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editorial número zero dez 006

CAPA Arte Urbana - San Francisco Foto de Eunice Costa

FICHA TÉCNICA Director de Arte e Conteúdos Ricardo Galésio Colaboradores desta edição Ana Elisa Bruno Pato Eunice Costa Filipa Amaro Juliana Reis Lambros FisFis Lomografia Portugal Marco Galésio Maria Curta Nilma Mulchande Pedro Palrão Sara Toscano Tiago Sem Medo Agradecimentos António José Gomes ByPass Filipa Amaro Lomografia Portugal

A polémica instalou-se aqui dentro. Não há consenso. Ainda por cima no primeiro número. É um salto arriscado e sem rede. Uma ideia obscura e sem nexo. Ou não. Fizemo-la. Mesmo sem a unanimidade necessária nestas coisas. Mas cá está. O lugar é da Palavra. É ela quem dita as regras da casa e põe o comer na mesa. Conteúdo pelo conteúdo. Sem artifícios que nos prendem nem preconceitos que nos matam. Ou simplesmente isto não existe e a Forma é omnipresente, destruindo o Dentro porque o Fora é que o faz. Falamos de pessoas, dos povos da cidade, da urbanidade das nossas vidas. O mundo dos carros, das televisões e das varinhas mágicas. Conversamos com todos aqueles que nos fazem sentir parte. Os movimentos são variados e continuamente descontínuos. Perdemos a cabeça com um Donut ou esfregamos o olho ao Diabo. A cidade está aí para nos dizer verdades que nos escapam. Aceitá-las é o ponto de partida para tudo. Mas os olhos estarão atentos. Ao menor deslize diremos não. No fim, pode ser que o próximo número não resista ao mau tempo e se deixe invadir. Mas por enquanto vamos tentando. Ricardo Galésio


senatur alfosses imples mentee xtraord inário

se natural fosse simplesmente extraordinário Se as Cidades fossem abertas. Se não houvesse paredes, ou se as paredes fossem transparentes. Se as paredes fossem janelas. Se estivéssemos expostos a outras dimensões, ou se simplesmente déssemos pela sua existência. Se nos questionássemos pelo simples prazer de encontrar novos significados. Se estivéssemos mais atentos ao que nos circunda. Se de repente nos encontrássemos sem querer num espaço totalmente alheio. Se olhássemos para o desconhecido como o nosso reflexo. Não seriamos tão estupidamente críticos. Se os nossos hábitos e as nossas maneiras de agir e de ser fossem idênticas. Se vestíssemos todos as mesmas roupas, usássemos os mesmos perfumes, se tocássemos a mesma música. Se as opções se esgotassem. Não estaríamos aqui. Se estivéssemos a partilhar o mesmo espaço sem darmos conta disso. E se ainda por cima estivéssemos a caminhar na mesma direcção com objectivos semelhantes. Se a realidade fosse nua e crua. Se natural fosse simplesmente extraordinário. Não haveria mais nada a dizer. Para falar em tendências é preciso olhar em frente, além, e voltar a olhar para trás. Este é o ponto zero, o ponto das possibilidades infinitas. Daqui, a vista parece atingir o ponto onde o mar e o céu se dissolvem. Este é o ponto onde nos encontramos no presente. Daqui para a frente, tudo é possível.

texto de Juliana Reis


l’absente

foto de Richard Dumas

yann tiersen É fácil escutar-te. A música que tu fazes entra fácil. E não sai. É um encadeamento de coisas, de sentimentos que vivemos. Nós próprios ou as personagens de um qualquer filme que tenhas feito. Imagino sempre um livro com imensas histórias, romances secretos, amores proibidos, artistas de circo que se atropelam uns aos outros com um ritmo próprio e atraente. E sai de trás do palco um realejo, e uma concertina maluca que canta bem, e um senhor a vender algodão doce de lábios vermelhos à porta dos carrinhos de choque. Cada som é diferente e grita mais alto para ser ouvido na multidão. E eu ouço-os todos. Sopram sempre de uma forma sábia e bem construída. Danço assim, sem parar,

e fazes-me chorar e rir e chorar de novo. E encontro, sem querer, a Amélie e o Lenine e todos os outros, os que nascem por ti em tom de comédia séria. De repente somos muitos na sala, calados, a ouvir a tua música. As palavras sussurradas fazem pensar. Os teus instrumentos, os múltiplos que tocas, és tu. Superas-te nas notas e o ar absorve o mundo atento a elas. Deixas de ser gente e passas a ser a gente, dissolves-te e não queres saber. E basta ouvir um disco de uma ponta à outra que as imagens começam a cirandar na cabeça, passam a uma velocidade estonteante e caem no chão cansadas. Os filmes que se fazem e as histórias que se apagam são motivos para te ouvir. Muito.


nouvelle vague Soprar e tirar o pó. Pegar e voltar a baralhar. Foi assim que nasceu um dos projectos musicais mais interessantes da actualidade. Olivier Libaux e Marc Collin são os responsáveis pela ideia. Os Nouvelle Vague foram criados para reconstruir canções do fim dos anos 70 e princípios dos 80, do período pós-punk e new wave. Era a música que ouviam quando eram jovens, agora despida dos vícios do costume, com um toque de leveza e suavidade. As vozes que dão vida a temas tão marcantes na época como “Just can’t get enough” dos Depeche Mode ou “Blue Monday” dos New Order nunca os tinham ouvido antes. Marc e Olivier fizeram questão disso. Era assim mais fácil pintar por cima sem respeitar as linhas condutoras da obra. Quer no primeiro álbum, com o nome do projecto, quer agora no segundo, “Bande a Part”, a sonoridade brasileira da bossanova

está presente, criando um ambiente familiar e agradável a todos os que gostam do Jobim e do Gilberto dos anos 60. Esta é, pois, uma reconstrução que se faz misturando vários estilos e várias épocas, deixando ao critério de quem ouve a conotação temporal devida. Os ritmos são inconstantes, os rumores debaixo do ouvido não nos atraiçoam e fazem que gostemos deles. As mulheres estão sempre presentes nos dois discos. Eloisia, Camille, Daniella D’Ambrosio, Melanie emprestam a beleza do seu timbre a um projecto que, segundo os criadores, nunca irá descambar para um cd de originais, ou não fossem eles a nova vaga do que de melhor se fez no panorama musical dos anos em que se usavam casacos de cabedal e cabelos encaracolados com franja. Ainda bem que isso eles não quiseram recuperar.


seetadino rostos da cidade texto de Ana Elisa

Foi o meu avô. Ensinou-me tudo, a olhar a pele, a cheirar a pele, a pensar no sapato como o que nos “faz andar”. Lembro-me de ir para a oficina dele ouvir as Rádio Novelas e ficar fascinado com o trabalho. Ainda hoje gosto dos cheiros, lembram-me o meu avô. Comecei a aprender com 8 anos, para mim era uma oportunidade de estar com ele e depois sempre achei que era uma profissão de respeito. Hoje já não é assim. Fui aprendendo, fazendo pequenos trabalhos e cá estou. Nunca pensei ser outra coisa. E todos os dias estou com o meu avô nas ferramentas e nas técnicas. Trabalho a sério há 45 anos. Por aqui passam muitas histórias. Os sapatos contam muito de alguém. Se joga à bola, se é ou não vaidoso. E há pessoas que ficam por aqui, a falar dos problemas delas. Eu olho para os sapatos e depois para elas. Tenho dias de arranjar 50 ou mais sapatos, outros dias fico a olhar para um ou dois e insisto nesses. Também desenho, sim. Gosto de fazer sapatos de mulher, salto alto, a atar no tornozelo. As mulheres ficam mais

bonitas com sapatos bons e bonitos. É por isso que gostam deles. Tenho por aí moldes que fui fazendo…que nunca passaram disso, ideias da minha cabeça. Custa-me arranjar essas porcarias chinesas e de plástico. Fazem mal aos pés e são feitos por quem só anda descalço. Mas há sapatos muito bons. Como esses ténis que tem calçados (GEOX) que têm essa palmilha respirável. Italianos, claro…os sapatos italianos são muito bons. É para tudo, meias solas, cozer aqui e ali, remendos, alargar, pôr solas…há de tudo. As pessoas não costumam ser muito exigentes, querem só as coisas bem feitas, mas há um senhor que me pede sempre para atar um sapato ao outro. Diz que tem de ser assim. Cada um tem as suas loucuras. Gosto muito de Lisboa. E gosto de ser sapateiro aqui. Acho que Lisboa tem lugar para esta profissão, feita na entrada de prédios, como o meu caso. Um sapato para Lisboa? Uma sandália porque andamos todos sem dinheiro. Ah, um sapato clássico vermelho escuro ou beringela, redondo à frente e tacão de 7,5 cm. Que me diz? Usava? Numa tarde desta? B.I. António José Gomes, o “meias solas” 56 Anos Sapateiro Martim Moniz, Lisboa


Do que gostas?

Diferentes em quê?

De tudo.

Em tudo.

Gostas mesmo de tudo?

Não concordo.

Sim.

Tens de concordar. Uma coisa é gostares de algo, a outra é gostares das consequências desse algo.

Mesmo mesmo?

Tu enlouqueceste e o médico ainda não te avisou.

Sim.

Não desconverses, sabes que tenho razão.

Ninguém gosta de tudo. Podes gostar de muitas coisas. Quase tudo, aceito. Agora tudo?

Não, não tens?

Sim, gosto de tudo, porquê?

Ai é? Então dá-me outro exemplo.

Nada, mas acho estranho.

De quê?

Porquê. Conheço várias pessoas assim que gostam de tudo. De tudo mesmo. Quando falo de tudo falo

De que coisas que gostes, na medida em que gostas de tudo.

daquelas pequenas coisas que as pessoas às vezes se esquecem e até chegam a desprezar. Todas essas

Gosto de cenoura.

coisas.

Essa não serve.

Como por exemplo?

Não serve como?

Queres um exemplo para quê?

Não serve, não é do mesmo género da outra. Eu preciso de uma coisa do mesmo género da do bife para

Para perceber até onde vai esse teu “gosto” por tudo.

provar que tenho razão.

Ok, vamos lá. Gosto de que me salpiquem a roupa com molho de bife num restaurante.

Então a tua razão tem condições específicas para ser razoável, é isso? A isso chama-se não ter razão.

Ninguém gosta disso.

A sério, diz outra coisa que gostes, assim mais esquisita.

Eu gosto.

Como a do bife?

E o que te leva a gostar disso?

Sim, como a do bife.

A sensação de que alguém fez de propósito para que me salpicassem a roupa. Isso leva-me a pensar que

Gosto de mijar na parede dos prédios à noite.

existe alguém para quem eu sou importante, nem que seja para fazer este tipo de coisas.

Ah?

Ah ah, apanhei-te! Quando dizes “esse tipo de coisas” está implícita uma conotação negativa, logo não

Sim, gosto disso.

gostas de que te salpiquem a roupa mas sim do que isso possa significar.

Não me lixes.

Isso é a mesma coisa.

Esta também não serve?

Não é não. Eu posso gostar de tomar banho com água a ferver porque gosto ou porque fico com a pele

Serve, serve para ver que estás todo janado.

vermelha e isso dá-me uma ar mais bronzeado. São coisas completamente diferentes.

Cala-te e dorme.


omara portuondo Existem canções que nos transportam para ambientes onde nunca estivemos e para momentos que nunca vivemos. As de Omara são exemplo disso. Basta ouvir a primeira nota que o ritmo caliente de Cuba se entranha. Os movimentos tornam-se mais sensuais e a boca vai acompanhando, sem saber, a letra. A voz é quente e desperta desejo. Veludo que nos trespassa e nos faz vibrar. Os pés, lentamente, vão olhando, em gestos repetidos, para cima. Rodam as pernas umas nas outras, e roçam nas paredes escuras. As vibrações são fortes, suadas de sentido e com uma profunda vivência. Omara quase sempre canta os seus males de amor, típicos de cabarets e clubes nocturnos onde se junta a gente boémia da América mais latina, num “South

American Way” muito próprio. Imaginamse os canalhas e os pândegos, as putas e os chulos, os artistas decadentes e as burguesas emancipadas. Tudo com muito fumo à mistura. Os segredos descobrem-se à medida que vamos ouvindo os discos, de uma ponta à outra, sem parar, como se de um filme se tratasse. Passamos pela fase do namoro escondido, pelas discussões amorosas, pelas noites fogosas em quartos manhosos e pela separação sofrida e mentirosa. Sentimos tudo com toda a força e ao mesmo tempo. A rouquidão da sua voz traz até nós a beleza do marginal, a Cuba escondida nas ruas de Havana, dentro de paredes que sabem mais do que o mero ocasional.

foto de Youri Lenquette

texto de Maria Curta


lisbon fashion week

Arquivo ModaLisboa / fotos de Alexandre Bordalo

Saias rodadas, pretas, com folhos a sair de folhos ainda maiores. Tecidos fininhos que deixam ver tudo o que está por baixo. Tecidos muito grossos que fazem suar quem os veste. Sempre impenetráveis na forma de ser. São centenas as pessoas que passeiam nos corredores escuros. Acotovelamse, empurram-se, gritam para serem as primeiras. Tudo vale. Olham umas para as outras de soslaio, tentam aparecer e parecer bem na fotografia. Correm, correm. Os brindes desaparecem num instante. As filas no bar são intermináveis. As vozes confundem-se com a música avassaladora e previsível. Não se consegue respirar. No outro lado da sala, ao fundo, bem no canto, uns sapatos de feltro vermelho. Escuro. Redondos. Os sapatos. As pernas tortas de miúda fazem subir até ao vestido, de flores cor-de-rosa, e uns apliques aqui e acolá. Engelhado, provavelmente de ter estado sentada durante horas num carro pequeno à procura de estacionamento. Sozinha, a miúda olha para a amálgama de caras que passam por ela. Os olhos estão fixos num candeeiro branco que está por cima de um dos stands. Às vezes também se distraem com a sandes de queijo que tem nas mãos. Depois da dentada, voltam a concentrar-se nos outros, os que correm. O movimento acelerado contrasta com a aparente calma em que ela, a miúda, está envolta. Os gestos são muito pequenos, de amplitudes quase imperceptíveis. Parece que age segundo uma pauta de música clássica sem grandes picos de euforia. O desfile nunca mais começa.

matej krén

festa de fantasia

book cell

É enorme, é imenso, é grandioso. O que se sente ao pé de uma obra como esta não se explica. O livro é visto, nesta instalação feita pelo artista Matej Krén, como um objecto da forma. O conteúdo é renegado e as várias partes formam um todo que vale por si só. Um hexágono construído por livros, no qual se entra e se abre a boca de espanto. Todos aqueles livros, representativos dos 50 anos de edições Gulbenkian, são perpetuados por espelhos que nos fazem pensar estar numa ponte frágil num precipício onde as rochas são substituídas por folhas de papel. Não aconselhado a pessoas que sofram de vertigens, Book Cell consegue surpreender. Para ver até ao final do ano no Centro de Arte Moderna José Azeredo Perdigão, em Lisboa.


lomomural

light power

www.lomografiaportugal.com


atypyk eureka!


“OS MELHORES EXEMPLOS ATYPYK” BLACK CONFETTI: Com um toque de elegância, a fazer lembrar, por breves instantes, o papel higiénio ultra chic da Renova, estes confettis pretos dão um toque de sofisticação a qualquer festa, mesmo que esta seja numa roulotte de beira de estrada. Nunca as farturas souberam tão bem. COWSTICK: Já imaginaram o que era transformar um frigorífico, uma secretária ou mesmo o computador do vosso patrão numa vaca? Então já o podem fazer com o fantástico e super acutilante: “COWSTICK”. Com o Cowstick vai poder fazer aquilo que sempre quis. Cada pack traz seis manchas pretas feitas em papel autocolante para que de agora para daqui a nada transforme o seu microondas numa vaquinha leiteira do melhor.

Quando Ivan Duval e Jean Sebastien Ides fundaram a ATYPYK não esperavam que esta alcançasse um sucesso tão grande em tão poucos anos. Ivan, formado em Publicidade, trabalhou na área até 1999, altura em que, juntamente com Jean, decidiram trabalhar para eles próprios, criando uma das mais criativas e inovadoras empresas francesas. Habituados a circular na área das artes, do design e da publicidade, os dois sócios tiveram a ideia de fazer objectos com ideia. Coisas diferentes, viagens na maionese que se tornaram produtivas, dando origem a peças únicas, pensadas para um fim bem definido pelos dois. Ou não. Olhar para um catálogo ATYPYK é a mesma coisa que alargar a imaginação e pensar além do óbvio, do meramente comum. É ter mais do que uma simples visão inspiradora, porque o que vemos são os sonhos de alguém projectados de sentido.

2 WAY POSTCARD: Simples. Escreves a alguém e esse alguém responde no mesmo postal. Impresso nos dois lados com espaço para mensagem e selo. É fácil, é barato, e dá milhões. MIC: Se fazem parte daquele grupo que não se cala enquanto toma banho, este objecto foi feito a pensar em vocês. Uma esponja em forma de microfone para que não tenham que beber litros de água sempre que imaginarem que o chuveiro é o microfone. HAPINESS: Bolsa para cartão de crédito para quem acredita que o dinheiro traz felicidade. THE END: Quantas horas passa, em média, um português a ver televisão? Muitas. Aqui está a solução. Get a new life. Um autocolante electrostático para colar ao écran da televisão com a frase: “The end”. Todos estes objectos podem ser encontrados na Embaixada Lomográfica de Lisboa.


os signos Existem dois tipos de pessoas no mundo. As que acreditam nos signos e as que não acreditam, ou pelo menos, acreditando, não acham que estes determinam as suas vidas. Eu, infelizmente, faço parte do segundo grupo. É chamado o clube dos tristes, ou por muitos conhecido como Os Outros. Nós, Os Outros, estamos convencidos que somos nós que vamos traçando o nosso futuro, que com as nossas decisões, boas ou más, percorremos as diferentes etapas da vida por nossa conta. Para nós, o Horóscopo é só mais uma página de um jornal ou revista que nunca lemos. Temos uma relação muito conflituosa com o “não explicável”, precisamos de entender o porquê das coisas, factos científicos que nos mostrem que é assim e não assado. No entanto, para além de nós, Os Outros, existem aqueles a que nós chamamos,

chuva Hoje está a chover e apetece-me falar bem da chuva. Não só porque não chove há muito tempo mas porque a chuva é uma coisa boa. Nada me faz sentir melhor e mais confortável do que estar enrolado num cobertor macio, quentinho, a beber um chocolate quente ou a comer castanhas assadas como as que estou a comer agora, e a ouvir a chuva bater nos vidros da minha janela. É uma janela grande a que tenho em casa e a chuva bate impiedosa nela. Chuac chuac chuac. O barulho, por vezes torna-se ensurdecedor mas a vontade que seja cada vez mais forte também é cada vez mais forte. Por acaso não tenho aqui nenhum

filme para ver que já não tenha visto. Assim o cenário seria completamente perfeito. Chuva, cobertor, castanhas e filme. Aaaaaiii. A chuva também é boa para a agricultura porque sem ela a vida não seria e nós não existiríamos. E quando caiem aquelas rajadas, seguidas de raios e trovões? O pior é quando temos de sair para ir comprar alguma coisa ou para passear o cão Pacóvio e ficamos todos molhados. Mas tirando isso, a chuva é mesmo boa. Isso e o facto de, às vezes, haver cheias que inundam cidades que ficam todas alagadas e destruídas. É isso, tirando essas duas coisas, a chuva é muito fixe. Alguém a passar-se por uma criança de 10 anos.

carinhosamente, Os Esotéricos. As pessoas pertencentes a este grupo têm uma capacidade fantástica de se entregarem nas mãos de um qualquer astrólogo de uma qualquer revista cor-de-rosa. O facto de Plutão (planeta despromovido, recorde-se) entrar na casa sete quer dizer muito mais do que isto. Sorte ao dinheiro, problemas no amor, alguns problemas de saúde, são tudo conclusões possíveis das mudanças verificadas nos astros. E porque não bastava poderem saber o futuro com algumas semanas de antecedência, o que dá sempre jeito para marcar umas férias, também se poupam ao trabalho da escolha. O pior é que, sendo a escolha feita ao mesmo tempo para outros milhões de Esotéricos que nasceram naquele mês, se não se apressarem no passo, quando lá chegarem o lugar já está ocupado. texto de Bruno Pato


texto e fotos de Eunice Costa

arte urbana san francisco


Mais um mito urbano: sapatos suspensos nos cabos que cruzam as ruas de São Francisco. Ouvi muitas explicações diferentes: alguém terá sido assaltado e os sapatos são-lhe retirados para dificultar uma posterior perseguição e atirados com destreza em direcção aos cabos, com os cordões devidamente apertados um ao outro; outra hipótese será que esses sapatos demarcam uma zona onde droga é vendida ou uma área controlada por um determinado gang urbano; há também quem diga que será parte de um ritual de iniciação numa república de estudantes ou para comemorar o fim do ano escolar; também poderão anunciar um casamento ou ter pertencido a alguém que morreu recentemente e cujos sapatos são lá colocados pela família para que o espírito possa caminhar mais confortavelmente pelas ruas da cidade aquando do seu regresso. O mito permanece, e os ténis que vi conservavam um bom aspecto, com a sola pouco gasta. Encontrei-os à entrada de Balmy Street, umas das várias ruas estreitas que compõem o bairro da Mission cujas paredes se encontram preenchidas por murais e graffitis. São ruas discretas, que passam despercebidas, cujo nome facilmente se escapa da memória. É preciso procurá-las entre tantas outras ruas e avenidas desenhadas a régua e esquadro, tão mais largas e notáveis. A arte de rua está intimamente ligada a estes espaços mais negligenciados: parques de estacionamento,

estações de serviço, terminais ferroviários e rodoviários, a garagens e traseiras das habitações, sítios pouco frequentados. Formam um todo. Os murais têm já uma longa tradição. Entre os vários muralistas que passaram pelas paredes de São Francisco destaca-se o nome de Diego Rivera, o qual popularizou a arte mural como forma de transformar as ruas em espaços de intervenção cultural e de atingir grandes públicos. Os motivos são diversos. No bairro da Mission, onde se concentram comunidades de emigrantes da América Latina, encontram-se vários murais alusivos à perseguição de camponeses, à expropriação das terras e às guerras civis que os levaram a escolher um outro país para prosperarem, ao conflito cultural à chegada aos Estados Unidos, à segregação social e também às saudades do país que se deixou para trás. Mas outros conteúdos podem ser encontrados nas paredes de São Francisco, como protestos em relação à guerra no Iraque, ao hipotecar de vidas por recursos naturais para proveito de uns poucos. Outros apelam aos direitos das mulheres ou dos nativos norte-americanos. Outros relacionados com a cultura e vida da própria cidade: desde os mendigos, passando pelo hip-hop até ao Critical Mass, a marcha de ciclistas que invade a baixa cidade na última sexta-feira de cada mês e se demonstra como alternativa ao domínio do automóvel. Outros são simplesmente bonitos, oníricos, sem fio condutor, íntimos…São, no fim, reflexos de

uma urgência de comunicação e partilha, de liberdade de expressão, quer se perceba e se concorde ou não com o conteúdo. Embora possam passar despercebidos no meio da teia urbana e do ruído, entre cartazes publicitários e buzinas, são um grito para todos e para ninguém em particular. Há tempos passei mais uma vez pela Clarion Street, outra rua popular entre os muralistas no bairro da Mission. Desci da bicicleta e comecei a caminhar ao longo da rua estreita. À janela um homem vestido com uma camisola interior branca observava a meia dúzia de transeuntes que por ali deambulavam e paravam quando impressionados por um ou outro mural em particular. Da janela ressoavam sons latinos de um qualquer artista popular. Quis tirarlhe uma foto, mas fiquei tímida. Enquanto observava o prédio apercebi-me que os murais eram novos. Mais à frente cruzei-me com uma cara familiar. Julgo tê-lo visto na última vez que por aqui passei, com a mesma boina. Ele perguntou-me se eu já tinha reparado nos novos murais. Na semana passada a Clarion Street terá estado em festa. Muitos muralistas se reuniram munidos de música e tintas e renovaram as paredes da rua. A arte de rua tem a dimensão humana de não ter sido feita para persistir. É efémera e assim vai sendo modificada ou substituída ao ritmo daquilo que os muralistas pretendem transmitir a quem por ali passa. E a constante transformação, essa, ocorre em clima de festa!







Mighty Sounds Pristine

foto de Tatiana Macedo

beating heart bypass


Não pude deixar de ficar surpreendido quando ouvi pela primeira vez, pela segunda, terceira… o “Mighty Sounds Pristine”, o primeiro cd longa duração dos Bypass. Todas as músicas nos envolvem e transportam para um mundo pormenorizado de sons fascinantes que utilizam o rock como matriz. O primeiro pensamento que nos vem à cabeça é que ainda existem editoras na “idade da adolescência” e que andam por cá por uma ideologia maior, a música. E ainda bem que assim é, porque este é possivelmente um dos melhores álbuns do ano. O texto que se segue é o resultado de uma conversa peculiar durante um almoço com dois dos elementos dos Bypass, Eduardo Raon e Tiago Gomes. Foi ainda quando andavam na secundária, em Massamá, que três amigos, Eduardo Raon, Rui Dias e Miguel Menezes decidiram começar a tocar juntos e formar uma banda a que mais tarde, em 97/ 98, deram o nome de Bypass. “Começámos a encontrar-nos para fazer ruído, …, depois houve gente a entrar,

gente a sair, entretanto entrou o Bruno e mais recentemente o Tiago e o Joaquim… no início o que tocávamos tinha pouco a ver com o que tocamos hoje embora existam sentimentos que são constantes como o prazer de experimentar e da pesquisa plástica do som…mas na altura a malta não tocava nada, fazíamos aquilo que conseguíamos, que é mais ou menos aquilo que fazemos hoje, mas na altura conseguíamos muito menos, o que tocávamos era uma coisa mais ou menos Punk Rock… (Eduardo). “Nessa altura havia a cena do Grunge…” (Tiago). O percurso da banda está recheada de marcos importantes, para além do EP homónimo lançado em 2002 e o Mighty Sounds Pristine que saiu este ano, os Bypass foram finalistas de alguns dos concursos mais importantes em Portugal, como o termómetro unpluged. “Obviamente que os discos, a fase dos concursos e o facto de termos estado em algumas finais foi um período importante, até porque foram as nossas primeiras experiências com público, em que pudemos testar as músicas, ver qual era a reacção,

apercebermo-nos dos principais erros e corrigi-los…” (Eduardo). O concerto no Cais do Rock foi mencionado como tendo sido um dos concertos mais marcantes da banda. A conquista de um público que não os conhecia mas que se foi rendendo à sua música à medida que o concerto ia decorrendo reflecte bem a atitude e energia que os Bypass transmitem em palco. Fazem também parte da sua história concertos no Sudoeste e Paredes de Coura. Em relação ao Mighty Sounds Pristine, “nós gravámos este disco às nossas custas, …, as coisas com a nossa editora estavam a andar muito lentamente para o nosso gosto, …, decidimos gravar e a partir do momento que tivéssemos o disco gravado é que íamos falar com as editoras. Contactámos várias editoras, inclusive aquela com que já tínhamos trabalhado no EP…” (Eduardo). “Apesar da nossa antiga editora ter manifestado algum interesse a proposta da Bor Land foi a que nos pareceu melhor…” (Tiago).

Embora o Mighty Sounds Pristine ser diferente dos álbuns que são geralmente lançados no mercado português, os elementos dos Bypass não consideram ter havido audácia na elaboração e lançamento deste álbum. “Há muitas coisas que não são conhecidas do grande público que são ainda mais arrojadas, até porque o que fazemos tem como base o rock…” (Tiago). Para além da capacidade técnica e versatilidade que todos os elementos demonstram, e que é importante no enriquecimento de cada música, fazem questão de afirmar que o objectivo dos Bypass é puramente musical, e que não passa pelo prazer de tocar coisas difíceis. “ Apesar de haver partes mais intrincadas que outras, nós temos que sentir que existe justificação musical e é nesse sentido que aparecem… Temos que sentir que as coisas acontecem como relação de causa-efeito, aquilo que vem a seguir é causado por uma coisa que vem antes; tem que aparecer com naturalidade.” (Eduardo). (continua)


foto de Tatiana Macedo


O Mighty Sounds Pristine transporta-nos por um turbilhão de sentimentos, que nos atiram de momentos de intensa adrenalina para momentos de pura serenidade. A apetência pelos contrastes é óbvia na música dos Bypass. “O título do cd é um jogo de palavras que procura de algum modo expor uma dualidade que é importante para nós e que opõe a monumentalidade ou escala, a agressividade, a força, a algo mais delicado, intocado, simples” (Eduardo). Nos Bypass a voz de Miguel Menezes não desempenha um papel essencial. “A voz é vista como mais um instrumento e tem o peso que será justificado naquela música, embora com a importância acrescida do texto… o Miguel é o autor de todas as letras com excepção da Ashford, que faz parte da triologia EuroStar. Embora o texto final tenha sido feito por ele, este foi um tema que foi debatido por todos nós e que tem uma lógica sequencial com as duas músicas anteriores (EUStar e

Tunnel)… Esta história do EuroStar surgiu a partir de um episódio que vimos e que tinha a ver com a abertura do canal da mancha. Na altura que os franceses e os ingleses se encontram a meio do canal da mancha, os franceses tinham no seu lado champanhe, bolos, enfim, tinham uma grande festa preparada, …, os ingleses do seu lado tinham uma máquina de café, que era a mesma que tinham todos os dias e estavam-se borrifando para o simbolismo da ocasião. Partimos desse desajuste de estado de espírito e extrapolámos para a questão europeia. Este tema ironiza as dificuldades de comunicação que existem apesar da unificação europeia” (Eduardo). Nos concertos ao vivo fazem questão de levar a maioria dos instrumentos que podemos ouvir no álbum, de qualquer forma afirmam que o principal não é reproduzir fielmente o que está no disco. “Existem alguns sons que são impossíveis de reproduzir ao vivo, existem

outras partes que acrescentamos, acima de tudo tentamos conservar o que é mais fulcral na música, aquilo que é mais estrutural” (Tiago). “Mas sim, nos nossos concertos as pessoas vêem muitos instrumentos, …, tentamos de algum modo conservar essa riqueza de timbres.” No que toca a referências musicais ou discos que os possam ter marcado durante a sua formação como músicos e como pessoas o Tiago destaca Animal Collective, Debussy, Emmanuel Chabrier, Mastodon, Soundgarden, entre outras. Para o Eduardo, o SwordFishTrombones de Tom Waits porque fez crescer o gosto pela pesquisa plástica do som e a canção da terra de Mahler. Na opinião destes dois elementos dos Bypass, partilhar o palco com os Gaiteiros de Lisboa seria uma experiência que ambos consideram muito interessante. Por fim e já no final da nossa conversa, quis saber o que fariam

caso fossem coroados Miss Universo. “ Eu acabava com o concurso Miss Universo e com o Festival da Canção nacional. Acho que era o mais importante no mundo para acontecer para já, mas tinha que pensar melhor, sei lá, talvez a fome e a guerra, vá” (Tiago). “Eu acabava com a paz, faz muito barulho, é muito entediante e para além disso não faz andar o motor económico dos EUA que são as armas” (Eduardo). www.bypass.ws

texto de Marco Galésio


Every city has its own identity, its own magic, its own energy, and its way of influencing the life of people that live in it. In a way sometimes it is the city that creates the behaviors the trends and the way of living. Paris is known as the city of love and this movie sets out to depict exactly that. Paris je t’aime is a 2 hour film consisting of 18, five minute sketches which take place in 18 of the 20 districts –arrondissments of Paris. Directors such as Walter Salles, Alexander Payne, Gus Van Sant, Wes Craven, Joel and Ethan Coen, Tom Tikver and Silven Some were invited to explore, depict and present Paris and love in their own way. Tourists in problems, immigrants and cultural clashes, people that break up that fall in love that are lonely, mothers and their kids even vampires construct a mosaic of stories that deal with love. Some of them give you the feeling of a normal, every day, casual story others are a bit more exaggerated but lets face it in a city

of 10 million people everything is possible. Paris is a natural movie set that everywhere you look you see a potential cinematic frame. The movie recognizes this special atmosphere and makes the viewer laugh, cry, think, dream, hope and wonder but for sure doesn’t bore. Thanks to its structure even if you don’t like a sketch by the time you realize it it’s finished. Due to the length of each sketch (aprx. 5min) the directors show exactly what they havewant to without any unnecessary scenes and let your imagination do the rest. The movie sometimes though ends up too touristy sort of leave your myth in Paris but in general is well sequenced, beautifully directed and nicely acted. I am sure you won’t remember all 18 sketches but 3 or 4 will stay with you. The movie finishes and the song “la meme histoire” (we’re all in the dance) is heard and automatically all the gaps are filled and all the questions answered….

paris je t’aime

texto de Lambros FisFis


a polis “Não obrigada, é que sabe…sou vegetariana” Ele deu um golo de vinho, olhou longamente para o espeto à nossa frente onde um carneiro inteiro a assar pingava gordura no meio do jardim. Eram 11 horas da manhã. Atrapalhado, respondeu com desilusão: “Compreendo…” e acrescentou, o brilho de novo nos olhos “mas certamente come bacon… ou podemos pedir frango, se preferir…” Se há povo que não prescinde de carne é o Grego! Era domingo de Páscoa Ortodoxa e os atenienses celebravam a ressurreição de Cristo. “Em poucas horas os hospitais vão estar cheios de pessoas com indigestões” explicou-me o meu anfitrião “Vai deixar o trânsito num caos…é sempre assim depois da Quaresma”, pôs um naco de lombo no pão e encheu-me o copo de vinho enquanto perguntava “E tu, estás a gostar da Grécia?” Sim, estava! Na véspera tinha tido a primeira aula de dança. A professora americana recebeume com um sorriso à porta do estúdio, de onde se avistava a Acrópole “És bem vinda” disse. E levantando o sobrolho aos dois rapazes que me acompanhavam “E vocês?!”. Explicaram num grego sorridente que chegara a Atenas há uma semana e não queriam que me sentisse sozinha. Ficavam, naturalmente, a assistir à aula. Ao despedir-se, a professora perguntou-me “Desculpa, podias só repetir-me o teu nome?” Erro. Senti imediatamente uma mão a puxar-me o braço para fora dali. “É inacreditável” murmuravam e depois em tom de ordem “nunca mais voltas aqui!”. “O quê?!” intriguei-me, “mas se simpatizei com ela...”. “Com ela?! questionaram-me quase ofendidos “é uma péssima professora…” Escandalizei-me. “E que sabem vocês disso?”. Olharam-me de novo, estupefactos, como se eu tivesse enlouquecido “se nem sequer decorou logo o teu nome…” e depois entredentes, vexados, envergonhados por ela e pelo mundo “Que mal educada…”

Esqueci o assunto. Mais tarde, ao dar por mim noutra escola de dança, percebi então a verdadeira dimensão da tão afamada hospitalidade Grega. Pela janela chegava-nos o rebuliço da noite ateniense. Em casa jantávamos queijo feta e grão cozido. “A senhora da padaria é maluca” disse-lhes. “Hoje elogiou o meu vestido e desatou a atirar-me cuspidelazinhas para cima. Nunca mais lá volto”. “Claro, cuspiu para afastar o mau-olhado” explicaram-me desinteressados. “MAU – OLHADO?!?!” explodi assustada, entornando o vinho sobre a mesa. “Sim. Há pessoas com o olhado muito forte, normalmente nascem ao sábado. Fazem um elogio e …ZÁS! Acontece logo uma coisa má…” E acrescentaram com uma atenção maternal “Olha, se não fosse isso agora em vez de teres sujado a mesa tinhas era sujado o vestido. Mais vinho?” Ouvia-se agora na rua o dedilhar de um bouzouki abafado pelo som de motas a passar. Suspirei de alívio. Só os Gregos poderiam alimentar superstições tão simpáticas. Nunca deixei de ir aquela padaria… Em Lisboa e já um ano depois de ter voltado… “Agarrada a um livro de história Grega?” espantou-se o meu pai “que raio queres tu mais saber da Polis? Não te chega já tudo o que viste de Atenas?”. “Descobri que Polis não quer bem dizer cidade” comecei eu. “Ai não? Muito me contas…” respondeu o meu pai desconversando. “Não. Li que Polis tem um significado mais amplo. Para Péricles era muito mais que a arquitectura ou a organização social, indicava um sistema de vida. No fundo é a perspectiva que um povo tem do mundo.” “Ah!” surpreendeu-se o meu pai, subitamente atento … “Então conhecer uma cidade é descobrir isso…”

texto de Sara Toscano


adeus Deixei tudo na mesma. Nem sequer deram por eu entrar. Vi tudo o que se passou entre vocês desde o início, e saí pé ante pé antes de poderem dar conta de mim, embora a minha vontade fosse matá-los ali. Sim matá-los! Não tenho vergonha em assumir essa corrente que me agrilhoou perante vocês os dois. Estaria apenas a retribuir o que vocês me fizeram. A virar contra vocês os disparos que me perpassaram o peito quando vos vi deitados e enrolados um no outro. Entregaram-se de tal forma que os teus gemidos me fizeram reviver nos dedos o suor que escorrias quando no lugar dele estive eu. Os centímetros de pele que as minhas mãos sempre percorreram nos caminhos do teu corpo. Os arrepios que me calcorrearam a espinha lembraram-me o prazer que tu sempre me deste. Repulsa, raiva, tristeza…senti vómitos ecoarem-me na garganta perante a traição que vi consumar-se na cama que sempre partilhei contigo. A clausura do armário deixou-me mais ainda à mercê do tumulto visceral que me agitava. As réstias do teu perfume embrenhadas nas tuas roupas cobriam-me e ajudavam a turvar-me os

sentidos ao que se passava lá fora. Mas sentia um ardor a consumir-me, a correr-me nas veias e cerrar-me os punhos enquanto comprimia os dentes de raiva. As únicas lágrimas que me saíam do rosto eram de raiva…sempre fui de reter lágrimas de tristeza e naquele momento não ia ser diferente. Sinceramente, tudo me passou pela cabeça. Desde sair dali e ajoelhar-me junto de vocês os dois e humilhar-me, implorando para que o não fizessem, rogando-te perdão e reconhecendo uma culpa inexistente mas que se serviria de erros mínimos que sempre me apontaste. Mas depressa senti uma compulsão de sair a correr, esmurrar-vos aos dois sem dó nem piedade, sem me preocupar em sair disto tudo com um pingo de honra e dignidade, descer ao mesmo nível que vocês. Mas contive-me…Porquê? Não sei. Veio-me em minutos (que ironia não é?!) à cabeça que tudo o que tínhamos não ia ter conserto. Tudo o que trocáramos, tudo o que construíramos assemelhava-se agora a um castelo de cartas derrubado com uma baforada tua quando eu me preparava para colocar mais uma carta… (continua)


laurear a pevide

deitados na cama, enrolados nos lençóis que tinham o meu cheiro senti-me explodir por dentro. Senti-me capaz de cometer uma loucura porque me sentia nesse momento livre de qualquer julgamento. A injustiça a que tinha assistido amparava-me os instintos, saciava-lhes a fome de uma explicação racional, de um fundo plausível para que pudessem ser postos em prática. Mas num trago de ar olhei-vos com olhos diferentes, achei-vos nojentos, e senti-me incapaz de vos tocar sequer. Segui em frente e saí do quarto. Os punhos continuavam cerrados, ansiosos por gritarem, por embaterem contra algo que os pudesse libertar. Mas mais uma vez contive-me. Senti que estaria a ser alguém diferente do que fora até aí, e para além do mais nós já não existíamos. O passado jazia agora no meio de vocês, por entre fluidos corporais, por entre beijos trocados e roubados por um desconhecido, nos resquícios de sexo deixados no lençol…para mim já não havia nada. Apesar da dor latejante no coração segui em frente. Abri a porta da rua ainda com o sabor do sangue derramado cá dentro na boca, mas com os olhos raiados

de uma coragem revigorante que me faziam escorrer as lágrimas para que eu as pudesse saborear num novo começo…lançar-me por outros mares salgados, buscar novas terras. A porta que eu fechava encerrou com ela uma história passada, páginas e páginas escritas com o nosso suor e terminadas com o meu sangue escorrendo por entre as letras. Naquele momento fechei aquele livro, cerrei a lacre as minhas memórias contigo para as lançar a uma fogueira e soprar as cinzas bem longe. Sei que vai ser difícil, mas aos poucos penso ser possível fazer desaparecer as imagens de ti com aquele outro homem. A minha visão que se turva ao ver-vos juntos irá aos poucos libertar-se das partículas desse nevoeiro. Ultrapassei-te e não há nada que me possas dizer que o contrarie. Sei que vou encontrar outro homem que me preencha. Sei que vou encontrar outro homem que me complete mais do que tu e aí sim vou sentirme completamente reconstruída, pronta para recomeçar, esquecendo-me da minha vida passada entretanto perdida.

texto de Pedro Palrão

lisboa

EXPOSIÇÃO Candida Höfer - Em Portugal Nesta exposição a conceituada fotógrafa alemã apresenta o resultado de um trabalho encomendado pelo CCB em 2005. O objectivo era fotografar vários espaços interiores de monumentos e edifícios portugueses, como o Panteão Nacional ou a Fundação Serralves. até 25 FEV no Centro Cultural de Belém CONCERTO Koop A banda sueca vem apresentar o seu mais recente álbum de originais “koop islands”. 11 DEZ, às 22h30 no Arena Lounge do Casino de Lisboa

porto

CONCERTO Sérgio Godinho O cantor apresenta o seu álbum “Ligação Directa”. 7 DEZ, às 22h00 na Sala Suggia da Casa da Música EXPOSIÇÃO BES Revelção 2006 Exposição de fotografia na qual serão mostradas as obras inéditas de João Serra, Nuno Maya, Bruno Ramos e Frederico Fazenda, artistas vencedores da 2ª edição do concurso BES Revelação até 14 JAN, na Casa de Serralves

barcelona

FESTIVAL BAC! 06 - Festival Internacional de Arte Contemporânea de Barcelona Festival de difusão das diversas disciplinas da arte contemporânea que junta nomes já consagrados a jovens promessas. até 17 DEZ no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona


bilbao

EXPOSIÇÃO 100% África Selecção das obras mais representativas da colecção de arte contemporânea africana do fotógrafo e empresário suiço Jean Pigozzi (Contemporary African Art Collection). até 18 FEV no Guggenheim Bilbao

londres

EXPOSIÇÃO David Smith Esta é a maior exposição alguma vez feita na Europa com obras do famoso escultor americano do século XX. até 21 JAN na Tate Modern Gallery

são paulo

BIENAL 27ª Bienal de São Paulo A maior mostra de arte contemporânea do Brasil, este ano com o tema “Como viver junto”, dá a conhecer dezenas de artistas de vários países do mundo. Didier Fiuza Faustino, a dupla João Maria Gusmão + Pedro Paiva, e Cláudia Cristóvão são os artistas que representam Portugal. até 17 DEZ no Parque do Ibirapuera, portão 3

tokyo

EXPOSIÇÃO Bill Viola O conhecido artista de vídeo nova-iorquino apresenta trabalhos que representam as suas reflexões acerca da vida, da morte e do futuro. até 8 JAN no Mori Art Museum

nós estamos em www.cru-a.com fala connosco através do info@cru-a.com envia coisas boas para play@cru-a.com a CRU A número um sai a 9 de Janeiro e sim, é verdade, não falámos do natal


4ª A 6ª 22H // SÁB 17H E 22H

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M/12


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