PARTE I Reflexões Teóricas
1 Estudos das Masculinidades na Educação Física e no Esporte: Reflexões e contribuições sobre as teorias de Raewyn Connell e Eric Anderson Fabiano Pries Devide
Introdução A produção acadêmica sobre Estudos de Gênero na Educação Física (DEVIDE et al, 2011; SABATEL et al, 2016; WENETZ, SCHWENGBER, DORNELLES, 2017; DEVIDE, 2020) indica que as últimas décadas refletem a emergência desta temática na área. Isto se confirma com pesquisas produzidas de forma pioneira na década de 1980, uma ampliação da produção acadêmica na década seguinte e uma consolidação da área no início do século XXI (LUZ JÚNIOR, 2003, SIMÕES, 2003; GOELLNER, 2003; KNIJNIK, 2003, 2010; SIMÕES, KNIJNIK, 2004; DEVIDE, 2005, 2017; KNIJNIK, ZUZZI, 2010), com destaque para uma abordagem relacional do gênero, que se aproxima de outros referenciais teóricos, como o pós-estruturalismo, a teoria queer e a interseccionalidade (DORNELLES, WENETZ, SCHWENGBER, 2013, 2017; CARVALHO, SOARES, BANDEIRA, 2019; PEREIRA, SILVA, 2019; WENETZ, ATHAYDE, LARA, 2020). A literatura indica que os estudos iniciais focalizaram as mulheres, sobretudo as práticas de exclusão e o formato da Educação Física escolar, além das resistências que historicamente dificultaram a sua inserção, permanência e ascensão no esporte (DEVIDE, 2005; DEVIDE, 2012), apresentando equívocos conceituais e hiatos sobre algumas temáticas (LUZ JÚNIOR, 2003; GOELLNER, 2013). Uma das lacunas na Educação Física brasileira é a escassez de estudos que relacionem as práticas corporais com a construção e mudança nas masculinidades até o início do século XXI (MELO, VAZ, 2008; KNIJNIK, MACHADO, 2008; DEVIDE, BATISTA, 2010; MELO, LACERDA, 2010; BRITO, SANTOS, 23
2013; BRITO, LEITE, 2017; SOARES, 2019; SILVA, 2020; PORTILHO, BRITO, SANTOS, 2020). A partir da literatura dos Estudos de Gênero nas Ciências Humanas e Sociais e, especificamente, na EF, reconhecemos as práticas corporais, como o esporte, enquanto dispositivos relevantes na construção da identidade masculina (DUNNING, 1992; DUNNING, MAGUIRE, 1997; DEVIDE, 2005; DEVIDE, BATISTA, 2010; MORAES, SILVA, CÉSAR, 2010; KNIJNIK, FALCÃO-DELFINO, 2010; BAUBÉROT, 2013; VIGARELLO, 2013; FORTH, 2013; BRITO, SANTOS, 2013; BRITO, LEITE, 2017; SILVA, ALMEIDA, 2020). A relação entre práticas corporais e masculinidades colabora para construir uma representação social que agrega as masculinidades a um corpo atlético, forte, combativo, tolerante à dor e resistente, articulado às noções de tradição, fixidez e imutabilidade. Contudo, apesar das masculinidades serem atravessadas pelo corpo e sua aparência, também o são por outros marcadores, como raça, classe social e sexualidade. Nos Estudos das Masculinidades, a Educação Física tem utilizado, com recorrência, a teoria de Raewyn Connell (1995, 2000, 2003) — revisitada posteriormente (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013) —, e de forma discreta, a teoria de Eric Anderson (2005a, 2005b, 2009). Apesar de tanto a perspectiva de Connell ter recebido críticas nos campos da Educação Física (BRITO, LEITE, 2017) e da História (FORTH, 2013), quanto a de Anderson (ANDERSON, Mc’CORMACK, 2016) — ainda com pouca visibilidade no Brasil —; reconhecemos que, devidamente contextualizadas em seus avanços e limitações, estas teorias nos oferecem elementos relevantes para a análise e interpretação das relações entre as práticas corporais e as masculinidades na EF e no Esporte. Nesta direção, este ensaio tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre as contribuições dos Estudos das Masculinidades para a EF e o Esporte, a partir das teorias propostas por Connell e Anderson. Primeiras palavras Antes de abordarmos os Estudos das Masculinidades, com ênfase nas duas teorias anunciadas, faz-se necessário pontuar que o tema das “identidades” — um processo complexo e pouco compreendido na Ciência Social — tem sido amplamente discutido na Teoria Social, 24
indicando que as mesmas estão sofrendo um processo de descentramento e deslocamento (HALL, 2015). Mudanças estruturais da segunda metade do século XX fragmentaram as “paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade [...]” (p. 10), modificando nossas identidades pessoais, o que caracteriza um deslocamento e uma descentração dos sujeitos no seu mundo social e cultural. Para o autor, o sujeito pós-moderno é fragmentado, não apresentando uma identidade fixa e permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente [...]. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. [...] somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis. (p. 11-12) A modernidade tardia da segunda metade do século XX é caracterizada pela diferença e pelos antagonismos sociais que produzem variadas posições dos sujeitos. Tal cenário permitiu uma abertura para a constituição de identidades abertas e provisórias — e não mais unificadas, estáveis e fixas —, contribuindo para seus descentramentos3, suas descontinuidades, fragmentações e rupturas (HALL, 2015). A identidade de gênero se constrói a partir da interação dos sujeitos com a cultura, atravessada por sua agência em incorporar, resistir e/ou transformar os papeis de gênero impostos pela sociedade patriarcal e heteronormativa, na direção de sua identificação com masculinidades e/ou feminilidades (LOURO, 1997; ANDERSON, 2005b; RAMOS, DEVIDE, 2013). A identidade de gênero deve ser interpretada como múltipla, transitória e contingente (LOURO, 2001; WEEKS, 2001), pois o desafio não diz respeito apenas a assumir que as identidades se multiplicaram, mas “[...] admitir que as fronteiras 3 Dentre os descentramentos históricos apontados por Hall (2015) no século XX, está o feminismo. Este movimento social emergiu na década de 1960, simultaneamente a outros, baseados nas identidades sociais de seus(suas) defensores(as): ao feminismo, as mulheres; à política sexual, os gays e as lésbicas; às lutas raciais, os(as) negros(as); ao antibeliscismo, os(as) pacifistas etc. O autor destaca como o feminismo questionou as relações entre público e privado, contestou social e politicamente a família, a sexualidade, o trabalho, a divisão doméstica das tarefas, o cuidado com os(as) filhos(as) e a forma como somos construídos enquanto sujeitos generificados, expandindo as noções de identidades sexual e de gênero.
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vêm sendo constantemente atravessadas e [...] que o lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente a fronteira” (LOURO, 2004, p. 28). Na esteira destas reflexões acerca das identidades, a virada da década de 1960 para 1970 testemunhou a emergência de movimentos sociais, como a contracultura, os hippies, a geração beat, as minorias sexuais e os negros, que questionaram tradições e desigualdades do mundo ocidental. Este cenário colaborou para a emergência dos Estudos dos Homens — Men´s Studies —, que no rastro do feminismo, passaram a debater as políticas de identidade, a naturalização de papéis e a legitimação de desigualdades de gênero. Os homens identificaram que não somente as mulheres, mas parte deles também sofria com a dominação masculina (OLIVEIRA, 2004). Os avanços do feminismo, a emergência da AIDS, o movimento gay, as políticas públicas de saúde, a violência e a criminalidade associadas à masculinidade, os avanços na instituição esportiva e as transformações comportamentais dos homens, ilustram mudanças nas masculinidades, questionando as bases da hegemonia masculina e seus privilégios, pois se “os homens brancos, de classe média, quando se olham no espelho, se vêem como seres humanos universalmente generalizáveis. [...] não estão capacitados a enxergar como o gênero, a raça e a classe afetam suas experiências” (OLIVEIRA, 2004, p. 142-143). Norteados inicialmente pela História e pela Antropologia, os Men´s Studies incorporaram a dimensão relacional do gênero, trazendo como marca a rejeição à noção de masculinidade única, determinada pela biologia e válida em todos os tempos e culturas. As pesquisas revisaram os significados das masculinidades, reconhecendo que “não há um modelo masculino universal, válido para todos os tempos e lugares” (BADINTER, 1993, p. 27), pois as masculinidades estão imbricadas com outras categorias, como classe, raça e sexualidade: “se a masculinidade se ensina e se constrói, não há dúvida de que ela pode mudar. [...] O que se construiu pode, portanto, ser demolido para ser novamente construído” (p. 29). Ao interpretar a “desconstrução do masculino” a partir de uma análise de gênero, Nolasco (1995) ressalta que, de forma equivocada, a anatomia tem sido um “porto seguro para referendar algumas certezas culturais criadas para definir homem e mulher” (p. 25), aspecto corroborado por Butler (2003), ao criticar a equação linear entre sexo, gênero e desejo como via para legitimar a inteligibilidade dos corpos. A anatomia 26
não é um destino para a construção dos sujeitos e suas identidades. Portanto, a legitimidade da representação sobre o masculino não deve ter o sexo biológico como pré-requisito e/ou a associação com marcas como poder, virilidade e violência, o que reproduz a visão universalizante do masculino e dos homens como “opressores”, excluindo representações de outras masculinidades expressas por eles4 e o reconhecimento do caráter inacabado das masculinidades como pressuposto. Forth (2013) analisa a masculinidade e a virilidade a partir das Ciências Humanas com ênfase na História, defendendo a noção de “continuidade” do comportamento masculino através do tempo e das culturas, em detrimento de uma suposta “crise da masculinidade”. A abordagem monolítica e estável da masculinidade, pautada na visão do patriarcado e da dominação masculina usada por algumas feministas, tende a não reconhecer descontinuidades na noção de uma “masculinidade tradicional”, que sofreu mudanças em culturas e épocas distintas — o que “congelaria a fluidez e a instabilidade [...] das masculinidades” (p. 157) —, pois se os homens e a masculinidade fossem reduzidos à dominação masculina, isso impediria a interpretação da complexidade dos comportamentos masculinos. O autor ressalta que estudos relacionados ao “movimento de libertação dos homens” apontam que o patriarcado é nocivo aos homens e às mulheres, destacando o ônus do primeiro grupo, que sofre pressões para provar publicamente marcas de uma masculinidade destrutiva desde a juventude. Na década de 1990, as críticas à inconsistência e dificuldade de definição das masculinidades se relacionavam à noção de uma identidade estática ou uma estabilidade da masculinidade associada aos homens. Porém, pesquisas acerca da construção das masculinidades têm enfatizado as incertezas, dificuldades e contradições desse processo, como contextos onde padrões de masculinidade são mais resistentes à mudança ou onde há mais abertura às transformações, instabilidade e negociação (CONNELL, 2000), como a instituição esportiva (MESSNER, 1992, 1994; ANDERSON, 2005a, 2009). Neste contexto, a autora enfatiza que masculinidades são corporificadas nos corpos de homens e de mulheres, sendo 4 O argumento de uma face do feminismo que acusa os homens de se organizarem para garantirem a manutenção do poder nas relações de gênero se enfraquece diante de homens que assumem práticas que se distanciam do lugar do opressor, desconstruindo a representação monolítica de única masculinidade (NOLASCO, 1995).
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necessários conceitos que ultrapassem categorias binárias e permitam abordagens sobre questões como ambiguidades de gênero e as variadas práticas nas quais sujeitos expressam o gênero no cotidiano — o que gera uma “necessidade por conceitos que nomeiem padrões de práticas de gênero, não somente grupos de pessoas” (CONNELL, 2000, p. 17). Heran et al (2012) identificam três fases5 nos Estudos das Masculinidades. A primeira, entre os anos de 1960 e 1970, é representada pela crítica à teoria dos papéis sexuais e seu papel destrutivo na imposição de práticas sociais estereotipadas aos homens e mulheres, focalizando questões como a equidade e a revisão das relações de gênero. A segunda fase, entre os anos de 1980 e 1990, é marcada por políticas sociais para os homens, pelo desenvolvimento dos Men´s Studies, com nomes representativos como Michael Kimmel6 e Michael Messner7. Estes estudos receberam influência da teoria inaugurada por Raewyn Connell, que reconhece a masculinidade como um construto social, constituído por relações de poder e hierarquia entre os homens, atravessadas por estruturas de classe, raça e sexualidade. A terceira fase ocorre na virada do século XX, quando pesquisadores(as) passam a investigar os homens e as masculinidades a partir da teoria queer, da teoria do discurso, dos estudos culturais, do pós-estruturalismo e da interseccionalidade; reconhecendo as masculinidades como identidades fluidas, construídas na interação, em construção e com centralidade no discurso; explorando modelos alternativos à “masculinidade hegemônica”, expandindo a categoria “homens” e propondo novas teorias. 5 Estas fases são periodizadas cronologicamente, sem desconsiderar as limitações que esse recorte pode trazer, já que mudanças entre cada uma delas não ocorreram de forma abrupta. 6 Michael Kimmel é um sociólogo norte-americano e ex-professor da Universidade de Stony Brook, local onde fundou o Centro para o Estudo dos Homens e das Masculinidades e o periódico Masculinidades. Também foi o precursor do periódico Men and Masculinities, do qual é editor. É autor de muitos livros, destacando-se entre eles: Manhood in America: A Cultural History, Angry White Men: American Masculinity at the End of an Era; e das obras: Men´s Lives e Men and Masculinities: a Social, Cultural and Historical Encyclopedia, nas quais participa como coautor. 7 Michael Messner é um sociólogo norte-americano e professor da Universidade do Sul da Califórnia, onde desenvolve pesquisas sobre Estudos das Masculinidades, com foco na Sociologia do Esporte. É autor de livros como Power at play: sports and the problem of masculinity, Taking the field: women, men, and sports, Out of play: critical essays on gender and sport; e coautor de Men’s lives, Sport, men, and the gender order: critical feminist perspectives e Sex, violence & power in sports: rethinking masculinity.
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Partindo da noção das masculinidades como identidades com marcadores históricos, sociais e culturais; em processo de reconfiguração, movimento e mudança, elegemos duas teorias, propostas nas duas últimas fases acima descritas e relacionadas ao objetivo deste texto: a Teoria da Masculinidade Hegemônica (CONNELL, 1995, 2000, 2003) e a Teoria da Masculinidade Inclusiva (ANDERSON, 2005a, 2005b, 2009), apresentadas a seguir. Teoria da Masculinidade Hegemônica Pesquisas sobre os homens e as masculinidades no século XX se caracterizaram pelo foco nos problemas sociais da identidade masculina, tendo como peça-chave a Teoria da Masculinidade Hegemônica (ANDERSON, McCOMARCK, 2016). Inaugurada pela socióloga australiana Raewyn Connell e publicada em língua portuguesa em 1995 (CONNELL, 1995), esta teoria demarca a masculinidade como uma “configuração de prática em torno da posição dos homens na estrutura das relações de gênero”8 (p. 188). Apesar do termo “configuração” soar estático, o “processo” de configuração das práticas é relevante para interpretarmos as masculinidades e feminilidades como “projetos de gênero”, que sofrem mudanças históricas (CONNELL, 2000). Portanto, ao nos referirmos às masculinidades, reconhecemos que: “a masculinidade, como a feminilidade, sempre está sujeita a contradições internas e rupturas históricas” (CONNELL, 2003, p. 112). Configurações de gênero também surgem a partir de processos coletivos, nos quais o gênero é organizado através de práticas simbólicas, via instituições generificadas e generificadoras9. Connell (2000) nomeia de “regime de gênero” as relações no cerne destas instituições, e “ordem de gênero” 8 A autora define “configuração de prática” como o que os homens fazem de forma racional e historicamente situada – sua agência - e não no que se espera deles em termos de práticas sociais (CONNELL, 1995). 9 A escola é um exemplo de instituição generificada e generificadora, tanto pela reprodução de estereótipos de gênero em sua estrutura, quanto pela construção de marcadores que reforçam o binarismo feminino-masculino, a partir de componentes curriculares e conteúdos (CONNELL, 2000). No Brasil, ainda temos uma concentração de professores no ensino superior, na pós-graduação e gestão de órgãos de pesquisa; enquanto há uma representação feminina sobre a docência, decorrente do predomínio de professoras na Educação Básica (VIANNA, 2002).
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pelos padrões globais deste regime, alinhados ao contexto histórico, sujeito à mudança. A narrativa convencional sobre as masculinidades tem apontado que a sociedade impõe definições normativas de conduta aos homens, que tendem a internalizá-las, ou seja: “a masculinidade é o que os homens devem ser” (CONNELL, 2003, p. 107). Porém, tal narrativa traz limitações ao adotar “uma” forma de masculinidade para definir a masculinidade em geral, desconsiderando outras masculinidades circulantes; e por considerar a identidade de gênero como algo fixo, um molde socialmente imposto, desconsiderando a agência dos sujeitos na construção de suas identidades, com graus de aceitação e resistência ao que lhes é imposto como práticas socialmente valorizadas e sancionadas10. Messner (1992) afirma que a identidade de gênero não é algo fixo, mas um processo de construção que colapsa e se modifica de forma fluida, pela interação com o mundo social. Na obra “Masculinidades” (CONNELL, 2003), a autora levanta as seguintes questões: o que há de normativo numa norma a que nada se ajusta? Teríamos que decidir que a maioria dos homens são pouco masculinos? Como explicar ações que nomeamos de masculinas ou femininas, desconsiderando a identidade de quem as produz: homens, mulheres, intersexuais, transgêneros, entre outras? (CONNELL, 2003). Analisando a nova pesquisa social sobre as masculinidades, Connell (2000, 2003) destaca que nas últimas décadas, a psicanálise, a teoria dos papéis sexuais e o essencialismo biológico influenciaram os estudos das masculinidades no século XX, dificultando a reflexão sobre suas complexidades internas, que passaram a ser investigadas por abordagens como o materialismo e pós-estruturalismo. A análise da maior parte dos estudos nas últimas décadas, predominantemente etnográficos ou de histórias de vida, permitiu à autora sumarizar marcas recorrentes, tomadas como ponto de partida provisório para os estudos das masculinidades: a) não há um padrão de masculinidade em todos os lugares, mas masculinidades que constituem uma dinâmica em diferentes culturas e
10 Através de suas instituições – legislação, religião, família, escola, entre outras a sociedade se utiliza de múltiplas estratégias para fixar uma identidade masculina ou feminina “normal” e duradoura (LOURO, 2001).
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períodos históricos11; b) na maioria dos estudos há uma forma hegemônica de masculinidade honrada ou desejada, que gera tensão12 nos que dela se distanciam: “diferentes masculinidades não sentam lado a lado. [...] Há relações entre elas. [...] de hierarquia, algumas são dominantes enquanto outras são subordinadas ou marginalizadas” (CONNELL, 2000, p. 10); c) ainda que haja um papel do indivíduo na construção da masculinidade13, essa é definida coletivamente na cultura e sustentada por instituições, como a escola e o esporte, relevantes para as masculinidades ocidentais contemporâneas14; d) os corpos dos homens são definidos e disciplinados pela ordem de gênero, incluindo o esporte – os heróis esportivos são tidos como exemplos de masculinidade15; e) as masculinidades se constituem de forma ativa, através das ações dos sujeitos em interação, não sendo programadas geneticamente ou determinadas pela estrutura social; f) masculinidades não são fixas e homogêneas, apresentam desejos, tensões e condutas contraditórias, que produzem mudanças; g) as masculinidades são constituídas em contextos históricos específicos que, ao sofrerem mudanças, tendem a refletir na contestação e reconstrução das práticas de gênero. 11 Messner (1992) corrobora com esta assertiva ao afirmar que a essência das masculinidades é socialmente construída na interação com a cultura, variando historicamente e entre diferentes culturas. 12 “A dominância da masculinidade hegemônica sobre outras formas pode ser silenciosa e implícita, mas também pode ser veemente e violenta” (CONNELL, 2003, p. 11). 13 É relevante destacar como Connell (2000) sublinha o poder das instituições sobre a agência dos sujeitos na construção da masculinidade, ainda que reconheça a agência como parte deste processo — princípio reforçado no item “c”. Entretanto, no item “e” a autora resgata a importância do sujeito na construção de sua masculinidade, indicando pistas de como a teoria sobre as masculinidades está em construção. 14 O esporte moderno é uma instituição generificada, construída pelos homens como uma resposta às mudanças nas relações de gênero na virada do século XIX. Seus valores e sua estrutura refletem o medo e as necessidades de uma masculinidade ameaçada. Como uma instituição homossocial, legitimada sobre a heterossexualidade, o esporte tende a excluir mulheres e homens que se afastam do padrão de masculinidade esperado. Contudo, o esporte enfrenta contestações sobre a dominação masculina e a heterossexualidade (MESSNER, 1992), como o ingresso das mulheres nos Jogos Olímpicos (DEVIDE, 2005) e a inserção de atletas gays (ANDERSON, 2005a). 15 Tais heróis simbolizam uma masculinidade naturalizada por elementos como violência, combatividade, tolerância à dor e lesões e alienação de suas emoções, sobretudo, em esportes coletivos e de contato (MESSNER, 1992; RIAL, 2011; SILVA, 2020). Contudo, Connell (2003) ressalta que a encenação da masculinidade nos corpos dos homens possui fronteiras que têm sido transpostas, como a participação de atletas transgênero no esporte.
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Neste cenário, Connell (1995, 2000, 2003) reconhece a existência de masculinidades coletivas, contraditórias, complementares, em transição e que se modificam com o tempo: “[...] para conhecer os tipos distintos de masculinidades não devemos supor que se trata de categorias fixas. [...] é essencial reconhecer o caráter dinâmico das relações que constituem o gênero” (CONNELL, 2003, p. 62). A autora indica a tendência de uma masculinidade predominar sobre outra, mencionando padrões que “podem distinguir-se em termos de sua lógica interna, apesar de na prática frequentemente apareçam combinadas” (CONNELL, 2003, p. 104), ou seja, Connell não reconhece estas masculinidades como mutuamente exclusivas, mas coexistindo nas práticas dos homens de forma combinada, mas hierarquizada. Para refletir sobre as masculinidades, Connell (2000, 2003) propõe uma estrutura de relações de gênero provisória, constituída por relações de poder, que são associadas às assimetrias entre homens e mulheres na sociedade patriarcal16; relações de produção, associadas às consequências econômicas das divisões desiguais de gênero no trabalho, destinando “dividendos patriarcais”17 aos homens; vínculos emocionais, que reconhecem os desejos – homossexual e heterossexual – como um aspecto da ordem de gênero; e o simbolismo, associado à linguagem que, de forma sutil ou não, reproduz a subordinação de gênero com expressões que demarcam hierarquias, como a denominação de um menino como “viado”, por seus gestos ou tom de voz fora dos padrões de masculinidade exigidos. Tal composição das relações de gênero é interseccionada por estruturas sociais como raça, classe e sexualidade, trazendo implicações na interpretação das masculinidades (CONNELL, 2000). “Não podemos compreender a desigualdade racial ou mundial sem nos aproximarmos continuamente do gênero. As relações de gênero são um componente fundamental da estrutura social” (CONNELL, 2003, p. 114). Reconhecer as relações entre gênero, classe e raça, permite a leitura de masculinidades múltiplas:
16 Entretanto, a autora reconhece como as resistências dos feminismos e dos movimentos gay e lésbico minam a legitimidade do patriarcado, ressaltando a relevância destas para as políticas de masculinidades (CONNELL, 2003). 17 Vantagens de ordem social, política e econômica, que favorecem a posição dos homens na sociedade patriarcal, os quais tendem a construir alianças para as manterem (CONNELL, 2000).
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Reconhecer que não há apenas uma masculinidade é o primeiro passo. Também temos que examinar as relações entre as diversas masculinidades. [...] temos que esmiuçar os mundos circundantes à classe e à raça e analisar as relações de gênero que operam nelas. [...] existem homens negros gays e trabalhadores afeminados [...]. (CONNELL, 2003, p. 116) A autora explicita como as masculinidades se interpenetram por marcadores de diferença18, ampliando a complexidade da análise sobre sua multiplicidade, concentrando-se nas relações que se estabelecem entre os homens na ordem de gênero. Diante do reconhecimento da dimensão interseccional das masculinidades e da necessidade destas serem interpretadas a partir das relações entre os homens, Connell (1995, 2000, 2003) propõe quatro padrões centrais de masculinidades na ordem de gênero ocidental: a hegemônica, a cúmplice, a marginalizada e a subordinada. A autora ressalta que tais termos não designam figuras fixas, mas configurações de práticas que emergem em contextos singulares e em uma estrutura de relações de gênero em mudança. Qualquer teoria útil das masculinidades deve reconhecer que estas mudanças produzem deslocamentos complexos nas práticas dos homens, e decifrar este processo histórico é desafiante para a teorização sobre as masculinidades (CONNELL, 2000). Inicialmente, Connell (1995) concebeu a “masculinidade hegemônica” como aquela definida em relação às “outras masculinidades” e às feminilidades, interpretadas como de menor valor na hierarquia social do gênero, ancorando significados da sociedade patriarcal, heterossexual, branca e cristã, enquanto as demais não ofereciam riscos de desestruturá-la. Posteriormente, contudo, em reflexão sobre sua teoria, Connell (2003) ressalta que, a: Masculinidade hegemônica não é um tipo de personalidade fixa, sempre igual em todas as partes. Se trata da masculinidade que ocupa a posição hegemônica em um dado modelo 18 Isto não significa que homens que expressam a masculinidade hegemônica sejam mais poderosos. Há gays estrelas ou heróis do cinema, líderes de empresas e corporações; e atletas negros ricos, com expressivo capital social. Traços da masculinidade hegemônica podem estar presentes em diferentes sexualidades, raças e classes.
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de relações de gênero, posição que é sempre discutível. [...] pode definir-se como a configuração da prática de gênero que incorpora a resposta aceita, num momento específico, ao problema da legitimidade do patriarcado, o que garante (ou se considera que garante) a posição dominante dos homens [...]. (p. 116-117) Com as mudanças sociais promovidas por movimentos sociais feminista, gay e lésbico, as bases da dominação de uma dada masculinidade se deterioram, na direção da construção de uma nova hegemonia, uma vez que a “[...] hegemonia não significa controle total. Não é automática e pode ser fraturada – inclusive fraturar-se a si mesma” (CONNELL, 2003, p. 62). A hegemonia deve ser interpretada como “[...] historicamente móvel. Seu fluxo e refluxo são elementos-chave da descrição da masculinidade que propomos” (p. 118). Esta noção é relevante em função das críticas a esta teoria, pelo uso do termo “hegemonia”, proveniente do referencial gramsciano19. Connell (2000) afirma haver uma tendência à reificação do termo, associando-o a um caráter fixo ou uma “personalidade tipo A”. Nesta tendência, todas as ações censuráveis cometidas por homens — estupros, assaltos, feminicídios, violência doméstica, agressões verbais, poderiam ser inseridas no padrão da “masculinidade hegemônica”. Contudo, quanto mais extremo este padrão se torna, menos homens tendem a buscá-lo20. A autora explicita ser [...] útil recordar que o conceito de hegemonia foi introduzido dentro das discussões da masculinidade para lidar com os 19 Anderson (2005a) ressalta que sociólogos reconhecem várias masculinidades em diferentes culturas e recortes históricos, destacando a teoria de Connell, a qual discute como as masculinidades competem por uma hegemonia na cultura ocidental; uma forma particular de dominação na qual uma classe (ou masculinidade) legitima sua posição e garante a aceitação das menos abastadas (outras masculinidades), a partir da naturalização do processo de subordinação, interpretado como correto e natural, conceito elaborado por Antonio Gramsci e adotado pela autora para explicar como os homens e suas masculinidades são socialmente estratificadas e hierarquizadas. 20 Apesar da dominância da masculinidade hegemônica em relação às outras masculinidades e às feminilidades, mudanças na ordem de gênero, nas relações de poder entre homens e mulheres e entre os homens, indicam haver uma crise de legitimação deste padrão de masculinidade (MESSNER, 1992).
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problemas relacionais [...], as conexões entre as diferenças e hierarquias entre homens, e as relações entre homens e mulheres. (CONNELL, 2000, p. 23) A masculinidade hegemônica exige postura de liderança, competição, tolerância à dor, racionalidade, entre outras características presentes nas práticas sociais dos homens, como o esporte21, que legitima a estrutura patriarcal, mantendo mulheres e grupos de homens em situação de submissão22 (MESSNER, 1992; DUNNING, 1992; DUNNING, MAGUIRE, 1997; ANDERSON, 2005a), situação em que reforça a dominação masculina (BOURDIEU, 1999). Tal masculinidade, construída no interior da instituição esportiva, também traz um ônus aos atletas, que devem suprimir sentimentos, sobretudo aqueles considerados suaves, como tristeza ou dor; e controlar os limites da expressão verbal e física, como ternura e empatia entre seus pares, que no contexto homossocial dos vestiários e alojamentos, constroem fortes relações pessoais, baseadas em conversas sexistas e homofóbicas, onde manifestações de homoerotismo tendem a ser neutralizadas pela homofobia e a heteronormatividade. Apesar de construída pela difamação da homossexualidade e a oposição à feminilidade (MESSNER, 1992), isso não significa que outras masculinidades inexistam nestes espaços, onde atletas gays, por exemplo, constroem estratégias identitárias, expressando uma masculinidade em conformidade com a norma, enquanto perscrutam o homoerotismo presente no esporte (PRONGER, 1990). Neste padrão de masculinidade, o pressuposto para ser um homem é afastar-se da homossexualidade e feminilidade, adotando um comportamento heterossexual, com uso da linguagem para relatar conquistas amorosas e expressar homofobia (ANDERSON, 2005a). Portanto, a homofobia e a misoginia atuam juntas na construção dos homens como “masculinos”, que devem provar o domínio sobre o outro na busca pela supremacia, algo proporcionado pelo esporte, em que se constrói um “capital masculino”. Paradoxalmente, Connell (2000, 2003) indica que
21 No esporte, homens devem evitar expressar emoções, compaixão, vulnerabilidade, fraqueza e medo, sob o risco de serem rotulados de “bichas” (MESSNER, 1992). 22 Na escola, há padrões de dominação onde a masculinidade hegemônica é exaltada, como por exemplo, pelas competências esportivas, tornando a habilidade para o esporte uma prova da masculinidade (CONNELL, 2003).
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tais “dividendos patriarcais” tornam os homens vítimas de seu próprio poder, gerando uma fratura ou transformação das masculinidades23: O privilégio masculino é também uma cilada. [...] impõe a todo homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, a sua virilidade, [...] entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas também como aptidão ao combate e ao exercício da violência. [...] o homem “verdadeiramente homem” é aquele que se sente obrigado a estar à altura da possibilidade que lhe é oferecida de fazer crescer sua honra buscando a glória e a distinção na esfera pública (BOURDIEU, 1999, p. 64). Tal ordem patriarcal interdita manifestações de emoção, afeto e prazer, nos impelindo para uma tendência à crise24, consequência de um sistema que se destrói e se restaura a partir de fraturas e transformações presentes na história das masculinidades, apesar de ainda não terem causado uma transformação radical na masculinidade dominante (CONNELL, 2003). Neste contexto, as tensões têm ocorrido, por
23 Tais fraturas ou transformações têm sido denominadas de “crise da masculinidade” e atravessam séculos, sinalizando mudanças nas identidades de gênero, reportadas na historiografia desde o século XVII, na França (1650-1660) e na Inglaterra (1688-1714), países onde as mulheres possuíam maior liberdade e emancipação. Entre 1871-1914, na França, Áustria, Alemanha e Estados Unidos, os homens se sentem ameaçados em sua masculinidade diante das reivindicações e conquistas das mulheres em diferentes esferas, desenvolvendo ações em prol da construção de uma verdadeira masculinidade. Por fim, as Guerras Mundiais testaram a virilidade e a expressão da violência pelos homens, sem, porém, sanar seus dilemas sobre a masculinidade (MESSNER, 1992; BADINTER, 1993; FORTH, 2013). Na sequência, surgiram homens “pró-feministas”, que condenam a masculinidade tradicional e criticam o machismo, produzindo masculinidades menos hierárquicas e violentas, no contexto de movimentos feministas, gays e da contracultura (MONTEIRO, 2013). 24 Para compreendermos as masculinidades na contemporaneidade, é necessário rastrear as tendências às crises da ordem de gênero, a partir das relações de poder, produção, vínculos emocionais e simbolismo, que têm se modificado com o feminismo, a emancipação das mulheres e a visibilidade de outras sexualidades alternativas à ordem heterossexual. A tendência à fratura e/ou transformação nas masculinidades indica mudanças nas práticas de homens e mulheres e, portanto, nas masculinidades como configurações de práticas reais na ordem do gênero.
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exemplo, ao redor da violência que atravessa a desigualdade sexual25, da proibição do afeto homossexual, da ameaça que as liberdades sexuais simbolizam para a ordem heteronormativa e do feminismo contemporâneo e suas políticas que abordam a masculinidade como objeto de ação social (CONNELL, 2000, 2003). A partir deste modelo inicial, Connell (2000, 2003) ampliou o que nomeou de “outras masculinidades” para uma “dinâmica das masculinidades”26, designando masculinidades que coexistem, como a “cúmplice”, a “subordinada” e a “marginalizada”. Apesar de ser apresentado como modelo “hegemônico”, tal padrão identitário não é atingido pela maioria dos homens: “A quantidade de homens que praticam rigorosamente o padrão da masculinidade hegemônica em sua totalidade pode ser muito pequeno” (CONNELL, 2003, p. 119). Refletindo sobre a situação específica de grande parte dos homens que se relaciona com o projeto hegemônico, mas não o incorpora e/ou o reproduz, Connell (2000, 2003) identificou relações entre os homens que se aproximam de uma aliança com este projeto de forma “cúmplice”, na busca de garantir os “dividendos patriarcais”. Muitos se beneficiam destes dividendos da masculinidade hegemônica, garantindo sua inserção social privilegiada na hierarquia de gênero em relação às mulheres e outros grupos de homens. Tais sujeitos, entretanto, não enfrentam os riscos e as tensões que a tal masculinidade traz, associadas ao ônus patriarcal. Portanto, a “masculinidade cúmplice” não se configura como uma versão sutil da primeira, mas como um padrão socialmente construído no interior das estruturas de gênero, constituídas por relações de poder, de produção, de emoções e de simbolismos que atravessam as relações entre homens e mulheres de forma complexa. A “masculinidade subordinada” se dá pelas relações de dominação e hierarquia entre homens heterossexuais e homossexuais, construídas através de práticas de subordinação via linguagem; e atitudes 25 Esta estrutura desigual não se impõe sem violência: seja a legitimada pela ideologia da supremacia masculina sobre as mulheres; seja aquela que se constitui como elemento nas relações entre os homens em uma política das masculinidades, manifesta nas guerras bélicas, nos homicídios e na homofobia. 26 O conceito de múltiplas masculinidades permite reconhecer como a raça, classe, idade e as hierarquias sexuais entre os homens auxiliam na construção e legitimação do poder e dos privilégios de alguns homens sobre as mulheres e homens que se afastam do padrão hegemônico, tradicional ou normativo (MESSNER, 1992).
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estigmatizantes, excludentes, homofóbicas e violentas, que localizam os gays em posição de menor valor social em relação àqueles que atendem às características da masculinidade hegemônica, que pressupõe a heterossexualidade (CONNELL, 2000, 2003). São exemplos de tais práticas o bullying homofóbico na escola (PASCOE, 2018; SOUZA et al, 2018); e os códigos de conduta do esporte, pautados na heteronormatividade, que a partir da homofobia, do racismo e do sexismo, respectivamente, sobre gays, negros e mulheres, buscam manter uma relação de poder sobre esses grupos, ao legitimar um padrão de masculinidade (PRONGER, 1992; MESSNER, 1992; ANDERSON, 2005a). A relação de dominação entre heterossexuais e homossexuais ultrapassa a estigmatização cultural da identidade sexual, estando representada na exclusão cultural e política, no abuso cultural, na violência legal (prisão por homossexualidade) e pública (intimidação e homicídio), na discriminação econômica e nos boicotes pessoais. Por esta razão, a autora considera que: A opressão coloca as masculinidades homossexuais no fundo de uma hierarquia entre os homens que se estrutura de acordo com o gênero. [...] a homossexualidade é o depósito de tudo aquilo que a masculinidade hegemônica descarta simbolicamente. [...] a homossexualidade se assimila com facilidade à feminilidade. (CONNELL, 2003, p. 119) Connell (2003) salienta que a masculinidade gay não é a única sujeita à hierarquia provocada pela legitimação da masculinidade hegemônica. Esta também expulsa homens e meninos heterossexuais que se distanciam do padrão normativo, o que inclui as práticas corporais, sobretudo aquelas generificadas como masculinas e utilizadas como rituais de passagem para a construção de meninos em “homens de verdade”, como as lutas, o futebol e o rugby (MELO, VAZ, 2008; KNIJNIK, FALCÃO-DEFINO, 2010; SILVA, ALMEIDA 2020). Por fim, a intersecção do gênero com estruturas de classe e raça configura novas relações entre os homens, construindo novas dinâmicas nas masculinidades. Em um contexto de supremacia branca, Connell (2003) afirma que a masculinidade hegemônica sustenta uma opressão institucional que inclui o terror físico sobre os negros. A autora justifica não encontrar outro termo que não “marginalização” para explicar as 38
relações de dominação e opressão entre os homens, atravessadas pelos marcadores de raça e classe, razão pela qual nomeia aqueles que sofrem exclusões de ordem étnico-racial e de classe social, como pertencentes à “masculinidade marginalizada”. Tal padrão explicita que alguns homens são mantidos à margem de uma estrutura social que oferece vantagens aos brancos e/ou pertencentes às classes mais abastadas. Contudo, Connell (2003) destaca questões relevantes sobre estes marcadores, como por exemplo, os atletas negros estadunidenses, que conquistam fama, riqueza e capital social no esporte, dividendos da masculinidade hegemônica. Contudo, apesar da visibilidade e das ações públicas destes atletas contra o racismo27, tais posturas ainda não trouxeram consequências sociais profundas para a população negra em geral. Connell (1995, 2000, 2003) propõe uma análise das masculinidades que reconhece sua dinâmica e historicidade, pautada nas relações de hierarquias e/ou complementaridades entre dominação, subordinação, cumplicidade e marginalização, reconhecendo a dimensão interseccional com a sexualidade, raça e classe; relevantes para interpretarmos as relações entre os homens na ordem do gênero. Além de reconhecer a masculinidade como diversa, é necessário atenção às alianças, domínios e subordinações entre os homens, construídas via práticas sociais que excluem, incluem, intimidam e/ou exploram. Refletindo sobre novas direções nos estudos das masculinidades, destacamos quatro pontos enumerados por Connell (2000): a) Compreender as questões corporais (esporte, violência, saúde e sexualidade) como relevantes para os debates sobre as relações de gênero desde a década de 1970 até o século XXI; b) Desenvolver um entendimento sobre processos de mudanças nas masculinidades pela importância teórica e prática na solução de problemas sociais, o que pressupõe políticas de masculinidades que promovam a justiça social; c) Consolidar as análises das masculinidades pela via da interseccionalidade, problematizando classe, raça, sexualidade, 27 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2020/11/esporte-produz-em-2020-imagens-iconicas-da-luta-antirracista.shtml> Acesso em: 17 dez. 2020. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/mundo/protesto-de-jogadores-negros-na-nfl-mostra-falacia-da-era-pos-racial/> Acesso em: 17. Dez. 2020.
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entre outros marcadores como alicerces na construção das relações de poder na ordem de gênero; e d) Interpretar os dividendos patriarcais como ponto-chave das políticas das masculinidades, fomentando mudanças nos interesses e nos lugares ocupados pelos homens no mundo globalizado do sistema de produção. Buscamos refletir sobre possibilidades de intersecções entre os padrões indicados por Connell (1995, 2000, 2003), os quais permitem aos homens se identificarem com múltiplas masculinidades, não sendo enquadrados em um padrão; o que exige o reconhecimento da dimensão compósita das masculinidades, em função da agência destes sujeitos em suas relações nos espaços sociais, como o da Educação Física e do Esporte. No intuito de provocar uma ampliação deste modelo, convidamos a refletir, por exemplo, onde alocaríamos sujeitos que, por sua agência, se localizam no espaço de fronteira “entre” essas masculinidades na contemporaneidade. No esporte, por exemplo, apesar de atletas como Lewis Hamilton (F1), LeBron James (NBA), Jason Collins (NBA), Michael Sam (futebol americano), Thomas Daley (saltos ornamentais), Diego Hypólito (ginástica), Richarlison (futebol), entre outros, trazerem em seus corpos marcas da diferença de raça e/ou sexualidade; sua agência indica que reconhecem os mecanismos de opressão que poderiam excluí-los, utilizando o capital social construído no esporte como ferramenta para assumirem novas masculinidades, resistentes à hegemônica — que não devem ser consideradas subalternas, no sentido conferido por Connell (1995). De fato, numa reflexão sobre sua teoria, a autora afirma que se o gênero é “produto” e “produtor” da História, as masculinidades também são históricas, localizando-se no mundo da “agência social”. A contemporaneidade requer uma nova investigação sociológica, que supere a suposta internalização e execução de normas, na direção da exploração da forma como se (re)constroem as convenções dentro de uma mesma prática social (CONNELL, 2003). 40