas de Billy Graham na segunda metade do século 20 são um exemplo de primeira grandeza do evangelismo cristão. Esse é o evangelismo bíblico tradicional. Contudo, o novo “evangelismo” dos protestantes da direita cristã e dos católicos norte-americanos é muito diferente. Embora o evangelismo bíblico procure conquistar as pessoas para Cristo, o evangelismo atual da direita cristã luta para moldar sociedades inteiras “para Cristo”. No evangelismo bíblico genuíno, que busca ganhar as pessoas para Cristo, cada um é livre para escolher tornar-se ou não um cristão. Mas em uma nação que está deliberadamente sendo moldada em uma sociedade cristã governada pela lei de Deus, os que escolhem não se tornar cristãos e os cristãos que creem de maneira diferente da definição nacional da lei de Deus inevitavelmente se sentem como párias, e mais cedo ou mais tarde serão pressionados a se conformar à vontade da maioria. Estou certo de que o esforço dos protestantes da direita cristã e dos católicos de hoje para moldar os Estados Unidos numa sociedade cristã acabará sendo sentido de maneira coerciva, assim como os pagãos no 4º século sentiram a coerção dos cristãos que tentavam criar uma “sociedade cristã” no Império Romano. Isso me lembra as palavras de Roland Hegstad que citei no capítulo anterior. “A perseguição”, disse Hegstad, “não surge de pessoas más tentando tornar outras pessoas más. Surge de pessoas boas tentando tornar outras pessoas boas”. Isso é o que facilmente acontece – quase inevitavelmente acontece – quando os cristãos concentram parte importante de seus esforços “evangelísticos” em criar uma sociedade cristã, em vez de seguir a ordem de Cristo de simplesmente pregar o evangelho, fazer discípulos, batizar e ensinar as pessoas (Mt 24:14; 28:19, 20). E os protestantes da direita cristã de hoje realmente querem mudar a sociedade. Mencionei as citações seguintes alguns parágrafos atrás no contexto da separação entre igreja e Estado, mas elas se aplicam igualmente ao “novo evangelismo” da direita cristã. De acordo com Pat Robertson, “o Senhor diz: ‘Deixarei que vocês redimam a sociedade’”.11 O ponto de vista de D. James Kennedy é que os cristãos devem “recuperar os Estados Unidos para Cristo, qualquer que seja o custo. Como vice-regentes de Deus, devemos exercer domínio e influência piedosos sobre [...] todos os aspectos e instituições da sociedade humana”.12 E a Comissão dos Dez Mandamentos “foi fundada para se opor à agenda secular e ajudar a restaurar os Dez Mandamentos e os valores judaico-cristãos a seu legítimo lugar em nossa sociedade”.13 É verdade que poucas pessoas na direita cristã atualmente falam sobre perseguir aqueles que discordam deles. Contudo, o reconstrucionista cristão Gary North deseja que os cristãos se dediquem a “construir uma ordem social, política e religiosa baseada na Bíblia, que finalmente negue a liberdade religiosa aos inimigos de Deus”.14 E Randall Terry, o agressivo fundador da Operação Resgate, deseja que as pessoas “deixem uma onda de intolerância [e ódio] passar por vocês. [...] Nosso alvo é uma nação cristã. [...] Somos chamados por Deus para conquistar este país”.15 Admito que Gary North e Randall Terry estão entre as vozes mais radicais de nossa sociedade. Contudo, a coerção surgiu no 4º século porque os elementos mais radicais da sociedade cristã daquela época subiram ao poder. Além disso, Gary North e Randall Terry são só ligeiramente mais radicais do que Pat Robertson e D. James Kennedy. Todos esses homens defendem ideias que mais adiante

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poderiam facilmente levar à coerção em nome de tornar outras pessoas boas. O novo evangelismo – o esforço de converter a sociedade em vez de converter as pessoas – é uma poderosa ameaça à liberdade religiosa. É óbvio que uma sociedade religiosa tem pontos positivos, mas primeiro devemos transformar as pessoas. Dominionismo Intimamente aliado ao novo evangelismo, está o conceito de “dominionismo”, o qual propõe que os cristãos devem purificar os Estados Unidos e, por fim, o mundo todo, exercendo “domínio piedoso” sobre a sociedade e o governo. O dominionismo foi proposto explicitamente durante a última metade do século 20 por R. J. Rushdoony e, implicitamente, por Francis Schaeffer. Como Agostinho, mil e quinhentos anos antes, Rushdoony cria que o milênio começou com a primeira vinda de Cristo, em vez de Sua segunda vinda. Agostinho reinterpretou a predição de Daniel sobre a pedra que atingiu os pés da estátua, aplicando-a à igreja cristã em vez de se referir à segunda vinda de Cristo. Assim, tornou-se responsabilidade da igreja “[esmiuçar e consumir] todos esses reinos” e estabelecer o eterno reino de Deus na Terra (Dn 2:44). O pós-milenarismo de Rushdoony propõe essencialmente a mesma coisa. “O homem é convocado”, ele declara, “para criar a sociedade que Deus requer.”16 Rushdoony igualou a grande comissão de Cristo à ordem que Deus deu a Adão e Eva de sujeitar a Terra e dominar “sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra” (Gn 1:28). Assim, a grande comissão de Cristo, “fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28:19), agora se torna uma ordem para conquistar o mundo politicamente. Onde Agostinho via a Igreja Católica como a pedra que destruiria todos os reinos terrestres, Rushdoony atribuiu a tarefa ao cristianismo como um todo. Em outros aspectos, seus pontos de vista são idênticos. Isso é dominionismo, apesar de Agostinho não ter usado esse termo. Embora Francis Schaeffer não tenha usado o termo “domínio” exatamente da maneira que Rushdoony o fez, sua filosofia básica se assemelha à de Rushdoony. “O Estado”, ele afirma, “deve ser administrado de acordo com os princípios da lei de Deus.”17 Ele desejava que as leis dos Estados Unidos fossem “fundamentadas na lei de Deus”.18 “O governo civil”, dizia ele, “está debaixo da lei de Deus”,19 e o poder dos reis “é limitado pela Palavra de Deus”.20 O dominionismo de Rushdoony e Schaeffer influenciou profundamente os protestantes atuais da direita cristã e seu chamado para que os cristãos fundamentalistas assumissem o domínio de nossa sociedade e suas instituições, inclusive o governo. A ideia principal é esta: o dominionismo – o conceito de que os cristãos devem exercer domínio piedoso sobre a sociedade e seus governos – é simplesmente outro nome para a união entre igreja e Estado. A união entre igreja e Estado é o fundamento de toda perseguição. E os protestantes da direita cristã norte-americana desejam domínio. Quebrando a cooperação entre o laicismo e a religião O conceito de separação entre igreja e Estado é uma proposta singularmente laica. Surgiu durante o século 18 como resultado da oposição do Iluminismo ao domínio clerical dos governos da Europa. A Revolução Francesa, que a certa altura proscreveu toda religião, foi a mais extrema forma desta oposição secular à união entre igreja e Estado. O Iluminismo também afetou profundamente a Revolução NorteAmericana e a Constituição que resultou dela. No entanto, nos Estados Unidos, a separação entre igreja e Estado assumiu um modelo significativamente diferente. Os líderes não religiosos norte-americanos – Thomas Jefferson, George Washington, James Madison, John Adams e Benjamin Franklin, para mencionar alguns – estavam profundamente cientes da contribuição que a religião pode dar para uma sociedade estável. Madison, por exemplo, disse: “A crença em Deus [é] essencial para a ordem moral do mundo”.21 George Washington afirmou: “A razão e a experiência nos proíbem, ambas, de esperar que possa prevalecer uma moralidade nacional com exclusão do princípio religioso.”22 Contudo, a consideração de Madison, Washington e seus compatriotas pela religião não significa que estivessem interessados numa união entre igreja e Estado. Ao contrário, eles criam que a melhor maneira de proteger a religião era separá-la do governo. Assim, Madison argumentava que “a religião floresce com maior pureza sem a ajuda do governo do que com ela”23 e que “o número, a operosidade e a moralidade do sacerdócio, bem como a devoção do povo, aumentam manifestamente pela total separação entre a igreja e o Estado”.24 E Thomas Jefferson concebeu “um muro de separação entre a

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igreja e o Estado”.25 É extremamente importante compreender que o tipo norte-americano de separação entre igreja e Estado foi resultado de uma cooperação singular entre o laicismo e a religião. Enquanto na Europa, duzentos anos atrás, o laicismo e a religião tendiam a estar em feroz desacordo um com o outro, nos Estados Unidos cada um deles reconhecia a contribuição que o outro podia dar para uma sociedade estável e um governo democrático. Os norte-americanos, de modo geral, apoiaram a cooperação entre o religioso e o laico durante a maior parte de sua história. Observe que eu disse “a maior parte de sua história”, pois hoje a direita cristã está em guerra contra o laicismo. Francis Schaeffer afirmou que os materialistas seculares “não têm base suficiente nem para a sociedade nem para a lei”.26 Ele argumentou de maneira entusiasmada que “essas duas religiões, o cristianismo e o humanismo [laicismo], se colocam uma contra a outra como totalidades”.27 Assim, “deveríamos lutar e orar para que toda essa outra entidade – a cosmovisão que enfatiza o acaso e a energia material [secularismo] – possa ser repelida, juntamente com todos os seus resultados na totalidade da vida”.28 Schaeffer escreveu: “Estamos em guerra.”29 Ele queria dizer, é claro, que os religiosos dos Estados Unidos estão em guerra com os não religiosos. Isso é o mesmo que a “guerra cultural” da qual os protestantes da direita cristã falam às vezes. É uma guerra entre a religião cristã e o laicismo. No livro American Gospel [Evangelho Norte-Americano], Jon Meacham afirma que “Deus não nos dá respostas fáceis” para “as questões que nos dividem”. Mas falou sobre uma resposta que tem servido bem aos Estados Unidos ao longo de sua história. Essa resposta, que “tem muito que a recomende, é simplesmente o diálogo entre aqueles que discordam. [...] O diálogo em tais assuntos geralmente sobrepuja o combate”.30 Infelizmente, os não religiosos e os religionistas atuais não dialogam. Eles brigam. E não parece haver muita chance de que consigam dialogar tão cedo. Agora observe o seguinte: a cooperação entre a religião e o laicismo está sendo seriamente ameaçada hoje pela guerra cultura dos protestantes da direita cristã. Contudo, a cooperação entre a religião e o laicismo – esse diálogo, como Jon Meacham o expressou – foi o que tornou possível a separação entre igreja e Estado, e a liberdade religiosa que dela resulta. A separação entre igreja e Estado e a liberdade religiosa estão profundamente ameaçadas no momento em que cristãos e não religiosos quebram sua histórica cooperação, recusam-se a dialogar e, em vez disso, começam a guerrear uns contra os outros. A esta altura, parece que ocorre uma guerra para alcançar a linha de chegada, sendo que um dos lados vai ganhar e o outro vai perder. A única pergunta é: Que lado vencerá? Pela compreensão adventista das profecias, você já sabe a resposta. Resumo Durante 150 anos, os adventistas do sétimo dia têm identificado a besta do mar de Apocalipse 13 como sendo o papado, e a besta da terra como sendo os Estados Unidos da América. Também temos identificado a marca da besta como a observância do domingo como dia de descanso e adoração imposto por lei. Com base nessa interpretação, concluímos isto: • O papado, que foi uma potência política na Europa durante centenas de anos durante a Idade Média, recebeu o que parecia ser uma ferida mortal quando os modernos estados laicos da Europa e dos Estados Unidos separaram a religião do governo. • Contudo, durante a crise final da Terra, o papado se recuperará dessa ferida mortal e se tornará uma potência política global, impondo suas doutrinas e princípios morais com perseguição semelhante àquela que praticou na história medieval. • Os Estados Unidos também se tornarão um poder perseguidor, cooperando com o papado, especialmente na imposição do domingo como dia de descanso religioso e adoração – a marca da besta. Essas predições parecem extravagantes e tolas ao longo da maior parte de nossa história, e é por isso que tenho repetidamente feito a pergunta: Será que os eventos preditos com base em nossa compreensão de Apocalipse 13 podem realmente acontecer? Creio que a esta altura – dadas as tendências do mundo atual que delineei neste livro, e dada a predição bíblica de uma crise global,

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provocada por desastres naturais, que ultrapassará a capacidade de o mundo enfrentá-la – você já pode entender por que os adventistas creem que a resposta é “sim”. Cremos não só que tudo isso pode acontecer, mas que irá acontecer.

1

De um discurso de Pat Robertson feito em novembro de 1993, citado em Anti-Defamation League, The Religions Right: The Assault on Tolerance and Pluralism in America (Nova York: Anti- Defamation League, 1994), p. 4. 2 Pat Robertson em seu programa de televisão Clube dos 700, de 19 de julho de 2005, citado por Rob Boston em “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”, Church and State, junho de 2006, p. 10. 3 Citado por Rob Boston em “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”, Church and State, junho de 2006, p. 14. 4 De uma entrevista da CBS de 6 de setembro de 1984, gravada um dia após ele haver dado a bênção na Convenção Nacional Republicana; citada em Anti-Defamation League, The Religious Right, p. 4. 5 Rousas John Rushdoony, The Institutes of Biblical Law (Phillipsburg: P & R Publishing, 1973), p. 4, 9. 6 Francis A. Schaeffer, A Christian Manifesto (Westchester: Crossway, 1981), p. 28, 100, 99. 7 “The Ten Commandments Day”, http://www.tencommandmentsday.com. Nota: as palavras neste website mudam ligeiramente para o Dia dos Dez Mandamentos a cada ano. As palavras citadas aqui são referentes ao Dia dos Dez Mandamentos de 2006. 8 Signswatch, inverno de 2001, p. 4; declaração de Paul Weytich em agosto de 1980. 9 Comentário de Pat Robertson no Clube dos 700, citado em RedSonja2000 “Dominionist Dream: Repeal the 1st Amendment”, Talk to Action, http://www.talk2action.org/story/2005/12/16/103532/64. 10 Citado em “The Rise of the Religious Right in the Republican Party”, http://www.theocracywatch.org, ênfase acrescentada. 11 Ver nota 5. 12 Ver nota 6. 13 Ver nota 7. 14 Christianity and Civilization, Spring 1982, ênfase acrescentada. 15 The News-Sentinel, Fort Wayne, Indiana, 16 de agosto de 1993; citado em The Religious Right: The Assault on Tolerance and Pluralism in America, p. 4. 16 Rushdoony, The Institutes of Biblical Law, p. 4. 17 Schaeffer, A Christian Manifesto, p. 28, 100. 18 Ibid., p. 99. 19 Ibid., p. 90. 20 Ibid., p. 98. 21 Joseph Laconte, “Faith and the founding: the influence of religion on the politics of James Madison”, Journal of Church and State, 22 de setembro de 2003, p. 7; citado por Mark R. Levin em Men in Black: How the Supreme Court Is Destroying America (Washington, DC: Regnery, 2005), p. 249. 22 Address of George Washington, President of the United States, … Preparatory to His Declination (Baltimore: George and Henry S. Keatinge, 1796), p. 22, 23. 23 James Madison numa carta para Edward Livingston, 10 de julho de 1822, citado em “Pure Religion”, Liberty, dezembro de 2005, p. 13. 24 Church and State, abril de 2006, p. 24. 25 “Separation of Church and State in the United States”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Separation_of_church_and_state_in_the_United_States. 26 Schaeffer, A Christian Manifesto, p. 26. 27 Ibid., p. 54. 28 Ibid., p. 73, 74. 29 Ibid., p. 116. 30 Jon Meacham, American Gospel, God, the Founding Fathers, and the Mercy of a Nation (Nova York: Random House, 2006), p. 83, 84; ênfase acrescentada.

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E

ntão, como devemos reagir ao que vimos neste livro? Mencionarei quatro atitudes que creio serem responsabilidade de todo aquele que crê pelo menos em alguma coisa do que leu nas páginas anteriores.

Proteger a liberdade religiosa Às vezes ouço algum adventista dizer: “Por que não deixar simplesmente que a opressão religiosa assuma o controle? Isso apressará a volta de Jesus.” Essa é uma ideia muito errada. Precisamos fazer tudo que pudermos para proteger a liberdade religiosa que temos durante o maior tempo possível. Falando exatamente nesse contexto, Ellen White escreveu: “É nosso dever fazer tudo que estiver ao nosso alcance para evitar o perigo que se aproxima.”1 O que você e eu podemos fazer para “evitar o perigo que se aproxima” da perseguição religiosa? A primeira coisa que precisamos fazer é nos informarmos sobre esses assuntos. Tentei apresentá-los neste livro da maneira mais clara possível, mas ainda há muito mais que todos nós podemos aprender. Sugiro que você leia os três livros seguintes. À medida que se familiarizar com o assunto, ficará sabendo de outros livros. • La Piana, George e John Swomley. Catholic Power vs. Ameri​can Freedom. Editado por Herbert F. Vetter. Nova York: Pro​metheus, 2002. (A primeira parte, escrita por George La Piana, é especialmente útil.) • Levy, Leonard W. Original Intent and the Framers’ Constitution. Nova York: Macmillan, 1988. • Meacham, Jon. American Gospel: God, the Founding Fathers, and the Making of a Nation. Nova York: Random House, 2006. Também é uma boa ideia visitar na internet algumas organizações laicas norte-americanas. Sugiro as seguintes: • Americans United for Separation of Church and State: http://www.au.org • People for the American Way: http://www.pfaw.org/pfaw/general/ • American Civil Liberties Union: http://www.aclu.org/ Também sugiro que você se familiarize com o pensamento dos ativistas da direita cristã. Para isso, recomendo que inclua em sua lista os seguintes: The Christian Coalition: http://www.cc.org The American Center for Law and Justice: http://www.aclj.org The Moral Majority Coalition: http://www.moralmajority.us/ Uma das coisas mais importantes que você pode fazer para defender a liberdade religiosa é estar ciente das questões que envolvem a liberdade religiosa e que estão sendo debatidas no Congresso dos Estados Unidos e nas assembleias legislativas estaduais. Você ficará informado sobre grande parte delas através de comunicações por correspondência ou e-mail que receberá das organizações, tanto laicas quanto religiosas conservadoras, que mencionei acima. Porém, não basta apenas se manter ciente. Você precisa agir. Quando houver uma questão importante que diga respeito à liberdade religiosa, faça com que os senadores e deputados federais eleitos por seu estado conheçam suas convicções. Cartas, e-mails

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e telefonemas são maneiras simples de se comunicar com eles. Finalmente, vote de acordo com suas convicções na época das eleições. Você terá de equilibrar suas convicções sobre liberdade religiosa e separação entre igreja e Estado com outras questões ao decidir em quem votar. Mas não vote simplesmente em um partido. Seja um eleitor bem informado. Prepare-se para o inevitável Vários tornados atingiram o Oklahoma no verão de 1999. Lembro-me de ler no jornal sobre uma mulher que, vários anos antes, havia transformado um closet de sua casa em abrigo de tempestades ao construir uma parede de blocos de concreto ao redor dele. Quando ela e sua família ouviram um alerta sobre tornados na TV, esconderam-se todos no abrigo contra tempestades. Momentos mais tarde um tornado demoliu sua casa – mas eles sobreviveram. Essa mulher não tinha ideia de quando – ou sequer se – um tornado destruiria sua casa, mas se preparou de antemão para a possibilidade e, quando ele chegou, ela estava pronta. De acordo com as profecias que analisamos neste livro, o mundo enfrentará uma terrível crise, que consistirá em vários desastres naturais, guerras e terrorismo. A economia do mundo será abalada, provocando incalculáveis dificuldades. Ao mesmo tempo, muitos experimentarão um grande reavivamento religioso. Pessoas em todo o mundo perceberão que Deus está tentando conseguir nossa atenção e, então, se voltarão para Ele em multidões. Infelizmente, esse será também um tempo de intensa atividade satânica, e o erro desviará a muitos. Em seguida, ocorrerá a perseguição religiosa para aqueles que se recusarem seguir as práticas de adoração politicamente corretas. Aquela mulher da cidade de Oklahoma não sabia se um tornado algum dia atingiria sua casa, mas se preparou para o caso de isso ocorrer. Nós hoje não temos de ficar pensando se virá uma tempestade. Sabemos que virá porque a Bíblia o prediz. Ainda em 1896, Ellen White escreveu: “Com fúria inexorável aproxima-se a tormenta.” E então ela pergunta: “Estamos nós preparados para enfrentá-la?”3 Que preparo, então, deveríamos fazer? Sugiro três maneiras de nos prepararmos. Preparo espiritual. Seu preparo mais importante será o espiritual. É fácil dizer que você precisará de um relacionamento íntimo com Jesus. Muitas pessoas falam sobre relacionamento com Jesus, e elas obviamente estão certas. Mas o que isso significa? Como você pode desenvolver esse relacionamento com Jesus? Não é preciso dizer que você precisa estudar sua Bíblia e orar. Quanto ao estudo da Bíblia, preciso adverti-lo de que “uma palavrinha do Senhor para hoje” não é suficiente. A leitura rápida de uma página da meditação diária não é suficiente. Você precisa dedicar tempo para estudar de maneira organizada. Se você possui um plano regular de estudo da Bíblia, tal como a lição da Escola Sabatina, então continue fazendo isso. Pessoalmente, gosto de passar por todos os livros da Bíblia. Tenho um programa bíblico em meu computador que me dá acesso a várias versões da Bíblia. Posso encontrar qualquer texto da Bíblia em segundos, e o texto aparece em minha tela em todas as versões disponíveis, inclusive grego ou hebraico (dependendo da parte da Bíblia em que estou). Escrevo meu próprio comentário, um verso de cada vez, no computador. Geralmente levo de duas a três semanas para examinar apenas um capítulo. Também é importante ter familiaridade com os ensinos fundamentais da Bíblia – o que os teólogos chamam de “doutrina”. Algumas pessoas pensam que doutrina é desnecessária, e que “ter um relacionamento com Jesus” é tudo que importa. O problema com essa noção é que a doutrina afetará seu relacionamento com Jesus. Justificação e santificação são doutrinas. Lei e obediência são doutrinas. O sábado é uma doutrina. Cada um desses assuntos possui uma contribuição essencial para seu relacionamento com Jesus e, quanto melhor você os entender, mais íntimo será seu relacionamento com Ele. Assim, recomendo que você encontre uma forma de estudar os ensinos básicos da Bíblia e do cristianismo. O livro Nisto Cremos4 é uma excelente maneira de estudar biblicamente as doutrinas adventistas. Se você deseja se aprofundar mais, uma boa fonte é o Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia.5 Recomendo especialmente que você aprenda tudo o que puder sobre justificação pela fé. Será extremamente importante compreender esse assunto quando você estiver sob as pressões espirituais do tempo do fim, porque Satanás tentará você a crer que está perdido e que seu caso é sem esperança. Mas será muito difícil para ele fazer isso se você tiver compreendido corretamente a justificação pela fé. Não se esqueça de compreender a diferença entre justificação e santificação. Paulo falou detalhadamente sobre ambas nos primeiros oito capítulos de Romanos. Escrevi um livro explicando esses capítulos. O título é Forever His: How to Have a Joyful and Unbroken Relationship With Jesus

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[Para Sempre Seu: Como Ter um Relacionamento Alegre e Ininterrupto com Jesus].6 Recomendo que você adquira um exemplar e o estude cuidadosamente. A oração também é parte essencial de seu preparo para a última crise. Isso também não pode ser apenas uma conversinha de dois minutos com Deus na qual você Lhe pede que o “proteja de qualquer dano ou perigo hoje, amém”. Todos nós precisamos fazer isso, obviamente. Mas a oração é muito mais do que isso. Para começar, você precisa passar tempo de joelhos com Deus. Sua mente irá fugir para outros assuntos. A minha faz isso, e a de todas as outras pessoas. Simplesmente continue trazendo-a de volta ao assunto. Algumas pessoas preferem orar sentadas, outras deitadas. Deus não Se importa com isso. Ele simplesmente está interessado em que você passe tempo conversando com Ele e ouvindo-O. Portanto, seja de joelhos, sentado ou deitado, e seja de olhos fechados ou abertos, faça o que funciona melhor para você. Mas faça. Vencer defeitos de caráter. Minha segunda sugestão para que você se prepare espiritualmente a fim de sobreviver à crise vindoura é vencer seus defeitos de caráter, porque essas são as questões em sua vida que irão fazer com que você desista de suas convicções sob a ameaça de perseguição. Qualquer compulsão está baseada num defeito de caráter, e todos nós as temos: compulsão por comida, sexo, pornografia, trabalho, álcool, fumo, narcóticos, jogo, TV, internet – e por aí vai. E como lidar com um defeito de caráter? Vários anos atrás, escrevi um livro chamado Conquering the Dragon Within [Vencendo o Dragão que Há Dentro de Nós],7 que trata detalhadamente de como vencer compulsões e outros defeitos de caráter. Darei a vocês uma breve explicação aqui. O conceito mais importante para você ter em mente ao lutar com qualquer compulsão ou defeito de caráter é que o problema básico não é seu comportamento errado. O problema básico é seu desejo errado. Tiago disse: “Quando alguém for tentado, não diga: ‘Esta tentação vem de Deus.’ Pois Deus não pode ser tentado pelo mal e Ele mesmo não tenta ninguém. Mas as pessoas são tentadas quando são atraídas e enganadas pelos seus próprios maus desejos. Então esses desejos fazem com que o pecado nasça, e o pecado, quando já está maduro, produz a morte” (Tg 1:13-15, Nova Tradução na Linguagem de Hoje). Qualquer que seja a tentação que venha a assediá-lo, se você não desejá-la, não será vencido por ela. Se você se livrar do desejo, basicamente se livrará da tentação, e com isso se livrará do comportamento errado. Meu livro Conquering the Dragon Within tem várias sugestões práticas para você lidar com os desejos errados e com os comportamentos errados que eles provocam. Outra sugestão que partilharei aqui é agradecer a Deus pela vitória quando você ainda está sob a tentação. Você pode dizer mais ou menos o seguinte: “Obrigado, Pai, porque por Sua morte na cruz Jesus quebrou o poder que esta tentação tem sobre minha vida. Agradeço porque através de Jesus a vitória já é minha.” Você deve fazer essa oração mesmo enquanto a tentação ainda está ardendo no seu cérebro e você sente que o poder dela está para vencê-lo. Fazer essa oração é um ato de fé, e a justiça é “pela fé”. Essa oração tem sido uma das mais poderosas estratégias que descobri para vencer a tentação. Preparo físico. Parte de seu preparo espiritual para a crise final é se manter fisicamente bem preparado. É simples; você já conhece: uma dieta equilibrada (com ênfase em frutas, castanhas, leguminosas e verduras), muita água, exercício aeróbico, ar fresco e sol, e repouso adequado. Também é uma boa ideia fazer um exame físico completo ao ano, incluindo dentes e olhos. Entretanto, existe uma forma de preparo físico que recomendo que você não tente fazer. Alguns anos atrás um jovem se aproximou de mim após o culto e me perguntou se é uma boa ideia comprar uma casinha de campo nas montanhas a fim de fugir para lá no tempo de angústia. Eu disse que, se ele tivesse condições financeiras, comprar uma casinha nas montanhas era uma boa ideia como oportunidade de férias para sua família. Contudo, eu o aconselhava a não comprar a casinha de campo como preparo para o tempo de angústia. Nem aconselho guardar comida ou dinheiro para o tempo de angústia, e certamente não recomendo guardar armas e munição. Deus fará provisão para suas necessidades durante o tempo de angústia, e protegerá você dos inimigos. Compartilhe suas convicções Suponha que eu tivesse informações absolutamente certas de que em algum momento nos próximos cinco anos sua casa seria totalmente destruída pelo fogo – contudo, eu não pudesse lhe dar uma data; poderia ser a qualquer momento durante esses cinco anos. Como você gostaria que eu me relacionasse com essas informações? Talvez eu hesitasse em advertir você do perigo iminente, porque você acharia minha predição tola. O que você preferiria: que eu não lhe dissesse nada para não parecer tolo ou que eu

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lhe dissesse e deixasse você decidir o que fazer com a informação? Essa é a situação que os adventistas do sétimo dia têm enfrentado durante 150 anos. Cerca de cem anos atrás, um crítico disse que a renúncia dos Estados Unidos a seu histórico apoio à liberdade religiosa exigiria “um milagre maior do que Deus fazer crescer um carvalho gigante num instante”.8 Outro disse: “De todas as extravagantes especulações adventistas sobre profecias, [...] [a predição sobre as leis dominicais] merece figurar entre as mais extravagantes.”9 Contudo, várias tendências do mundo político e religioso norte-americano – tendências que começaram nos últimos 25 anos do século 20 e continuam até o presente – apontam na direção do cumprimento dessa profecia. Portanto, qual é nossa responsabilidade? Qual é a responsabilidade de qualquer pessoa que reconheça o perigo dessas tendências? Devemos partilhar o que sabemos? A resposta é: Sim, é claro, assim como seria certo de minha parte que eu falasse das más notícias do incêndio que destruiria sua casa nos próximos cinco anos – e terrivelmente errado de minha parte não lhe contar, com medo de que você me achasse tolo. Irei discutir três questões que você precisa conservar em mente ao partilhar com outros o que delineei neste livro. Sempre demonstre respeito. Um forte anticatolicismo “nativista” surgiu nos Estados Unidos durante o século 19, enquanto chegavam grandes levas de imigrantes de vários países católicos da Europa. O medo era que esses católicos fossem mais leais ao papa do que às instituições políticas norteamericanas. Esse anticatolicismo resultou em alguns infelizes episódios de perseguição. Hoje, porém, vemos acontecer na política norte-americana o que esses nativistas mais temiam: políticos católicos são informados pelo Vaticano de que estão pecando se seus votos no Congresso dos Estados Unidos não estiverem de acordo com os princípios morais católicos. Então, como devem reagir aqueles dentre nós que reconhecem esse problema? A reação nativista durante o século 19 foi muito intolerante e, por isso, resultou em episódios ocasionais de perseguição. Isso é totalmente impróprio. A intolerância nunca resolve problemas. Só os torna piores. Portanto, um dos princípios mais importantes a se ter em mente ao analisarmos a pergunta “Como reagiremos?” é este: sempre demonstre respeito. Devemos respeitar a todos: católicos, protestantes da direita cristã e não religiosos, pois não desejamos repetir as atitudes nativistas do século 19. É possível discordar de maneira entusiasmada e ainda mostrar respeito. Tentei modelar esse tipo de respeito neste livro. Desejo evitar a intolerância como uma praga. Nos pontos em que falhei, por favor, perdoe-me e lembre-se de que sou apenas um falível ser humano. Mostre que Jesus é o mais importante. As profecias bíblicas não salvarão ninguém. Ninguém será salvo por compreender as leis dominicais. Creio nas profecias. Elas têm seu lugar. Mas o aspecto mais importante da religião cristã é Jesus, não os eventos históricos preditos nas profecias. Portanto, um dos primeiros princípios para partilhar qualquer profecia é que você não comece por ela. Comece com Jesus. Comece com o plano da salvação. Comece com uma preocupação com as pessoas e em vê-las salvas no reino de Deus. Um importante propósito das profecias bíblicas, especialmente daquelas que lidam com o tempo do fim, é ajudar as pessoas a compreenderem os desafios à sua fé que elas experimentarão durante a crise final do mundo. É por isso que a profecia bíblica é importante. Ao advertir as pessoas do que está pela frente, damos a elas a oportunidade de se prepararem espiritualmente para que não percam a salvação que obtiveram em tempos mais pacíficos. Mas primeiro elas precisam receber essa salvação para fazer o preparo espiritual do qual irão precisar a fim de preservar a salvação durante uma crise posterior. E você não pode compartilhar um Jesus que não conhece. Isso significa que você precisa desenvolver seu próprio relacionamento com Jesus a fim de que possa partilhá-lo com outros. Testemunhe de maneira inteligente. Que tipo de lições de matemática sua professora dos primeiros anos do ensino básico lhe dava? Provavelmente lições muito simples de adição e subtração. Se não me falha a memória, só aprendi multiplicação e divisão no início do ensino fundamental, e só estudei álgebra e geometria no ensino médio. A questão é esta: começa-se com o simples e se avança para o complexo. Seria um erro os professores darem álgebra e geometria para os alunos do ensino básico. Essas matérias simplesmente não fariam sentido para eles. Eles precisam ter a base fornecida pelos problemas mais simples de matemática para compreenderem as tarefas mais complexas. O mesmo se aplica à apresentação das profecias bíblicas para aqueles que não estão familiarizados com elas. As profecias são muito complexas, e as partes mais complicadas não farão sentido para aqueles que não têm base bíblica para entendê-las. Eles pensarão que você é tolo, e a verdade é que você estaria sendo, mesmo. A tolice não estaria em sua compreensão profética. Estaria na maneira em

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que você pula para a parte mais complexa antes de ter lançado a base que as pessoas necessitam para entendê-la. As pessoas precisam conhecer Jesus primeiro. Precisam compreender o amplo alcance dos ensinos bíblicos. Antes de estudar sobre a compreensão adventista a respeito da marca da besta, precisam compreender o ensino bíblico sobre o sábado. Quando você estiver pronto para passar para as profecias, comece com algo simples como a estátua de Daniel 2. Então você pode passar para os quatro animais de Daniel 7. Com essa base, as pessoas podem compreender Apocalipse 13 e 14. Ame os não religiosos Os protestantes da direita cristã veem a si mesmos como envolvidos numa “guerra cultural” contra o secularismo. E os não religiosos lutam contra a direita cristã tão veementemente quanto esta luta contra eles. Isso me perturba profundamente. No capítulo anterior, expliquei minha preocupação pelo fato de que essa guerra cultural está rompendo a histórica cooperação entre as pessoas religiosas e as pessoas seculares, que deu uma contribuição tão vital para a liberdade religiosa nos Estados Unidos. As forças seculares atuais ainda defendem o princípio da separação entre igreja e Estado, e nisso os apoio. Felizmente, a direita cristã conservadora não é o único poder religioso nos Estados Unidos. Ainda há muitos protestantes e católicos nesse país favoráveis à tradicional cooperação entre religião e laicismo, e precisamos apoiá-los. Essa é uma das coisas que você e eu podemos fazer para defender a liberdade religiosa. Contudo, o ataque da direita cristã ao laicismo me perturba também por outra razão. Jesus ordenou a Seus seguidores que amassem seus inimigos, não que os odiassem (Mt 5:44). Mas é impossível amar seus inimigos e ao mesmo tempo se empenhar numa guerra cultural contra eles. A guerra promove ódio, não amor, e o ódio a nossos inimigos é o resultado inevitável de mudarmos a grande comissão de Cristo, da conquista de indivíduos para a reforma da sociedade. É impossível ganharmos pessoas para Jesus quando estamos em guerra com elas. As pessoas são atraídas a Jesus através de cristãos fiéis, mas não podemos atrair pessoas enquanto estamos lutando com elas. O novo “evangelismo” da direita cristã, que procura converter a sociedade para Jesus, é na verdade contraproducente para a verdadeira missão dada por Cristo, que é conquistar pessoas para Ele, amando-as. A igreja cristã primitiva vivia numa cultura que era bem mais hostil a seus interesses do que a cultura norte- americana é aos nossos, contudo, dentro de trezentos anos a igreja conquistou aquela cultura. Francis Schaeffer declara: “Deveríamos lutar e orar para que toda essa outra entidade – a cosmovisão que enfatiza o acaso e a energia material [secularismo] – possa ser repelida, juntamente com todos os seus resultados na totalidade da vida.”10 “Precisamos compreender que haverá uma batalha a cada passo do caminho. Eles [os materialistas seculares] estão determinados a fazer com que o que eles ganharam não seja repelido.”11 Essas são palavras de luta, não palavras que conquistam almas. Alguns podem protestar alegando que, a menos que lutemos por nossa liberdade, os não religiosos a tirarão de nós. Se isso acontecer, precisamos nos lembrar de que os cristãos tinham pouca liberdade nos primeiros trezentos anos do movimento, mas que, mesmo sem a liberdade, conquistaram o império. Os cristãos não ganham lutando. Ganhamos amando. E ganhamos perdendo. Essa última declaração lhe parece estranha? Lembre-se de que todos os que estavam ao redor da cruz naquela sexta-feira à tarde acharam que Jesus havia perdido. Mas o que parecia uma terrível perda era uma grande vitória. O Apocalipse diz que na crise final da Terra, a besta do mar recebe autoridade para “que pelejasse contra os santos e os vencesse” (Ap 13:7). Contudo, pouco tempo depois, esses santos estarão se unindo a Cristo em Sua segunda vinda. Os cristãos ganham perdendo. Deus não nos chamou para lutar contra os não religiosos; Ele nos chamou a amá-los. E embora eles possam nos oprimir, Jesus estará conosco até o fim (Mt 28:20). Os cristãos estão empenhados numa guerra. O Apocalipse diz que “irou- se o dragão contra a mulher e foi pelejar com os restantes da sua descendência” (Ap 12:17). Contudo, “nossa luta não é contra o sangue e a carne”. Não é contra pessoas. A elas, devemos amar. Nossa luta é “contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” (Ef 6:12). Sim, os cristãos estão engajados numa guerra. Certifiquemo-nos de que estamos lutando contra o inimigo certo.

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Ellen G. White, Eventos Finais (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001 [CD-Rom]), p. 126. As organizações People for the American Way e American Civil Liberties Union tratam de várias questões relacionadas a direitos civis, inclusive questões relacionadas à liberdade religiosa e à relação entre igreja e Estado. 3 Ellen G. White, Maranata, o Senhor Vem (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001 [CD-Rom]), p. 106. 4 Nisto Cremos: as 28 Crenças Fundamentais da Igreja Adventista do Sétimo Dia (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2006). 5 Raoul Dederen, ed., Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011). 6 Marvin Moore, Forever His: How to Have a Joyful and Unbroken Relationship With Jesus (Nampa: Pacific Press, 2004). 7 Moore, Conquering the Dragon Within: God’s Provision for Assurance and Victory in the End Time (Nampa: Pacific Press, 1995). 8 Theodore Nelson na introdução ao livro de Dudley M. Canright, Seventh-day Adventism Renounced (Nashville: Gospel Advocate Company, 1914), p. 23. 9 Ibid., p. 89. 10 Francis A. Schaeffer, A Christian Manifesto (Westchester: Crossway, 1981), p. 73, 74. 11 Ibid., p. 75. 2

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onforme eu disse no prólogo, gosto de predições extravagantes e tolas. Quanto mais extravagantes e tolas elas são, mais gosto delas. Por quê? Porque, quanto mais extravagante e tola uma predição parecer inicialmente, mais impressão causará quando se cumprir. É claro que sempre há a possibilidade de que minha predição não se cumpra. Nesse caso, minha predição não é a única coisa extravagante e tola – eu também sou! Esse é o risco que corre qualquer pessoa que faça uma predição. Portanto, é melhor estarmos seguros de que nossas predições têm um fundamento sólido e racional, de acordo com os melhores fatos disponíveis no momento. Corretamente entendidas, as profecias bíblicas proveem uma base sólida sobre a qual podemos conhecer o futuro. Neste livro, partilhei com você a base bíblica para a compreensão adventista de Apocalipse 13 e os eventos mundiais que mostram seu cumprimento parcial. Será que nossas predições são extravagantes e tolas? Ou será que... isso pode realmente acontecer? Deixo com você a decisão.

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evido aos ataques que estão sendo desferidos contra a separação entre igreja e Estado, é importante que tenhamos uma compreensão correta desse princípio. Discuti detalhadamente questões sobre igreja e Estado nos capítulos 10 e 14. Irei comentar aqui sobre três objeções apresentadas pela direita cristã contra a separação entre igreja e Estado. Tenha em mente duas coisas ao ler este adendo: (1) livros inteiros têm sido escritos sobre esse assunto; portanto, admito que minha explicação é extremamente resumida; (2) não sou um advogado especializado na Constituição; o que você lerá serão minhas reflexões pessoais após ter considerado os argumentos de ambos os lados durante vários anos.1 1. A separação entre igreja e Estado não está presente na Constituição. Jerry Falwell argumenta que a expressão “separação entre igreja e Estado” “não aparece uma única vez na Constituição”,2 e Pat Robertson afirma: “Não existe isso [separação entre igreja e Estado] na Constituição.”3 Tecnicamente, Falwell, Robertson e outros que fazem essa acusação estão corretos. Você pode ler a Constituição dos Estados Unidos do princípio ao fim e não encontrará as palavras “separação entre igreja e Estado” em qualquer parte do documento. Mas isso não significa que o conceito seja inconstitucional, assim como o fato de as palavras Trindade, encarnação e milênio não se encontrarem na Bíblia não significa que esses conceitos sejam antibíblicos. Os norte-americanos usam com frequência vários outros termos políticos, e creem fortemente neles, embora não se encontrem na Constituição. Entre eles temos “julgamento justo”, “inocente até que se prove o contrário” e “direito à não autoincriminação”.4 Os princípios que esses termos expressam encontram-se na Constituição, embora os termos em si não se encontrem. Assim, que princípio é expresso pelas palavras separação entre igreja e Estado? A perseguição dos protestantes contra os católicos na Europa medieval ainda estava fresca na mente dos fundadores dos Estados Unidos, bem como a perseguição de protestantes por católicos e de católicos por protestantes durante o período da Reforma. E ainda mais próxima da época dos fundadores estava a perseguição de dissidentes pelos puritanos durante o início do período colonial. Mesmo na época da Revolução Norte-Americana, os batistas, os quakers e outras minorias religiosas foram marginalizados pelas igrejas estabelecidas – na maioria dos casos, as igrejas episcopal e congregacional. O Estado concedia subsídios a essas igrejas maiores, enquanto proibia os ministros batistas e quakers até de pregar, e aprisionava alguns que ousavam fazer isso. Esse problema estava na mente dos fundadores dos Estados Unidos quando escreveram a Constituição. Mas como resolvê-lo? Eles criaram uma ideia radical que nunca antes havia sido experimentada: propuseram criar um governo laico que estivesse livre de embaraço com a religião. Durante a Idade Média, os governos laicos eram desconhecidos. A teoria política católica defendia naquela época – e ainda defende hoje – que o governo e a religião devem estar unidos. Não apenas isso, mas o papado afirmava que o poder religioso é superior ao civil, e, em qualquer desentendimento entre os dois, o poder espiritual (a igreja) deve prevalecer. Por outro lado, durante o mesmo período, o poder civil às vezes impunha sua vontade à igreja, para angústia desta. Tudo isso criava muitas discussões e intermináveis hostilidades. Para resolver esse problema, os fundadores dos Estados Unidos disseram: Manteremos a religião e o governo separados para que nenhum dos dois possa controlar o outro. A igreja não dirá ao governo o que fazer e o governo não mandará na igreja. O governo não promulgará leis religiosas, nem financiará a religião. E não favorecerá uma religião sobre a outra; será neutro em relação a todas as religiões, protegendo-as igualmente e dando a cada uma autonomia para desempenhar sua missão como julgar apropriado. O governo ficará inteiramente fora do campo da religião. Esse é o significado das duas

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cláusulas religiosas que constam na Primeira Emenda da Constituição: “O Congresso não fará nenhuma lei referente ao estabelecimento da religião, ou proibindo o livre exercício dela.” Resumindo, nos Estados Unidos, a separação entre igreja e Estado significa, de maneira muito simples, que governo e religião não se misturam. Um governo laico é um governo que não é controlado, ou mesmo diretamente influenciado, pela religião. Suas leis não são baseadas nas leis de qualquer religião. A separação entre igreja e Estado torna isso possível. 2. A separação entre igreja e Estado proíbe a expressão pública da religião. De vez em quando, recebo uma carta ou um e-mail acalorado de alguma organização da direita cristã protestando que a separação entre igreja e Estado está tirando a liberdade de os cristãos expressarem sua religião publicamente. Eles afirmam que a separação entre igreja e Estado está destruindo aquilo que ela visava proteger. Mas observo algo interessante quando leio essas cartas e e-mails. Em cada um desses casos, o que os ativistas da direita cristã realmente querem dizer é que estão proibidos de expressar sua religião em propriedades e instituições pertencentes ao governo. Mas a palavra “público” tem um sentido muito mais amplo que isso. Quando dou uma volta por minha vizinhança, às vezes, vejo placas amarelas com os Dez Mandamentos nos gramados das casas. Quando dirijo pela rua, vejo adesivos atrás dos carros que dizem “Jesus é o Senhor”. Ao dirigir na estrada, às vezes vejo uma placa pregada no mourão de alguma cerca dizendo: “Jesus salva”. Cada um desses exemplos é uma expressão pública de religião, e ainda estou para ouvir falar de alguém que tente proibir as pessoas de colocar essas placas, a não ser em propriedade governamental. Por que as cortes ordenam a remoção dos Dez Mandamentos de escolas e tribunais públicos? Porque escolas e tribunais são edifícios governamentais, e subentende-se que o governo seja neutro em religião. Se cristãos e judeus não podem colocar citações de seus livros sagrados em escolas públicas e gramados de tribunais, o mesmo se aplica a muçulmanos, hindus e adeptos da bruxaria. A separação entre igreja e Estado impede todas as pessoas de expressarem sua religião em propriedades e instituições do governo, mas não as impede de expressar sua religião publicamente. É um argumento ilusório afirmar que ela o faz. Não deixe que ninguém o engane com ele. 3. A separação entre igreja e Estado é um mito histórico. Como mencionei no capítulo 14, William Rehnquist, presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, disse certa vez: “O ‘muro de separação entre igreja e Estado’ é uma metáfora baseada numa interpretação errada da história”. E, na mesma linha de pensamento, o congressista Tom DeLay disse: “Afirmar que nossos Pais Fundadores eram a favor da separação entre igreja e Estado é reescrever a história ou é ser muito ignorante dela.” Essas declarações simplesmente não são verdadeiras. A expressão “separação entre igreja e Estado” remonta ao tempo dos Pais Fundadores. Numa carta à Associação Batista de Danbury, Thomas Jefferson disse: “Encaro com solene reverência o ato de todo o povo norte- americano que declarou que sua legislatura não devia fazer ‘nenhuma lei referente ao estabelecimento da religião, ou proibindo o livre exercício dela’, construindo assim um muro de separação entre a igreja e o Estado.”5 Observe que o comentário de Jefferson sobre “um muro de separação entre a igreja e o Estado” vem logo após sua citação das cláusulas religiosas da Primeira Emenda. Essa é uma clara indicação de que Jefferson – um dos fundadores da república norte-americana, se é que houve fundador – entendia que as cláusulas religiosas significavam “separação entre a igreja e o Estado”. Os oponentes da separação entre Igreja e Estado argumentam que a carta de Jefferson era um assunto particular entre ele e um pequeno grupo de batistas; portanto, não deve influenciar decisões judiciais duzentos anos mais tarde. É claro que a carta era particular – o detalhe é que ela expressava as convicções de Jefferson. Se você estivesse sendo julgado por um crime e uma carta particular a um amigo fosse lida na corte como evidência de seus pensamentos e atitudes, não seria aceita como evidência válida? É óbvio! Da mesma forma, a carta de Jefferson para os batistas de Danbury mostra o que ele – o autor da Declaração de Independência e um dos fundadores primários da República – achava sobre a separação entre igreja e Estado no que diz respeito à Primeira Emenda. A separação entre igreja e Estado tem uma longa história nos Estados Unidos desde que a nação foi fundada. No capítulo 10, citei declarações dos presidentes Andrew Jackson, John Tyler e Ulysses Grant, no século 19, em apoio da separação entre igreja e Estado. Em 1985, Billy Graham disse que os norteamericanos desfrutam “separação entre igreja e Estado, e nenhuma religião denominacional jamais foi – e oramos a Deus que jamais seja – imposta a nós”.6

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1 No apêndice B, forneço reflexões adicionais sobre “intenção original” e “ativismo judicial” – duas outras preocupações dos conservadores políticos e religiosos. 2 Fax de Falwell, de 10 de abril de 1998; citado em Church and State, maio de 1998, p. 18. 3 De um discurso de Pat Robertson feito em novembro de 1993; citado em The Religious Right: The Assault on Tolerance and Pluralism in America (Nova York: Anti-Defamation League, 1994), p. 4. 4 Para uma longa lista desses termos, veja Leonard W. Levy, Original Intent and the Framers’ Constitution (Chicago: Ivan R. Dee, 1988), p. 351. 5 Essa declaração está incluída numa carta que Jefferson escreveu para a Associação Batista de Danbury (Connecticut). É uma citação bem conhecida, disponível em muitas fontes. Uma das mais fáceis de se acessar é a Wikipedia, artigo “Thomas Jefferson”: http://en.wikipedia.org/wiki/Thomas_Jefferson#Church_and_state; ênfase acrescentada. 6 Jon Meacham, American Gospel: God, the Founding Fathers, and the Making of a Nation (Nova York: Random House, 2006), p. 214.

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este apêndice, irei comentar sobre a exigência da direita cristã de que as decisões das cortes dos Estados Unidos sempre devem estar baseadas nas doutrinas da intenção original e do originalismo, e discutirei brevemente o chamado ativismo judicial. Como mencionei no Apêndice A, você deve ter duas coisas em mente ao ler o que se segue. Em primeiro lugar, livros inteiros têm sido escritos sobre cada um desses tópicos; portanto, admito que o que digo aqui é extremamente resumido. Segundo, não sou um advogado constitucional. Expresso aqui apenas minhas reflexões após ter considerado os argumentos de ambos os lados ao longo dos anos.1

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Intenção original “Intenção original” é um conceito de responsabilidade judicial o qual declara que os juízes – especialmente os juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos e os juízes das cortes federais inferiores – devem basear suas decisões na intenção daqueles que escreveram a Constituição. Um termo relacionado é “originalismo”, o qual declara que a Constituição tem um sentido fixo que foi estabelecido na época de sua promulgação, e deve ser interpretada hoje estritamente de acordo com esse significado. Os originalistas e os partidários da intenção original não veem a Constituição como um documento que declara princípios amplos cuja interpretação pode evoluir com o tempo. Quando chega um caso diante da Corte, os juízes devem perguntar: O que os constituintes entendiam que isso significava? O que a Constituição significava, quando foi criada, no que diz respeito a esta questão? Os juízes devem sempre buscar basear suas decisões nessas determinações. Alguns juízes – embora provavelmente uma minoria – creem nos princípios do originalismo e da intenção original. Por exemplo, o juiz nomeado para a Suprema Corte, Robert Bork,2 declarou que “o originalismo procura promover a norma da lei ao comunicar à Constituição um sentido fixo, contínuo e previsível”.3 Bork também disse: “Os juízes não devem subverter a vontade das maiorias legislativas estando ausente a violação de um direito constitucional, da maneira como esses direitos eram compreendidos pelos constituintes.”4 Os ativistas da direita cristã são extremamente críticos dos juízes que não julgam de acordo com o originalismo e a intenção original. Mark R. Levin, no livro Men in Black [Homens de Preto], escreve: Na extensão em que [o princípio do originalismo] é comprometido, tanto a liberdade quanto a norma da lei são colocadas em risco. O Poder Judiciário, operando fora de seu escopo, é a maior ameaça que enfrentamos hoje ao governo representativo.5 Que dizer da intenção original? Que dizer do originalismo? Será que esses são princípios válidos para juízes da Suprema Corte seguirem ao tomarem suas decisões? Minha primeira observação é que ambos são princípios válidos para os juízes considerarem ao tomarem suas decisões. Levy afirma também: “Na maioria dos casos a intenção original deve ser seguida quando claramente discernível, e sempre merece o máximo respeito e consideração como guia interpretativo.”6 A questão é se os juízes devem sempre estar presos a um sentido fixo da Constituição e às intenções dos constituintes. Por várias razões, a resposta é “não”. Quem redigiu a Constituição dos Estados Unidos? Antes de os juízes poderem basear suas decisões no que os constituintes tencionavam, devem primeiro decidir quem eram estes. Nós os limitamos aos membros da Convenção Constitucional que se reuniu na Filadélfia entre 25 de maio e 17 de setembro de 1787? Ou devemos acrescentar os membros das convenções estaduais ratificadoras que deram aprovação final à Constituição dos Estados Unidos? E há outros que devemos considerar? Ambos os

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pontos de vista têm seus defensores. David Barton, na obra Original Intent [Intenção Original], argumenta que entre os Pais Fundadores devem ser incluídos todos os seguintes: • os 56 assinantes da Declaração de Independência; • os líderes militares mais significativos (Barton defende cerca de três dúzias) que lutaram pela independência; • os catorze presidentes que governaram os Estados Unidos entre 1774 e 1779;7 • os 55 homens que compuseram a Convenção Constitucional; • os delegados das convenções estaduais que ratificaram a Constituição; • os 90 membros do primeiro Congresso, que criou a Carta de Direitos; • os membros mais antigos da Suprema Corte; • os membros do gabinete de George Washington durante seus dois mandatos.8 Essa é uma lista e tanto! E é longa demais. Obviamente, os delegados presentes à convenção que criou a Constituição devem ser incluídos como constituintes, e é razoável incluir os delegados das convenções estaduais que ratificaram a Constituição, porque presumivelmente haviam lido o documento e dado seu consentimento a ele; não haveria Constituição sem eles. Creio que temos de restringir nossa definição de “os constituintes” a esses dois grupos. Como sabemos qual era a intenção deles? Se determinarmos quem eram os constituintes, temos então de descobrir o que eles pensavam, o que eles tencionavam. Levy salienta que “não podemos responder a qualquer pergunta sobre a intenção dos constituintes sem primeiro determinar se existem evidências que fornecerão uma resposta”.9 Mas para onde nos voltamos em busca de evidências? Quase não foram conservados registros dos procedimentos da Convenção Constitucional. Se a convenção tivesse sido realizada hoje, todos os discursos sem dúvida teriam sido gravados em áudio e talvez até em vídeo, e a intenção dos delegados teria sido clara para todos verem. Mas anotações manuais eram a única maneira de registrar os procedimentos naquele tempo, e as anotações manuais são demasiado lentas para conseguir acompanhar a velocidade normal da fala. Assim, era impossível fazer registros completamente acurados do que foi dito na Convenção Constitucional. Além disso, o único que fez o que se aproxima de um registro dos procedimentos foi James Madison, e ele só publicou suas notas uns 50 anos mais tarde, e nesse tempo ele já teve que recorrer à memória para preencher as lacunas. Além disso, nesse tempo seu próprio discernimento já havia amadurecido; ele já havia até mudado de ideia sobre algumas questões constitucionais significativas, e isso pode ter alterado seu pensamento enquanto preparava o registro da convenção para ser publicado. Os procedimentos das convenções estaduais ratificadoras são ainda mais esparsos e bem mais problemáticos. A convenção estadual da Pensilvânia tem o melhor registro disponível. Levy afirma: “Os debates de nenhum outro estado foram tão plenamente registrados, ou, antes, reconstruídos a partir de jornais e tratados.”10 Note cuidadosamente o que Levy escreve: o registro dos debates da Pensilvânia foi em grande extensão reconstruído “a partir de jornais e tratados”. O problema é que jornais e tratados não são atas oficiais. São relatórios dos procedimentos da convenção da Pensilvânia feitos por jornalistas e escritores, e essa é uma fonte pouco digna de confiança para determinar as opiniões dos constituintes. Eldrid Gerry, que foi delegado da convenção da Pensilvânia, mais tarde reclamou que os “debates das convenções estaduais, publicados por escritores que haviam feito notas taquigráficas, eram geralmente parciais e mutilados”.11 Começando em 1827, um homem chamado John Elliott publicou The Debates in the Several State Conventions, on the Adoption of the Federal Constitution [Os Debates das Várias Convenções Estaduais sobre a Adoção da Constituição Federal]. Contudo, seus Debates “relatam de maneira não confiável os procedimentos de apenas cinco estados, além de alguns fragmentos de outros”.12 Seu relatório dos procedimentos da Pensilvânia foram particularmente falhos porque ele citou apenas os discursos de James Wilson e Thomas McKean, ambos os quais eram federalistas que favoreciam a ratificação. Ele ignorou todos os oponentes à ratificação. Não é de admirar que Levy diga: “Os relatos existentes [da Convenção Constitucional e das convenções estaduais ratificadoras] simplesmente não são suficientemente amplos, um fato que torna completamente impossível uma jurisprudência da intenção original.”13 Não existe unanimidade. Uma importante falha na doutrina da intenção original é o pressuposto de

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que os delegados da Convenção Constitucional e das convenções estaduais ratificadoras tinham todos o mesmo pensamento sobre o significado do documento que produziram. Mas é simplesmente irrealista esperar que 55 pessoas numa sala estejam todas de acordo sobre todos os aspectos de um documento tão complexo quanto a Constituição dos Estados Unidos. E obter unanimidade de opinião nas convenções de 13 estados é ainda menos provável. Se você tem acesso ao C-Span (o canal do governo dos Estados Unidos) na TV por assinatura, passe uma hora assistindo aos procedimentos do Senado dos Estados Unidos. Você verá uma enorme diversidade de opiniões. O mesmo certamente teria sido o caso com respeito à Convenção Constitucional e às convenções ratificadoras estaduais. Levy acrescenta que o termo “‘intenção’ [original] é insatisfatório porque implica numa única ou uniforme condição mental, ou de propósito, ou de compreensão, por parte dos constituintes e mesmo dos ratificadores da Constituição. ‘Intenções originais’ [no plural] seria uma expressão muito melhor”.14 Os constituintes, conclui Levy, “discordavam em muitos assuntos cruciais”. Por isso, “durante várias décadas após a ratificação da Constituição as recordações distantes daqueles que haviam estado presentes à Convenção Constitucional da Filadélfia forneceram as principais evidências da intenção dos constituintes. Mesmo quando essas recordações eram claras, os constituintes discordavam veementemente sobre o que a Convenção tinha significado ou tencionado”.15 Por causa desses pontos de vista conflitantes na mente dos constituintes, um problema óbvio com a doutrina da intenção original é que, ao se escolher quem se cita, é possível fazer os constituintes dizerem quase qualquer coisa que se desejar. E mesmo então, a fonte que alguém cita pode ser mais um reflexo das anotações falhas de um repórter, de sua memória imperfeita ou de sua percepção tendenciosa sobre o que o constituinte disse, do que uma representação acurada do que o constituinte em questão realmente queria dizer. Originalismo. Uma das principais questões com respeito à Constituição é se ela tem um significado fixo para todos os tempos ou se ela é um “documento vivo” cujo significado evolui com o tempo. Aqueles que defendem um sentido fixo são “originalistas”. São também chamados “construcionistas estritos” porque desejam que a Constituição seja interpretada exatamente de acordo com o que ela significa, e nada mais. Aqueles que advogam uma interpretação mais flexível veem a Constituição como um “documento vivo” que é adaptável a muitas circunstâncias e situações. Os ativistas da direita cristã são quase sem exceção construcionistas estritos. Um importante problema com a compreensão construcionista estrita é que os constituintes não poderiam ter previsto todas as miríades de situações com as quais o Congresso teria de lidar ou que seriam levadas à Suprema Corte à medida que os anos se passassem. Por essa própria razão, os constituintes parecem ter intencionalmente deixado ambíguas muitas partes da Constituição, para que sua interpretação fosse adaptável a uma variedade de situações. E as circunstâncias de fato mudam. Levy apropriadamente declara que os constituintes e ratificadores não podem falar de seus túmulos para dirigir nossa vida resolvendo as questões constitucionais de nossa época. Vivemos num mundo de aeronaves supersônicas, DNA recombinante, robôs, computadores, micro-ondas, ecologia de aldeia global, exploração interplanetária e de uma economia mundial interdependente. Nossos problemas particulares de lei constitucional não podem ser resolvidos pela sabedoria e discernimento daqueles que elaboraram e ratificaram a Constituição, muito embora observemos a intenção deles em muitos assuntos cruciais e fundamentais.16 Mesmo que pudéssemos ressuscitar os constituintes de sua sepultura e lhes pedir que resolvessem nossos problemas de acordo com sua intenção original, eles não falariam com uma só voz. Observei pouco acima que eles estavam tão profundamente divididos em sua época como estamos em nossa e, se estivessem vivos para debater nossos problemas, estariam tão profundamente divididos quanto nós estamos. Ativismo judicial Os defensores da intenção original muitas vezes reclamam sobre o ato dos juízes de hoje de “legislar dos tribunais”. Outro termo para isso é ativismo judicial. Essa objeção é baseada na ideia do originalismo – de que a Constituição tem um significado fixo para todos os tempos, e que é responsabilidade dos juízes determinar esse significado e tomar todas as decisões em harmonia com esse

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significado predeterminado. Sobre juízes que tomam decisões fora desse significado original da Constituição, às vezes é dito que são “ativistas judiciais” e que estão “legislando dos tribunais”. Isto é, em vez de interpretarem a lei, eles a estão criando. De acordo com esse ponto de vista, é responsabilidade do poder legislativo criar leis. A única responsabilidade do judiciário é interpretar leis, inclusive a Constituição. Há dois ou três problemas importantes com esse ponto de vista. O primeiro é a crença equivocada de que os juízes podem de alguma forma interpretar a lei sem ao mesmo tempo criá-la. Vários anos atrás, recebi uma multa de trânsito e decidi contestá-la no tribunal. Infelizmente, a decisão do juiz foi contrária a mim. Quer eu gostasse disso ou não, a decisão do juiz teve força de lei para mim. Tive de pagar a multa. Toda decisão judicial, da menor à maior, é imposta como lei. É lei. A direita cristã objeta que os juízes tomam decisões em áreas às quais a Constituição não se dirige. Os ativistas da direita cristã muitas vezes dizem que os juízes de hoje criam direitos que não existem na Constituição. Por exemplo, Robert Bork, nomeado à Suprema Corte, declarou: “Os juízes podem olhar para o texto, a estrutura e a história da Constituição, mas estão proibidos de inventar direitos extraconstitucionais.”17 Contudo, voltando a um argumento que apresentei há pouco, é solicitado aos juízes de hoje que julguem questões das quais os constituintes não tinham qualquer noção. Para citar Levy novamente: Os magistrados que olham para a Constituição em busca de mais do que simplesmente uma frase enigmática embora majestosa, poderiam igualmente se voltar para as histórias em quadrinhos em busca de orientações práticas sobre como decidir a maioria dos grandes casos que envolvem política pública nacional, quer a questão esteja relacionada ao número de representantes legislativos por estado, ao uso de imunidade, à pornografia, a vereditos judiciais sem unanimidade, à segregação racial, à ação afirmativa, à escuta ilegal, à regulamentação de tarifas públicas, ao trabalho infantil, a atividades subversivas, à busca sem mandado judicial, à redução da safra agrícola, à estatização de siderúrgicas, ou à presença de um advogado durante a identificação criminal.18 A lista de Levy prossegue, mas você já entendeu. Levy conclui dizendo: A Constituição não contém uma única palavra sobre essas ou a maioria dos assuntos de considerável importância com os quais a Corte precisa lidar. Esse fato, paradoxalmente, é um grande ponto forte da Constituição, respondendo em parte por sua longevidade e vitalidade, porque permite a adaptação evolutiva a novas necessidades.19 Os ativistas da direita cristã às vezes respondem que na ausência de orientação constitucional, a Corte deve permitir que os cidadãos da nação decidam a questão através de emendas em vez de uma decisão judicial que cria uma nova lei. Contudo, isso seria uma forma extremamente incômoda de resolver as milhares de questões que são levadas perante a Corte. Vinte e sete emendas à Constituição foram ratificadas nos dois séculos seguintes ao estabelecimento do governo dos Estados Unidos (4 de março de 1789). Dessas, 10 estavam na Carta de Direitos, deixando 17 emendas para serem ratificadas nos anos seguintes. Isso dá a média de uma a cada 13 anos. Imagine a dificuldade que a nação enfrentaria se toda decisão da Suprema Corte que não pudesse ser baseada nas palavras da Constituição tivesse que ser decidida por emenda constitucional! Todos os tipos de questões simplesmente ficariam sem ser resolvidos. Proibir os juízes de julgar sobre assuntos a respeito dos quais a Constituição não fala criaria um horrível e intolerável caos nacional. Um dos problemas com a acusação de ativismo judicial é que, em grande parte, o fato de alguém crer que um juiz “legislou do tribunal” depende se determinado observador gostou ou não da decisão tomada pela Suprema Corte. Afinal de contas, se a Constituição não fala sobre determinado assunto, então os juízes são tão culpados de “legislar dos tribunais” nas situações em que a direita cristã está contente com a decisão como nos casos em que ela está descontente. Mas os únicos casos dos quais eles reclamam são as decisões que eles não gostam. Em sua pressa de exigir uma diminuição de autoridade da Suprema Corte, a direita cristã passa por alto o fato de que em qualquer organização humana alguém tem de assumir a responsabilidade. Alguém tem de ter a palavra final em situações em que as pessoas em posição inferior na hierarquia discordam. Muito cedo em sua história, a Suprema Corte assumiu essa responsabilidade, e desde então isso tem

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permanecido como um princípio operativo fundamental do governo dos Estados Unidos. Além disso, no sistema norte-americano, certos direitos são “inalienáveis”, para citar a Declaração de Independência – o que significa que esses direitos não podem ser sobrepujados pelo voto da maioria. Às vezes, conflitos que inevitavelmente ocorrem entre indivíduos ameaçam direitos inalienáveis. Os ativistas da direita cristã, por exemplo, gostam de dizer que os direitos da maioria estão sendo minados pela minoria. Mas em nosso sistema de governo, às vezes tem de ser dessa forma. E, no governo norteamericano, a Suprema Corte tem a responsabilidade de tomar as decisões difíceis quando pessoas em lados opostos de uma questão não conseguem resolver sozinhas seus interesses conflitantes. Em seu livro In God We Trust [Em Deus Confiamos], a escritora Kathryne Page Camp faz uma provocativa pergunta e a responde: A Suprema Corte sempre dá a resposta certa? É claro que não. Os juízes da Suprema Corte são humanos. Mas alguém tem de decidir, e os Pais Fundadores criaram um sistema em que cada um dos três poderes impõe limites ao outro e o poder judiciário tem a palavra final. Embora o sistema possa ser imperfeito, a maioria dos cidadãos dos Estados Unidos não está disposta a trocá-lo por quaisquer dos sistemas que existem em outros países. Isso significa que a Suprema Corte tem de ficar com essa tarefa, e os Estados Unidos têm de conviver com as decisões tomadas pela Suprema.20 Infelizmente, alguns norte-americanos estão cada vez menos dispostos a viver com essas decisões. Ao satirizar os juízes da Suprema Corte como “tolos”, “membros da Ku Klux Klan” e outros termos depreciativos, essas pessoas estão minando um dos poderes fundamentais do governo que tem mantido norte-americanos de todas as opiniões religiosas livres por mais de duzentos anos. Minha preocupação é que essas vozes estão crescendo em número e aumentando em volume. Onde isso vai terminar? Concluindo, quero partilhar com vocês o que Leonard W. Levy considera a intenção fundamental dos constituintes: A majestosa abertura do Preâmbulo [da Constituição], “Nós, o povo”, evoca a ideia ainda radicalmente democrática de que o governo dos Estados Unidos existe para servir o povo, não o povo para servir o governo. Isso é fundamental na intenção original dos constituintes, como também o é a ideia associada de que o governo nos Estados Unidos não pode nos dizer o que pensar ou crer sobre política, religião, arte, ciência, literatura ou qualquer outra coisa; os cidadãos norte-americanos têm o dever, bem como o direito, de impedir que o governo caia em erro, e não o contrário.21

1 Dois livros que tratam da intenção original, um de cada lado do assunto, ajudaram-me a compreender as questões envolvidas: Original Intent and the Framers’ Constitution, de Leonard W. Levy (Chicago: Ivan R. Dee, 1988), e Original Intent: The Courts, the Constitution, & Religion, de David Barton (Aledo, TX: WallBuilders, 2000). Levy é um historiador constitucional. Barton é um leigo que fundou a organização Wallbuilders, da direita cristã em Aledo, Texas. Dos dois livros, acho o de Levy bem mais persuasivo. 2 A nomeação de Bork pelo presidente George H. W. Bush foi tão controvertida que Bork acabou retirando seu nome das considerações. 3 Mark R. Levin, Men in Black: How the Supreme Court is Destroying America (Washington, DC: Regnery Publishing, 2005), p. 13. 4 Ibid.; ênfase acrescentada. 5 Ibid. 6 Ibid., p. x. 7 Antes da adoção da Constituição, cada presidente do Congresso Continental, que foram em número de catorze entre 1774 e 1779, essencialmente serviu como presidente da nação. 8 Barton, Original Intent, p. 123, 124. 9 Levy, Original Intent and the Framers’ Constitution, p. 284. 10 Ibid., p. 289. 11 Ibid. 12 Ibid. 13 Ibid., p. 285. 14 Ibid., p. xiv, xv. 15 Ibid., p. ix. 16 Ibid., p. 298, 299. 17 Levin, Original Intent and the Framers’ Constitution, p. 13; ênfase acrescentada. 18 Ibid., p. 352. 19 Ibid., p. 353. 20 Kathryn Page Camp, In God We Trust: How the Supreme Court’s First Amendment Decisions Affect Organized Religion (Grand Rapids:

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Faith Walk Publishing, 2006), p. 5. 21 Levy, Original Intent and the Framers’ Constitution, p. x.

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firmei no capítulo 1 que a Igreja Adventista do Sétimo Dia cresceu até chegar a mais de 16 milhões de membros hoje, enquanto a denominação batista do sétimo dia, da qual um membro apresentou o sábado aos adventistas 160 anos atrás, permaneceu relativamente estática com 50 mil membros. Uma das razões primárias para essa diferença é que, como salientei no capítulo 1 e você viu neste livro, os adventistas incluíram um componente escatológico em seu ensino sobre o sábado. Contudo, isso em si não torna o sábado um ensino bíblico importante. Então, por que o sábado é importante? Essa é a pergunta da qual tratarei brevemente neste apêndice. O sábado é importante simplesmente porque é parte dos Dez Mandamentos, que são o fundamento da moralidade judaico-cristã. Apocalipse 12:17 e 14:12 diz que o povo de Deus no tempo do fim guarda “os mandamentos de Deus” e isso, obviamente, inclui o mandamento do sábado. Naturalmente os cristãos que observam o domingo também reconhecem a importância do dia de descanso por causa da inclusão dele nos Dez Mandamentos. D. James Kennedy, pastor da Igreja Presbiteriana de Coral Ridge, em Fort Lauderdale, na Flórida, escreveu: “A partir do testemunho da igreja primitiva, do testemunho de nossa vida desordenada e do testemunho de nossa sociedade que cambaleia à beira do colapso moral, vemos que a necessidade do dia de repouso é verdadeiramente urgente.”1 Um dos argumentos mais comuns para a observância do domingo é que não importa que dia uma pessoa guarde, contanto que seja um dia em sete. Essa linha de raciocínio pressupõe que todos os dias são iguais e que o dia de descanso pode ser qualquer um deles. Contudo, a Bíblia não ensina que o sábado é igual a qualquer outro dia. Quando Deus criou o sábado no Éden, Ele “abençoou [...] o dia sétimo e o santificou” (Gn 2:3, ênfase acrescentada). E o quarto mandamento declara: “Porque, em seis dias, fez o Senhor os Céus e a Terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou” (Êx 20:11, ênfase acrescentada). O sábado é diferente porque é um tempo santo, separado pelo próprio Deus para um propósito especial. Portanto, não podemos simplesmente dizer que não faz qualquer diferença que dia uma pessoa guarda, porque o dia que Deus ordenou que guardássemos na verdade é diferente dos outros seis dias da semana. É tempo santo. Quando Deus designa algo particular e dá uma ordem sobre isso, Ele quer dizer exatamente aquilo e não alguma outra coisa. Você pode imaginar Adão e Eva dizendo: “Veja, há muitas árvores no jardim. Se escolhermos uma das muitas, não faz qualquer diferença qual é a árvore do conhecimento do bem e do mal.” Não acho que Deus teria aceitado essa linha de raciocínio. Quando Moisés se aproximou da sarça ardente no deserto do Sinai, a Bíblia diz que Deus lhe falou: “Tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra santa” (Êx 3:5). Você pode imaginar Moisés interrompendo a Deus e dizendo: “Senhor, Tu sabes aquele bosque do outro lado da montanha onde eu Te adoro todas as manhãs? Aquele é meu lugar santo. Por favor, vamos conversar lá”. Em seguida, Moisés corre para o outro lado da montanha? Você acha que Deus teria aceitado isso? É claro que não! Da mesma forma, quando Deus designa um dia particular da semana como santo, Ele quer dizer aquele dia e não outro dia qualquer. Algumas pessoas argumentam que já houve muitas mudanças de calendário nos últimos milênios para que possamos ter certeza de que dia é o sábado. Porém, como os judeus têm guardado o sábado tão estritamente ao longo da história, essa ideia é falsa. Jesus guardou o mesmo dia que os judeus guardavam em Sua época, e sabemos que o ciclo semanal tem permanecido intacto durante esses dois milênios desde então. O Novo Testamento fala da abolição das leis cerimoniais do ritual do templo israelita. Hebreus 9 e 10

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deixam isso claro. O Novo Testamento também dá testemunho do fim do ritual judaico da circuncisão. Contudo, não há nenhum indicativo de que Deus tenha removido a santidade do sábado ou de que Ele o tenha mudado para o domingo. Alguns estudiosos argumentam que o sétimo dia é um aspecto cerimonial do mandamento relativo ao dia de descanso. Contudo, as leis cerimoniais levíticas abolidas no Novo Testamento tratavam de rituais do templo, que apontavam para a vida, morte e ressurreição de Cristo. O sábado, por outro lado, foi estabelecido na criação, e o mandamento do sábado aponta para a criação. Alguns cristãos dizem: “Adoro a Deus todos os dias.” Os adventistas respondem: “Ótimo! Você deve fazer isso. Ficamos felizes que você o faça.” Outros cristãos dizem: “Todos os dias são dias de descanso”. Os adventistas respondem que se todos os dias são dias de descanso, então nenhum dia é dia de descanso, pois o mesmo Deus que separou o sétimo dia como tempo santo também ordenou que trabalhássemos nos outros seis dias. O fato mais importante sobre o sábado é que ele é um tempo santo, separado pelo próprio Deus, e nós, seres humanos, não estamos autorizados a mudar Seu código moral, os Dez Mandamentos. Portanto, os adventistas continuam a guardar o sábado, como Deus ordenou.

1 D. James Kennedy, Why the Ten Commandments Matter (Nova York: Warner Faith, 2005), p. 81, 82, na cópia de leitura pré-publicação do editor.

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uitos cristãos argumentam que o Novo Testamento autoriza a mudança no dia de descanso do sétimo para o primeiro dia da semana. A melhor resposta a essa afirmação é: “Mostre-me o texto do Novo Testamento que autoriza isso.” O fato é que não existe tal texto. Como você sabe, Paulo ensinava que os gentios não precisavam se circuncidar para aceitar a Jesus e se tornar cristãos. Infelizmente, nem todo mundo concordava com ele. Alguns judeus o perseguiam persistentemente por seu ensino sobre a circuncisão. A certa altura ele chegou a dizer: “Tomara até se mutilassem [castrassem] os que vos incitam à rebeldia” (Gl 5:12). Os judeus na época dos apóstolos atribuíam ainda maior significado ao sábado que à circuncisão. Assim, qualquer mudança no dia de descanso teria provocado uma discussão muito maior que a ocorrida devido à circuncisão, e isso certamente estaria refletido no Novo Testamento. Mas o Novo Testamento não diz absolutamente nada sobre qualquer controvérsia desse tipo. Esse é um dos mais fortes argumentos contra a ideia de que o Novo Testamento apresenta uma mudança do dia a ser observado. Apesar disso, os defensores da observância do domingo apontam vários textos do Novo Testamento para justificar sua prática. Examinarei esses textos a seguir.

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Atos 20:7 Aqueles que defendem a observância do domingo costumam citar dois textos sobre o “primeiro dia da semana” como evidência de que uma tendência nessa direção já se havia iniciado no 1º século. Um desses textos é Atos 20:7, que fala sobre uma reunião que Paulo dirigiu na igreja de uma cidade chamada Trôade.1 Atos 20:7 afirma: “No primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de partir o pão, Paulo, que devia seguir viagem no dia imediato, exortava-os e prolongou o discurso até à meia-noite.” Quando ocorreu essa reunião, Paulo já havia completado sua terceira viagem missionária ao redor da Ásia Menor e sudeste da Europa, e estava a caminho de volta para Jerusalém. O verso 25 declara que essa era a última vez que ele esperava estar no local. Assim, seria a última oportunidade para os cristãos de Trôade ouvi-lo. O ponto significativo a ser notado é que essa reunião começou num sábado à noite e continuou até o amanhecer do domingo (v. 11). O livro de Atos se refere ao primeiro dia da semana porque, de acordo com o cômputo judaico, o sétimo dia termina e o primeiro dia começa ao pôr do sol. A New English Bible traduz: “no sábado à noite” em vez de “no primeiro dia da semana”. Portanto, será que esse texto é evidência de que a observância do domingo já se iniciara na igreja daquele tempo? Se isso fosse verdade, colocaria um selo apostólico de aprovação sobre a guarda do domingo. Contudo, os fatos, nesse caso, mostram que, longe de indicar uma base bíblica para a guarda do domingo, essa reunião foi uma exceção à prática comum. A mais clara evidência para isso é que a reunião durou até o início da madrugada. As pessoas naquele tempo não estavam acostumadas a ouvir sermões que se prolongavam até a madrugada, assim como não estamos hoje! Mas estavam dispostas a permanecer naquela reunião porque Paulo iria partir no dia seguinte, e elas sabiam que nunca mais iriam vê-lo. O livro de Atos chama a atenção para o fato de que a reunião ocorreu no primeiro dia da semana, não porque isso fosse comum, mas porque esse foi um dos vários fatores incomuns nessa reunião em particular. 1 Coríntios 16:1 e 2 Esse texto diz: “Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade, e

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vá juntando, para que se não façam coletas quando eu for.” Havia uma fome na Palestina quando Paulo escreveu essas palavras, e ele estava pedindo oferta às igrejas da Europa e Ásia Menor para ajudar os cristãos atingidos pela fome. Foi por isso que ele disse aos cristãos de Corinto para separarem dinheiro. Alguns cristãos afirmam que Paulo estava instruindo os membros da igreja de Corinto a recolher uma oferta durante sua reunião de culto semanal. Se isso fosse correto, então de fato essa passagem forneceria evidências da observância do domingo no Novo Testamento. Contudo, uma leitura atenta do texto grego descarta essa interpretação. Paulo disse, literalmente, que no primeiro dia da semana cada um dos cristãos coríntios “ponha junto a si, guardando o que venha de sua prosperidade”. As palavras de Paulo “ponha junto a si” significam que ele estava instruindo os cristãos de Corinto a poupar seu dinheiro em casa, não na igreja. As palavras gregas “ponha junto a si” são o equivalente de “em casa”. A edição em espanhol da altamente respeitada Bíblia de Jerusalém diz: “Reserve em su casa”; isto é, “Reserve [ou separe] em casa”. A Almeida Revista e Atualizada traduz: “No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade.” Apocalipse 1:10 Esse verso afirma que João se viu “em espírito, no dia do Senhor”. As pessoas que estão buscando apoio bíblico para sua prática de observar o domingo afirmam que “o dia do Senhor” significa o domingo. Mas estão introduzindo no texto uma ideia que ele em si não declara. Ao contrário, Jesus afirmou ser Senhor do sábado – o dia que os judeus estavam observando (Mc 2:27, 28). E Isaías – que escreveu seu livro quando o último dia da semana era o único que qualquer pessoa do povo de Deus já tinha ouvido falar que se guardasse – chamou o sábado de “santo dia do Senhor” (Is 58:13). Portanto, de acordo com a definição bíblica de “dia do Senhor”, esse é o sétimo dia da semana, e não o primeiro. Colossenses 2:16 e 17 Os defensores da observância do domingo frequentemente usam esse texto, que diz: “Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo.” A palavra grega traduzida como “sábado” em Colossenses 2:16 é sabbatōn. Essa é a mesma palavra, no singular ou no plural, que é traduzida como “sábado” em todas as outras ocorrências do Antigo ou do Novo Testamento em grego.2 A palavra em si mesma pode se referir ao sábado semanal ou aos sábados cerimoniais anuais descritos no Antigo Testamento. Existem algumas possíveis interpretações desse texto, e nenhuma delas fornece uma base adequada para se concluir que a igreja do Novo Testamento estava observando o primeiro dia da semana. A resposta adventista tradicional para esse texto é que o “sábado” de Colossenses 2:16 eram os sábados anuais do ritual do templo judaico, não o sábado semanal. Alguns comentaristas argumentam que, devido ao fato de sabbatōn em Colossenses 2:16 ser plural, se refere ao sábado semanal. Contudo, o plural de sabbatōn é usado em outras partes do Novo Testamento para um único sábado (Mt 28:1). Não podemos determinar, com base na forma grega da palavra, se sabbatōn se refere aos sábados semanais ou aos sábados cerimoniais. Temos de determinar isso de outras maneiras, principalmente examinando o contexto. Paulo mencionou dois elementos em Colossenses 2:16 que podem nos ajudar a descobrir se o sábado em questão era o sábado semanal ou os sábados anuais. O primeiro elemento é que “sábado” é a última de várias questões sobre as quais os cristãos colossenses estavam aparentemente julgando um ao outro. As outras eram escolhas sobre o que comer e beber, festas religiosas e lua nova. Todas essas coisas eram parte do sistema cerimonial judaico. Em segundo lugar, Paulo disse que tudo isso “tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo”. Então, Paulo não estava falando simplesmente sobre o que as pessoas comiam ou bebiam em suas refeições normais. Ele tinha em mente o comer e beber que era uma sombra de Cristo. Também tinha em mente a observância de festas religiosas e comemorações de lua nova que apontavam para Cristo. Sabemos que a lei cerimonial exigia que os judeus trouxessem várias ofertas de comida e bebida ao templo como parte de sua adoração (ver, por exemplo, Lv 7:12-18 [ofertas de comida]; Lv 23:13; Nm

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15:10 [ofertas de bebida]). Também ordenava a observância de vários dias de descanso ao longo do ano (Lv 23:4-44), e a lua nova devia ser celebrada no primeiro dia de cada mês (Nm 10:10; 28:11). Tudo isso era de fato “sombra das coisas que haviam de vir” – isto é, da vida, morte e ressurreição de Cristo. Foi por isso que Paulo disse: “porém o corpo é de Cristo” (Cl 2:17). Quando Cristo veio, Ele cumpriu todas essas sombras e tipos, incluindo os sacrifícios animais, e eles cessaram de existir. Isso é consistente com a declaração em Hebreus de que todo o ritual do santuário era “figura e sombra das coisas celestes” (Hb 8:5, ênfase acrescentada). O sábado semanal nunca foi sombra de coisa alguma. O quarto mandamento apresenta o sábado semanal como um memorial da criação: “Porque, em seis dias, fez o Senhor os Céus e a Terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou” (Êx 20:11). Mesmo no tempo em que Deus deu os Dez Mandamentos, a criação era um evento no distante passado e não uma sombra de Cristo, cuja vinda ainda estava no futuro. Isso exclui a hipótese de o sábado em Colossenses 2:16 ser o sábado semanal. Por outro lado, todos os sábados cerimoniais apontavam para Cristo, exatamente como Paulo disse. Assim, em Colossenses 2:16, Paulo estava se referindo aos sábados anuais do ritual do santuário hebraico, não ao sábado semanal do quarto mandamento. Essa é a explicação adventista tradicional de Colossenses 2:16, 17. Mas outras respostas também são possíveis, mesmo crendo-se que Paulo realmente tinha em vista o sábado semanal. O propósito básico de Paulo ao escrever Colossenses era condenar falsos mestres e aconselhar os membros da igreja da cidade a resistir às práticas ascéticas das quais esses mestres estavam tentando persuadi-los. Muitos comentaristas afirmam que esses falsos mestres não eram os cristãos judeus que seguiam Paulo por onde ele ia, insistindo que os gentios tinham de se tornar judeus e se submeter a todas as leis cerimoniais judaicas antes de se tornar cristãos. Eram, em vez disso, mestres gnósticos que insistiam num estilo de vida ascético. Isso é evidente em Colossenses 2:20-23, em que Paulo escreve: “Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças; não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro [...]? [...] Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade.” Se Paulo de fato tinha o sábado semanal em mente quando escreveu Colossenses 2:16, então esses falsos mestres obviamente estavam ensinando formas distorcidas de observar esse dia. Paulo não o diz explicitamente, mas, devido às rigorosas tendências ascéticas deles, os falsos mestres talvez estivessem insistindo em regras muito legalistas sobre a guarda do sábado. Quaisquer que fossem os detalhes, Paulo disse: Não permitam que eles julguem vocês sobre a maneira de guardar o sábado. Assim, Paulo não estava proibindo a guarda do sábado em Colossenses 2:16. Não estava dizendo aos cristãos colossenses que o sábado tinha sido abolido e não precisava mais ser guardado. Não há qualquer alusão a isso no texto. Ao contrário, se o sábado nesse texto de fato se refere ao sábado semanal, é óbvio que os cristãos colossenses ainda estavam guardando o dia, e o conselho de Paulo foi: Não deixem esses falsos mestres julgarem vocês por isso. Colossenses 2:16 e 17 se torna, dessa forma, um argumento em favor da observância do sábado no Novo Testamento, não um argumento contra ela. Há uma lição prática nisso para os cristãos atuais. Muitos de nós também temos várias convicções sobre o sábado, e é importante que levemos o conselho de Paulo a sério e evitemos julgar uns aos outros no que diz respeito a nossas escolhas.

1 Trôade ficava na Ásia Menor (moderna Turquia), exatamente ao sul do Helesponto, a estreita passagem aquática que separa a Europa da Ásia Menor. 2 O Antigo Testamento foi originalmente escrito em hebraico e aramaico, mas foi traduzido para o grego cerca de dois séculos antes de Cristo.

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Índice Folha de rosto Expediente Agradecimentos Prólogo Capítulo 1: O Cenário Profético Adventista Capítulo 2: O Quadro Mais Amplo do Apocalipse Parte 1: A Besta do Mar Capítulo 3: Apocalipse 13 e a Besta do Mar Capítulo 4: O Antigo Papado: Começo e Fim de seu Poder Político Capítulo 5: O Moderno Papado: Cura da Ferida Mortal Capítulo 6: Toda a Terra se Maravilhou Capítulo 7: Teoria Política Católica Antes do Concílio Vaticano II Capítulo 8: Teoria Política Católica Após o Concílio Vaticano II

Parte 2: A Besta da Terra

2 3 4 5 6 11 16 17 22 30 41 44 50

55

Capítulo 9: Apocalipse 13, a Besta da Terra e a Imagem da Besta Capítulo 10: Separação Entre Igreja e Estado na História Norte-Americana Capítulo 11: Surgimento do Movimento Conservador nos Estados Unidos Capítulo 12: Surgimento da Direita Cristã nos Estados Unidos Capítulo 13: Consequências da Direita Cristã nos Estados Unidos Capítulo 14: Ataque à Separação Entre Igreja e Estado Capítulo 15: Católicos na História Norte-Americana: 1776 a 1960 Capítulo 16: Católicos na História Norte-Americana: 1960 a 2004

Parte3: A Marca da Besta

56 60 69 72 78 82 89 94

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Capítulo 17: A Marca da Besta: Considerações Preliminares Capítulo 18: Apocalipse 13 e a Marca da Besta Capítulo 19: Os Estados Unidos e a Marca da Besta Capítulo 20: Reconstrucionismo e Dominionismo Cristãos Capítulo 21: Dominionismo e Triunfalismo Capítulo 22: Como Acontece a Perseguição Capítulo 23: A Crise Final Capítulo 24: Encaixando as Peças Capítulo 25: Como Devemos Reagir?

Apêndice A: Reflexões Sobre a Separação Entre Igreja e Estado Apêndice B: Reflexões Sobre “Intenção Original” e “Ativismo Judicial” Apêndice C: Por que o Sábado é Importante Apêndice D: Novo Testamento Autoriza uma Mudança do Dia de Descanso? Acesse 175

103 107 113 121 131 134 139 147 153

160 163 169 171 174


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