CASA OCUPADA

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ARTHUR DUARTE


MANDELINHA

0

2km




CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES Curso de Arquitetura e Urbanismo

Arthur Duarte

CASA OCUPADA:

uma fotoetnografia sobre o habitar doméstico

SÃO PAULO 2020



ARTHUR DUARTE

CASA OCUPADA: uma fotoetnografia sobre o habitar doméstico

Trabalho Final de Graduação apresentado ao curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Belas Artes sob orientação da Professora Dra. Aline Nasralla Regino

SÃO PAULO 2020



Dedico Ă queles que sonham e lutam por uma moradia digna


Gostaria de agradecer, primeiramente, a meus pais, Sivanir e Thaís, por todo o amor que sempre nos foi dado. Saibam que as soluções que vocês encontraram para curar todas nossas feridas — na maior parte do tempo sem que eu tivesse real dimensão delas — foram fundamentais para meu desenvolvimento como ser humano. Lembranças como o confete de jornal, a fantasia de lanterna verde e as noites temáticas são coisas que me emocionam muito. Obrigado por serem sempre muito presentes e pelo apoio incondicional em todos os milhares de sonhos que já tive. Agradeço também minha irmã Beatriz, pela parceria e amizade de sempre. Saber que tenho você é uma daquelas coisas que acalmam meu coração. Meus tios — Katia, Valeria, Denise e Levi — e a minha avó Cida pelo amor, cuidado e por me abrirem portas que não teria a condição de abrir. Se escrevo esse texto hoje, é porque vocês me forneceram o trampolim. Obrigado Nayani Real, por quase 4 anos de amor, companheirismo e amizade. Obrigado pelas risadas, conversas, conselhos, carinhos e sobretudo pelo ombro que nunca me foi negado. Sua presença e revisão de texto foram fundamentais para que este trabalho desse certo. Obrigado a minha querida amiga, Aline Araújo, por ser em muitos momentos meus olhos dentro da graduação e por acreditar, talvez mais que eu mesmo, que em algum momento eu possa me tornar um bom fotógrafo. Seu incentivo é combustível para que eu siga tentando. Agradeço aos meus amigos, Alexandre Fernandes, Giovanna Saran Leonardo Monteiro e Milena Fernandes, pelas inúmeras risadas e companhia ao longo desses cinco anos de graduação. Foi incrível trabalhar comvocês.


Agradeço a todos aqueles que estiveram comigo durante a execução deste trabalho: Minha querida orientadora, Aline Regino, por ter topado me acompanhar nessa caminhada. Obrigado pelos puxões de orelha e por ter me ajudado a dar forma a este trabalho que no começo mais parecia um bicho de sete cabeças. Pastor Jafé Lima por ter me socorrido quando o projeto parecia perdido. Tati Santos, líder comunitária, que por seu intermédio me recebeu muito bem e me deu total autonomia para trabalhar dentro da ocupação. Gabriele, Sema, Raquel, Joana, Deise e Nelson, que toparam abrir suas casas e muito gentilmente me ajudaram a construir as últimas peças deste trabalho. A todos aqueles que se sensibilizaram com os casos de Joana, Wallace, Andrea e a pequena Maria Luiza que perderam suas casas em um ato criminoso e contribuíram para a reconstrução dessas moradias. Agradeço também às pessoas que doaram suas pequenas câmeras e me ajudaram na campanha de divulgação para planejar uma oficina de fotografia com quase 30 crianças. Por mais que o incêndio tenha postergado a atividade sou grato por terem viabilizado isso para o ano que vem. Por fim, agradeço às 800 famílias da Ocupação Mandelinha, que entre caminhadas sob sol e chuva me permitiram contar um pouco de suas histórias. •••


Toda fotografia é um olhar sobre o mundo, levado pela intencionalidade de uma pessoa, que destina sua mensagem visível a um outro olhar, procurando dar significação a este mundo. (SAMAIN, 1993)


Ser fotógrafo já não é o ato de pegar uma máquina e fazer fotografia, e sim o ato de pegar uma máquina, fazer fotografia e saber por que essa fotografia vai existir. (PINA, 2016)


RESUMEN La presente pesquisa monográfica trabaja la relación afectiva del individuo acerca del espacio habitado. Desde la casa como base — en ese caso, en condiciones de irregularidad en la tenencia de la tierra — son observados elementos que involucran cuestiones del habitar, bien como él pertenencia y afectividad en un espacio marcado por la vulnerabilidad y lucha constantes. Para eso, usamos la fotografía cómo instrumento de pesquisa para ayudar en el primer momento con la comprensión del espacio estudiado. Secundariamente, la fotografía sirve a narrar informaciones recopiladas en campo para responder, en formato narrativo-visual, si hay o no existe la percepción de hogar por quienes ocupan esas casas.


RESUMO Este trabalho discorre, por meio de pesquisa monográfica, sobre a relação afetiva do indivíduo com o espaço habitado. Tendo como base a casa — casa esta que se encontra em condições de irregularidade fundiária — observam-se elementos que envolvem questões do habitar, como pertencimento e afetividade em um espaço marcado pela vulnerabilidade e luta constante. Para isso, usamos a fotografia enquanto instrumento de pesquisa de forma a nos auxiliar em um primeiro momento a compreender o espaço estudado e em um segundo a narrar as informações colhidas em campo de forma a responder em forma de uma narrativa visual se há ou não a percepção de lar por parte das pessoas que ocupam estas moradias.



SUMÁRIO



INTRODUÇÃO 21 1. A CASA 25 1.1 O habitar 28 1.2 Casa e lar 30 1.3 O habitar doméstico

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2. A CASA OCUPADA 37 2.1 Por que ocupar? 40 2.2 A Ocupação Mandelinha

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3. A FOTOETNOGRAFIA 51 3.1 A fotografia como instrumento de pesquisa

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3.2 O método 57

4. A NARRATIVA VISUAL

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4.1 O Ensaio 66 4.2 Do diário de campo à narrativa visual

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4.3 Notas pessoais 182

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS 195 APÊNDICE

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INTRODUÇÃO


O presente trabalho final de graduação debruça-se sobre o estudo da casa em sua dimensão subjetiva — aplicado a uma condição de irregularidade fundiária — pretendendo compreender, em formatação de pesquisa científica monográfica, como o habitar doméstico se manifesta em um cenário de vulnerabilidade e luta constante. Dessa forma, busca-se estabelecer uma análise imagética sobre o habitar humano, a fim de compreender se há ou não a percepção de lar por parte de seus moradores. As motivações para a elaboração deste trabalho e escolha do tema estão baseadas na compreensão das relações entre a ocupação irregular e os seus moradores, procurando compreender as particularidades humanas que envolvem esta forma de morar. Para isso, através dos princípios do habitar humano, buscou-se compreender como as pessoas que vivem em assentamentos irregulares se relacionam com o espaço ocupado. Como ponto inicial para o debate o espaço do primeiro capítulo se dedica à recuperação teórica sobre os principais conceitos abordados durante a pesquisa. A reflexão parte da concepção sobre o habitar humano desenvolvida por Martin Heidegger, filósofo alemão, trabalhada de forma genérica. Ao chegarmos a Christian Norberg-Schulz, arquiteto norueguês, há a divisão em quatro subcategorias até chegarmos ao último — o habitar doméstico —, em que Érica Negreiros de Camargo, pesquisadora no campo da arquitetura, trata o assunto com maestria. Com isso em mente, investigamos a síntese de valores presentes nos conceitos de casa e lar, a fim não de buscar a catalogação de conceitos com distinção específica, mas sim para observá-los no cotidianos de quem os experiencia.

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No segundo capítulo, damos continuidade à questão proposta pela problemática introduzindo o assunto da vulnerabilidade em que esses assentamentos se inserem. Abordamos o direito à moradia e como ele, bem como os outros que os acompanham, são mutáveis e, atualmente, encontram-se lastreados em documentos internacionais e nacionais. Em seguida, apresentamos a Ocupação Mandelinha — o estudo de caso que analisamos — sob as falas de Tati Santos, líder comunitária. No terceiro capítulo, antes de chegarmos de fato à narrativa, temos a explicação acerca do papel fotográfico para além da ilustração, colocando-o enquanto instrumento de pesquisa. Utilizamos os pensamentos de Milton Guran e Luiz Achutti que nos guiam pelo campo teórico, até a materialização e construção da narrativa visual no quarto capítulo deste caderno, produto desta monografia. Finalizamos com uma declaração pessoal a respeito dos meses de trabalho de campo e também dos artifícios empregados na construção narrativa que visa responder, enfim, se há ou não a percepção de lar por parte dos moradores da Ocupação Mandelinha, cenário este, de vulnerabilidade e luta constante. •••

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A CASA


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1. Prédios que iniciaram a ocupação | Fonte: DUARTE, 2020

Iniciados os estudos em arquitetura, como curioso ou estudante formal, o objeto arquitetônico “casa” inevitavelmente surgirá nos primeiros contatos com a nova disciplina. Seja por meio de imagens de projetos consagrados pela arquitetura, títulos de livros ou revistas que acompanham as filas de caixas em supermercados, a imagem da arquitetura intocada, bem articulada e afeiçoada, que pode ser vista em uma fotografia, frequentemente é colocada como a imagem da casa ideal. Pensando nisso, neste primeiro momento do trabalho buscamos quebrar a casca deste modelo inanimado de moradia e penetrar na complexidade construída pela subjetividade de seus moradores — não reduzindo a casa a um mero elemento estético, como estas mídias sugerem, mas destacando o seu uso como palco para a confraternização da vida. Para tanto, faz-se necessário analisar o conceito de habitar, algo que é essencialmente humano e universal, e considerar os conceitos de “casa” e “lar” para chegar ao habitar doméstico. O último, será abordado para mostrar que a casa é muito mais do que as versões estéreis e impessoais que vemos e conhecemos na Universidade. 27


1.1 O habitar Antes de adentrarmos especificamente no habitar doméstico precisamos caracterizar o habitar e entendê-lo como a própria forma que estabelecemos a nossa existência no mundo. Martin Heidegger (1954), filósofo alemão, em um contexto de reconstrução da Alemanha no pós Segunda Guerra Mundial (1939-1945), definiu a relação entre os conceitos de habitar e construir. “Não habitamos porque construímos. Ao contrário. Construímos e chegamos a construir à medida que habitamos” (HEIDEGGER, 1954, p. 1). Dessa forma, o filósofo pontua que o habitar é produto da relação entre o sujeito e o mundo em que se vive. Assim, a condição de habitar é quase sinônimo de ser, já que é impossível existir sem que se esteja vivo. Avançando na reflexão, se construímos à medida que habitamos, e o construir tem como princípio fundamental o abrigo contra tormentas — sejam da natureza, do meio social em que vivemos ou outra expressão invasiva à nossa vida interior — temos, aqui, nosso primeiro grande ponto do trabalho: o habitar compreendido como o ato de se resguardar. Cabe ressaltar que, mesmo possuindo a mesma origem, os conceitos de habitar e habitação não fazem referência exclusiva um ao outro. O construir tem o habitar como meta, mesmo que nem todas as construções sejam habitações.

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Uma ponte, um hangar, um estádio, uma usina elétrica são construções e não habitações; a estação ferroviária, a auto-estrada, a represa, o mercado são construções e não habitações. Essas várias construções estão, porém, no âmbito de nosso habitar, um âmbito que ultrapassa essas construções sem limitar-se a uma habitação. Na auto-estrada, o motorista de caminhão está em casa, embora ali não seja a sua residência; na tecelagem, a tecelã está em casa, mesmo não sendo ali a sua habitação. Na usina elétrica, o engenheiro está em casa, mesmo não sendo ali a sua habitação. Essas construções oferecem ao homem um abrigo (HEIDEGGER, 1951, p.1).

Segundo o autor que inicia nossa reflexão, o habitar não se limita à habitação, mas a qualquer objeto construído que possa trazer a paz àquele que o ocupa, tendo o resguardo como seu traço fundamental. Por sua vez, Christian Norberg-Schulz, em 1985, desdobrou o conceito de Heidegger em quatro dimensões, referenciadas no doutorado “Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado”, de Érica Negreiro de Camargo (2010), realizado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. O teórico norueguês dividiu o conceito supramencionado em: habitar natural, habitar coletivo, habitar público e habitar privado. O primeiro faz menção ao contato inicial do sujeito com a natureza, que resulta no desbravamento e domesticação do meio. Schulz (1985) destaca que este “desbravamento” pode ser notado não só na natureza virginal, mas

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também em ambientes já construídos em que ainda há essa questão original da busca por uma base sólida de fixação. O habitar coletivo, por sua vez, se dá pelas formas básicas de relacionamento humano. O espaço em que decidimos nos instalar funciona como cenário para o contato elementar entre as pessoas, ou seja, a integração que temos por sociedade. Dentro deste intercâmbio impessoal em que está o habitar coletivo, temos o habitar público. Nele os interesses comuns são absorvidos e expressos por um grupo de pessoas que se relacionam direta e afetivamente. É o que chamamos de comunidade. O último desdobro de Schulz é justamente o habitar privado, chamado de doméstico por Camargo. Este compreende a escolha de um “pequeno mundo”, sem a intrusão de estranhos, onde possamos nos recolher para desenvolvermos nossa própria identidade e praticar o habitar como uma atividade privada e íntima.

1.2 Casa e Lar Iniciadas as pesquisas para a realização desta monografia, veio à tona o fato de que a palavra “casa” tem uma dimensão muito inferior ao que estamos acostumados a usar, sendo mais abrangente fora de contextos acadêmicos do que dentro dele, como se pode observar a partir da nossa forma coloquial

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de articular o idioma, que adiciona à palavra a dimensão física da habitação e também a subjetiva. É comum que as expressões “lá em casa” ou “estar em casa” digam sobre o sentimento de pertencimento e afetividade — algo que é, na realidade, a definição de lar. Na própria afirmação de Heidegger (1954), citada no tópico anterior, o autor usa a expressão “estar em casa” para aplicar o conceito de lar em diversas construções, sob a premissa de abrigar e permitirem a paz ao indivíduo. Ao analisar estes conceitos sob a ótica da Academia, o objeto arquitetônico ao qual se destina a atividade de morar e os sentimentos desenvolvidos com relação ao ambiente, são especificados e separados, respectivamente, pelas palavras casa e lar. Juhani Pallasmaa (2017), no livro “Habitar”, coloca a casa como o limite físico para a expressão da personalidade do morador e os seus padrões de vida singulares. Além de pontuar que a casa é a casca do lar, o autor também afirma que a essência de um lar está mais próxima da vida em si do que da fisicalidade da casa. Considerando as análises tecidas pelo arquiteto, o lar é descrito como uma moradia individualizada, complexa e difusa que integra um conjunto de rituais, ritmos pessoais e rotinas. Além de ser construído por memórias, imagens, desejos e medos, como ele cita, e tudo o que já foi e o que está por vir. A construção deste lar, para além da casa física, não se dá em

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um instante: tem uma dimensão temporal e é moldada pouco a pouco a partir do relacionamento das pessoas com o espaço habitado. Até este ponto, usamos alguns termos para definir o que seria esse espaço que destinamos a atividade de morar. Talvez fiquem confusas as suas compreensões e por isso cabem parênteses para além dos conceitos apresentados de abrigo como condição fundamental da arquitetura, casa como recipiente do lar, e lar como moradia individualizada e carregada de significado, Lamparelli (s.d. apud CAMARGO, 2010, p. 29) apresenta outros dois princípios para expressar os fatores que envolvem a existência humana em determinada localidade: [...] casa é o objeto material construído, com características físicas e localização próprias”; “moradia é a casa habitada, onde se exercem as potencialidades da casa e se recebem as contribuições dos moradores; é insuficiente com relação à infra-estrutura externa (água, eletricidade, etc.)”. Já na habitação, há “o extravasamento das interações da moradia”, envolvendo o contexto externo, como a vizinhança, escolas, clubes, mercados, etc.: é o “meio que ‘aceita’ a relação dos moradores e interage com eles.

Este trabalho, que investiga as impressões particulares de indivíduos sobre seu habitar doméstico em um contexto de instabilidade, não busca a catalogação de conceitos com distinção específica, mas sim a síntese de seus valores, principalmente de casa e lar, para que possam ser observados no cotidiano de quem os experiência.

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1.3 O habitar doméstico Recapitulando o conceito trabalhado no primeiro tópico, habitar é o produto da relação entre o sujeito homem e o mundo em que se vive, tendo como fundamento o permanecer instalado, em paz, em um lugar. Por isso tendo o ato de se resguardar em mente, podemos encontrá-lo também nas atividades e relações do dia a dia que se dão no espaço privado da moradia, onde, enfim, o habitar doméstico se diferencia do mundo público. Schulz (1985) coloca o habitar doméstico como resultado de escolhas pessoais. Um local onde há a possibilidade de recolhimento para desenvolver a individualidade e formar um “pequeno mundo” privado — seja ele individual ou coletivo dos habitantes do espaço. É nele que se pode experimentar a “paz doméstica”, onde reunimos e expressamos as memórias que constituem nosso “mundo pessoal” (SCHULZ, 1985, p. 13 apud CAMARGO, 2010, p. 30). No habitar doméstico, portanto, ficamos diante de questões comportamentais naturais ou de origem do condicionamento cultural que dizem respeito à identidade e à memória e nos afastamos dos aspectos físicos da casa. Nos aproximamos do território emocional. Assim, apreende-se o termo cultura como um conjunto partilhado de valores e padrões de comunicação entre indivíduos de um determinado grupo, assim como de entendimento desse grupo em relação ao seu meio.

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Preservados e transmitidos ao longo do tempo, esses valores e padrões estão em contínuo processo de criação e reformulação, através das relações cotidianas estabelecidas entre os indivíduos desse grupo (CAMARGO, 2010, p. 32).

Essa dimensão do habitar evidencia expressões de caráter subjetivo e tomam corpo por meio de objetos e suas disposições, de acabamentos que adicionam cores ou texturas a cada ambiente, assim como indicam condições e desejos. A identidade de classe, gênero, raça, religião, entre muitos outros sentidos de identificação pessoal, trazem ao objeto “casa” fragmentos que exprimem a forma de viver de seus moradores. O habitar doméstico é específico porque nasce do conjunto de valores e padrões individuais de quem o vive. Essa especificidade, segundo Camargo (2010), transforma o habitar em uma espécie de “microcultura” – conceito cunhado pela autora, a partir da definição de cultura já apresentado. Assim, os ambientes domésticos expressam um pequeno conjunto de valores e padrões de comunicação, partilhados pelas pessoas que habitam estes espaços, que são preservados e transmitidos ao longo do tempo. Além disso, estão em um contínuo processo de criação e reformulação, através das relações cotidianas estabelecidas entre os indivíduos desse grupo. Por isso os significados que resultam de tais ações são completamente singulares. Palavra esta, que desenha não apenas o que é feito, mas principalmente, como se faz.

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Todos esses processos, ainda que em contextos socioeconômicos semelhantes, demonstram inúmeros modos de viver e atingir os mesmos objetivos no dia a dia de uma casa, sendo possível aventurar-se por diferentes microculturas ao caminhar pelos cômodos de diferentes lares. •••

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A CASA OCUPADA


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2. Marcas de mãos encontrada na entrada do bloco B | Fonte: DUARTE, 2020

Este trabalho surge como reflexão sobre o não-cumprimento de uma das necessidades básicas para a sobrevivência colocadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: a moradia. Um tópico que pode parecer banal para quem nasceu em um lar estabelecido e nunca conviveu com o medo de perdê-lo para o Estado, para alguma remoção forçada, como guerras ou perseguições políticas, ou por conta de condições climáticas extremas. O direito à moradia não é necessariamente o direito à casa própria, mas sim o de ocupar um lugar como residência. Logo, em um contexto em que não está assegurado ao cidadão ou cidadã o direito à moradia, o que se desdobra é a violação também do princípio da dignidade da pessoa humana. Este capítulo busca colocar luz sobre o problema da criminalização das pessoas que ocupam terrenos ou imóveis em situação irregular, e mostrar a legitimidade da máxima popular dos movimentos que reivindicam um direito garantido pelo artigo 6º da Constituição Federal Brasileira (1988), a moradia digna: “se morar é um direito, ocupar é um dever.”

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2.1 Por que ocupar? A casa, enquanto espaço de abrigo, é tão antiga quanto os primeiros registros de nossa espécie. Assim como outros animais que cavam suas tocas ou procuram abrigos em cavernas ou conchas para se proteger e desenvolver enquanto espécie, nós também temos o abrigo como uma necessidade básica. Basta abrir os jornais entre os meses de junho e setembro, no hemisfério sul, para reafirmar essa importância na vida humana: todos os anos pessoas em situação de rua morrem sob o inverno rigoroso das cidades. Com isso em mente, e voltando uns tantos anos mais de páginas de jornal, considerando o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), torna-se mais simples compreender o motivo da criação de mecanismos de cooperação entre os países para a manutenção dos direitos iguais a todos. Foi naquele período, de grande destruição e desolação em muitos países, que se deu a ratificação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), firmando condições mínimas para o viver, de maneira digna e harmoniosa, em sociedade — respeitando as diferenças existentes nas mais diversas culturas. Na primeira aula do curso “Decifrando o Direito à Moradia” o advogado e professor Dr. Rodrigo Iacovini (2020) disse que ele, assim como o Instituto Pólis — escola que promoveu o módulo — acredita que os direitos são construídos por meio de processos sociais, muitas vezes na forma de luta encampada por setores oprimidos ou marginalizados, em uma determinada época, que reivindicam algo. Isso significa também que os direi-

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tos se transformam ao longo do tempo. Nesta aula, é citado o professor Fábio Konder Comparato (2006, p. 24) com o intuito de embasar a afirmação supramencionada: Se a pessoa [...] é a fonte e medida de todos os valores; ou seja, se o próprio homem, e não a divindade ou a natureza de modo geral, é o fundamento do universo ético, a História nos ensina que o reconhecimento dessa verdade só foi alcançado progressivamente, e que sua tradução em termos jurídicos jamais será concluída, pois ela não é senão o reflexo do estado de “permanente inacabamento” do ser humano.

Para isso, é preciso pontuar que os direitos humanos são anteriores ao seu reconhecimento estatal, que apenas os elevam, pois o “direito a” é construído no cotidiano. Entretanto, dentro de uma sociedade capitalista, a concepção meritocrática é frequentemente utilizada como argumento para uma espécie de justiça social aplicada a diversos aspectos da vida, inclusive, no que diz respeito aos Direitos Humanos. O termo apresenta lacunas, já que supõe a aplicação de esforços para alcançar um objetivo, mas não considera as possibilidades reais divergentes e os pontos de partidas — ou oportunidades decorrentes de questões sócio-econômicas — de cada indivíduo para obter tal êxito. Ou seja, a meritocracia, cunhada a partir do “mérito”, coloca sobre os ombros de todos que alcancem as mesmas coisas por meio de esforços que não se igualam. Cabe a reflexão:

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por que a moradia é analisada sob este prisma, a ponto da naturalização de pessoas sem casa, assim como a criminalização e marginalização de pessoas que ocupam locais abandonados? O que instala a falta de empatia comumente encontrada neste discurso, que permite validar a negligência mínima do abrigo? Rodrigo Iacovini (2020) aponta quatro verbos como os fundamentos, nos quais os Direitos Humanos estão lastreados: respeitar para que não se viole, garantir para que outros atores não violem, promover e disseminar o tema, e efetivar tal direito por meio de políticas públicas. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) é um documento que traz diretrizes de caráter mais filosófico. Estas diretrizes foram aprofundadas quase vinte anos depois, em 1966, resultando no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Documento este que consolida vários direitos já reconhecidos, de forma genérica, na declaração de 1948 e atua como alicerce no reconhecimento do direito à moradia digna como um direito primordial humano. O último documento que integra a tríade da Carta Internacional dos Direitos Humanos — juntamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) —, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP, 1966), diz no artigo 17º que “ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra e reputação”.

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No caso do Brasil, com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, após o fim da Ditadura Militar (1964-1985), o assunto relacionado à habitação esteve presente, mas não de maneira aprofundada. Ao falar sobre a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, o assunto da moradia aparece brevemente. Os requisitos básicos do salário mínimo — no artigo 7, parágrafo 4º —, por sua vez, são apontados como um valor que deve ser “capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social [...]”. O direito à moradia, portanto, não aparecia como um tema isolado de outras condições básicas. Passou a ser um direito constitucional somente no ano de 2000, quando a Emenda Constitucional nº 26 foi incorporada ao artigo 6º que diz: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Soma-se a isso o fato do Brasil ser um dos países signatários da Carta Internacional dos Direitos Humanos e tendo contemplado seus princípios na Constituição da República Federativa do Brasil como fundamentos do Estado Democrático de Direito é atribuição do Governo elaborar políticas públicas para a criação de programas voltados à habitação, ao resgate de moradores de rua, à erradicação de favelas e de habitações em áreas de risco. No entanto, a realidade que se vê é outra, tanto no tempo presente como em períodos anteriores. Sendo assim,

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diversos movimentos surgiram para viabilizar distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas. Eles se colocam há décadas pressionando o poder público — por meio de mobilizações, marchas, concentrações, passeatas, distúrbios à ordem constituída, atos de desobediência civil, negociações, etc. — a fim de reivindicar direitos sociais.

Neste trabalho, entretanto, analisamos uma coordenação de pessoas independentes: a Ocupação Mandelinha, que se formou no ano de 2015 em Cotia, na Grande São Paulo, que desde então vem lutando pela regularização da área ocupada.

2.2 Ocupação Mandelinha Quando voltamos nossos olhos para a Ocupação Mandelinha, percebemos inicialmente uma ocupação não de espaços ociosos, mas de um conjunto habitacional nunca concluído de um empreendimento governamental integrante do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV).

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3. Perímetro da Ocupação Mandelinha | Fonte: DUARTE, 2020

Sobre isso, Maria da Glória Gohn (2004, p. 144), nos diz que “os movimentos sociais dos anos 70/80 contribuíram decisivamente, via demandas e pressões organizadas, para a conquista de vários direitos sociais novos, que foram inscritos em leis na nova Constituição brasileira de 1988.” Ou seja, quando Iacovini (2020) disse que o “direito” é construído por meio de processos sociais — muitas vezes na forma de luta encampada por setores oprimidos ou marginalizados — era a conquistas como essa a que se referia. Portanto, se essas pessoas que lutaram por nossos direitos anos atrás não o tivessem feito, a situação atual provavelmente seria bem diferente.


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Criado em abril de 2009, com iniciativa do Governo Federal, em parceria com estados, municípios, empresas e entidades sem fins lucrativos, para participar do PMCMV é necessário ter uma renda familiar bruta de até R$ 7.000,00 por mês e ter o imóvel adquirido apenas como moradia. Além disso, as prestações do financiamento não podem passar de 30% do valor da renda mensal, sendo as taxas de juros no financiamento mais baixas do que em outros bancos, variando entre 5% e 9,16%. O programa funciona com duas modalidades, uma para habitação urbana e outra para habitação rural. No caso da Ocupação Mandelinha, que seria uma habitação urbana, existem quatro faixas de renda contempladas, de acordo com a renda familiar que são de — R$ 1.800,00; R$ 2.600,00; R$ 4.000,00 e R$ 7.000,00. As famílias que se enquadram na Faixa 1 — de R$ 1.800,00 — precisam cumprir alguns requisitos. Isso porque, nesta categoria, o governo pode custear até 90% do valor total do imóvel. Além da renda familiar compatível com a modalidade, ou seja, de até R$ 1.800,00 — sendo que rendas como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Bolsa Família não entram nesse valor. O solicitante também — de qualquer faixa — não pode ser proprietário ou promitente comprador de imóvel residencial, nem ter recebido benefícios de natureza habitacional para adquirir imóveis. Com pouca informação no site da prefeitura da cidade, jornais da região e revistas da época, escrevemos este tópico — com exceção do parágrafo subsequente — a partir da entrevista que fizemos com Tati dos Santos, 35 anos, líder comunitária desde 2015 — que, com as obras paradas — ocupou os 98 apar-

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tamentos inacabados (dos 572 projetados pelo programa) junto a um grupo de famílias. Parte delas estava na lista para a compra do novo imóvel, enquanto outras vieram de ocupações conterrâneas a esta que surgia. Segundo o próprio site do Governo do Estado, o que hoje é a Ocupação Mandelinha, seria o Residencial Jardim Panorama I e II com investimento total de 54.912.000 de reais. Tendo sua última medição em 19/10/2015 e 27,11% das obras concluídas foram gastos aproximadamente 14.886.643 reais, segundo nosso cálculo. Voltando ao agora, em 2020, a Ocupação Mandelinha conta com aproximadamente 800 famílias, 98 nesses edifícios inacabados e o restante em barracos, designados desta maneira pelos próprios moradores. Construídos de tapumes ou alvenaria, estes barracos dependem da condição do novo ocupante para ser desenvolvido. Atualmente, dois outros terrenos ociosos de pessoas físicas fazem parte da Mandelinha, tendo sido incorporados ao do Banco do Brasil devido ao crescimento da população sem-teto. Sem vínculo com movimento formal por reivindicação de moradia, a Ocupação Mandelinha é coordenada por Tatiana dos Santos, apelidada de Tati, e por Carla “Preta”, que encontra-se presa injustamente há dois anos após ação policial em busca de drogas que não pertenciam a ela, conforme relatos de Tatiana dos Santos (2020). Carla tinha uma passagem criminal há dez anos, o que acreditam ter sido usado para incriminá-la na ocasião.

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Atualmente, não há mais vagas nos blocos de apartamentos. Quem chega à ocupação recebe um espaço já terraplanado de 5m x 12m pela organização, local este destinado à construção de sua nova moradia, realizado de acordo com os recursos das próprias pessoas. Pessoas solteiras ou casadas, sem filhos, não conseguem o empréstimo desse espaço. Isso porque Tati dá preferência aos que têm filhos, pois acredita que as crianças são as que mais sofrem com a falta de abrigo. Adotada essa política, a ocupação abriga hoje aproximadamente 500 crianças. Um ponto interessante do Mandelinha em especial, é que a ocupação surge justamente na falha do Estado em efetivar o direito à moradia com o programa “Minha casa, minha vida.” O terreno que faria parte desse incentivo governamental foi abandonado pelo poder público e concluído, pelos próprios moradores da ocupação como foi possível: com tapumes, madeira e blocos cerâmicos. •••

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A FOTOETNOGRAFIA


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4. Tripé e câmera principal do trabalho | Fonte: DUARTE, 2020

A fotografia, com seu papel de transportar pequenas fatias de um todo de um lugar à outro, ganhou o mundo quando em 1839 sua invenção foi publicamente divulgada em Paris. Com ela foi possível levar a todos os cantos a aparência de grandes clássicos das artes plásticas, até então reservadas a visitas em museus, vislumbrar recortes de culturas distantes e guardar no olhar a imagem de pessoas que já se foram. Devido ao seu caráter ilustrativo, a fotografia livrou a pintura das amarras da representação possibilitando o desenvolvimento de movimentos como o cubismo, expressionismo e outros que fogem da representação fiel da natureza. Entretanto, mesmo com esse viés pictórico da fotografia, a imagem fotográfica pode e deve ser mais que um mero instrumento ilustrativo da realidade. Por essa razão, neste trabalho não nos interessa a já consagrada forma de utilização da fotografia como ilustração, como material de adorno de trabalhos de pesquisa;nse a utilizamos como tal nas capas dos capítulos anteriores e nas que estão por vir trata-se de mero capricho. A partir daqui nos interessa sistematizar as potencialidades da fotografia enquanto técnica de pesquisa e, principalmente, enquanto possibilidade de construção de uma forma narrativa eficaz que materializamos no tópico 4.1 deste caderno.

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3.1 A fotografia como instrumento de pesquisa Quando pensamos a fotografia dentro de uma pesquisa científica, a imagem fotográfica pode ser o ponto de partida de uma reflexão ou o resultado dela. No entanto, se trabalhada sozinha, como peça única — imagem-síntese — que encontramos em capas de revistas ou manchetes de jornais, a imagem fotográfica jamais poderá se constituir da própria reflexão em si, já que a fotografia, por natureza, é eminentemente descritiva. Ela descreve, representa e interpreta tudo o que pode ser visto, ficando fora do seu alcance a apresentação de conceitos, ideias e processos de raciocínio. É nessa linha de pensamento que a imagem-síntese aplicada à ciência social deve ser lida de forma específica para produzir sentido. Ou seja, ter os olhos de quem a vê guiados por uma legenda ou referencial teórico que a acompanham em paralelo. Sobre isso, o antropólogo-fotógrafo Milton Guran (2012, p. 65) diz: [...] neste caso, ela [a fotografia] não pode ficar limitada a uma dimensão sensorial de percepção nem à informação mais evidente e literal. O sentido de uma imagem para as ciências sociais depende de como seu conteúdo é percebido à luz dos pressupostos teóricos e procedimentos metodológicos que presidem a reflexão científica deste campo do conhecimento.

Como parênteses, cabe ressaltar que o “misticismo” que envolve a fotografia como representação fiel da realidade, não

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nos cabe aqui. Em seu icônico livro “A ilusão especular”, Arlindo Machado (1984) discute a ilusão que a fotografia propõe entre o olhar do fotógrafo, os efeitos óticos que ora renegam, ora emulam, a experiência do olhar e outras variáveis que nos obrigam a uma leitura mais crítica e menos dogmática da linguagem fotográfica. Podemos considerar então, que a utilização da fotografia pelas ciências sociais — seja como fonte de dados, instrumento auxiliar para pesquisa ou mais um elemento do discurso final — quando colocada de forma isolada, deve ser tida como um comentário do pesquisador sobre o assunto retratado: A leitura da imagem perpassa todas estas questões como um elemento fundamental na medida em que é através da análise e da interpretação da fotografia que se chega à informação propriamente dita, ou seja, ao dado antropológico que é a razão de ser da pesquisa. A natureza desta informação depende diretamente da abordagem de interpretação que tenha sido efetivada (GURAN, 2012, p. 66).

Posto isso, surge a grande questão deste tópico: o quê a fotografia, e somente a fotografia, pode acrescentar ao trabalho acadêmico enquanto instrumento de pesquisa? Guran (1997), referência principal para este tópico, nos responde essa questão por meio de outro texto que aborda o tema — “Fotografar para descobrir, fotografar para contar.” Existem duas finalidades que podem ser cumpridas pelas fotografias

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produzidas durante uma pesquisa antropológica: seja ela feita com objetivo de obter informações, para demonstrar ou enunciar conclusões. A primeira, a fotografia para “descobrir”, se dá no momento em que a observação do pesquisador estabelece uma relação familiar com aquilo que estuda. Assim, formulam-se as questões práticas do trabalho em campo. No contexto da vivência do cotidiano de uma comunidade, este ator cria percepções sobre o tema estudado, ainda que não compreenda todas as articulações dadas. O que se absorve gera sensações, mas não necessariamente dados que podem auxiliar no trabalho de campo, já que sugerem questões e estimulam a busca por respostas. Aí entra o papel da fotografia, que vem para refletir o embate do campo indagatório e as construções das diversas verdades que permeiam este espaço. O material construído durante essa etapa pode servir como ferramenta nas entrevistas a serem realizadas, chegando a figurar como referência para a construção do objeto de estudo. Ao avançar na compreensão do tema analisado, as imagens ganham sentido e as informações que carregam desdobram-se, ampliando as possibilidades de uso, seja para enunciar ou explicar constatações. Enquanto isso, a fotografia “para contar” demonstra o momento em que o pesquisador articulou a base teórica e conectou as suas premissas e as informações que obteve. Nessa

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fase, a fotografia é utilizada como meio de destacar aspectos e situações marcantes da cultura estudada de forma segura. Ou seja, não se trata mais do campo perceptivo, mas sim de dados aos quais as fotografias emolduram e viabilizam a compreensão das evidências que as próprias imagens apresentam. Ao fim, ambos os processos são complementares, desenvolvendo-se concomitantemente. Isso mostra que um dos aspectos mais importantes trazidos pela fotografia neste processo pode ser o ponto de partida de uma reflexão e o resultado final: dependendo do olhar que se coloca sobre o material coletado, a fotografia feita “para descobrir” pode ser também aquela que “conta.” Aqui, utilizamos esses dois momentos do fotografar para construir o método utilizado neste trabalho.

3.2 O método A fotoetnografia, termo cunhado pelo fotógrafo-antropólogo brasileiro Luiz Eduardo R. Achutti (1997), é uma vertente da antropologia visual que propõe trabalhar o potencial narrativo-descritivo da fotografia visando convergir significações e informações a respeito de uma dada situação social em uma narrativa visual autônoma. Como método, a fotoetnografia busca o mesmo que textos etnográficos, que segundo Achutti (1997, p. 67): [...] deverão estar transcritos, de forma clara, os recortes e os encadeamentos específicos ao trabalho de análise e interpretação antropológicos. Personagens, etapas

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descritivas, sequência de acontecimentos e detalhes, não deverão estar embaralhados ou valorizados equivocadamente, sob pena de inviabilizarem uma boa compreensão das proposições pretendidas.

Logo, com a fotoetnografia, pretende-se construir textos imagéticos a respeito da cultura de determinado grupo social, construindo narrativas descritivas que viabilizem o entendimento sobre o outro. Com isso, nos interessa sistematizar as potencialidades da fotografia enquanto técnica de pesquisa e, principalmente, como possibilidade de construção de uma forma narrativa eficaz de comunicar se há ou não a percepção de lar por parte das das pessoas que vivem em um situação de vulnerabilidade e luta constante, como a ocupação Mandelinha. Para isso, a partir de uma abordagem descritiva, investigamos os elementos com os quais esta população constrói os traços de sua identidade. Como se apropriam do espaço ocupado por meio da organização de suas moradias, dos objetos e suas disposições, que adicionam ou retiram cores, texturas, que indicam condições e desejos. Entretanto, por trás de um manuseio ideal da técnica fotográfica, se faz necessária a vivência antropológica do trabalho de campo, no sentido de buscar interpretar as realidades culturais que se apresentam. Assim, nosso trabalho de documentação fotográfica pressupõe o conhecimento do universo a ser investigado, com o referencial teórico já apresentado, e demanda o respeito ao outro.

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A respeito dessa necessária vivência-experiência antropológica, Luiz Eduardo Achutti (1997, p. 36) nos diz que: Para viabilizar um trabalho de antropologia visual com a utilização da fotografia é necessário que o antropólogo domine a especificidade da linguagem fotográfica e que o fotógrafo tenha o substrato do olhar do antropólogo, com suas interrogações e formas específicas de olhar o outro.

Por sua vez, todas as intenções visuais aqui propostas foram resolvidas de forma a originar fotografias que ofereçam uma “leitura” tão clara quanto for possível. Ainda mais, cada fotografia deverá ter alguma importância quando “lida” individualmente e, ao mesmo tempo, deverá servir como parte integrante de uma sequência de fotografias que no seu conjunto possam vir a compor uma das formas de narrar a vida na Ocupação supramencionada. Por isso, assim como em um texto etnográfico, sugerimos que a leitura das imagens seja feita não como sendo a realidade em si, mas como um comentário do real. Entendemos também que as representações visuais dão outra classe de informação e facilitam modos de identificação, autoconhecimento e interpretação mais diversificados sobre o assunto proposto. Não excluem o que se pode saber e dizer mediante a linguagem oral e escrita — e às vezes não são suficiente para nomeá-los com o mesmo rigor —, mas as fotografias podem dar uma visão mais polissêmica, carregada de significados heterogêneos. Recapitulando o que nos diz Juhani Pallasmaa (2017, p. 18), citado no primeiro capítulo, “lar é uma condição complexa

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e confusa , que integra memórias e imagens, desejos e medos, o passado e o presente”, sendo tão complexo quanto a própria vida. Por isso, neste trabalho, entendemos que, para representar a complexidade do lar, nada melhor que a ambiguidade da imagem fotográfica — que retrata a realidade ao mesmo tempo que provoca questionamentos e reflexões. Portanto, para a construção da narrativa a seguir, fizemos uso de fotografias produzidas “para descobrir”, e outra já criadas “para contar” de uma forma sequencial que possibilite responder se há ou não a percepção de lar por parte das pessoas que vivem na Ocupação Mandelinha, cenário este de vulnerabilidade e luta constante. Destaca-se o uso de dois outros métodos para alcançar esse objetivo: a vivência de campo e entrevistas — apresentadas no apêndice deste caderno —, que guiaram o nosso olhar sobretudo na constituição da última parte da narrativa fotográfica (capítulo 4). •••

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A NARRATIVA VISUAL


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5. Mosaico fotoetnográfico | Fonte: DUARTE, 2020

A fotografia, de certa forma, sempre esteve presentes em nossas vidas. Basta abrir os álbuns de família ou checar as manchetes de jornais. Mas diferentemente do que propomos aqui, essas imagens que talvez venham à mente de todos têm uma força singular: sua irmã dormindo com uma batata frita na boca, seu pai menino no anuário da escola ou um grande flagrante na capa do jornal. Todas elas têm algo em comum: um fim em si mesmas. Foram feitas para “seguir carreira solo.” Aqui, assim como em um fotolivro, as imagens são palavras. Entendam as fotografias que vêm a seguir como substantivos, adjetivos, verbos, entre as outras classes gramaticais cadenciadas por vírgulas, pontos finais, travessões e seus semelhantes, que compõem uma narrativa visual sobre o habitar na Ocupação Mandelinha. Nas páginas a seguir, cada imagem cumpre sua própria função. No fim, o que elas devem responder, é: as pessoas que vivem em um situação de vulnerabilidade e luta constante, como a Ocupação Mandelinha, entendem suas casas como lares?

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4.2 Do diário de campo à narrativa visual Iniciada a pesquisa para a elaboração deste trabalho — quando tudo ainda parecia muito nebuloso —, o tema da vulnerabilidade social que agride a população menos favorecida e a do objeto arquitetônico “casa” me apareceram. Busquei me inteirar sobre as condições de abrigo de refugiados e imigrantes recentemente chegados ao Brasil. Gostaria de estudar como essa população perseguida e com a vida ameaçada por questões políticas ou étnicas se relacionavam com o novo país que lhe abraçava (ou não.) Haveriam o sentimento de pertencimento, identificação e afeto para com o local ocupado? Pesquisei sobre casas de acolhimento institucionalizadas e ONGs especializadas até chegar às ocupações — moradias irregulares que surgiam como alternativa para àqueles que não conseguiam vaga nos programas de apoio aos refugiados e imigrantes. Porém com as dificuldades de acesso à essa população, o pouco tempo para elaboração desta pesquisa e a minha deficiência da língua (algo que me aflige), me desencorajaram a seguir este caminho. Como alternativa, passei a concentrar meus estudos não mais nos grupos étnicos que surgiram neste momento inicial, mas nos assentamentos irregulares em que boa parte dessa população eram amontoadas pelo déficit habitacional, pelas poucas oportunidades e pelo limites físicos e econômicos que assolam os programas de apoio. Definido o assunto de interesse, passei a pesquisar sobre as ocupações e como elas surgiram — sobretudo no centro de São Paulo, onde iria trabalhar com a população de refugiados e imigrantes. Porém, com a pandemia da Covid-19 — que envolveu todo o desenvolvimento deste trabalho — e outras restrições colocadas pelos movimentos de luta de moradia que procurei, não haveria tempo hábil para que o projeto evo-

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luísse com o cuidado e respeito que me coloquei como premissa. Novamente saí em busca de outra alternativa. Foi então que, com as mãos atadas, e vendo meu planejamento de um semestre inteiro — o nono semestre, onde desenhamos todo o escopo de pesquisa a ser desenvolvido no próximo e, consequentemente, último semestre de graduação — ruir. Com todos os pensamentos negativos que poderiam vir à mente de um graduando em arquitetura, decidi depois de muito custo, seguir conselhos que me foram dados e conversar com Jafé, pastor da Igreja Batista da Granja Viana, que tem um trabalho muito sério na Ocupação Mandelinha em Cotia. Já a conhecia por ter participado de uma ação solidária meses antes junto à igreja citada. Hoje, com a fase final do trabalho, vejo que a relutância que tive em mudar a rota e seguir por um outro caminho que me apareceu estava ligada ao carinho que tenho pelo centro da cidade e por saber que trabalhar em um espaço de concentração dessas moradias facilitaria e enriqueceria o trabalho; entretanto, com o passar do tempo e as idas e vindas à Ocupação, passei a perceber que ecoar a voz das pessoas que me receberam e estão à margem de uma movimento já marginalizado pela construção histórica social baseada no mito da meritocracia brasileira, seria o que realmente poderia tornar este trabalho relevante a longo prazo. É o que espero. Passadas as grandes crises e com a ponte feita entre o Pastor Jafé e Tati Santos em uma tarde de outubro, comecei a frequentar a Ocupação semanalmente para colher informação em busca de possíveis respostas à problemática que nos seguia desde o último semestre: em um espaço de instabilidade e luta constante, há a percepção de lar por parte dos moradores que ocupavam agora as casas do Mandelinha?

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7. Modeo II| Fonte: DUARTE, 2020

6. Nicolas modelo I | Fonte: DUARTE, 2020

A primeira visita que fiz — após este primeiro contato onde nos reunimos eu, Jafé e Tati — foi no dia 17 de outubro de 2020 para realizar a entrevista com a coordenadora do Mandelinha. A conversa pode ser lida em forma de texto corrido no item 2.2 deste caderno, para entender um pouco mais da conformação da Ocupação, já que o acesso a estas informações pela internet são muito escassas. Feita a entrevista, caminhamos pela ocupação juntos de Raquel, que mais tarde também me concederia uma entrevista, e algumas crianças que não sei bem de onde chegaram, mas que estavam por todo o espaço. Inclusive, cabem os parênteses: todas as vezes que fui ao Mandelinha, topei com várias crianças que brincavam ora ‘’de pipa’’ e ‘’de bola’’, ora de correr atrás de carneiros, ora de me acompanhar — no que, para alguns, parecia uma grande aventura, e para outros, um glamoroso ensaio fotográfico, onde eles se transformavam em grandes artistas.


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9. Aventureiros | Fonte: DUARTE, 2020

8. Meninas modelo II | Fonte: DUARTE, 2020


Voltando à caminhada, logo nos primeiro passos, tive meu primeiro grande baque. Saindo da sede e caminhando pela primeira viela da ocupação, onde os primeiros barracos se instalaram, ouvi Raquel comentando com Tati como a casa de fulana, que não me lembro o nome, havia ficado bonita. Para minha surpresa, quando virei o rosto para ver a intervenção de que elas falavam, encontrei uma moradia feita com simples blocos cerâmicos cobertos por uma tinta branca — que retratei em uma das fotos da narrativa. A partir dessa fala percebi que de fato adentrava em uma realidade totalmente diferente daquela que, até então, conhecia. Diferente das crianças que seguiam o jovem equipado de tripé e máquina fotográfica, os adultos se escondiam e olhavam desconfiados, como quem analisa a ameaça caso precise defender o que é seu. Entre tantos “pés atrás” já fui fiscal da prefeitura, jornalista e até topógrafo. No início, porém, ao perceber algum burburinho ou ao ser questionado sobre o que estava fazendo, eu me apresentava como estudante de arquitetura e ‘‘aliado’’ da Tati. Com o passar do tempo, descobri que a melhor defesa estava em ser parte da ação solidária que distribuía cestas básicas e kits de higiene e que, agora, estava fazendo um trabalho acadêmico com autorização da Tati. Por algum motivo, o respaldo dela era menor que o da Igreja. Superado o estranhamento, comecei a entender um pouco mais como me relacionar com as pessoas e consegui me concentrar exclusivamente em descobrir ângulos e cenas que me permitiriam comentar a respeito do que seria a Ocupação Mandelinha e como essa população ocupava o espaço. Para isso voltei às minhas referências vi-

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suais — consultando fotógrafos como Tuca Vieira (2016) em o “Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e seus arredores” e Felipe Russo (2014) em “Centro” — percebi que a melhor forma de contar essa história seria fotografando não o homem em si, mas a ação do homem sobre o terreno, ou seja, o produto da relação entre homem e espaço. Com isso em mente, me voltei às fotos já feitas e percebi que as primeiras intervenções seriam os bloco cerâmicos com os quais os primeiros ocupantes, terminaram da forma que puderam, os apartamentos nunca concluídos. Então, em todos os prédios, com exceção do primeiro — único concluído pelo PMCMV — haviam estas marcas cerâmicas, que à medida que os blocos de concreto, o material usado pelo programa nacional, se diluiam pelos prédios que encolhiam andar por andar, aumentavam a quantidade daqueles até que fossem usados de forma integral para a construção das novas casas que surgiam, com a total ocupação das construções pré-existentes. Observada a primeira intervenção, voltei à campo para fazer fotos que ilustram estas diluição dos prédios e passei a refletir na maneira que construiria a narrativa fotográfica do trabalho. Novamente consultei minhas referências visuais e cheguei ao fotolivro “Marrocos”, do Coletivo Gringo. Nele, Gui Christ e Gabi di Bella usaram o artifício da “quebra fotográfica” para subdividir a sequência em pequenos grupos de fotos que conversassem entre si, fazendo com que o todo seja compreendido de forma mais fácil por estar subdividido em grupos menores de fotografias. Logo que me deparei com este artifício, lembrei que Tati, na entrevista do primeiro dia que disse em uma de suas falas que o Mandelinha

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era o seu lar, pois havia lutado muito para construir e organizar toda a Ocupação. Isso guiou meu pensamento até os muros que separam a Ocupação da Estrada Velha da Olaria, principal via que contorna o assentamento. Ali foram pichadas frases de resistência que nos ajudaram a dividir os grandes assuntos da narrativa além de assinalar como essas moradias são marcadas pela vulnerabilidade da que falamos em nossa problemática: “as pessoas que vivem em um espaço de instabilidade e luta constante, entendem suas casas como lares?”. Das onze colocação marcadas nos blocos de concreto, escolhemos sete para dividir nosso texto visual. São elas: “Somos trabalhadores”, “Queremos Moradia Digna”, “Não temos para onde ir”, “Quem vai nos ajudar”, “Temos Família”, “Luta sempre desisti jamais” e “Abaixo a reintegração”, as quais organizamos exatamente nesta ordem. Em um momento inicial, antes da primeira quebra “somos trabalhadores” colocamos as imagens que representam as intervenções humanas vanguardistas nas edificações preexistentes seguidas pela diluição dos edifícios e o que seria a construção dos primeiros barracões. Além da função de quebra essas imagens servem também como introdução para as fotos que as seguem. Ainda no “somos trabalhadores” as imagens colocadas entre esta e a próxima quebra — “Queremos Moradia Digna” — descrevem os serviços prestados dentro da ocupação: mecânica, bar, mercearia e barbeiro, por exemplo. Seguindo na narrativa “Queremos Moradia Digna” abre o assunto da moradia, que representamos com fotografias de fachadas ou rol de entrada dependendo se a moradia for em barracões ou edifícios. Na colocação “Não temos para onde ir” destacamos a vulnerabilidade presente no cotidiano das pessoas

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que encontramos nas caminhadas pelo território: rachaduras, a presença de ratos e o incêndio que destruiu duas casas por inteiro e afetou outra na tarde de 04 de novembro. Quanto à última, infelizmente durante o desenvolvimento do trabalho, ficamos sabendo que algumas casas do Mandelinha havia sido alvo de um incêndio criminoso por parte de um andarilho que uma noite antes dormia em frente à uma das casas. Um ou dois dias depois, encontramos o pior cenário possível: as duas casas estavam completamente destruídas, postas no chão. Começamos, junto da Igreja Batista da Granja Viana, uma campanha para arrecadar fundos para a reconstrução dessas moradias. Enquanto formando de arquitetura, não me sinto apto a tocar um projeto sozinho, já que as competências que adquiri ao longo do curso são mais voltas ao campo da imagem do que da construção. Ainda assim, mesmo sem a segurança que me parecia necessária, resolvi buscar alternativas para esse receio já que havia me colocado a disposição de ajudar da maneira que pudesse enquanto arquiteto. Jafé, que estava à frente do mutirão, me pediu para que eu desenhasse a casa de Joana, que mais tarde também nos cederia entrevista, já que ela vive sozinha e não tem família para socorrê-la. Topei na hora. Com o desafio aceito, expus o problema a amigos e ao professor Ivanir Abreu, por quem tenho grande respeito e estima. Até o presente momento que este trabalho é apresentado a situação é de reconstrução e entre rabiscos e conversas propusemos um novo desenho de casa para Joana (simplificada a seguir):

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FRENTE HORTA

FUNDO 10. Estudo para a nova casa de Joana | Fonte: DUARTE, 2020 N

0

1

2

3m

Voltando à narrativa, passado o tema da vulnerabilidade temos a outra quebra “quem vai nos ajudar”, onde separamos imagens e produzimos outras para descrever a reconstrução dessa vulnerabilidade. Chegamos ao último grande grupo de imagens anunciadas pelo “temos família” que abre o capítulo de imagens, onde apresentamos as fotos feitas dentro das casas das pessoas, e deixamos nosso olhar ser guiado pela entrevista com os moradores, fotografando sempre “a casa” a pessoa em seu ambiente de maior identificação e objeto ou marca que tenha se destacada na entrevista. Fechamos a narrativa com duas frases de resistência, porque acreditamos que, por mais que essas pessoas sofram com um medo constante e silencioso, nunca se dobrarão a nenhuma ingerência arbitrária. Por fim, não sei bem o porquê, mas desde que a fotografia entrou em minha vida há cerca de três anos durante uma viagem de 180


família, descobri a maneira mais eficaz de me relacionar com o que está dentro e fora de mim. A cada enquadramento que vislumbro em um mundo que me abraça e engole, consigo, em uma fração do tempo infinito, compreender como uma pequena fatia de um todo complexo e difuso se comporta. Quando faço fotografias me sinto como um agricultor que colhe pequenos fragmentos do mundo e leva à mesa daqueles que não estão ali para colher seu próprio alimento. Fotografar é descobrir um mundo desconhecido. No fundo, desconfio que fazê-lo é só um pretexto para ir a lugares que não iríamos se não fosse pela própria fotografia. Antonio Candido, grande professor e crítico literário, disse certa vez que o fotógrafo, com a sua câmera, o ensinaria a ver. Confesso que ainda não tenho uma opinião concreta sobre a frase, mas tenho pra mim que ensinando ou não, o fotógrafo deve desembolar o mundo cabeludo que nos enreda como a avó que faz tricô ao desembaraçar a lã guardada na caixa de sapatos. Assim como cada um que lê essas palavras, os fotógrafos também são únicos, e cada uma das fotografias aqui propostas — e todas as outras que nossos olhos encontram — nasceram da união entre o mundo fluido que beija nossa face e a própria vida daquele que pressiona o disparador. Por isso proponho que tomem a narrativa proposta não como uma realidade indiscutível, mas como o comentário de um graduando em arquitetura sobre o questionamento feito um semestre antes. Obrigado. •••

181


4.3 Notas pessoais

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

XV

XVI

XVII

XVIII

XIX

XX

XXI

XXII

XXII

XXIV

182


I.

Entrada

II.

Blocos A e B

III.

Bloco D

IV.

Bloco E

V.

Bloco E e F

VI.

Antes igreja, hoje adega

VII.

Vale dos barracões

VIII.

Casa de retalho

IX.

Início de um barracão

X.

“Somos Trabalhadores“

XI.

Oficina de Natan I

XII.

Barbeiro

XIII.

Bar do Bahia

XIV.

Oficina de Natan II

XV.

Mercearia de Celso

XVI.

“Queremos moradia digna“

XVII.

Chegada

XVIII.

Subida

XIX.

Menina Kemmi

XX.

Sofá

XXI.

Descida

XXII.

Casa Branca

XXIII.

Casa Vermelha

XXIV.

Casa azul de Sidovaldo

183


XXV

XXVI

XXVII

XXVIII

XXIX

XXX

XXXI

XXXII

XXXIII

XXXIV

XXXV

XXXVI

XXXVII

XXXVIII

XXXIX

XL

XLI

XLII

XLIII

XLIV

XLV

XLVI

XLVII

XLVIII

184


XXV.

“Não Temos para onde ir“

XXVI.

Construção em área de risco

XXVII.

Rachadura

XXVIII.

Ratoeira adesiva

XXIX.

Restos do incêndio I

XXX.

Restos do incêndio II

XXXI.

Construções 75 e 74

XXXII.

Construção 75

XXXIII.

“Quem vai nos ajudar“

XXXIV.

Primeira Ação Social IBGV

XXXV.

Segunda Ação Social IBGV

XXXVI.

Moradores e as doações

XXXVII.

Cama

XXXVIII. “Temos família“ XXXIX.

Casa de Gabi

XL.

Minnie sobre sofá

XLI.

Laura, Gabi e Lourenço

XLII.

Casa de Sema

XLIII.

Parede por onde gatos ganham as ruas

XLIV.

Sema

XLV.

Casa de Raquel

XLVI.

Arte de Samya (caçula de Raquel)

XLVII.

Raquel e seu irmão Cícero

XLVIII.

Casa de Joana

185


XLVIII

XLIX

L

LI

LII

LII

LIV

LV

LVI

LVII

186


XLVIII.

Radio de Joana

XLIX.

Joana

L.

Casa de Deise

LI.

Armário Cheio

LII.

Deise e suas “crias“

LIII.

Casa de Nelson

LIV.

Balança

LV.

Nelson

LVI.

“Luta sempre desisti Jamais“

LVII.

“Abaixo a Reintegração“

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CONSIDERAÇÕES FINAIS


A casa, por definição, é o objeto material construído, com características físicas e localização própria, utilizado para nos abrigar contra intempéries. Antes, um mundo onde proteger-se dos outros animais era determinante para acordar no dia seguinte; hoje, um mundo onde se proteger das ruas que nós mesmos criamos se tornou indispensável para a dignidade humana. Em uma casa que evidencia a vulnerabilidade a qual estão expostos os seus moradores logo na junção das paredes de tapumes, a pergunta-pontapé para a presente pesquisa pareceria desafiadora àqueles que nunca se viram na iminência de perder o teto sobre suas cabeças. Assim como sugere uma casa bem articulada, como citamos logo no início deste caderno, será que também haveria a percepção de lar em locais de vulnerabilidade e luta constante? Com a problemática, gravador e câmera fotográfica em mãos, conhecemos histórias que não se assemelham aos condomínios bem afeiçoados, às casas e móveis confortáveis da minoria abastada do Brasil. Conhecemos dificuldades, dores e uma realidade marginalizada que suscitou a questão levantada. O resultado dessa jornada sob sol e chuva nos mostra que a chuva que beija as janelas de nossos lares pode ser o Tietê sob os blocos que seguram a cama de Joana, assim como nos responde quase em uníssono que o teto, a família, uma boa alimentação e Deus são sinônimos de lares que não conhecemos. Mas existem e resistem.

190


Na Ocupação Mandelinha, a vulnerabilidade está presente nos vestígios de ratos, nos destroços de um incêndio criminoso, na necessidade da entrega de cestas básicas ou nas casas que, um certo dia, já não estavam mais lá. Munidos apenas com o olhar fotográfico e um referencial teórico ainda em construção, buscamos informações visuais, entrevistamos pessoas e, sobretudo, ouvimos o que elas tinham a nos dizer sobre a experiência de viver nessa área irregular. E quanto mais caminhávamos, mais insignificante se revelava a problemática que nos trouxera até ali. Juhani Pallasmaa, teórico norueguês, nos disse que a essência de um Lar está mais próxima da vida em si do que da materialidade da casa. Como então representar em imagens a vida, senão pelas marcas das inúmeras histórias vivenciadas no espaço ocupado? Martin Heidegger, filósofo alemão, complementa nossa reflexão ao pontuar que o habitar é um produto entre o sujeito e o mundo em que se vive. Logo a micro-cultura de Érica Negreiros, em partes derivada deste autor, nos deu um caminho muito mais sólido para bater nas portas, pedir uma palavra e uma foto. A sua teoria do mundo individual construído a partir de ações singulares num espaço chamado de “seu” ficou visível nos rabiscos das crianças nas paredes, assim como na sobreposição dos blocos de concreto forjada com uma pintura em tintas azuis e brancas que emulam o material, agora em cores. A vida ali se mostrava para nós. Naturalmente, os lares também.

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Incontáveis vezes cheguei em minha casa absolutamente grato por tê-la e compreendê-la de fato dentro da dignidade prevista a todos os seres humanos — mas infelizmente travestida sob a alcunha de ‘’privilégio.” Em minhas primeiras leituras, não tinha certeza da resposta que hoje parece óbvia. Não são as condições físicas e financeiras que constituem uma casa — embora a luta pela moradia digna seja pauta cada vez mais urgente. Um lar, ou a casa que é lar, no português mais corriqueiro, não deixa necessariamente de se manifestar pelas dificuldades impostas pela presença-ausência do Estado, pela renda ou outros aspectos que talvez não venhamos a conhecer de fato. Considerações talvez preconceituosas e estabelecidas numa relação de alteridade, que tínhamos a princípio. O processo de percepção desses lares aconteceu em um ritmo fluído de troca entre a ilustração à medida que os constatávamos, e a ampliação de nossos próprias visões de mundo à medida que lapidávamos a narrativa visual. Combinar imagens, associando-as por elementos visuais ou relações de conteúdo foram meras formas de comunicar os tantos lares abraçados pelo Mandelinha. •••

192


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REFERÊNCIAS


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APÊNDICE


“TEMOS FAMÍLIA” — ROTEIRO DAS ENTREVISTAS Para a construção das últimas fotografias da narrativa visual elaboramos um roteiro de entrevista que pudesse nos fornecer respostas que guiaram nosso olhar para o que fosse significativo dentro das moradias visitadas. Quanto aos entrevistados, optamos por falar com chefes de família, ou seja, aqueles que tinham a maior autonomia dentro da moradia. Dividimos a entrevista em dois blocos de perguntas. A primeira, de cunho mais identitário, para que pudéssemos conhecer o entrevistado e como ele chegou até a ocupação. A segunda de cunho subjetivo, para descobrir como a prórpia moradia é percebida. 1º BLOCO: 1. Qual seu nome completo? 2. Quantos anos você tem? 3. Aonde você nasceu? 4. Qual a sua profissão? 5. Qual a renda familiar? 6. Como você veio parar em Cotia? 7. Qual a sua ultima casa antes do Mandelinha? 8. Como você ficou sabendo da Ocupação?

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9. Por que veio morar aqui? Quando? 10. Quantas pessoas vivem nessa casa? 2º BLOCO: 11. Você entende essa moradia de hoje como seu lar? 12. Como você descreveria um lar? 13. O que a casa tem que ter para que seja um lar? 14. Qual o ambiente/ cômodo que você mais se identifica? 15. Por que? O que tem nesse ambiente que não tem nos outros? OBS: No caso de moradores que perderam suas casas no incêndio, há ainda outras três perguntas: a. Você conseguiu salvar alguma coisa da moradia que pegou fogo? b. Pensando no que a gente conversou, o que já tem aqui, nesse abrigo de hoje, que caracteriza um lar? Ele é seu lar? c. O que você espera da que está por vir? Com as respostas colhidas, fizemos três fotos por entrevistados: a casa, representada pela fachada ou porta de acesso, a pessoa e, por último, algum elemento que seja significativo na entrevista.

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GABRIELE CRISTINA

1997, Cotia, SP

11. Gabi | Fonte: DUARTE, 2020

“Um lar pra mim é um lugar de aconchego, onde eu chego e eu sei que vou ter a paz, a minha família, é um lugar de sossego, que me protege do mundo. O mundo pode estar desabando lá fora, mas se meu lar, minha casa, estiver bem, eu to bem. Os outros problemas lá de fora são pequenos. O Importante é minha casa tá bem, meus filhos estarem bem.”

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Gabriele Cristina da Silva Lima, 23 anos, foi mãe muito cedo e por isso já aos 18 decidiu se mudar para a Ocupação. Sentia a necessidade de viver sozinha com sua filha, que na época tinha um ano e nove meses. “Pra quem já teve família, já teve filho, sabe que não é uma coisa legal [dividir a casa com os pais] e a casa da minha mãe é muito pequena: são dois cômodos. É muita gente pra pouco espaço, aí foi o lugar que me acolheu. Não me vejo fora daqui, quando tem qualquer problema eu já fico desesperada porque eu sei que não tenho para onde ir. É aqui e pronto.“ Há cinco anos na ocupação, Gabriele tem em sua casa um lugar de aconchego. “Onde eu chego e eu sei que vou ter a paz, a minha família, é um lugar de sossego, um lugar que me protege do mundo. O mundo pode estar desabando lá fora, mas se meu lar, minha casa estiver bem, eu to bem. Os outros problemas lá de fora são pequenos.“ Ela mora com a filha Laura e seu filho Lourenço no andar térreo de um dos blocos de apartamentos sem televisão, mas repleto de brinquedos espalhados pelo chão que, admite, divide com os pequenos.

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SEMA

1945, Bezerros, PE

12. Dona Sema | Fonte: DUARTE, 2020

“Pra mim eu estando aqui é uma sensação muito boa. Eu me sinto muito bem, muito bem, muito bem mesmo aqui. Muito bem. Ninguém me aperreia, ninguém me olha de cara feio. Aqui eu to tranquila. Há cinco anos quando eu vivia na casa da minha filha a gente brigava muito. Agora, depois dessa queimação, melhorou um pouco (...) Aqui eu me sinto melhor. Fico melhor sozinha.”

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Maria Luciene da Silva, 75 anos, foi uma das pessoas que teve a casa afetada pelo incêndio. Felizmente, pouca coisa foi perdida como a fiação elétrica e algumas placas de madeira que usava para fechar a fachada leste de sua casa. Enquanto estes problemas não são resolvidos, voltou a morar com a filha em uma ocupação vizinha ao Mandelinha, mas não vê a hora de retornar para seu apartamento, como chama. Ela se tornou uma das primeiras moradoras dos barracos, há cinco anos, quando decidiu sair da casa da filha para viver só. Nessa época, por conta dos vários espaços vagos, pessoas sozinhas ainda eram aceitas na ocupação. Isso hoje é quase impossível, já que a coordenação dá preferência para famílias com crianças. Dona Sema, como prefere ser chamada, gque anhou o apelido ainda menina que mantém por costume, vive na ocupação com seus dois gatos. É ali que se sente em paz e feliz. Quando expliquei a ela a definição de lar, aumentou o tom de voz para reafirmar: “é aqui, é aqui.” Durante a entrevista, a senhora lamentou diversas vezes não poder voltar ao seu apartamento.

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ANTÔNIA RAQUEL

13. Raquel | Fonte: DUARTE, 2020

1985, Novo Oriente, CE

“Para que seja um lar, primeiro tem que ter a união entre os familiares. Sem essa união, sem a parceria entre eu e meu esposo, a gente não conseguiria ter essa paz dentro da nossa casa. Como meu marido passa muito tempo fora, eu sou mãe e pai das minhas filhas. Ele quase nunca está, porque tem que trabalhar fora, e isso aqui e acolá balança um pouco a estrutura do nosso lar. Fora isso o lar pra mim se constitui na paz e nas minhas crias. Estando com elas protegidas e alimentadas, está tudo bem, não importa onde eu esteja. O resto eu vou me virar depois, mas a prioridade pra mim é essa.”

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Antônia Amâncio Soares, 35 anos, é uma dos muitos brasileiros que têm o nome alterado no momento de registro da criança em cartório. Antônia Amâncio Soares deveria se chamar Antônia Raquel Amâncio Soares e teve o nome, pelo qual se apresenta, suprimido pelo pai no momento do registro. “Como naquela época tinha poucos cartórios, papai viajou bastante para me registrar. Chegando lá esqueceu do Raquel. Minha mãe ficou muito brava e mesmo sem o registro, me chamava de Raquel.” Com 35 anos, ela mora na ocupação desde o começo [5 anos] com suas três filhas, o irmão portador de necessidades especiais e o marido que pouco fica em casa por conta da profissão. [gesseiro] “Quando perdemos o emprego, eu e meu marido, o ex-patrão dele, que quebrou, entrou em falência, sabia que com o desemprego e pela minha família ser grande, não conseguimos pagar o aluguel. Ele disse pro meu marido: “eu sei que você vai ficar na rua, mas em tal canto tem uma ocupação.” Ele fez isso com 4 rapazes que trabalharam com ele, tanto que todos vieram pra cá, mas só nós ficamos aqui. Os outros não quiseram. Hoje eu sei que um desses casais vivem na rua.” Depois da falta de abrigo, Raquel contribui com a construção dos “gatos” de água e luz. Hoje, entende que o seu lar está na paz que este mesmo abrigo lhe proporciona: “O lar pra mim se constitui na paz e nas minhas crias. Eu estando com elas protegidas e alimentadas tá tudo bem, não importa onde eu esteja. Se tá segura, alimentada e não tá doente, tudo bem, pronto. O resto eu vou me virar depois, mas a prioridade pra mim é essa.”

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JOANA DARCK

14. Joana | Fonte: DUARTE, 2020

1983, Novo Cruzeiro, MG

“Um lar pra mim, é sentir a presença de Deus. Apesar de todas as coisas que têm acontecido, eu tenho tudo, porque Ele nos sustenta. Eu gosto de mexer em uma coisinha ou outra, acho tudo importante, mas a graça maior é a que Deus tem colocado dentro de mim e Seu sustento em meio a várias situações difíceis (...). Uma vez, minha cama estava em cima de blocos e a água veio de trás, tão forte, que parecia estar em cima do rio Tietê. Até que a casa começou a alagar todinha, aí eu falei ‘não vou ficar assim, não’. Coloquei um louvor no rádio e comecei a cantar. ‘Não, não é porque essa água está aqui que eu vou ficar triste. Comecei a cantar e graças a Deus, passou.”

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Joana Darck Marques de Oliveira tem 37 anos, nasceu em 11 de novembro de 1983 em Novo Cruzeiro, Minas Gerais. Logo em seus primeiros anos de vida, mudou-se com a família para São Paulo. Morou com a mãe até os 25 anos, quando conheceu seu ex-marido. Com ele, foi viver em Campinas. Ao fim do relacionamento, Joana voltou para a casa da mãe em Cotia, porém,por terem ritmos de vida diferentes, algum tempo depois Joana saiu de casa e chegou a viver dois dias na rua antes de chegar à Ocupação, onde vive há 4 anos em um dos barracos. “Não consegui ficar na casa da minha mãe, porque minha família gosta de mexer com macumba. Eu não conseguia ficar ali, me fazia mal, me sentia sufocada”, conta. Passados os 4 anos, Joana foi uma das pessoas que teve a casa destruída pelo fogo em novembro de 2020. Ela , que contabiliza sua renda por semana, disse que em uma boa semana de trabalho arrecada 400 reais. Com a pandemia de Covid-19 foi dispensada de seus serviços. Para ela, a percepção de lar está na presença de Deus, não importam as condições físicas da casa. “Acho que um lar é ter seu quartinho, as coisinha mais ajeitadas. Quando falaram que tinham umas coisas pra pegar lá em cima, [doação] eu peguei essas cortinas [azuis], pq gosto dessas coisas de casa: paninho, tapetinho no banheiro e etc. [...] Então, eu gosto de mexer em uma coisinha ou outra dentro de casa, acho tudo importante, mas a graça maior é a que Deus tem colocado dentro de mim e tem me sustentado em meio a várias situações difíceis que eu tenho passado.

O lar de Joana é estar na presença de Deus, e materializa-se pelo rádio que lhe faz companhia e, pelo qual pode sentir a presença de Deus ao ouvir seus louvores.

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DEISE APARECIDA

15. Deise | Fonte: DUARTE, 2020

1980, São Paulo, SP

“Eu vim pra cá por conta do aluguel. Teve época que eu pagava aluguel, água e a luz e minha geladeira e o armário ficavam vazios. Então, não tava dando conta. Eu vou viver bem e vamos morrer de fome? Meus filhos pedir bolacha e não ter? Minha filha pedir leite e não ter? Não, vamo economizar: colocava água no leite dela pra ela poder tomar, pra render o leite. Não tem condições, prefiro morar aqui num barraquinho e meus filhos comerem bem. Foi a partir disso aí que eu tomei essa decisão. Quando cheguei no barraco, com o dinheiro do meu aluguel, da minha água e da minha luz, eu fui no atacadão melhorar a alimentação do meus filhos: toda hora uma bolacha, um leite. Sempre tinha. Graças a Deus hoje eu consigo comprar uma roupa e um sapato pra eles. No Natal consigo fazer uma ceia. Então pra mim é totalmente diferente, não tenho nem o que falar. (...) E se o Mandela não existisse? Eu sou uma necessitada do Mandela.”

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Deise Aparecida de Camargo Alves, 40 anos, é mãe de três crianças que nasceram pela terra fértil de Cotia, como brincou seu médico. “Na época [que me mudei pra cá] eu não tinha filho, eu nem podia ter. Eu era casada fazia nove anos, engravidei aqui e eu gostei desse lugar. Vim com 20 anos pra cá.” Antes do Mandela, Deise morou com o marido em uma casa de aluguel, até perceber que o melhor a se fazer seria ir para a ocupação. Isso porque o pouco que ganhavam não era suficiente para sustentar a família com dignidade. “Graças a Deus a gente nunca deixou de pagar o aluguel, mas já deixamos de comer, já deixamos de se vestir. (...) Sabe aquela pizza do dez, que parece um papelão? Teve semana que a gente só comia ela, uma pizza do dez e suco.” Deise vê no Mandela a sua necessidade de moradia suprida. Diz que seu sonho seria que os governantes regulamentem a ocupação. “Loteia o pedaço de cada um, faz um carnê, paga e fica por aqui mesmo (...) Eu morreria feliz aqui. Minha irmã até chama aqui de ‘meu barraquinho, minha vida’”, contou. Para ela a descrição de um lar é exatamente o que tem no Mandela: a paz, o bem estar de seus filhos e a felicidade de viver bem. Sendo que o essencial é ter sempre a geladeira e armários cheios.

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NELSON PEREIRA

16. Seu Nelson | Fonte: DUARTE, 2020

1945, Arara, PB

“Morei mais 20 e poucos anos no Lavapés, depois mudei aqui pro Arco Íris. Vivi lá 9 anos pagando aluguel, que era bem melhor que hoje aqui. Eu vim pra evitar os gastos: naquela época eu pagava setecentos e pouco, então pra quem ganha 1000 reais...Tínhamos que nos virar de qualquer jeito. Lá pelo menos ninguém me amolava, não tinha problema com ninguém, não via nada de errado. Queria estar lá até hoje, mas infelizmente estou aqui. (...) A gente tem que tomar cuidado, tem que ouvir e não poder falar, não pode reclamar, porque se não você passa por problemas difíceis. Aí pra você evitar, lógico, você fica quietinho, abafado, como cuscuz. Então esse é o problema, me arrependi muito, muito de vir pra cá. (...) Então, não é uma grande moradia, mas pra quem é pobre, qualquer coisa serve.“

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Nelson Pereira da Silva, 75 anos, é nordestino de bigode grosso e princípios bem definidos. Já foi pintor, manobrista e até trabalhou com eletrônica. Hoje ele sustenta a família com o pouco que ganha como revendedor. “Eu não tenho renda. Em um mês posso ter 200, 500, 800 ou 1000 [reais]. Então é variado. porque eu trabalho como ambulante: compro peixe, vendo, compro porquinho, vendo. Vendo mais no centro de Cotia.” Chegou à ocupação Mandelinha depois de ver seu planejamento de voltar a Arara, sua cidade natal, na Paraíba, ir por água abaixo. “Eu vim pra evitar os gastos: aluguel é caro, água é cara, luz é cara e o alimento. Por exemplo, naquela época eu pagava setecentos e pouco, então pra quem ganha 1000 reais... Tinhamos que nos virar de qualquer jeito. Foi então que pensei em vir pra cá, porque achei que ia melhorar.” Ele conta que sempre foi pobre “sempre fui humilde, morei em casa de pau a pique, casa que não tinha piso, não tinha nada.” A contragosto, se obriga a dizer que o Mandelinha é seu lar: ali ele tem um teto. Mas a sua ideia sobre um lar conta com mais cômodos pelos quais se locomover, uma área externa, seja para plantar algo ou dispor de um espaço. Em seu lar ideal, Nelson acredita que há conforto que, hoje, não encontra. “Não tem opção de uma coisa mais adequada, aí você tem que se adomar, se conformar e permanecer até quando der. Quando não der, Deus nos leva para outro lugar.”

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17. Tati Santos | Fonte: DUARTE, 2020




17. Jafé Lima | Fonte: DUARTE, 2020



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