Participaçào comunitária no Pantanal, Brasil: estratégias de bloqueio e processo de aprendizado

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Agence Française de Développement

Documento de Trabalho agosto juilletde 2007 2010

93

Participação comunitária no Pantanal, Brasil:

estratégias de bloqueio e processo de aprendizado

Olivier Charnoz, departamento de pesquisa, AFD (charnozo@afd.fr)

Département de la Recherche Agence Française de Développement 5 rue Roland Barthes 75012 Paris - France Direction de la Stratégie www.afd.fr Département de la Recherche


Aviso As análises e conclusões deste documento são formuladas sob a responsabilidade de seu autor. Elas não refletem neces-

sariamente o ponto de vista da AFD ou de suas instituições parceiras.

Diretor da publicação: Dov ZERAH Diretor de redação: Robert PECCOUD ISSN: 1958-539X Depósito legal: agosto de 2010.

Paginação: Anne-Elizabeth COLOMBIER

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Índice

1.

Resumo

5

Introdução

7

O Pantana: discursos e prioridades em conflito

11

1.2.

Preservar um bem público mundial

18

1.4.

Preeminência da « utilização econômica »

22

1.1. 1.3.

1.5.

1.6.

Breve descrição da região

A domesticação pelo desenvolvimento

11

19

Política de conservação decrescente iniciada pelo estado: leis inteligentes, mas execução insuficiente Conclusão

23

24

2.

As várias faces da participação comunitária nas zonas úmidas

25

2.2.

A pc considerada como preservação privada: a opinião das ongs ambientais

26

2.1.

2.3.

2.4.

3.

3.1. 3.2. 3.3.

3.4.

Pc na iniciativa do estado: consultas para um planejamento estratégico

Colaborar com os produtores: a lenta gênese de uma nova forma de pc Conclusão : a nova proposta do prp

25

28

29

A gênese do prp: uma comunidade em crise à procura de aliados

31

ambiente

32

O prp: uma iniciativa local influenciada por peritos estrangeiros e criticada pelas ONGs

35

A crise dos criadores de animais e a vontade de conter os concorrentes e os protetores do meio O aliado: um investidor estrangeiro oferecendo um modelo de gestão diferente Conclusão

34

37

4.

« A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico

4.2.

A delimitação estreita da « comunidade tradicional »

5.

Criação do pluralismo: as consequências imprevistas do « projeto preliminar »

47

5.2.

Alimentar o processo com « projetos atrativos »

51

4.1.

4.3. 5.1.

5.3.

5.4.

39

Os criadores de gado, protetores do meio ambiente

40

Conclusão

45

Colocar em questão a associação dos fazendeiros através de novas organizações O impacto da ilegitimidade: uma pc em perda de intensidade e inserção Conclusão

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43

47

53

55


Índice

6.

6.1. 6.2.

6.3.

O poder constitucional em ação

57

de gestão compartilhada »

59

Uma pc altamente inclusiva, ampla e intensa: o compromisso fundador de um « dispositivo Uma verdadeira recuperação política a serviço de ordens do dia obscuras

60

6.4.

Uma vã esperança de cuidado comunitário… quem vai acelerar a derrocada final

Conclusão

62

7.

O papel do capital social e o impacto na pc

65

7.2.

Individualismo e informalismo: a inaptidão institucional da maioria dos fazendeiros

67

7.1.

7.3.

Paternalismo simbiótico: manter os peões fora das instituições e da ação coletiva

64 65

7.4.

Conclusão

Da lealdade à exposição de opiniões: renovar o capital social local

69

8.

Conclusões

73

Referências bibliográficas

75

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72


Resumo

Nós propomos aqui examinar o papel da « participação

desorganização da administração provocou gastos

Regional do Pantanal (PRP) – uma vasta iniciativa

do PRP. Veremos, portanto, como o bloqueio exercido pela

comunitária » (PC) no projeto de criação do Parque

financeiros desnecessários, e por fim, o desmoronamento

participativa começada em 1998, na parte brasileira da

PC tomou várias direções incoerentes. Interessamo-nos

maior zona úmida do mundo. Voltaremos a falar sobre o

igualmente pelos mecanismos que conduziram a este

significado estratégico do recurso da PC para os

resultado ao mesmo tempo no conceito do projeto e na

latifundiários, tidos como líderes do projeto e sobre a

natureza do capital social local. Contudo, constataremos

estratégia de “bloqueio” de outros atores emergentes como

que a experiência do PRP suscitou um processo de

grupos de pressão para a proteção do meio ambiente e os

aprendizado no seio da comunidade que poderia realmente

novos atores econômicos. Além disso, a ausência quase

mostrar-se benéfico a médio prazo. Daí uma interrogação

total dos trabalhadores agrícolas, os peões, e dos outros

ainda válida sobre a vontade e a capacidade dos

grupos comunitários locais no processo do PRP revelou

investidores internacionais de apoiar os dispositivos

quo sociopolítico da região. O projeto do PRP foi finalmente

(frequentemente) caótico recoberto de tentativas e de erros

dia oficiosas. Os fazendeiros foram desapossados e esta

profissional cada vez mais baseadea nos “resultados”.

níveis de “bloqueio” suplementares que reforçaram o statu

participativos

recuperado por políticos locais, para defender as ordens do

ao

longo

de

seu

andamento

– uma abordagem em contradição total com sua cultura

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Introdução

No precedente documente de trabalho (Charnoz, 2009),

Para prosseguir no campo da pesquisa, fizemos do Parque

analisamos a mais célebre incarnação – e em todos os

Natural do Pantanal nosso segundo estudo de terreno. A

pontos de vista, a mais “vitoriosa” – do discurso sobre a

iniciativa do PRP tinha como orientação criar uma vasta

área marinha da Soufrière, em Sainte-Lucie, Martinica.

coração da América do Sul, segundo um conceito original

implementação, os impactos sociais e os efeitos do poder

participativa. O parque foi concebido pelo Pantanal – a

processos da PC em processos de controle e de bloqueios

gestão confiada a uma instituição participativa, o Instituto

“participação comunitária” na gestão do meio ambiente: a

Uma

pesquisa

aprofundada

sobre

as

origens,

entidade para a gestão do meio ambiente em pleno

a

e com uma estrutura de administração altamente

desse projeto revelou, entretanto, a transformação dos

primeira zona úmida de água doce do mundo – e sua

sociais, regidos por alianças entre grupos de interesse

do Parque do Pantanal, IPP. Com um apoio técnico e

mercado. Todavia, se se quer ter uma melhor ideia do que

fundos do Estado brasileiro de Mato Grosso do Sul, o PRP

(frequentemente estrangeiros à comunidade) e forças do

financeiro da França e da Universidade Europeia e dos

“é” o discurso mundial sobre a PC e do que “produz” é

foi considerado como uma associação voluntária de

pela

ambiental comum. Por outro lado, o instituto que gere – o

preciso também examinar as experiências consideradas comunidade

profissional

como

“menos

fazendeiros comprometidos com o respeito à Carta

bem

sucedidas”, “vãs” ou literalmente “mal sucedidas”. Tais

IPP – beneficiou do apoio de uma grande escolha de

resultados não são raros na área do desenvolvimento e o

parceiros com a finalidade de reforçar “o modo de vida

fato de qualificá-los de “insucessos” não exonera em nada

tradicional” considerado como “respeitador do meio

o projeto em questão de seus outros impactos. Como

ambiente”. Ao final de alguns anos, todavia, o IPP teve

promotores concebem projetos que eles mesmos

interrupção definitiva de suas atividades no verão de 2005.

demonstrou Ferguson (1990, p. 18) num texto célebre « os

dificuldades de gestão, que aumentaram e levaram à

consideram como malogros, mas que todavia produzem

Dotado de importantes meios financeiros dados por atores

efeitos clássicos e normais e perfeitamente identificáveis ».

brasileiros e estrangeiros, o IPP tinha suscitado imensas

O fato de os processos serem ou não um sucesso segundo

esperanças. Sua derrocada deixou profundas feridas nos

seus próprios critérios oficiais pode parecer secundário em

habitantes da região assim como nos investidores.

Depois de Foucault (1979), Ferguson qualifica esses

Um trabalho de terreno foi começado durante o verão de

em que, mesmo sendo provavelmente oficialmente

estando prontas para falar abertamente. Muitos tinham a

se mostra finalmente um exercício de poder” (Ferguson,

investidores europeus para compreender “o que aconteceu

relação ao desejo de entender sua natureza profunda.

efeitos secundários de « efeitos-instrumentos » na medida

2008. Foi difícil coletar informações, as pessoas não

involuntários, eles assemelham-se a “instrumentos do que

impressão que éramos “da polícia” enviados pelos

1990, p. 255).

com o dinheiro” e não um pesquisador realmente

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Introdução

interessado pela natureza e o impacto das práticas da PC.

socioeconômico inferior, vivendo no Pantanal e que foram

tensões ainda eram tangíveis, processos judiciários foram

sua administração. Mostraremos assim que, como

Três anos depois do fechamento do IIP em 2005, as

essencialmente separados da concepção do PRP – e de

lançados contra pessoas legalemnte responsáveis do IPP1

aconteceu em Santa Lúcia, a PC funcionou no projeto do

PRP como um mecanismo de bloqueio contre certos

Estrutura do estudo

atores.

Nós começaremos por uma apresentação do Pantanal:

Interessamo-nos em seguida ao dogma que, querendo

veremos que a região não é um sítio fácil para as iniciativas

tornar a comunidade local mais democrática, fez da PC um

meioambientais, visto que um discurso bastante enraizado

instrumento de controle que, ao final, contribuiu para

dos brasileiros sobre sua soberania e seu desenvolvimento

distanciar do poder, no seio do dispositivo do PRP, os

nacional entra em concorrêcia com uma visão cada vez

próprios fazendeiros. Este processo começou desde o

público

oficial do parque, em 2002. A atenção foi dada à

mais partilhada no Pantanal considerado como um “bem mundial”

necessitando

de

uma

“projeto preliminar” de quatro anos que precedeu a criação

atenção

internacional e de esforços de presenvação. Em segundo

necessidade de “pluralizar” a sociedade civil local e

lugar, voltaremos aos diferentes significados, às vezes

aumentar o número de organizações locais, primeira etapa

opostos, da PC no Pantanal ao longo do tempo – das

obrigatória para a criação de um “parque verdadeiramente

“consultas do Estado” à “consevação privada” apoiada

participativo”. Embora esta “pluralização” tenha sido

“utilização sustentável” que reconhece o papel legítimo e

em

pelas ONGs internacionais em direção de uma ideia de

começada em nome da PC, estimamos que tenha sido feita detrimento

da

comunidade

fazendeira.

Esse

importante dos fazendeiros locais na conservação do meio

“pluralismo oficial” que se manifestou através da

inovador e o significado estratégico do PRP podem ser

associações – fragmentou sua influência e abriu caminho

ambiente. É nesta tensão de dinâmicas que o caráter

multiplicação rápida e pouco espontânea de pequenas

plenamente percebidos.

para uma recuperação política ulterior do PRP.

Examinaremos em seguida a gênese do projeto PRP e sua

A sexta parte será a ocasião de examinar o poder

estratégia intrínseca de “bloqueamento”. Os fazendeiros e

institucional em ação durante a fase crucial – a saber, a

para formar a “aliança original” do projeto diante das forças

construção jurídica tenha refletido o ideal de uma PC

o Estado local associaram-se à um investidor estrangeiro

criação do próprio PRP a partir de 2002. Mesmo se a

dos bons oradores cada vez mais potentes. Uma nova

marcada por um grau de inclusão, um alcance e uma

forma de PC, implicando produtores locais, foi instaurada

intensidade

muito

profundos,

mas

também

pela

para conter a influência crescente de uma formação de

cooperação com o Estado local, a realidade mostrou-se

antenas brasileiras.

locais começaram a intervir cada vez mais frequentemente

poderes2 conduzidos por ONGs internacionais e suas

radicalmente diferente, na medida em que alguns políticos

no seio da estrutura do IPP e realizaram nomeações

Numa quarta parte analisaremos o discurso fundador da

políticas. Do ponto de vista dos fazendeiros, no início,

iniciativa do PRP que via nos fazendeiros criadores de

devendo ocupar “cargos de pilotagem”, o grau de inclusão,

animais o osso duro da comunidade tradicional pantaneira.

o alcance e a intensidade da PC, praticamente

A maneira como as “tradições” foram definidas e a “criação

desapareceram. A administração do PRP desagregou-se,

de gado” considerada como “respeitadora do meio

ambiente” são uma boa ilustração do poder estrutural e

produtivo exercido pelos fazendeiros locais, apoiados

1 Alguns dos antigos responsáveis do IPP foram acusados de sonegação fiscal e outros desfalques financeiros. Rumores de corrupção pura e simples e desvio de fundos a fins pessoais circularam igualmente. 2 Este conceito será definido na seção 2.2.5.

pelas autoridades do Estado. Assim, um outro tipo de

“bloqueio apareceu” contra grupos tendo um estatuto

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Introdução

para seu grande desespero, levando a uma acumulação de

Veremos em seguida que o capital social reunido dos

atividades ligadas ao PRP cessaram em 2005, por causa

individualismo, informalismo, imediatismo e de unidade

implicando somas importantes.

PRP. Enfim, defenderemos a ideia de que o fracasso deste

disfunções técnicas e financeiras. Finalmente, todas as

fazendeiros se caracteriza por uma mistura complexa de

de uma falência financeira e não pagamento de impostos

que contribuiu para sua supressão e desmoronamento do

grande dispositivo participativo gerou frustrações e uma

Na última parte, veremos qual foi o impacto dos múltiplos

tomada de palavra que vieram a alimentar um processo de

processos de bloqueio identificados no projeto do PRP e

aprendizagem coletiva. A longo prazo, uma parte do

como foram facilitados pelo capital social dos habitantes.

capital social local poderia realmente renovar-se e permitir

Mostraremos em primeiro lugar que o capital social

outras ações coletivas bem refletidas. É por esta razão

transversal dos trabalhadores agrícolas é caracterizado

por

uma

relação

simbiótica

paternalista

com

que em nossa opinião é preciso prolongar o quadro

os

temporal fixado para a avaliação de um dispositivo de PC,

fazendeiros que contribuíram para impedir aqueles de

que necessita realmente de mais tempo do que se pensa

toda a possibilidade de expressão no processo do PRP.

habitualmente.

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1.

O Pantanal: discursos e prioridades em conflito

Após informações de ordem geral sobre o Pantanal,

emos também pelas políticas meioambientais do Brasil e

mostraremos como este se encontra doravante no centro

a propensão deste país a favorecer a utilização

biodiversidade mundial (sublinhando os direitos e

conservação. Só uma apreensão precisa deste contexto

de dois discursos opostos: um que defende a

econômica dos recusos naturais mais do que a

deveres da comunidade mundial), outro que predica o

e tensões subjacentes permite perceber os desafios do

desenvolvimento nacional (insistindo na soberania do

projeto de participação comunitária começado no

Brasil e suas necessidades econômicas). Interessar-nos-

1.1

Pantanal.

Breve descrição da região

O Pantanal é o primeiro ecosistema de água doce do

Outra característica determinante do Pantanal – as

mundo. Com uma superficie superior a 200 000km², é

precipitações sazonais e os ciclos de cheias. Além de suas

quase tão grande quanto a Inglaterra e a Escócia reunidas.

florestas e rios, a região é constituída de redes complexas

Sul (mapa1): o Brasil, a Bolívia e o Paraguai (mapa 2), mas

pelo homem. As fotos da série 2 dão uma visão geral

Três países dividem esta região no coração da América do

de pântanos, lagoas e canais de drenagem construídos

essencialmente, o Pantanal situa-se no território brasileiro

destas paisagens típicas. Com uma altitude inferior a 150

(138 000km²), na confluência de dois Estados: Mato

metros, o Pantanal é praticamente plano de maneira que

uma planície inundável (em verde no mapa 2) cercado por

de seu território são inundados. O ciclo hidrológico

bacia do alto Paraguai, irrigado por uma rede densa de rios

região5. Com o fluxo e o refluxo das enchentes, as plantas

Grosso e Mato Grosso do Sul. O Pantanal é antes de tudo

na estação das chuvas (outubro a março), até 80 por cento

um planalto sobrelevado (marrom claro). Juntos formam a

contribui igualmente para a importante bioprodutividade da

potentes religados uns aos outros (diagrama 1)

aquáticas

e

os

prados

baixos

desenvolvem-se

Daí esta mistura única de formas de vida. A posição central

explica a quantidade de redes tróficas e a abundância da

abrigo relativamente seguro para a espécies dos biomas3

fato os ecosistemas mais “bioprodutivos” do planeta (por

rapidamente: essa renovação das matérias orgânicas

fauna. As zonas úmidas tropicais como o Pantanal, são de

do Pantanal no continente constitui um cruzamento e um circunvizinhos, em especial o cerrado, o chaco, a

unidade de superfície), com florestas pluviais, campos de

Amazônia e a mata atlântica4. Estes meios abrigam uma

algas marinhas e recifes de coral.

biodiversidade surpreendente, com 2000 espécies de

3 Os biomas são vastas unidades ecológicas de fisionomia heterogênea. 4 O cerrado é uma savana arborizada do planalto central do Brasil. Ela estende-se até a planície inundável a partir dos planaltos oriental e setentrional e abriga as principais espécies vegetais presentes no Pantanal. A vegetação típica do chaco, uma floresta árida, é originária das fronteiras ocidentais do Pantanal na Bolívia e no Paraguai. As espécies das florestas amazônica e atlântica juntam-se respectivamente ao Pantanal a partir dos vales fluviais do Norte e do Sul e limitam-se no essencial às florestas densas ao longo das margens. 5 A bioprodutividade define-se como a quantidade de matéria orgânica produzida pelos

plantas, mais de 200 espécies de peixes e 80 espécies de

mamíferos, todas sãs apesar de se tornarem raros ou em perigo nas regiões vizinhas (como a lontra gigante e a onça pintada). As fotos da série 1 ilustram bem a diversidade desta fauna visível a olho nu.

organismos vivos por hectare por ano.

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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito

Mapa 1.

O Pantanal brasileiro, no coração da América do Sul

Source: ANA et al Fonte: ANA e al. (2005), p. 3.

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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito

Mapa 2.

O Pantanal: uma planície inundável cercada de altos planaltos

fonte: ANA e al. (2005), pg. 13.

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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito

Diagrama 1. A coluna vertebral do Pantanal: o rio Paraguai e seus afluentes – rede hidrográfica da bacia do Alto Paraguai no Brasil–

fonte: ANA e al. (2005), pg. 35.

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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito

Série de fotos 1.

Exemplos da fauna do Pantanal, visível a olho nu

fonte: fotos do autor.

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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito

Série de fotos 2.

paisagens típicas durante a estação das chuvas

fonte: fotos do autor. Acima à esquerda: Earthwatch.

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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito

Série de fotos 3.

Criação de gado no Pantanal e peões no trabalho

fonte: fotos do autor.

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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito

1.2

Preservar um bem público mundial

Para a comunidade internacional, o Pantanal é uma região

As zonas úmidas representam um papel-chave na

e à estabilidade do clima. Este discurso é defendido por

o Pantanal baseia-se imensamente neste fato. O Pantanal

essencial para o planeta por sua contibuição à biodiversidade

conservação da biodiversidade mundial e o discurso sobre

diversas convenções e organizações internacionais, mas

é, portanto definido como um “ponto importante da

para a natureza (WWF, World Wildlife Fund), Conservation

– incluindo as principais espécies em perigo, como o

também pelas ONGs ativas no Brasil, como o fundo mundial

biodiversidade” acolhendo milhares de espécies diferentes

International (CI) ou The Nature Conservancy (TNC); ONGs

tamanduá, o tatu, a capivara, a anta, a onça pintada, o

brasileiras também o adotaram no Estado de Mato Grosso do

macaco-prego, o falcão. O Pantanal é também conhecido

Sul, para tentar chamar a atenção dos atores federais e

por oferecer um habitat vital para a rota migratória de vários

internacionais. Uma quantidade de relatórios, artigos, notas

peixes e pássaros que passam o verão na América do

de informação, comunicados de imprensa e sites Internet são

Norte. A biodiversidade do Pantanal estava no centro de

alimentados por ONGs meioambientalistas, grupos de estudo

praticamente todas as entrevistas com membros de ONGs.

igualmente bastante pregnante durante as entrevistas com

escala planetária” por sua especificidade biológica, “frágil”

e pesquisadores convertidos a esta visão das coisas que era

O WWF definiu oficialmente a região como “notável na

membros de ONGs.

em termos de conservação e “altamente prioritária” do ponto de vista da preservação (Olson e AL., 1998) – uma

A visão meioambientalista mundial sobre o Pantanal está

avaliação frequentemente retomada. O Patanal é

baseada numa categoria definida num plano internacional

igualmente considerado por vários defensores do meio

– a da “zona úmida”. Um tratado para a conservação e uma

ambiente como um bem público mundial importante por

utilização sustentável destas zonas foi assinado em 1971

sua contribuição para a estabilidade do clima. As zonas

na cidade iraniana de Ramsar. Mas, a “convenção de

úmidas são de fato grandes reservatórios de carbono, que

Ramsar” só foi ratificada pelo Brasil em 1993, depois da

fixam cerca de 15% do carbono do planeta (Patterson,

Conferência Mundial sobre a terra organizada um ano

1999). Graças à fotosítese, o Pantanal contribui para

antes no Rio de Janeiro. A Unesco fez do Pantanal um

capturar os gases do efeito estufa na atmosfera e liberar

“sítio Ramsar” antes de declarar em 2000, “reserva mundial

oxigênio.

consideram o Pantanal como uma zona úmida6 no plano

Todos os comentários sublinham a ideia de que a

da biosfera” e “patrimônio mundial”. Outras convenções

internacional, incluindo a Convenção do Patrimônio

humanidade inteira tem um desafio direto na região, o

Espécies Migratórias7 (1979), a Convenção sobre a

noção de “apropriação mundial” de “responsabilidade”

Mundial da Unesco (1972), a Convenção sobre as

direito de vê-la preservada e o dever de protegê-la. Daí a

Diversidade Biológica (1992) ou a Convenção sobre a

defendida por vários de nosssos interlocutores. Para um

Mudança Climática (1992). Todos esses textos sublinham a

representante de uma ONG local:

importância do valor não comercial de zonas úmidas como

o Pantanal, na qualidade de ecosistemas. Eles contribuem

“O Brasil não deveria ser o único a poder gerir esta região,

também com sua presença nas redes de financiamento

sobretudo quando se sabe o que ele faz lá.”

internacional, ajuda pública e de sensibilização. Como o afirma o membro de uma ONG local:

6 A Convenção de Ramsar define as « zonas úmidas » como extensões de pântanos, de lagoas no cume de uma montanha, de turfeira ou águas naturais e artificiais, permanentes ou temporárias, onde a água é estagnante, doce, salobra ou salgada, compreendendo aí as extensões de água marinha cuja profundidade na maré baixa não vai além de seis metros (artigo1). 7 Ou « Convençao de Bonn ».

“No Brasil, a floresta pluvial amazônica é como uma árvore que esconde a floresta. O Pantanal por mais que esteja

atrás, tem praticamente a mesma importância”.

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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito

A noção de “apropriação mundial” defende uma forma de

“Um dia o mundo compreenderá o que está perdendo, mas

adotada

Pantanal.”

conservação mais rigorosa – uma opção estratégica há

muito

tempo

por

várias

ONGs

será tarde demais [...] as lágrimas não ressuscitarão o

e

especialmente a CI. As ONGs sentem fortemente a

necessidade de agir rapidamente. Para este biólogo

Mas, este ponto de vista suscita o ceticismo de outros

voluntário:

1.3

atores especialmente as autoridades federais brasileiras.

A domesticação através do desenvolvimento

As entrevistas realizadas nos ministérios brasileiros,

americano teria previsto “internacionalizar” a Amazônia.

mal estar profundo nos altos responsáveis dessas

transformada

instituições públicas e centros de pesquisa revelaram um

Mapas apresentamdo o Brasil “amputado” da Amazônia, em

uma

região

sob

o

“mandato

instituições em relação ao discurso sobre o “Pantanal, bem

internacional”, circularam na Internet. Tudo isso poderia ter

conservação”. Se a análise meioambiental da região pelas

brasileiro

anos, a maior parte dos observadores nota – e os

projeto dando assim razão aos que consideravam os

público mundial, apelando para uma ação internacional de

ficado num estágio de farça, se alguns militares do exército

autoridades federais tem melhorado nos últimos quinze

não

tivessem

comentado

estes

mapas

publicamente, afirmando que o Brasil se oporia a esse

funcionários questionados confirmam-no – que, para o

documentos como autênticos.

governo brasileiro, o Pantanal é (como a floresta

amazônica) uma problemática interna que não merece

Essas tensões ainda ressurgiram em 2007, quando um

comunidade internacional. Esse sentimento acompanha

público mundial” com “apropriação internacional” então o

uma implicação maior ou até mesmo importante da

ministro afirmou que se a Amazônia se tornasse “bem

uma opinião amplamente partilhada pelos responsáveis

próprio arsenal nuclear dos Estados Unidos devia também

públicos segundo a qual o desenvolvimento econômico é a

se tornar “uma propriedade internacional”, visto que os

meioambiental é no melhor dos casos, marginal.

humanidade

A sensibilidade brasileira quanto a sua “soberania

A rejeição ao discurso sobre o “bem público mundial” e

centro das preocupações internacionais. Uma grande

aparece também no caso do Pantanal. Os altos

primeira das prioridades do país, toda consideração

desafios são no mínimo tão importantes para a

ambiental”, data da época em que a Amazônia estava no

suas implicações quanto à ingerência internacional

quantidade de ONGs, frequentemente financiadas por

funcionários que encontramos foram claros:

governos estrangeiros, invadiram uma região ainda mal

controlada pelas autoridades federais e locais, dada sua

- Todas essas ONGs que pretendem nos ensinar a

- irritou as autoridades brasileiras. Estas, doravante não

Povo brasileiro é soberano e dotado de um Governo

superfície e morfologia. Este impulso – e é um eufemismo

administrar [o Pantanal] visivelmente esqueceram que o

perdem mais uma ocasião para lembrar que só os

democrático.

governos federais e locais brasileiros têm o direito de

decidir o que quer que seja na região. A imprensa propaga

- O Pantanal é um tesouro brasileiro. Confiem em nós! Nós

regularmente as tensões entre autoridades nacionais e

fazemos questão.

ONGs estrageiras, como pudemos constatar em nosso

trabalho de terreno. Formas de “paranóia pública” e de

- As ações internacionais no Pantanal são bem vindas,

rumores têm alimentado a ideia de que o governo

país se encontram.

politização apareceram também. Assim desde 2006,

contanto que as ONGs e outros não esqueçam em que

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 19


1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito

Todavia, como para a Amazônia, a questão não é

Enquanto as autoridades federais e locais têm, há

debate opõe também desenvolvimento econômico e

desnvolvimento econômico e, assim “domesticar o

interessado as autoridades federais que produziram

ambiente e outros grupos não cessam de denunciar o

quarenta anos, sublinhado a necessidade de garantir o

unicamente a da soberania diante da internacionalização: o

Pantanal” em benefício da nação, os defensores do meio

conservação. Desde meados dos anos 70, o Panatanal tem

impacto

quantidades de planos e projetos para fazer da região um

das

atividades

humanas.

Um

discurso

“motor do desenvolvimento”. Vários grandes programas

conflituoso – sublinhando numerosas ameaças exercidas

o Desenvolvimento do Pantanal (CIDEPAN), o Programa

nos argumentos partilhados por ONGs, vários peritos do

pelo homem no Pantanal – apareceu, portanto, apoiado

foram assim lançados como o Cosórcio Inter-municipal para para o Desenvolvimento do Pantanal (PRODEPAN),

meio ambiente, certas organizações internacionais

(POLOCENTRO), Programa Nacional para a Utilização do

Desenvolvimento [PNUD] ou o Programa das Nações

Programa

para

o

Desenvolvimento

dos

(como o Programa das Nações Unidas para o

Cerrados

álcool (PROALCOOL)8, Programa de Desenvolvimento de

Unidas para o Meio Ambiente [PNUMA] e membros do

Desenvolvimento Integrado da Bacia do Alto Paraguai

diagnóstico preocupante.

Estado de Mato Grosso (PRODEAGRO), o e o Programa

Hoje, contudo, políticos federais parecem mais sensíveis

subprograma batizado “Plano de Conservação da Bacia do

recentes acordos feitos com a França sobre a proteção da

Grande

Dourados

(PRODEGRAN),

Estudo

do

Governo brasileiro. O quadro 1 propõe uma síntese deste

(EDIBAP), Programa de Desenvolvimento Agroambiental do Nacional para o Meio Ambiente (PNMA) com seu

ao ponto de vista do bem público mundial, como mostra os

Alto Paraguai” (PCBAP) (Junk e al., 2009). Alguns

biodiversidade. Depois de alguns anos, as autoridades

relançaram o complexo agroindustrial – criação de gado,

federais têm prestado mais atenção às preocupações da

soja e cana-de-açúcar especialmente no planalto que rodeia

comunidade internacional. Além disso, o número crescente

o Pantanal com consequências ecológicas visíveis para

de atores internacionais – como a Agência Francesa de

este. Isto provocou atividades de sensibilização e às vezes

Desenvolvimento (AFD) – destaca há muito tempo a

– como a via fluvial Paraguai-paraná (Paraguai-Paraná

desenvolvimento e conservação, um processo racional que

campanhas internacionais de peso contra projetos precisos

necessidade

hidrovia)9, projeto suspenso, mas não abandonado.

e

a

possibilidade

de

converger

facilitou as discussões com o Brasil.

Quadro 1. As ameaças humanas no Pantanal: aviso sobre as preocupações

Aqui tentamos sintetizar as grandes preocupações suscitadas pelo impacto ambiental do homem no Pantanal (Earthwatch, 2004 ; Junk et de Cunha, 2005).

O Pantanal é um ecosistema frágil que já sofre grandes estresses naturais, como os períodos de enchentes e secas bastante perceptíveis,

fracos níveis de nutrimento e incêndios. As ameaças antropogênicas não são unicamente mundiais – como a mudança climática. Elas são também locais, com o crescimento econômico da região e os efeitos secundários da agricultura intensiva praticada na bacia vertente.

Tradicionalmente, os atores da região são criadores, trabalhadores agrícolas, comunidades indígenas e agências federais. Antes dos anos 70, seu impacto no Pantanal era limitado, visto que não tinha meios de provocar grandes mudanças no meio ambiente (modificação do ciclo

das enchentes pela construção de barragens ou da qualidade das água pela acumulação de sedimentos). Contudo, com o desenvolvimento

8 O programa PROALCOOL visava encorajar a utilização do etanol no lugar da gasolina e aumentar a produção de etanol para as indústrias. 9 Cinco países estão na origem deste projeto de via fluvial, para fazer do Paraguai e do Paraná um canal para a marinha mercante.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 20


1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito econômico, novas atividades apareceram, paralelas à industrialização – agricultura, práticas modernas de criação de animais, indústria do

transporte, produção de energia hidrelétrica e extração. A ocupação humana intensificou-se vigorosamente nos Estados do Mato Grosso e

Mato Grosso do Sul, que partilham a parte brasileira do Pantanal. Paralelamente, vários centros urbanos se desenvolveram rapidamente e têm um impacto na zona através do aumento das necessidades de transporte e a poluição das águas.

Mas, a qualidade dos ciclos da água do Pantanal não sofre somente com esta urbanização. A maioria dos rios que drena a região tem suas

fontes nos altos planaltos circunvizinhos. Ora, nos anos 70 o Governo brasileiro subvencionou nestas regiões – como no restante do país,

incluindo a Amazônia – atividades de agricultura intensiva. Em várias regiões vizinhas do Pantanal, importantes partes da floresta de

cerrados originais foram destruídas para desenvolver uma agricultura industrial e produzir soja, cana-de-açúcar, trigo, milho e algodão.

Savanas foram transformadas em campos de milhões de quilômetros quadrados. Segundo o relatório da CI de 2006, (Barcellos Harris,

2006), o pasto e a agricultura, compreendendo a transformação de pastos indígenas em terras agrícolas, destruíram praticamente 45% da

vegetação original da bacia do rio Paraguai onde se encontra o Pantanal. Em 2004, cerca de 44% da vegetação original da zona tinha sido modificada, certos distritos tendo perdido mais 90% de sua cobertura natural.

Em consequência, várias margens foram desmatadas, provocando um aumento da sedimetação na vazante. Como os solos da região dos

cerrados são em essencial relativamente pobres e, que é preciso garantir a fertilidade ao mesmo tempo lutando contra os parasitas, as populações recorreram massivamente aos fungicidas, pesticidas e outros adubos. As práticas de gestão da água, bastante rudimentares,

provocaram grandes regueiras de produtos agroquímicos levando à erosão dos solos o que prejudica os agricultores do Pantanal. Os

esquemas hidrológicos locais foram profundamente atingidos, como no caso do rio São Lourenço. A navegação, as migrações de peixes e as atividades tradicionais de criação de animais tornaram-se difíceis. O pior exemplo é o da bacia do Rio Taquari, onde importantes

segmentos do canal se deterioraram ou mudaram, provocando a inundação de 11 000 km² de terras a pastar e uma brusca retirada dos

estoques de peixes. A complexidade do canal e do habitat encontra-se consideravelmente reduzida, bloqueando as rotas migratórias dos peixes, modificando as interações entre perímetros de inundação e canal, levando ao desaparecimento de espécies.

Mas, as atividades extrativistas e a poluição pelo mercúrio suscitam outras preocupações. Desde os anos 80, a extração do ouro nas baixas

terras em torno da cidade de Poconé (mapa2) tem conduzido a poluição pelo mercúrio. Como as jazidas superficiais estão doravante

esgotadas, a atividade tem diminuído nesses últimos anos. Apesar disso, as atividades extrativistas ainda podem ter um impacto importante no Pantanal. A extração de ferro, de manganês e de diamantes na bacia vertente implica a destruição da vegetação e do habitat, a erosão do solo e a sedimentação dos cursos da água, sem falar da modificação da topografia do leito dos rios e a poluição das águas. Em algumas

partes do Pantanal, a extração do ouro representa um sério risco para o meio ambiente e a saúde humana. Os garimpeiros utilizam grandes

quantidades de mercúrio para misturar as partículas de ouro contidas no solo e na lama. Até o momento, vários casos de nível de mercúrio claramente mais elevado do que o normal no peixes e pássaros locais, particularmento no Norte do Pantanal, são revelados.

A própria produção de eletricidade tem um impacto no meio ambiente: em 2008 enumerava-se nove centrais hidrelétricas em funcionamento

na bacia vertente do Pantanal, para uma capacidade de 323MW. Uma nova central acaba de ser construída no Manso (220MW), um dos principais afluentes do rio Cuiabá, no âmbito de uma iniciativa do Estado federal e dos Estados brasileiros. As mudanças hidrológicas

trazidas pela construção de um importante reservatório no Manso (387km²) começam a repercutir na fauna e na flora como também nos

pescadores e criadores do Pantanal. No final, 20 novos reservatórios poderiam ser construídos, para uma capacidade total de 1000MW. O efeito acumulado desses reservatórios deveriam profundamente modificar o regime hidrológico da região. (Girard, 2002).

Vários grandes projetos de infraestruturas de transporte começaram, para encaminhar mais facilemnte os produtos locais em direção dos

grandes centros metropolitanos e aeroportos . Citamos em especial três projetos de via fluvial: vias navegáveis Araguaia-Tocantins e Paraguai-Paraná e a ferrovia Ferronorte. Os industriais da agricultura e da extração fazem pressão, fora do Pantanal, para canalisar o rio

Paraguai e garantir assim, um transporte mais barato da soja e minerais em direção do oceano atlântico. O projeto de via fluvial Paraguai-

Paraná que envolve o Brasil, Paraguai, Bolívia, Uruguai e Argentina, é particularmente preocupante. Trata-se de remodelar e dragar o Alto Paraguai a fim de aumentar a capacidade do tráfego. Os defensores do meio ambiente afirmam que este projeto modificará definitivamente

as estruturas de escoamento na região e drenará cerca de 50% das zonas húmida, provocando a destruição das redes tróficas mais © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 21


1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito produtivas do Pantanal. O projeto original perdeu seus financiamentos e foi abandonado depois das conclusões de um estudo de impacto

no meio ambiente e de uma campanha eficaz de sensibilização pelas Coalizão Rios Vivos, o WWF, a CI e outras ONGs. Apesar disso, a

hidrovia continua na ordem do dia e uma série de projetos distintos desse tipo, em pequena escala, começaram ao longo do rio Paraguai superior.

1.4

Predominância da « utilização econômica »

As políticas ambientalistas do Brasil são estruturadas pelo

de 300 apareceram em 2008), cujos 70% são definidos

debate e uma tensão permanentes entre a « rigorosa

como “áreas de proteção ambiental” (APA), uma categoria

naturais – do qual o sistema jurídico se propaga. O primeiro

ONGs que acham sua designação “enganadora”.

conservação » e a « utilização sustentável » dos recusrsos

instaurada pelo SNUC e frequentemente criticada pelas

parque protegido do Brasil foi criado em 1937, mas só a

partir de meados dos anos 80 é que o número de áreas

As

bastante variadas. Para organizar uma paisagem jurídica

utilização das terras (...). Lá as atividades humanas são

um sistema unificado para parques nacionais, estaduais e

pequenos espaços reservados a uma estrita conservação

(Sistema Nacional de Unidades de Conservação). O SNUC

que os pequenos sítios consagrados a uma estrita

protegidas aumentou sensivelmente sob formas jurídicas

APAs

não

são

realmente

áreas

protegidas;

assemelham-se mais a um mecanismo de gestão de

cada vez mais complexa e hamonizar as legislações locais,

limitadas pelos planos ou sistemas de zoneamento, com

municipais foi instaurado em 2000 pela lei, com o SNUC

(...). Mas isto traz pouco valor adicionado no terreno, visto

regulamenta e define as categorias de áreas protegidas em

conservação são em geral lugares que, de toda sorte, não

diferentes níveis de administração brasileira e organiza-os

poderiam ter sido explorados.

em dois grandes conjuntos:

Por que a estratégia federal de proteção do meio ambiente

1. As « áreas estritamente protegidas »: a preservação da

está mais consagrada à “conservação total” do que as

biodiversidade é o objetivo principal e as atividades

abordagens adotadas do ponto de vista dos Estados? Uma

humanas são consideravelmente limitadas

das razões propostas por vários de nossos interlocutores

está ligada a que os Estados sejam mais dependentes dos

2. As « áreas de utilização sustentável »: a proteção da

atores econômicos da região e menos sensíveis às

biodiversidade continua a ser importante mas, não é o

grandes ONGs internacionais. Além disso, para pregar a

único objetivo, abrindo caminho para diferentes

conservação, essas ONGs têm tedência a fazer lobby junto

atividades econômicas10.

às autoridades nacionais e não diretamente às autoridades

locais, estimando que a proteção nacional ofereça mais

Cada vez mais, os níveis locais de gestão do meio

continuidade do que as legislações locais.

ambiente se tornam importantes, a medida que a influência

10 A primeira categoria cobre as categorias tipos I a III definidas pela União Internacional para

dos Estados aumenta. Enquanto os parques nacionais

a Conservação da Natureza (UICN), as mais estritas no que diz respeito à interdição de atividade humana. No Brasil, elas compreendem os “parques naturais”, as “reservas biológicas”, os “munumentos naturais” e os “abrigos para a fauna. Os “parques naturais” são as áreas protegidas mais importantes que autorizam atividades de educação, ,lazer e de pesquisa científica. As “reservas biológicas” são em geral, menos vastas e fechadas ao público, salvo para as atividades de educação para o meio ambiente. As “estações ecológicas” favorecem a pesquisa. A segunda categoria de áreas protegidas para uma utilização durável autoriza diferentes graus de atividade humana. Ela compreende as categorias IV a V da UICN. Menos estrita quanto às atividades humanas possíveis, ele compreende as “florestas nacionais”, as “áreas de proteção ambiental” (APA), as “áreas apresentando um interesse ecológico”, as “reservas de extração”, as “reservas para a fauna”, as reservas para o desenvolvimento durável” e as “reservas particulares do Patrimônio Nacional” (RPPN). 11 Em praticamente 300 áreas protegidas federais, 58% são destinadas a uma utilização

protegidos eram predominantes nos anos 80, hoje somente

52% das áreas protegidas do país ainda o são. O Governo federal utiliza de maneira mais equilibrada o SNUC no que

considera o dilema “conservação/utilização sustentável”11. De seu lado, os Estados locais preocupam-se bem menos

com a conservação, ao ponto de hoje só gerirem 17% dos

parques estritamente protegidos. Ao contrário, criaram

parques protegidos para uma utilização sustentável (cerca

durável e 42% a uma estrita conservação.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 22


1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito

Nem todas as regiões brasileiras manifestam a mesma

duas áreas só correspondem a 0,6% da superficie total do

tensão entre “conservação e utilização econômica”12. No

pantanal, o restante pertencendo aos criadores de animais

Pantanal, a estrita conservação aplica-se a 100% das

e a outros atores econômicos. É por esta razão que

áreas protegidas, mas esse número impressionante traduz

durante muito tempo menos de 1% da maior zona úmida

simplesmente a ausência quase total de política de

do mundo foi rigorosamente protegida. Os Estados de

conservação na região. Até 1999, só duas pequenas áreas

Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul, que se partilham o

beneficiavam de uma proteção oficial: o Parque Natural

Pantanal são de fato profundamente influenciados pela

Regional do Pantanal, que cobre cerca de 1450 km² de

ideologia do desenvolvimento sem limite. Eram pouco

pouco mais de 111 km². Situadas no Mato Grosso, estas

da sociedade civil começassem a pressionar.

zonas úmidas e a Estação Ecológica de Taim, que cobre

sensíveis às preocupações ambientais até que membros

1.5 Política de conservação descendente iniciada pelo Estado: leis inteligentes, mas uma execução insuficiente Além das áreas protegidas, a política ambiental brasileira

Teoricamente, a regulamentação descendente que se

caracteriza-se por uma massa de “texto de leis excelentes

aplica ao Pantanal é portanto pesada. Na prática a situação

no papel” (dito por vários funcionários), mas com pouco

é outra. Para começar, a autoridade regulamentar do

impacto na prática. O Pantanal não é uma exceção como

Pantanal está geograficamente rompida entre os Estados

explica Wade (1999) e como o foi confirmado por várias

de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Do ponto de vista

pessoas questionadas na região e na capital federal.

da jurisdição, está também dividida entre as agências

O artigo 225 da Constituição brasileira dispõe que o

nacionais do meio ambiente e os governos dos Estados.

encarregadas do meio ambiente nestes Estados, agências

Pantanal é uma das áreas naturais constituindo o

Durante anos, o Pantanal sofreu com a incapacidade

“patrimônio nacional”. Com mais de 120 leis em vigor sobre

relativa das instituições com mandatos e bases diferentes

o meio ambiente, o Pantanal é em teoria uma área bem

para elaborar uma abordagem integrada – um ponto

protegida e bem controlada. As regras de preservação

frequentemente evocado por nossos interlocutores oficiais

impacto ambiental, exames e comentários públicos, a

autoridades também estão enfraquecidades pelo conjunto

compreendem as disposições exigindo avaliações de

e organizações da sociedade civil. Em dois Estados, as

proteção da fauna, controles sobre os afluentes e adubos,

de derrogações e lacunas regulamentares, revelando um

etc. A lei federal exige dos fazendeiros que preservem a

“fenômeno de atribuição” da regulamentção ambiental

vegetação nativa ao longo das represas, através das

absolutamente nefasto.

deixar certa porcentagem de suas propriedades em seu

Evidentemente, não faltam estruturas nacionais de

famosas “reservas permanentes”. Eles também devem estado natural, (a famosa “reserva legal”) só permitindo

realização no país e nos Estados. Desde 2000, a agência

regulamentado. Mas é o Estado local que deve determinar

ambiente é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e de

nesta uma atividade de pesquisa ou ecoturismo

pública encarregada da aplicação da legislação ao meio Recusos Naturais Renováveis (IBAMA)13, que depende do

a porcentagem atribuída à “reserva legal”. Em Mato Grosso

do Sul, o Estado impõe a proteção de 20% das terras, enquanto em Mato Grosso (onde se encontra a metade do

12 As políticas visando uma utilização durável concernem mais as áreas na floresta Atlântica

Pantanal), a proteção aplica-se a 35% das terras. Isto pode

(74%), a Caatinga (72%) e as zonas costeiras e marítimas (74%). Na Amazônia, o equilíbrio é praticamente perfeito entre a estrita proteção e a utilização durável (51%). Estas porcentagens são em função das áreas e não de seu tamanho. 13 Até 1989, os parques e reservas federais eram criados pelo Instituto Brasileiro de

parecer importante, mas para comparação, os fazendeiros da Amazônia têm a obrigação de proteger até 80% de suas

Desenvolvimento Florestal (IBDF) e a Secretaria Especial para o Meio Ambiente (SEMA). Em 1989, a SEMA e o IBDF fusionaram para a criação do IBAMA.

terras.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 23


1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito

Ministério do Meio Ambiente. O IBAMA é também

região a controlar. O Parque natural do Pantanal em Mato

brasileiro para a conservação (SNUC). Paralelamente, a

difícil acesso por falta de infraestruturas e meios de

responsável pelo controle da implementação do arsenal

grosso, por, exemplo, cobre 138 000 hectares, mas é de

nível estadual, toda a gama de atores institucionais

funcionamento, de maneira que é impossível exercer uma

controla a aplicação das legislações federais e locais. Em

vigilância completa e constante. No que diz respeito às

Mato Grosso do Sul, por exemplo, a gestão do meio

legislações ambientais nas fazendas, um sentimento

ambiente cabe ao SEMA (Secretaria do Estado para o Meio

compartilhado parece preponderar nos ministérios como

Ambiente, criada em 1991), e ao IMAP, Instituto do Meio

nas agências:

Uma política florestal de Estado deve igualmente estar

Por mais que tenhamos feito, os fazendeiros do Pantanal

Ambiente do Pantanal, seu “braço armado” no Pantanal. incubida

de

vigiar

os

caçadores

clandestinos

continuam senhores de suas terras.

especialmente através da fiscalização dos veículos.

Além disso, nos cerrados, por exemplo, o Estado encoraja

Potencialmente, esses dispositivos deveriam garantir uma

uma exploração intensiva das terras ao ponto de as regras

inoperantes, por falta de uma vontade política firme e

Sem falar da corrupção dos inspetores encarregados do

boa proteção dos espaços naturais do Pantanal, mas são

ralativas às reservas permanentes e legais serem violadas.

meios financeiros adaptados que, em 2008, faltaram. Os

meio ambiente – um fenômeno que, segundo vários de

funcionários encontrados em Brasília deram-nos uma ideia

nossos interlocutores em Mato Grosso do Sul, parece

bastante crua do que acontece no terreno. O mínimo que

bastante frequente. É, portanto neste contexto de fraca

podemos dizer é que a aplicação no Pantanal se apresenta

proteção e respeito à lei que as ONGs tentaram, no início

como um quebra-cabeça, dada a falta de meios humanos

dos anos 90, defender a causa de uma melhor proteção do

e financeiros, que náo condizem com a imensidão da

1.6

Pantanal.

Conclusão

A novidade e a importância do Parque Regional do

participar conjuntamente do desenvolvimento interno,

que opuseram durante anos atores e visões diferentes da

tendem a reinvindicar o Pantanal para a humanidade

Pantanal só são concebíveis se conhecermos os debates

outros – como as ONGs de defesa do meio ambiente –

gestão ambiental no Brasil.

inteira. No terreno, estas tensões são traduzidas por leis

O primeiro desses debates, destacado aqui, diz respeito

e por uma pequena parte da superfície protegida (menos

milagrosamente protetoras – mas que não são aplicadas –

aos direitos e deveres de cada um quanto ao destino do

de 3% beneficiando de uma estrita conservação)

Pantanal. Como outras maravilhas do mundo da mesma importância, o Pantanal é o centro de discursos

O segundo debate de fundo é abordado na seção seguinte.

consideram antes de tudo como um bem nacional que deve

procura ver que, na prática, e graças a isso obtém poder.

concorrentes. Enquanto as autoridades nacionais o

Está ligado ao significado da “participação comunitária” e

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 24


2.

As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas

É, portanto, neste pano de fundo de conflito entre os

integrando os produtores locais: esta nova geração de

campeões do desenvolvimento soberano e os partidários da

programas de PC compreende uma partilha crescente do

progressivamente no Pantanal. Analisaremos a evolução do

sempre no âmbito definido pelas ONGs. Somente

conservação que o “discurso participativo” apareceu

poder entre as principais ONGs e os produtores locais, mas

discurso na PC da região e a maneira como mudou o

progressivamente e recentemente o conceito de PC serviu

da PC, tomou, em primeiro lugar, uma forma de consulta das

produtores. Enquanto o discurso mundial sobre a

equilíbrio de poderes para sua gestão ambiental. O discurso

às ONGs para destacar a necessidade de aproximar-se dos

comunidades, organizadas pela iniciativa do Estado no

participação tomou esta direção há muito tempo, só chegou

âmbito de vastos exercícios de planejamento sem quase

lentamente aos atores do Pantanal. Um novo equilíbrio de

Ele em seguida encarnou os esforços privados da estrita

Natural Regional do Pantanal”. Este conceito jurídico,

efeitos práticos, mas que dava ao Estado o primeiro papel.

poderes acabou, contudo, por emergir como o “Parque

conservação, oferecendo às ONGs um papel-chave de

importado da França, contribuiu amplamente para dar aos

apoio e orientação das iniciativas privadas. A PC evoluiu

produtores locais um poder crescente de decisão e, em

mais uma vez para tomar lentamente a forma de uma

consequência, suscitar uma profunda desconfiança na maior

abordagem mais colaborativa da gestão do meio ambiente

2.1

parte dos defensores do meio ambiente.

PC através da iniciativa do Estado: consultas para um planejamento estratégico

Ironicamente, a ineficácia da “conservação” do Pantanal

destes exercícios devia dar lugar a outra coisa que a

mas com aplicação flutuante”) não impediu as práticas bem

maioria dos interlocutores não “levaram a lugar nenhum”.

organizada pelo Estado (baseada em “leis exemplares,

grandes relatórios e recomendações, que segundo a

estabelecidas de “PC consultativa” na região, no âmbito de

vastos

exercícios

regulares

de

planejamento

Desde 1978 o Governo brasileiro, a Organizaçao dos

do

Estados Americanos (OEA) e o PNUD têm organizado um

desenvolvimento. Assim, o Pantanal situa-se na “avant-

processo de planejamento de três anos, batizado EDIBAP

garde” não somente do planejamento descendente do

(Estudo de Desenvolvimento Integrado da Bacia do Alto

Brasil, mas também no planejamento da PC desde os

Paraguai). Uma série de propostas para o desenvolvimento

Pantanal é de fato conhecido pela série de processos de

nos princípios da conservação do meio ambiente, do

primeiros anos de aparecimento deste discurso. O

econômico da região do Pantanal foi formulada, baseada

“planejamento estratégico” compreendendo um número

equilíbrio ecológico e da utilização racional das terras. A

garde. De certa maneira, a região foi um “terreno de jogo”

especificas para remediar as dificuldades sociais e avaliar

incrível de atores nos mecanismos consultivos de avant-

estratégia

que

provinha

disto

preconizava

ações

extraordinário para o discurso sobre a PC – passando

o impacto dos diferentes projetos de desenvolvimento

desenvolvimento às práticas consultivas. Porém, nenhum

no Brasil. Ela previa especialmente medidas para o

rapidamente de uma abordagem descendente do

considerados no regime hidrológico da bacia do Paraguai

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 25


2. As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas

controle das enchentes, com a construção de reservatórios em

diferentes

navegabilidade

pontos,

sem

que

modificar

deviam em

melhorar

demasiado

manifestações públicas. Este trabalho, que mobilizou mais

a

de 4 500 participantes, conduziu a publicação de relatório

o

de 300 páginas que servirá (se tudo estiver bem) para “as

comportamento das águas a jusante. Esse trabalho

necessidades das autoridades públicas, decididores e

não teve o resultado esperado.

sustentável do Pantanal...

O que leva o Governo federal a lançar em 1991, um vasto

Mas as coisas não param por aí. Em 2007, a UE financia

Conservação da Bacia do alto Paraguai” (PCBAP).

Pantanal e seus desafios, fundado em contribuições

este plano estava baseado num método de zoneamento

interessadas. Esse projeto batizado Instituições de

sítio em matéria de conservação, reabilitação e proteção das

públicas, uma série de trabalhos científicos, uma

de alerta às inundações em tempo real, a fim de prevenir o

de pesquisa com o objetivo de apoiar as instituições

enorme, mensageiro de imensas esperanças, finalmente

projeto

participativo

para

preparar

um

“Plano

outras pessoas interessadas pelo desenvolvimento

de

um diagnóstico participativo de grande importância sobre o

Conduzido pelo Governo brasileiro e pelo Banco Mundial,

científicas importantes e consultas das partes diretamente

ambiental e devia definir diretivas gerais e espécificas no

Pesquisa para o Pantanal deu lugar a dezenas de reuniões

terras deterioradas. Previa a implementação de um sistema

quantidade de relatórios que deviam definir “um programa

impacto negativo no meio urbano e rural. Ainda assim

políticas, quadros jurídicos e ação social” no Pantanal. Os

praticamente nenhuma das recomendações teve efeitos.

resultados do projeto foram apresentados no Brasil, no

Em 1996, o Governo brasileiro solicita ajuda técnica e

habitantes e as organizações do Pantanal ainda estão à

Paraguai e na Comissao Europeia em Bruxelas, mas os

financeira do Fundo para o Meio Ambiente Mundial (GEF)

espera de resultados concretos.

a fim de preparar um programa de gestão integrada da

totalidade da bacia que deve aplicar as diretivas

As entrevistas realizadas em 2008 mostram claramente

estudos e projetos piloto foram concluídos com sucesso,

monitorados por “facilitadores” externos (e frequentemente

identificadas no PCBAP. Entre 1999 e 2004, cerca de 44

que os exercícios consultivos repetidos, em geral

dando lugar a publicação de um novo “programa

estrangeiros) quase não são proveitosos. A maioria dos

do alto Paraguai”. Mais de 250 organizações federais,

e esperança. Seus comentários refletem frequentemente

instituições internacionais e órgãos de outros países são

às ONGs ou aos fazendeiros. Um deles até descreveu o

estratégico de ação para a gestão do Pantanal e da bacia

atores que encontramos se considera quase sem paciência

estaduais e municipais, ONGs, empresas privadas,

um sentimento de desilusão seja em relação aos cientistas,

direta ou indiretamente envolvidos nas atividades do

Pantanal

projeto, essencialmente por sua participação numa série de

como

“o

Triângulo

planejamento participativo”.

das

Bermudas

do

2.2 A PC considerada como conservação particular: a opinião das ONGs meioambientalistas No início dos anos 90, ONGs internacionais começaram a

associando-se a organizações científicas, a fim de

alcançar uma melhor conservação da região. Elas

manifestações mais marcantes – uma conferência sobre

tempo pela criação de novos parques nacionais e novas

em 1998 pela CI e várias organizações locais, como a

pressionar o Governo federal e as autoridades locais para

fornecer conselhos e propostas técnicas. Uma das

defendiam a ideia de “reservas integrais” ao mesmo

o Pantanal e os cerrados circunvizinhos – foi organizada

“reservas particulares” detidas por ONGs, mecenas ou

Universidade de Brasília e a Fundação Biodiversitas.

fazendeiros. As ONGs aproximaram-se das autoridades

Cerca de 200 cientistas presentes iam identificar uma

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 26


2. As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas

série de corredores e áreas cruciais para a proteção da

estratégias evoluem com o tempo e não são estritamente

biodiversidade, provocando enfim uma reação do

idênticas.

Sul criou cinco novas áreas protegidas, cobrindo 140 000

Mesmo se a estratégia mundial da CI tenha mudado ao

Governo. Entre 2001 e 2004, o Estado de Mato Grosso do hectares. De seu lado, o Governo federal criou o Parque

longo dos anos, ela continua bastante estável no Pantanal.

Nacional da Serra da Bodoquena (76 000 hectares) este

A CI reconhece em seu site Internet que a linha estratégica

globalmente estes sucessos obtidos graças às pressões

que ela foi uma das primeiras (em 1987) a evoluir para uma

também situado em Mato Grosso do Sul. Contudo,

tradicional era favorável a uma “estrita conservação”, mas

exercidas, não vão moficar a paisagem da conservação

visão da conservação baseada no “desenvolvimento

da sua superfície está protegida.

interessadas locais (Conservation International, 2009).

É por esta razão, paralelamente, que estas ONGs

atores econômicos, defendendo mais a criação de novas

pública do Pantanal brasileiro, visto que menos de 2,5%

sustentável” e a participação das partes diretamente

Contudo, no Pantanal, a CI não trabalha realmente com

reservas públicas e particulares no seio dos “corredores”15.

pregavam também a criação de novas áreas protegidas particulares,

aproveitando

a

legislação

brasileira,

relativamente sofisticada, que favorece o estabelecimento

A TNC (internacional The Nature Conservancy) optou por

Até o momento, o Pantanal tem 13 reservas deste tipo,

organização de conservação do meio ambiente intervém

uma estratégia bastante próxima. Criada em 1951, esta

de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN). com 201 255 hectares, ou seja, 1,5% da região.

no mundo inteiro. No Pantanal, começou ajudando uma

O conceito de reservas naturais detidas por particulares

de terra ao longo do Parque Nacional do Pantanal a fim de

fundação parceira (Ecotropica) a comprar 60 000 hectares

tem sua origem na Europa do século XIX, em especial com

fazer reservas particulares. Desde o final dos anos 90 ela

Namíbia e em Botswuana. Lançado por decreto em 1990,

observar atentamente o PRP. Mais recentemente, a TNC

tem ajudado também as instituições locais a avaliar, gerir e

grandes reservas criadas pelos Ingleses no Quênia, na

estabeleceu uma parceria com a UNESCO, o WWF e o

o programa brasileiro foi integrado ao corpo legislativo pelo

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) para

Congresso em 2000. As autoridades federais e estaduais

conservação dos sítios pertencendo ao patrimônio natural

utilizam doravante estes RPPN com aparente entusiasmo,

mundial no Pantanal.

visto que, senão, elas deveriam apropriar-se destas terras, indenizar seus proprietários e investir na gestão das áreas. Assim, a carga da conservação incumbe mais aos

A CI e a TNC, são, portanto, sensíveis ao aspecto

Vários grupos de defesa do meio ambiente ajudaram os

sobretudo de colaborar com os fazendeiros interessados

“conservação” e só praticam uma PC limitada: trata-se,

proprietários particulares do que às finanças públicas.

fazendeiros a criar RPPNs14, sobretudo quando suas

por uma estrita conservação. De seu lado, outras grandes

terras se encontram próximas das reservas naturais

ONGs trabalham mais – mas sem exclusão/restrição – no

de imposto predial, mas devem limitar suas atividades ao

continua, vamos ver, bastante limitado.

aspecto “utilização sustentável”, no âmbito de uma PC que

públicas. Os fazendeiros que o fazem obtêm exonerações ecoturismo e à pesquisa. A área assim decretada beneficia

igualmente de uma proteção irrevogável, o que significa que as terras jamais poderão ser desclassificadas.

14 Para obter o certificado de qualidade RPPN, uma área deve apresentar características pertinentes para a proteção da biodiversidade ou ficar num lugar onde a valorização do meio ambiente poderia permitir preservar ecosistemas 15 Nesta abordagem, vastas zonas – como os parques nacionais – são religados por

Há dez anos que várias ONGs internacionais têm tido um

papel maior neste tabuleiro de xadrez do Pantanal e continuam particularmente ativas – como a CI, o WWF, a

corredores a reservas menores a fim de facilitar a circulação das espécies num espaço mais vasto e favorecer assim uma diversidade genética crescente.

TNC e a Wildlife Conservation Society (WCS). Suas

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 27


2. As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas

2.3

Colaborar com os produtores: a lenta gênese de uma nova forma de PC

Enquanto a CI e a TNC trabalharam amplamente por uma

150 pessoas são, assim, convidadas a participar de três

estrita conservação no Pantanal, outras enfatizaram a

campanhas por ano. Elas beneficiam de tratamento da

da região são detidos por criadores de gado, a expansão

evolução do projeto de proteção das onças pintadas e

necessidade de envolver os atores locais. Visto que 97%

parte dos médicos e dentistas, são informadas sobre a

do sistema de conservação depende a priori de sua

podem discutir sobre a conservação dos lugares. Em

Como para a criação de reservas particulares, só pode se

beneficiam de tratamento de saúde e vêem o modo de vida

cooperação, através de novas formas de “participação”.

compensação aos esforços de conservação, os nativos

tratar – ao menos aparentemente – de um fenômeno

pantaneiro valorizado.

limitado.

Mas a WWF foi mais longe do que as outras ONGs no

A WCS (Wildlife Conservation Society) é uma das primeiras

trabalho com os produtores locais. Depois de ter apoiado

criadores de gado, procurando melhor integrar o

programa mais ambicioso batizado “Pantanal Forever”.

ONGs a ter começado a trabalhar no Pantanal com os

vários projetos de conservação, ela lança em 1998 um

desenvolvimento e a proteção da fauna, através de uma

Ainda atual, este programa continua ao mesmo tempo com

pesquisa aplicada. Desde o final dos anos 90, a WCS tem

objetivos de conservação e objetivos de desenvolvimento.

se esforçado para mobilizar e formar criadores de gado

Em matéria de conservação, este projeto contribui para a

com o objetivo de gerir os conflitos com animais selvagens:

criação de áeras protegidas e a proteção da arara Ara

exercem sua predação nos rebanhos. A WCS dirige um

de fotos 1). Em matéria de produção sustentável, ela

os criadores matam frequentemente onças pintadas que

haicintha (Arara-azul grande) – a maior da espécie (série

programa de pesquisa que visa reduzir a taxa de

trabalha junto a grupos de mulheres pescadoras para

depredação do gado e implementar novas técnicas de

desenvolver a arte e o artesanato regionais. Ela ajuda

prevenção com várias fazendas parceiras. A WCS propõe

também os criadores a adotar práticas menos prejudiciais

desenvolvimento do ecoturismo. Ela trabalha para esse fim

tem esforçado para promover a carne de boi biológica

também recomendações sobre a produção de gado e

ao meio ambiente, como o ecoturismo e desde 2002 se

com a UNIDERP uma universidade local, para a

constituição

dos

indicadores

ambientais

ajudando-os a obter um certificado junto do IBD (Instituto

e

Biodinâmico).

socioeconômicos que permitem garantir um melhor

acompanhamento das culturas. Abandonando

progressivamente

sua

filosofia

A colaboração com os produtores locais aparece, portanto, cada vez mais como a nova vocação da PC no Pantanal e

de

uma pista a seguir para as ONGs. Mas estas praticaram

conservação estrita, a CI esforça-se também para trabalhar

mais uma versão atenuada da PC, a saber, dispositivos

pintada Conservation Fund, (uma ONG brasileira) e a

nenhuma “apropriação pela comunidade”: trata-se somente

mais com os criadores de gado. Em parceria com a Onça

sobretudo concebidos por peritos externos e não implicando

universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS),

de incitar os produtores a modificar suas atividades num ou

concebeu um dispositivo de indenização dos criadores

noutro sentido. Estas inciativas estão portanto ainda

vítimas das onças pintadas das onze fazendas contíguas,

distantes dos projetos « pilotados pela comunidade » na qual

acrescentando 150 000 hectares de habitat protegido para

a PC local é essencial, em todos os níveis.

acordo para parar de matar as onças pintadas. Por outro

A própria ideia de criar um “parque regional do Pantanal”

médica e dentária gratuita, associada a uma educação do

gestão do meio ambiente e intervenções das ONGs. Ela

estes animais. Em troca, os fazendeiros assinaram um lado, o projeto apóia um programa social de assistência

era, pois, extremamente inovadora na paisagem local da

meio ambiente, tudo isto destinado aos criadores. Quase

deu a esperança de que a comunidade pantaneira local

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 28


2. As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas

teria meios, especialmente financeiros, para desenvolver

associar a tal ou tal projeto iniciado por ONGs

programas que teria ela mesma concebido em vez de se

2.4

internacionais.

Conclusão : A novidade da proposta do PRP

Nós vimos que o conceito de PC tinha evoluído ao longo

comunidade e reforçar seu poder de decisão coletivo em

entre duas abordagens do meio ambiente – a conservação

projeto de um “parque regional” integrado confiado à

dos anos no Pantanal, refletindo a tensão permanente

diferentes setores ambientais e socioeconômicos. Esse

e a utilização sustentável. Nos anos 90, as grandes ONGs

comunidade suscitou interrogações entre as ONGs que

ativas no Pantanal adotaram a filosofia da participação,

tinham muitas dificuldades a ver os fazendeiros como

mas uma versão suavizada – a saber, com a participação

amigos do meio ambiente. Vários defensores do meio

dos fazendeiros em projetos particulares de conservação,

ambiente acharam inútil, até mesmo perigoso dar mais

em seguida diferentes fazendas em projetos de ONGs

poderes e meios financeiros a estes atores. É, pois, contra

incitando a modificar certas práticas de produção. Neste

um muro de a priori da parte das grandes ONGs de defesa

contexto, a proposta de criar um “parque regional” confiado

do meio ambiente que um projeto bem mais audacioso de

visando envolver diretamente os criadores enquanto

deter-nos agora.

à comunidade foi considerado como um óvni, a iniciatitiva

PC nasceu no Pantanal – é sobre sua gênese que vamos

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 29



3.

A gênese do PRP: uma comunidade em crise à procura de aliados

A proposta de criação do Parque Regional do Pantanal

vontade comum de dois grandes grupos de interesse locais

marca uma etapa fundamental no discurso participativo da

preocupados em ocupar-se da ascensão potente dos

região. Ela implica a criação de um parque participativo em

novos atores regionais.

fazendeiros e apoia, em lugar de proibir, as diferentes

Este objetivo de duplo bloqueio, na base da iniciativa,

as chaves aos autóctones”16, deixando-lhes conceber os

tornar-se o principal promotor e criador do projeto do PRP.

grande escala, fundado na adesão voluntária dos

produções econômicas. Oficialmente, trata-se de “entregar

cruzou rapidamente o caminho de um outro ator, que ia

projetos econômicos, sociais e ambientais que lhes

Trata-se da cooperação francesa – que compreende vários

convêm em vez de incitá-los a unirem-se a um projeto

órgãos como a Embaixada da França, o Ministério das

comunidade, como as ONGs internacionais.

Ambiente Mundial (FFEM) e vários órgãos públicos

Nós voltaremos à gênese deste projeto de PC, aos agentes

modelo de gestão do meio ambiente a propor, o dos

pronto, concebido por atores não pertencentes à

Relações Exteriores, o Fundo Francês para o meio

técnicos e de pesquisa. Os atores estrangeiros tinham um

da origem do projeto (iniciadores, promotores e os que

“parques naturais regionais”. Este modelo que compreende

concebem) e a significação estratégica da iniciativa como

a cooperação do Estado com os produtores locais,

base. Veremos que os principais iniciadores são um grupo

em vários países. Esta vontade de exportar a « expertise

sobre a configuração dos interesses que lhe servem de

apareceu na França nos finais dos anos 60 e já teve mérito

de fazendeiros criadores, de certo padrão, preocupados

francesa » e exercer uma influência intelectual no Pantanal

com a influência crescente de ONGs pregando a

– uma zona natural tendo uma importância mundial –

conservação, mas também concorrentes econômicos na

harmoniza-se com as preocupações dos fazendeiros e

região. Os fazendeiros tradicionais do Pantanal tiveram o

autoridades locais, que procuravam introduzir uma nova

ascensão potente de atores ameaçando sua sobrevivência

partidários da conservação e produtores.

região, em nome do meio ambiente.

É baseado nesta convergência de interesses – e aliança

sentimento de ter que dar uma resposta coletiva à

iniciativa capaz de modificar o equilíbrio dos poderes entre

econômica e a própria legitimidade de sua presença na

original – que o projeto do PRP nasceu e obteve

Um senador e o Estado de Mato Grosso do Sul fizeram

importantes

igualmente parte dos inciadores do projeto do PRP. Estes rural

importante

composto

de

nacionais

e

internacionais,

compreendendo a EU e contactada pelos peritos

atores políticos responderam, assim, às ansiedades de um eleitorado

fundos,

franceses.

grandes

fazendeiros. Eles viam nisso um meio de conter a

influência das forças a favor da conservação, para a qual o Pantanal se assemelhava mais a um bem público mundial

que a uma ferramenta de “desenvolvimento nacional”. A

16 Para retomar a expressão de um de nossos interlocutores

iniciativa inicial do projeto do PRP nasceu, portanto, da

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3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados

3.1 A crise dos criadores e a vontade de conter os concorrentes e protetores do meio ambiente A crise econômica e de legitimidade que atinge os

demasiado pequenas. O nível de inundações impede

criadores, instalados há muito tempo nesta zona úmida e

frequentemente os animais de deitar-se para descansar:

que praticam principalmente a criação de gado, é a base da

alguns morrem de cansaço mesmo tendo suficientemente

inciativa do PRP. Cada vez mais, estes vêem no

forragem para os alimentar. Se os criadores de grandes

aparecimento de dois tipos de atores, uma ameaça direta a

fazendas e de grandes rebanhos podem permitir-se ter

concorrentes econômicos dos criadores tradicionais:

beira da falência. O tamanho e o número de fazendas no

sua presença durável na região. Os primeiros são os

grandes perdas, os pequenos criadores encontram-se à

agricultores dos planaltos que cercam o Pantanal e que

Pantanal são, pois, variáveis chaves para compreender a

outros concorrentes se encontram diretamente no lugar.

fundamentais sobre esta questão.

beneficiam de uma produtividade bem superior. Mas,

história desta comunidade. Wilcox (1992) propõe dados

Um número crescente de recém-chegados – que não

pertencem à comunidade tradicional pantaneira – compram

Por volta do final do século XIX, somente algumas fazendas

fazendas em falência e importam modos de produção mais

isoladas se desenvolveram no Pantanal, de modo que a

ressentida pelos fazendeiros tradicionais, é a das ONGs

metade do século XX, contudo, a criação de gado não

intensivos exigindo mais capital. A segunda ameaça

pressão do homeme continuava fraca. Durante a primeira

parou de desenvolver-se17 mesmo se tenha sido

pregando a conservação, apoiadas pelas redes e fundos

necessário esperar os meados dos anos 50 para se poder

internacionais para desenvolver um método “bola de

criar cavalos, por causa das doenças locais especificas – o

cristal” da conservação que culpabiliza os criadores em

que afetou seriamente a expansão da indústria da criação.

nome do impacto negativo no meio ambiente. Nós vimos,

Este obstáculo acabou por desaparecer nos anos 60, com

várias grandes ONGs defendem e financiam uma visão

os progressos veterinários. A indústria da criação progrediu

estrita da conservação da biodiversidade na região, pondo

fortemente, assim como o número de imigrantes vindos

em questão a legitimidade da presença dos criadores.

instalar-se no pantanal, frequentemente através de redes

A crise econômica: as fazendas menores e o preço da

familiares. Enquanto o censo de 1920 efetuado no Brasil

carne de vaca em recuo estimulam a concorrência

enumerava quase 100 fazendas em todo o Pantanal, para

cerca de 700 000 cabeças de gado, no início dos anos 70,

As raízes da crise da produtividade da criação de gado

contava-se mais de 3 500 fazendas para mais de 5 milhões

tradicional no pantanal faz parte da própria história dessa

de cabeças de gado.

em declínio constante, que alcançam frequentemente um

As fazendas, bastante importantes no início, foram cada

vem do aumento da população e da imigração, aliada à

famílias e a instalação de imigrantes18. Atualmente, um

comunidade. Elas estão ligadas ao tamanho das fazendas,

vez mais fragmentadas com o aumento do tamanho das

nível inferior à sobrevivência econômica. Este fenômeno

número crescente de fazendas encontra-se aquém do

regra tradicional de partilha do patrimônio em partes iguais

entre os herdeiros machos.

17 A Nhecolândia, uma das grandes sub-regiões do Pantanal, é particularmente representativa desta evolução.No início do século XX, ela não tinha mais do que uma dezena de famílias que criavam algumas 100 000 cabeças de gado. A partir de 1920, já se enumerava mais de 80 fazendas para quase 200 000 animais. Na metade dos anos 50, as fazendas ultrapassaram a cententa, para uma população humana de 6 000 pessoas. 18 No final do século XIX, as maiores fazendas do Pantanal compreendiam entre 100 000e

As condições ambientais e técnicas da região fazem com

que seja extremamente difícil e arriscado criar gado em uma

fazenda relativamente pequena. Em época de chuva,

400 000 hectares, uma só ultrapassava um milhão de hectares. Nos anos 20, a metade ainda ultrapassaram 100 000 hectares – mas nos anos 50, as fazendas estavam em torno de 8 000 a 65 000 hectares. Nos anos 70, 70% de todas as fazendas do Pantanal tinham entre 1 000 e 10 000 hectares, contra somente 11% (ou seja, cerca de 400 fazendas) estendendo-se ainda em 100 000 hectares.

quando a maior parte das terras são inundadas é preciso poder encontrar pastos em quantidade suficiente. Basta um

ano difícil com grandes enchentes para arruinar as fazendas

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 32


3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados

limite de viabilidade econômica com, segundo nossos

preocupações dos fazendeiros que o projeto do PRP iria

interlocutores, superfícies médias de 7 000 hectares. Em

nascer.

consequência, muitos cederam a agricultores externos que

A crise de legitimidade: a crítica dos defensores do

chegam com mais capitais e técnicas intensivas – o que aumenta a produtividade, mas, aparentemente, prejudica

meio ambiente e a tomada de contrôle receada

fazendeiros de longa data, que ainda são majoritários,

Praticamente 80% das terras desflorestadas na Amazônia

nem estado de esprito necessários para sobreviverem

gado (Greenpeace, 2009). Imagina-se desde então a

mais o meio ambiente. Esta evolução é mal vivida pelos

entre 1996 e 2006 servem doravante de pastos para o

ainda mais porque eles não têm nem meios financeiros

reputação dos criadores entre os defensores do meio

economicamente. As entrevistas com os fazendeiros

ambiente trabalhando no Brasil... Mesmo se a situação não

mostram realmente este sentimento de “ameaça”:

tenha sido tão grave no Pantanal, vimos (seção 2) que a desconfiança persiste entre as ONGs e os fazendeiros da

- não conheço um só fazendeiro (no Pantanal) que esteja

região: a ideia de uma colaboração só começou há pouco

contente em ver chegar essas pessoas, mesmo se cada vez mais sejam obrigados a lhes vender suas terras

tempo – e lentamente – enquanto a visão de uma

- Os (novos fazendeiros) não sabem nada sobre nós, sobre

grandes ONGs, que militam em especial pela compra e o

modo de vida que praticamos aqui depois gerações.

proteção particulares.

conservação estrita continua a influenciar a ação das

encerramento das terras integradas a dispositivos de

nossa história e sobre o Pantanal e não querem respeitar o

Tudo isto significa que os fazendeiros se sentem

- Eles não deveriam estar aqui, mas as regras do mercado

ameaçados pelas ONGs ecologistas – um sentimento que

dominam. Tudo isso é muito triste

era ainda mais forte há 15 anos, quando o projeto do PRP nasceu. As entrevistas realizadas em 2008 revelam ainda

- Como quer que concorramos com gente que tem dez

estas tensões, mesmo se um numero crescente de

vezes mais meios que nós?

projetos de ONGs sejam realizados em um espírito de

Os criadores de gado do Pantanal também foram vítimas

maior cooperação. Várias ONGs ainda lutam abertamente

das imprevisões do preço da carne bovina nos mercados

contra a ideia mesma de criação sustentável no Pantanal.

mundiais. No início, a indústria era próspera graças às

Assim, em 2006, a CI publicou um relatório (Barcellos

nacional e internacional. Os preços continuaram elevados

desenvolvimento dos pastos e da agricultura já tinha

exportações de carne salgada e seca para os mercados

Harris, 2006) segundo o qual a desflorestação ligada ao

até a segunda guerra mundial, mas a atividade começou a

destruído 17% da vegetação nativa do Pantanal

declinar com o aparecimento das técnicas de refrigeração,

(25 000km²). Seus autores afirmam que se ele continuar neste ritmo, a desflorestaçao levará ao desaparecimento

que reduziram a demanda de carne em conserva (Junk et

daqui a 45 anos de toda a vegetação original da região19.

de Cunha, 2005). O Pós-guerra mostrou-se difícil para os

Estas análises alimentam a desconfiança entre ONGs e

criadores, que tiveram em seguida duas décadas de

fazendeiros. Grande número destes últimos receia

aumento contínuo de preços, até o início dos anos 70 nos

quais a queda brutal dos preços mundiais pôs fim a esta

abertamente que no final, as ONGs

manteve até meados dos anos 90, reforçado no Brasil, por

... invadam o Pantanal [e os] ponham para fora

expansão (Edelman, 1992, p. 195). Este fenômeno se

episódios recorrentes da febre aftosa que impediram as

exportações para vários mercados internacionais e, em especial, a EU. E neste contexto de perspectivas

19 A taxa de degradação do meio ambiente é de 2,3% por ano.

econômicas morosas e tendo como pano de fundo as

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 33


3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados

A hostilidade é tangível e vários fazendeiros que

para permitir aos fazendeiros reforçar sua posição e concluir

encontramos têm o sentimento de que as grandes ONGs

com sucesso suas atividades em presença de concorrentes

da região estejam repletas

e defensores do meio ambiente de peso. Uma vontade de

duplo bloqueio orienta, então, a criação do projeto. Esta preocupação encontrou em seguida, um modelo estrangeiro

[...] de gente vinda do estrangeiro, com salários de 5 000

de gestão do meio ambiente: o princípio de “parque natural

dólares por mês e que pensam poder [nos] dizer o que

regional” implementado na França. Uma aliança foi,

temos de fazer!

portanto, travada entre os fazendeiros e o governo

É neste contexto perturbado que o projeto do PRP nasceu

3.2

estrangeiro, contente em exportar um modelo nacional.

O aliado: um investidor estrangeiro oferecendo um modelo de gestão diferente

A França orgulha-se de seu passado de gestão do meio

pequenas indústrias e o setor do turismo preservando os

(setores nos quais este país tem algumas das maiores

populações em relação ao meio ambiente... receava-se

ambiente. Isto é válido para a água e o tratamento do lixo

recursos naturais e culturais e sensibilizando as

empresas do mundo), mas também para seu sistema de

produzir uma série de políticas setoriais desconectadas e

dispositivo vem do conceito de “parque natural regional”,

tempo, contudo, o modelo do parque regional impôs-se nas

produtores locais, que se comprometem em respeitar

desafios socioeconômicos complexos. Hoje, a França tem

áreas protegidas. Um dos aspectos originais deste

em conflitos, mais ou menos rotuladas de “verde”. Com o

que está baseado inteiramente num contrato entre e com

regiões francesas de recursos naturais frágeis e de

certas regras. A França elaborou este modelo em

mais de 40 parques naturais regionais, que cobrem cerca

meados dos anos 60 e desde aquela época o tem

de 10% do território nacional, quatro milhões de hectares,

exportado para vários países (Rússia, Polônia, Portugal,

duas comunas e concernem cerca de 2,2 milhões de

Bélgica, Chile ou Vietnã). Este dispositivo francês de

pessoas.

cooperação internacional apóia esta difusão através de financiamentos e programas de pesquisa. Foi o caso no

Estes parques são uma forma particular de associação –

Brasil, onde as características de um “parque regional”

os sindicatos mistos. Eles reúnem representantes eleitos

criadores

profissionais da região visada. No caso do Pantanal, uma

se adaptavam bem às preocupações estratégicas dos de

gado

do

Pantanal:

reforçar

como

sua

produtividade e manter os defensores do meio ambiente

representações

de

ONGs

e

associações

associação deste tipo foi criada em 2001: trata-se do

longe.

Instituto do Parque do Pantanal (IPP), ao qual voltaremos mais em detalhe na sequência deste texto.

A própria ideia de « parque regional » vem de 1966, logo

que a delegação do Desenvolvimento do Território pediu ao

Os sindicatos mistos têm por primeira responsabilidade

governo francês para criar um novo instrumento integrado

decidir sobre o funcionamento das equipes técnicas do

baseado na participação de seus atores locais. Os campos

parque. Cada parque se dotou verdadeiramente de sua

de gestão econômica, social e ambiental nas zonas rurais,

parque e as orientações políticas fixadas na Carta do

tinham um “êxodo” contínuo que as autoridades tentaram

própria Carta do território que define os princípios e as

erradicar por um novo instrumento de PC. O decreto

ações a serem respeitadas e que compromete os

instituindo os parques regionais é assinado pelo Governo

parceiros públicos e particulares. Estas Cartas devem

em 1967 – sem acabar totalmente com as dúvidas

ser aprovadas pelo Ministério das Finanças e do Meio

envolvendo um modo de gestão que devia implicar e

Ambiente - mas elas são o fruto de longas negociações

satisfazer tudo ao mesmo tempo: artesãos, agricultores,

entre as diferentes partes diretamente interessadas

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 34


3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados

(cinco anos em média). Uma das forças desta

das negociações com as autoridades nacionais e outras

através do qual os parceiros se comprometem a respeitar

públicas.

abordagem reside no fato de que a Carta é um “contrato”

instituições para a elaboração de textos de leis e políticas

os princípios negociados juntos. A obrigação moral de se

comprometer com este “contrato” é reforçada pela

O modelo de “parque regional” começou a ser exportado

necessidade coletiva de obter financiamentos regulares

para o Brasil através de uma série de contatos entre a

da parte das autoridades nacionais, e em consequência,

Embaixada da França e o Estado de Mato Grosso do Sul,

de apresentar periodicamente os resultados obtidos. Os

que abriga o essencial do Pantanal e onde este modelo de

o renovamento de sua Carta no Ministério do Meio

assinado que consagra oficialmente a cooperação técnica

parques regionais também devem obter a cada dez anos,

gestão suscitou muito interesse. Em 1996, um acordo é

Ambiente, o que dá lugar a balanços aprofundados.

entre a FPNRF e o Governo de Mato Grosso do Sul. A

FPNRF ver-se confiada a responsabilidade de levantar

Os parques regionais franceses são federados por uma

fundos internacionais para criar o “parque regional do

entidade central, a Federação dos Parques Naturais da

Pantanal” (PRP).

França (FPNRF). Esta está encarregada de gerir os programas de parceria, garantir a troca de experiências e

A seção seguinte mostrará como a ligação com os

também representar globalmente os parques no momento

influência essencial na concepção do projeto.

favorecer a capitalização dos conhecimentos. Ela deve

investidores estrangeiros foi travada e analisará sua

3.3 O PRP: uma iniciativa local influenciada pelos peritos estrangeiros e criticada pelas ONGs Como mostra Charnoz (2009b), a maior parte dos

muito tempo na região do Rio Negro do Pantanal. Ele

e estatais, quer sejam iniciadores, promotores ou

começa a procurar um apoio maior no seio da federação

projetos de PC é lançada por agentes internos, externos

envolve-se, então, fortemente com os criadores locais e

criadores. Ora, como certos atores dominam outros,

brasileira, eventualmente nos parceiros estrangeiros.

pode-se em geral classificar os projetos segundo sua “proveniência” (“do interior”, “do nível superior” ou do

É neste momento que a influência estrangeira começa a

“exterior”da comunidade). Às vezes as influências iniciais

desenvolver-se. A relação tecida com a França não deve

interesses bem compreendidos. É o que se passará com

longa tradição de contatos com diferentes peritos técnicos

são equilibradas, do fato de uma convergência de

nada ao acaso. O Estado de Mato Grosso do Sul tem uma

o PRP.

franceses em questões de planejamento econômico. Era bastante lógico que o doutor Canale estabelecesse um

Os iniciadores do projeto são antes de tudo atores

diálogo com a Embaixada da França em Brasília, que lhe

a sua criação vem da iniciativa de um homem político local,

regionais”. Com a ajuda do embaixador e o apoio da

pertencendo à comunidade local. As dinâmicas conduzindo

apresentou a experiência francesa de “parques naturais

o doutor Mendes Canale, senador a procura de medidas

Embaixada do Brasil em Paris, contatos foram feitos com a

inovadoras para ajudar os criadores do Pantanal a

FPNRF (supra). De 1986 a 1995, reuniões técnicas são

crescente.

pela Fundação Estadual de Meio Ambiente do Pantanal

melhorar seu destino e acalmar o descontentamento

organizadas entre a FPNRF e o Estado local, representado

(FEMAP). Técnicos da FPNRF vão ao Brasil enquanto

A partir de meados dos anos 80, o doutor Canale encontra

missões envolvendo FEMAP e vários fazendeiros são

regularmente um grupo de fazendeiros instalados desde

organizadas em Paris.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 35


3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados

Um pedido oficial de assistência técnica é formulado pelo

As missões na Europa deveriam ter levado representantes

Estado de Mato Grosso do Sul em 1995. Um acordo é

dos fazendeiros, mas vários de nossos interlocutores

assinado em 1996 que instaura uma cooperação entre a

indicaram que eram frequentemente membros de uma

Fundação do Pantanal (representando os interesses do

mesma família que participavam da viagem e não

voluntário remunerado pela cooperação francesa é

interessadas. Para um de nossos interlocutores, “era a

Estado) e a FPNRF (a agência técnica francesa). Um

representantes

rapidamente nomeado para se consagrar em tempo parceiro”,

ao

ponto

de

recuperar

diferentes

partes

diretamente

ocasião certa para fazer turismo em família na Europa!”

completo ao projeto. A FPNRF torna-se rapidamente o “principal

das

a

A dinâmica a favor da criação de um “parque regional” foi

responsabilidade de levantar fundos internacionais com o

alvo de uma crítica passiva da maioria das ONGs

objetivo de criar um “parque regional” no Pantanal. Não

internacionais envolvidas na região. Oficialmente, elas não

o que dá aos peritos franceses uma real autoridade, mas,

obrigado a criar uma nova categoria jurídica na SNUC. Se

somente o projeto é desenvolvido na França durante anos,

apreciavam o fato de que este “parque regional” fosse

além disso, estes peritos são diretamente responsáveis

acreditamos, contudo, em alguns de nossos interlocutores,

ter uma influência crucial nos detalhes do projeto.

a sua desconfiança em relação aos fazendeiros locais, que

pela sua apresentação aos investidores, o que lhes permite

a causa real desta reticência está ligada – mais uma vez – estavam longe de serem considerados como “amigos do

Um “projeto preparatório para a criação do PRP” é então

meio ambiente”. Aqui está o que diz o membro de uma

elaborado, o Apoio à Criação do Parque Natural Regional do

Pantanal,

por

um

custo

total

avaliado

ONG local:

a

1 022 550 ECUS. Ele é submetido à Comissão Europeia e

Atenção! Certas ONGs trabalham hoje com os criadores de

Exteriores (DGIB). A UE concede-lhe uma contribuição de

eles têm um interesse comum pelo Pantanal, suas

necessários. Dois outros parceiros dividem-se o resto, o

ecologistas não consideram os fazendeiros como seus

aprovado em 1998 pela Direção Geral das Relações

gado, mas isto não significa que elas apreciem. Mesmo se

776 000 ECUS – ou seja mais de três quartos dos fundos

motivações são radicalmente opostas. [...]. As ONGs

Estado de Mato Grosso do Sul e a cooperação francesa.

aliados, longe disso. O mesmo para os fazendeiros.

Vemos aí que este projeto é essencialmente concebido por

peritos estrageiros e que além disso, é financiado em

Ou ainda:

de 1998, a implementação do Projeto de Apoio começa,

Por que as ONGs apreciariam um projeto que dá novos

o Estado de Mato Grosso do Sul e a FPNRF. Através desta

elas queriam poder melhor controlar ou ver simplesmente

grande parte por investidores estrangeiros. Em dezembro com a assinatura de um novo acordo de cooperação entre

meios materiais e de expressão às mesmas pessoas que

convenção, a FPNRF fornece um perito, o francês, que

desaparecer do quadro? [...] Não vemos bem como [elas]

intervém como “conselheiro técnico principal”. Esta pessoa

poderiam apoiar este projeto.

forma uma equipe técnica e deve observar atentamente o

desenrolar do projeto. Sua influência ao longo do projeto foi

Para um outro, as ONGs têm simplesmente medo de

regularmente sublinhada pelas pessoas questionadas.

perder sua posição dominante no palco da gestão do meio

ambiente com projetos próximos do PRP:

No que diz respeito à “participação comunitária” no próprio

conceito do projeto, as entrevistas feitas em 2008,

Um projeto comunitário como este do Parque Regional do

fazendeiros e segundo o qual só um grupo limitado de

ecologistas não pertecem à comunidade [...] O PRP não

França e discussões com peritos brasileiros e franceses.

no Pantanal. Muito pelo contrário. De fato parece bastante

enfatizaram um sentimento amplamente partilhado pelos

Pantanal é concebido para os nativos e as grandes ONGs

notáveis locais foi implicado – no momento das viagens à

tinha nenhuma intenção de dar mais peso à CI ou ao WWF

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 36


3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados

ilógico que as ONGs ecologistas critiquem a iniciativa do

inflexibilidade da legislação, enquanto elas mesmas agem

PRP pela simples razão de que ele levaria a uma

3.4

extamente neste sentido em vários contextos.

Conclusão

Enquanto o impulso inicial a favor do PRP – um

um projeto participativo confiado a uma comunidade e às

programa de PC – vem da comunidade (e mais

estruturas institucionais que daí resultam. Além disso, no

precisamente, de algumas famílias privilegiadas), as

caso do PRP, os franceses tinham um modelo específico

responsabilidades técnicas e financeiras acabaram por

de gestão a propor – que parecia em grande parte

ser amplamente partilhadas entre o Brasil e os peritos

responder às preocupações dos criadores locais no

franceses. Como na área protegida marinha da Soufrière

centro da gestão do meio ambiente – em lugar de exclui-

(SMMA) em Sainte- Lucie, Martinica (Charnoz, 2009c),

los – mas além disso, ele abre a perspectiva de projetos

um parceiro estrangeiro impôs-se como guia para formar

socioeconômicos de apoio.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 37



4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico

A proposta de criação de um parque natural regional no

desencadeia também efeitos de poder estrutural. A

« tradições », consideradas como o melhor meio de

focaliza-se exclusivamente nos criadores de gado e

Pantanal apoia-se no discurso específico em torno das

definição da “comunidade tradicional” no projeto do PRP

« salvar o Pantanal » de “evoluções indesejáveis”. A ideia

fazendeiros: outros grupos importantes da comunidade

durante séculos o protetor do Pantanal, dado seu impacto

trabalhadores

central é a seguinte: a “criação tradicional de gado” foi

pantaneira são deixados de lado, como os pescadores e os

“fraco até mesmo positivo” no meio ambiente. A

agrícolas.

Os

insvestidores

não

se

interessaram por esses grupos, enquanto até mesmo o

manutenção desta atividade é, portanto uma garantia para

projeto do PRP devia ser – aos olhos da UE, por exemplo

o futuro do Pantanal. Alguns afirmam mesmo que o

– exemplar em termos de PC. O discurso sobre a tradição

terras deixadas em pousio – uma visão radicalmente

aos concorrentes econômicos, mas também a grupos

abandono da criação seria prejudicial à biodiversidade das

teve, portanto, efeitos de bloqueio de encontro às ONGs e

oposta a dos partidários da conservação, que pregam

vivendo no pantanal, mas tendo um estatuto inferior.

particulares). Os partidários do PRP lançaram-se em um

estratégico primordial, este novo nível de bloqueio

“reservas estritras” (como os parques nacionais e reservas

Mesmo se não se tratasse, neste caso, de um objetivo

vasto empreendimento discursivo para dotar os criadores

contribuiu para mater o estatuto socioeconômico global da

de uma identidade positiva, até mesmo “romântica”, em

região.

harmonia com a natureza.

Interessamo-nos pelos efeitos de poder produtivo do discurso

Em um documento precedente (Charnoz, 2009c), nòs

na “comunidade tradicional”, antes de abordar seus efeitos de

discurso ambiental em Saint-Lucie: a mercantilização e

conceituais de análise do discurso já utilizados (Charnoz,

deste tipo são observáveis: os efeitos antipolíticos e os

Milliken (1999) e Weldes (1999), nós mostraremos como “os

identificamos dois efeitos das estruturas de poder no

poder estrutural. Assim, recorremos a instrumentos

autorregulamentação. No Pantanal, dois outros efeitos

2009a e 2009b). Conforme a abordagem eleborada por

efeitos pró-tradição (para uma definição, ver Charnoz

sistemas de significação” são aplicados e definem certas

de conhecimentos considerados como adquiridos e vão no

Nós veremos igualmente a “produção de sentido comum”

bloqueio dos partidários da conservação e o dos novos

com os corpus de conhecimentos preexistentes e aceitos) e

[2009b]). Juntos estes efeitos redefinem o corpus legítimo

categorias sociais beneficiando de posições privilegiadas.

sentido dos objetivos estratégicos dos fazendeiros: o

através de dois processos de articulação (de um discurso

atores econômicos.

a interpelação (de um grupo de interesse particular pelo discurso). A análise desenvolvida das próximas subseções é

Mas isto não para por aí. Este discurso sobre as “tradições”

retomada no quadro 1.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 39


4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico

4.1

Os criadores de gado, protetores do meio ambiente

Todo exercício de “poder produtivo” implica em redefinir a

Um discuso assimilando os criadores a “protetores” foi,

privilegiada em um dado contexto. Como o poder

favor do projeto PRP – reunindo fazendeiros, autoridades

identidade de certos atores para lhes dar uma posição mais

todavia desenvolvido pelos membros da aliança original a

estrutural, esse poder funciona a partir de um corpus de

políticas locais, mas também investidores e peritos

surgimento do PRP apoiou-se precisamente num discurso

que tinha sido reconhecido durante anos, antes da

conhecimentos

considerados tipo,

que

adquiridos.

adotava

uma

O

franceses. Este discurso não era totalmente novo, visto

visão

chegada dos partidários da conservação do meio ambiente

meio ambiente. Este discurso implicava um “sistema de

preocupados diante da chegada de novos atores agrícolas

protetores tradicionais” do Pantanal. Nós veremos como

tempo a “salvação pela tradição”. Paralelamente, as

produtivo

deste

como

profundamente oposta a dos partidários da conservação do

na região, que lhe tinha retirado o peso. Cada vez mais

significação” fazendo dos “criadores de gado” “guardas e

este

“sentido

comum”

diferente

foi

e industriais, os criadores locais pregavam desde muito

sustentado.

autoridades locais sempre defenderam a criação de gado,

Mostraremos em seguida seu caráter contingente

considerando que esta não perturba particularmente o

adotando uma perspectiva de criação de gado a mais longo

meio ambiente. Para elas (e esta opinião prevalece ainda

prazo no Pantanal – uma abordagem antes ausente dos

nas entrevistas e documentos de política consultados em

discursos e dos documentos ligados ao projeto do PRP.

2008), esta atividade ancestral se desenvolveu em

Enfim, descreveremos as implicações políticas deste

“harmonia com o meio ambiente” ou, no mínimo, sem

discurso produtivo, dando uma atenção especial aos

acarretar graves problemas para o Pantanal. A produção

efeitos antipoliticos e pró tradição. Nossa análise não deve,

deste “sentido comum” era, então, mais uma “reativação”

contudo levar a pensar que a ajuda internacional aos

criadores

locais

era

injustificada.

As

que uma pura criação, endereçada aos investidores

agências

estrangeiros para ajudar a legitimar sua contribuição ao

levava em consideração o impacto ambiental bem mais

indicaram também que a aceitação rápida do discurso

internacionais adotaram uma abordagem pragmática que

desenvolvimento local. Várias pessoas interrogadas

agressivo dos novos atores e, portanto, decidiram apoiar

pelos investidores estrangeiros foi favorecida por uma

comparação, mostravam-se como melhores protetores do

conceito de “parque regional”

os criadores instalados lá há muito tempo que, em

vontade a priori de promover a difusão internacional de seu

meio ambiente.

O poder de interpelação do discurso era, portanto

Fazer dos criadores de gado protetores do Pantanal

importante para os membros da aliança original, na medida

Desde o final dos anos 90, as ONGs ecologistas

Quanto a sua articulação com as opiniões preexistentes, é

em que ele servia de base a seus interesses profundos.

trabalhando no Pantanal acabaram por admitir a

preciso lembrar que a opinião pública brasileira tem uma

necessidade de aproximarem-se dos criadores (ver seção

visão mais positiva dos criadores pantaneiros. Prova disto,

2.3). Não se trata, contudo, de fazer dos fazendeiros locais

o imenso sucesso popular de uma novela “ecolo-

os protetores preferidos (até mesmo eficazes) do Pantanal,

romântica” transmitida na televisão em horário nobre no

mas mais parceiros inevitáveis, na medida em que eles

início dos anos 90. Para Wilcox (1992, p. 233), esta novela

possuem a quase totalidade da região. O clima de tensão e

desconfiança

entre

criadores

e

ONGs

“oferecia as imagens espetaculares de uma natureza

nunca

soberba, testemunho de atores sobre ‘a volta às origens’ e

desapareceu e rapidamente se transformou, nós vimos, em

um retrato romântico da vida do criador de gado”. Esta

descontentamento das ONGs em relação ao projeto PRP.

novela desenvolveu e conservou a ideia segundo a qual os

“cowboys do Pantanal” são gente simpática que salvou a

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 40


4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico

região de um crescimento desenfreado20.

ocupação humana particular, dominada há 200 anos por

É curioso constatar, como Wilcox (ibid.), como um setor

menos sem cercas e uma exploração mínima das terras. A

degradação massiva de uma região brasileira (a Amazônia)

entre fatores ambientais e socioeconômicos de maneira

de uma região (o Pantanal). Para os defensores desta

atividade viável – até mesmo indispensável – para o meio

uma criação extensiva – com estabulação livre, mais ou

econômico (a criação de gado) ao qual atribuímos a

conservação do pantanal é fruto de uma interação propícia

pôde ser considerado como o salvador do meio ambiente

que a criação de gado possa ser assimilada a uma

opinião, contudo, as condições ambientais, ainda

ambiente do Pantanal. O quadro 2 resume os principais

relativamente sãs do Pantanal, se explicam por esta

argumentos sustentando esta opinião.

Quadro 2. A fraqueza do impacto ambiental dos criadores tradicionais: os argumentos-chave - o Pantanal é constituído de vastos prados naturais que não exigem um grande desmatamento como o realizado na Amazônia: o gado pode pastar em toda liberdade numa terra preservada.

- As grandes cheias durante as estações das chuvas limitam a quantidade de bovinos criados numa zona dada em função das pastagens

que continuarão acessíveis enquanto as terras estiverem inundadas.

- Até os anos 60, as tentativas de racionalização da produção eram raras, mesmo do ponto de vista das medidas relativamente simples

como a reprodução seletiva ou cercas entre propriedades. Isto vem em parte do respeito às visões e hábitos tradicionalistas antigos, mas

é também consequência dos desafios tecnológicos e de obrigações ligadas ao isolamento próprio à natureza do Pantanal. Os custos de

transporte e os rendimentos oferecidos pelos mercados de carne não permitem investir de maneira importante.

- Em consequência, a criação no Pantanal está baseada ainda hoje essencialmente nos pastos e ciclos hidrológicos naturais, no respeito

ao ritmo e à natureza idiossincrática da região.

- A natureza da região limita a si mesma as formas de atividades podendo sobreviver com uma contribuição de capital mínima. As inunda-

ções sazonais (rios e chuvas) facilitam o crescimento das plantas nutritivas, oferecendo condições ideais para a criação de gado, mas limitando por isso mesmo a extensão desta atividade, e, portanto, seu impacto.

Contudo, o argumento mais forte a favor deste discurso

novos proprietários de fazendas tendem a instalar cercas

(2004) ou WCS (2009) – segundo a qual os novos

dos médios e grandes mamíferos e pássaros que vivem em

vem da noção – que partilha ONGs como as Earthwatch

de arame farpado a seis fios, o que incomoda a passagem

agricultores que compram terras ao fazendeiros em

húmus, enquanto os arames farpados tradicionais de

falência importam práticas produtivas particularmente

quatro fios permitem aos animais circularem. Nas culturas

nefastas para o meio ambiente. Para que as fazendas

utilizadas de maneira intensiva, a erosão dos solos, a

menores continuem viáveis, estes criadores aumentam as

degradação da qualidade da água, a queimada incotrolada

zonas de pasto procedendo a cortes totais nas florestas

dos pastos e os conflitos com a fauna são mais frequentes.

nativas. Eles plantam também espécies exóticas (como a

braruiária) para aumentar a produtividade durante a

estação seca : a substituição de pastos e de florestas

nativas por essências exóticas invasivas concerne

doravante mais 10 000 Km². A sobrepastagem nas zonas

20 Um outro nível de articulação pode também ser manifestado, como o sugeriu o membro de uma ONG local, ligado ao fato de que os investidores ocidentais tenham, às vezes, uma visão romântica das “comunidades tradicionais” e suas relações supostamente “harmoniosas” com o meio ambiente.

limitadas provoca uma concorrência com os animais locais

que pastam e perturba a biodiversidade. Além disso, os

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 41


4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico

Consciente destes argumentos, os responsáveis do projeto

solos e a sedimentação dos cursos de água provocando uma

defendem a manutenção dos criadores tradicionais de

perda de biodiversidade na fauna e na flora.

portanto, uma outra orientação mais econômica, em torno

O número de animais pastando em uma mesma zona é

gado. O discurso sobre a “salvação pela tradição” tomou,

da viabilidade das culturas tradicionais – um tema que, nós

igualmente problemático. À primeira vista, o tamanho do

veremos, está no centro do projeto do PRP.

Pantanal e a renovação anual dos prados, parecia garantir

a ausência de todo o problema de sobrepasto. Mas o

Uma análise histórica da criação extensiva de gado O

impacto

ambiental

da

criação

extensiva

Pantanal não é uniforme, em termos de terreno ou exploração

é

humana.

Certas

zonas

vítimas

da

sobrepastagem são doravante cobertas por ervas

indiscutivelmente fraco em relação às novas práticas

daninhas. A concentração de animais esgotou partes

caso dizer que ele é e foi “insignificante”. Nós propomos

depois das cheias e criando dificuldades para a

introduzidas no Pantanal – mas não se pode em nenhum

inteiras do território, reduzindo sua aptidão a regenerar-se

aqui elementos que permitirão apreciar em que medida a

sobrevivência dos pastos locais. Isto é especialmente

visão de uma criação tradicional tendo somente pouco

verdadeiro em torno das culturas principais nas quais anos

impacto no meio ambiente é na verdade enviesada. Por

de calcadura e dejeção animais tornaram o solo

isso, nós apoiamo-nos nos relatórios de Wilcox (1992) e

impermeável. No passado, as águas das enchentes

durante nosso trabalho no terreno por observações diretas

mais dificuldade em penetrar no solo. Os pontos de água

Seidl e al. (2001) cujas conclusões foram confirmadas

subiam para lugares mais próximos de vida; doravante têm

e uma série de entrevistas com fazendeiros, peões e

naturais

membros de ONGs.

tornam-se

impraticáveis,

suas

margens

lamacentas sendo perigosas. É preciso desde então encontrar outras fontes de água potável – um problema

Para começar, os criadores praticam tradicionalmente a

que pudemos observar várias vezes durante nosso

técnica da queimada durante a estação seca para “limpar”

trabalho de terreno.

novos brotos. As primeiras queimadas são nos prados,

Até os anos 70, os criadores do Pantanal recorriam pouco

seca e que o vento sopra, elas ganham frequentemente as

1910 e só ganharam o Mato Grosso no início dos anos 20.

a vegetação não consumida pelo gado e favorecer os

mas dado que os espaços são abertos, que a vegetação é

aos prados artificiais. Eles continuaram raros no Brasil até

savanas, zonas arborizadas e florestas. Elas podem

Mas onde os pastos exóticos foram introduzidos, eles

também destruir partes inteiras do habitat da fauna. O fogo contribui

igualmente

para

o

endurecimento

tiveram uma influência profunda no ecosistema local – um

e

processo doravante reforçado pelos “novos agricultores”. A

empobrecimento do solo, assim como o deslocamento progressivo

da

vegetação

nativa,

substituída

presença histórica dos criadores de gado também levou ao

por

aparecimento de espécies animais exóticas. Os porcos

gramíneas e espécies lenhosas resistentes ao fogo. A

selvagens, introduzidos em 1800, continuam a destruir os

longo prazo, estas espécies invasivas tomam o lugar de

solos e a vegetação, disputando com os animais nativos

pastos de qualidade.

territórios e outros recursos. Em um grande estudo

Desde o início dos anos 70, os criadores têm limpado as

biodiversidade aquática dos lagos nos sítios em contato

empírico a grande escala, Eaton (2006) comparou a

terras e plantado os pastos nas zonas mais elevadas

com a criação e sítios não tocados pela criação no Sul do

disponíveis, a fim de aumentar as superfícies disponíveis

Pantanal. Apesar de, digamos, uma fraca intensidade de

para o gado durante a estação das chuvas. Estas práticas,

criação tradicional, ele pôde observar grandes falhas na

bastante divulgadas, são consideradas como bastante

composição, riqueza, abundância das espécies e na

favoráveis de um ponto de vista econômico, mas acarretaram

biomassa para os microvertebrados como para os

uma série de desmatamentos, aumentaram a erosão dos

pássaros – uma constatação que deixa pouca dúvida sobre

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 42


4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico

4.2

A delimitação estreita da « comunidade tradicional »

a profundidade do impacto da criação no bioma local.

distanciados de uma iniciativa de PC de tamanha

A noção de “poder estrutural” reenvia para o reforço da

do PRP tenha consistido em “regenerar e apoiar a

importância. Mesmo se uma das razões de ser do projeto comunidade pantaneira”22, este ignorou, contudo, os

posição social privilegiada de certos atores implicados com relações binárias ou hierárquicas antigas21. Este poder se

subgrupos importantes desta comunidade.

algumas partes diretamente interessadas das discussões

A criação de um “sentido comum” em torno do discurso

negociação.

sua

manifesta em especial através dos discursos que excluem

privilegiando os fazendeiros baseava-se fortemente em

sobre as questões particulares ou dos espaços de

e

historiadores célebres que trabalharam abundantemente

comunidades de pescadores e trabalhadores agrícolas

sobre sua história no Pantanal, contribuindo para

trabalhando nas fazendas (os famosos peões). Um

popularizá-la. Daí esta reivindicação típica dos fazendeiros

“sistema de significação” específico, centrado nas

sobre sua “relação especial”, sobre uma apropriação

fazendas, foi de fato aplicado ao longo do projeto para “comunidade

amplo

famílias de fazendeiros têm em suas categorias

levados em conta – é o caso especialmente das

a

sentimento

Neste sentido, notamos também que várias grandes

no Pantanal foram mal consultados ou nem mesmo

localizar

um

“legitimidade histórica”, impressa em sua cultura comum.

surpreendente constatar que importantes atores vivendo

e

com

espontaneamente partilhado pelos fazendeiros: o de sua

No projeto do PRP e suas nebulosas discursivas, é

identificar

articulação

histórica e moral do Pantanal, bastante presente em nossas entrevistas:

pantaneira”.

Evidentemente, esta exclusão pelo poder estrutural é o

resultado de uma delimitação errônea dos atores “podendo

- o Pantanal não é somente um lugar onde vivemos e

falar em nome da comunidade”, dos que “são os mais

trabalhamos. É o que somos

Para ser justo e defender a posição do investidor francês,

- durante gerações, nascemos e morremos aqui. [...] O

‘tradicionais’ da região”, que “incarnam o Pantanal”, etc.

é preciso lembrar que a PC não era o ponto de entrada

Pantanal faz parte de mim como eu faço parte do Pantanal.

desta abordagem, visto que se partia mais sobre um conceito de “parque regional”, como os criados na França,

- alguns novos agricultores vêm comprar terras de meus

impede que o projeto tenha sido abundantemente

Esta gente não faz parte do Pantanal, ela não o conhece,

que destacam a cooperação dos municípios. Isso não

amigos que já não têm meios [...] Isto me preocupa muito.

apresentado pelo investidor europeu, as autoridades locais

ela não o ama – porque isto leva gerações.

brasileiras, os fazendeiros e os assistentes técnicos

De fato, numerosas famílias de fazendeiros estão

estrangeiros, como um caso exemplar de “participação

instaladas na região desde o fim do século XVIII (quadro 3).

comunitária” (ver, por exemplo, Delorme [2004]).

Esta anterioridade permite compreender que eles autoidentificam-se com a “comunidade tradicional”.

No seio do próprio projeto do PRP, os fazendeiros

criadores souberam posicionar-se como representantes principais e legítimos da “comunidade do Pantanal” aos

olhos das autoridades locais e parceiros estrangeiros,

capturando, assim, esse certificado de qualidade em seu

benefício. Assim, atores que teriam merecido atenção (e

21 Ver seção 2.2.

22 Entrevista com um funcionário de Mato Grosso do Sul.

eventualmente um apoio financeiro) encontraram-se

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 43


4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico

Quadro 3. A presença europeia no Pantanal: nota histórica Como lembra Earthwatch (2004), em seguida Corrêa (1999), os exploradores europeus (jesuítas e padres espanhóis) chegaram ao Pantanal

em meados do século XVI. Os portugueses, a procura de escravos e metais preciosos, começaram a explorar a região mais tarde, no sécu-

lo XVII. O ouro é descoberto perto de Cuiabá, no Norte do Pantanal, em 1719 e um certo número de fortes e cidades – como Cuiabá,

Cárceres, Coimbra, Poconé e Miranda – são fundadas por volta do século XVIII. Em seguida, o esgotamento das minas de ouro leva as

famílias de mercadores a pedir concessões de terras, para lá criar culturas bovinas. Leais ao rei de Portugal, elas são recompensadas com

privilégios econômicos e políticos mas são vítimas de motins antiportugueses no distrito de Cuiabá depois da independência, em 1822. Mais

tarde, a guerra com o Paraguai provoca destruições na região, as tropas dos dois beligerantes requisitam rebanhos e fazendas, forçando

as populações a fugir. Depois da guerra, os primeiros habitantes e suas famílias reganham a região, reconstituem seus estoques introduzindo novas cabeças de gado ou recuperando bovinos que se tornaram selvagens (Wilcox, 1992). A criação é em seguida relançada pelas

exportações de carne seca, até 1945 quando a atividade vai declinar com a chegada das téccnicas de refrigeração. Desde então, a vida

dos criadores de gado é em função das variações do preço da carne. Ora, outros grupos podem também pretender fazer parte

comunidades já não se identificam em absoluto com os índios

integrante da comunidade tradicional do Pantanal, a

autóctones e formam, portanto uma população diferente.

toda a zona ao longo dos rios. As margens são feitas de

A definição da “comunidade tradicional” utilizada no projeto

podem ser detidos pelos fazendeiros, mesmo quando eles

agrícolas. Lembremos que as fazendas são mundos

começar pelas populações de pescadores instaladas em

espaços públicos reconhecidos como tal pela lei e que não

do PRP excluiu também milhares de trabalhadores

se encontram em suas propriedades. A maior parte destas

praticamente autônomos compostos de dois tipos de

pequenas comunidades vive ao longo dos principais rios

população: de um lado, os fazendeiros e suas famílias (os

são às vezes qualificados de “pescadores profissionais”,

suas famílias). Em geral, os peões o são há gerações

(Paraguai, Taquari, Negro, etc.). Estes grupos tradicionais

proprietários), e, de outro, os empregados (os peões e

visto que sua subsistência está totalmente ligada à pesca.

como os fazendeiros. Eles estão na origem da maior parte

Muitos se deslocam de um lugar a outro em função das

do folclore local, com suas tradições e mitos orais.

estações. Longe das práticas industriais, sua pesca

Enquanto os fazendeiros residem frequentemente nas

volume de pesca anual é bem inferior ao da insdústria da

nas terras, cuidando do gado. Eles constituem um grupo

artesanal tem um só impacto limitado no meio ambiente. O

cidades próximas do Pantanal, os peões vivem todo o ano

“pesca esportiva”, que leva cada ano um número crescente

bastante especial e essencial no seio da comunidade

de turistas ao Pantanal. Os pescadores praticam também a

pantaneira

agricultura limitada na medida em que as terras que

e

normalmente,

exploram não lhes pertencem.

são,

ser

portanto,

a

principal

eles

que

deveriam,

encarnação

desta

comunidade. De fato são, sobretudo “a cultura e a ética” dos peões que foram enfatizadas pelos investidores

Estas políticas públicas locais desinteressam-se pelas

estrangeiros do PRP quando estes sublinhavam a

“harmonia entre o Homem e a natureza” no Pantanal23.

populações – que estão ausentes das narrações habituais

sobre a história do Pantanal. Como algumas de suas

Dada a importância dos peões na comunidade pantaneira

indígena dos Paiaguas, reputados por seus remadores. Mas a

estudamos, voltaremos a esta subcomunidade na última

e sua total ausência no vasto dispositivo de PC que

tradições mostram, elas eram originalmente ligadas à tribo

composição racial destes grupos se diversificou ao longo do

tempo: cada vez mais, mestiços e antigos trabalhadores

agrícolas, que decidiram parar de trabalhar para os

23 Este comentário nos é inspirado por nossas entrevistas com responsáveis do projeto e a

fazendeiros, fazem agora parte dele. Atualmente, estas

documentação que eles forneceram.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 44


4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico

seção. Uma análise de seu capital social permitirá, então

Para o Estado local, ainda é difícil tecnicamente, até

explicar por que sua voz tem sido tão pouco ouvida no

mesmo sensível politicamente, gerir e envolver os grupos

âmbito do PRP.

menos favorecidos do Pantanal – sobretudo em um

dispositivo que teria podido lhes permitir reivindicar

Vê-se, portanto, que o discurso sobre a “proteção do meio

grandes recursos. Quanto aos peritos estrangeiros, o

ambiente pela comunidade tradicional” foi construído

fato de não levarem em conta subgrupos mais frágeis

excluindo importantes subcomunidades. Esta produção

lhes permitiu aparentemente mais facilmente aplicar e

um processo de interpelação de potentes grupos de

mesmo se os índios autóctones, os pescadores e os

diferentes observadores locais sugerem na verdade que

solicitados para refletir sobre a iniciativa do PRP que

enviesada de “sentido comum” também foi originada por

exportar seus conhecimentos e modelos. Desde então,

interesse. Os dados recolhidos durante as entrevistas com

peões vivem no Pantanal há gerações, eles não foram

esta exclusão se adaptava também aos interesses das

apesar de tudo foi promovida – no Brasil e no resto do

autoridades locais implicadas no PRP.

4.3

mundo – como um caso exemplar.

Conclusão

Nós vimos que o discurso sobre a “comunidade

Confrontados com esta realidade, os financiadores

perfeitamente adaptado aos interesses estratégicos dos

contraste com novos atores, cujas atividades são mais

aliança original. Interessando-nos mais pela história

tradicionais. Um meio-termo devia ser encontrado na

tradicional” servindo de base ao projeto do PRP estava

adotaram uma abordagem pragmática destacando o

fazendeiros e das autoridades públicas compondo a

nefastas para o meio ambiente que as dos criadores

social e ambiental a longo prazo do Pantanal,

medida em que a conservação estrita era impossível

enfatizamos o caráter contingente deste discurso – assim

na

como a natureza de seus efeitos de poder produtivo e

região

particulares.

estrutural.

amplamente

detida

pelos

interesses

Examinando os efeitos de poder estrutural do discurso,

Examinando os efeitos de poder produtivo do discurso,

mostramos que os membros da aliança original só

mostramos que a relação entre criação de gado e meio

haviam dado pouca atenção aos outros membros

ambiente não era certamente estritamente harmoniosa, ao

“tradicionais” da comunidade pantaneira – em especial

contrário do que se pensava no discurso sobre a “salvação

aos pescadores e aos peões. No contexto do PRP, a

criação não é uma “parceria favorável” coexistindo com o

fazendeiros. Este exercício eficaz de “poder estrutural”

pela tradição”. Como mostra Wilcox (1992, p. 255), a

“comunidade tradicional” veio coincidir com a dos

meio ambiente. A chegada de “milhares de herbívoros

contribuiu

sobrevivência tiveram realmente um impacto profundo no

motivaram esta atitude são bastante evidentes: os

fauna local, a introdução de novas doenças, a modificação

não tinham vontade de partilhar as vantagens nem

vorazes” e os fatores econômicos indispensáveis a sua

para

reforçar

as

hierarquias

locais

predominantes há muito tempo. Os interesses que

meio ambiente, compreendendo a luta pelo espaço com a

fazendeiros eram os primeiros a beneficiarem do PRP e

progressiva da vegetação, a destruição dos habitats

mesmo

naturais, etc. A prática das queimadas e a instalação de

o

governo

da

futura

estrutura

de

PC.

Paralelamente, as autoridades locais não queriam se

cercas mas também a introdução de essências exóticas

preocupar com as subcomunidades mais pobres, difíceis

perturbaram os ecosistemas locais.

de alcançar e suscetíveis de ter reivindicações políticas.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 45


4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico

Quadro1. A « salvação pela tradição » os principais mecanismos dicursivos. Dois sistemaschave de significação

Definir os fazendeiros como a própria base da “comunidade tradicional”

Rescrever a história da « criação de gado » fazer da mesma uma atividade respeitadora do meio ambiente

Articulação com discursos preexistentes e aceitos por todos:

- os fazendeiros de ascendência europeia ocupam Produção de sentido comum

(como tornar o discurso “natural”)

habitualmente um lugar preeminente nos curtos textos

históricos consagrados ao Pantanal

Interpelação de potentes grupos de interesse:

Articulação com discursos preexistentes e aceitos por todos:

- a opinião pública brasileira tem uma melhor imagem dos criadores de gado do Pantanal que as ONGs

Interpelação de potentes grupos de interesse: - as autoridades locais sempre privilegiaram

- para as autoridades locais, é tecnicamente

claramente a criação mais que a conservação

difícil e politicamente sensível relecionar

-se com os subgrupos mais pobres do Pantanal

- para os peritos estrangeiros, é mais fácil

aplicar seus conhecimentos de « parques regionais »

considerando menos subgrupos mais pobres.

- se os criadores são definidos como

« compatíveis com o meio ambiente », os peritos estrangeiros têm mais facilidade em promover seu modelo de « parque

regional » que está baseado num trabalho com produtores

Efeitos de poder produtivo: Efeitos políticos

Efeito de poder estrutural: quase-invisibilidade no projeto do PRP dos grandes atores tradicionais do Pantanal –

especialmente os pescadores, índios e trabalhadores agrícolas

a) efeito pró tradição : bloqueamento dos atores econômicos « não tradicionais » e reforço da legitimidade dos atores econômicos « tradicionais »

b) efeito antipolítico:

- o « enverdecimento » dos criadores lhes permitiu obter fundos internacionais em nome do meio ambiente. Este resultado é particularmente surpreendente para os fundos concedidos pela UE

Reprodução do discurso

(como ocultar as

alternativas no discurso)

Opiniões alternativas ocultadas: os fazendeiros são somente um grupo dentre outros na comunidade;

o PRP, enquanto dispositivo exemplar de PC, deveria ter

Opinião alternativa ocultada: o impacto histórico dos criadores

de gado no Pantanal foi claramente negativo

integrado os peões e os pescadores no momento de sua concepção e na estrutura de governo

A contingência do discurso pode ser demonstrada justapondo

os fatos subanalisados (história a longo prazo e análise social)

A contingência do discurso pode ser demonstrada por uma

análise histórica e ambiental a longo prazo

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 46


5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »

Nós examinamos aqui a primeira fase implementada do

Defesa do Pantanal), que, por existir há muito tempo, teria

controle social. Desta vez, a política de “bloqueamento”

atores – em particular os peritos estrangeiros e as

PRP e a maneira como a PC se tornou uma prática de

podido em seguida contrabalancear a influência de outros

atingiu os próprios fazendeiros, enfraquecendo sua associação

principal

pela

defesa

sistemática

autoridades locais. A este respeito, a “fabricação de

do

pluralismo” precipitada e artificial introduziu uma nova

famoso “projeto preparatório para a criação do PRP”

sobretudo, as elites locais mas também, através delas, a

“pluralismo” da parte dos parceiros estrangeiros. O

forma de controle e bloqueamento social que tocou,

(Apoio à Criação do PRP) é lançado em 1998 para

“organizar

e

mobilizar

a

população

local”.

comunidade de fazendeiros. Nós estimamos que este

Ele

processo colocou as marcas de uma supressão

compreende duas grandes partes: a criação rápida de

institucional dos fazendeiros – que ia rapidamente

toda uma série de novas organizações locais, que deve

concretizar-se no seio do parque “participativo”.

diversos projetos de desenvolvimento, que devem “atrair”

Nós começaremos por examinar o efeito de poder

« pluralizar » a sociedade civil local; e o lançamento de

os fazendeiros para que se unam a estas novas

produtivo do discurso sobre “pluralismo”. Este põe em

associações.

questão a influência e a legitimidade da associação de

fazendeiros, a SODEPAN, criando em marcha forçada toda

Como os peritos estrangeiros faziam questão de identificar

uma série de organizações. Mostraremos em seguida

as “melhores práticas de PC”, eles interessaram-se

como este processo foi alimentado pelo recurso a um

progressivamente pela (e implicaram-se diretamente)

poder penoso e os benefícios esperados de “projetos

“fixação da sociedade civil local”, sua “democratização” e

atrativos” para os que se uniriam a uma destas novas

“diversificação”. Este trabalho devia garantir a construção

associações. Finalmente, examinaremos o efeito de

de um parque participativo sob as bases sãs de uma PC

bloqueio deste « pluralismo artificial », a maneira como ele

inclusiva. Contudo, afirmamos que ele arruinou a realidade

reduziu o estatuto e o peso da comunidade dos fazendeiros

da PC, em especial sua intensidade (o grau de participação

no seio do PRP e como estas novas estruturas

ativa), desestabilizando a única associação de fazendeiros

fracassaram para criar

que funcionava corretamente, a SODEPAN (Sociedade de

5.1

na prática grupos de pressão

eficazes representando os fazendeiros.

Novas organizações põem em questão a associação de fazendeiros

Como explica Charnoz (2009b), o « poder produtivo »

forma de “poder produtivo” foi exercida pelos parceiros

manifesta-se através de novos discursos que redefinem

estrangeiros do PRP: estes elaboraram um discurso

os valores e os conhecimentos considerados como

potente sobre a necessidade de “pluralizar” a sociedade

de novos atores ou categorias. Estimamos que uma

da SODEPAN.

adquiridos, o que leva frequentemente ao reforço social

civil local, o que permitiu reduzir o estatuto e a influência

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 47


5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »

Antes de empreender o “trabalho preparatório” sobre a

adquiriu sua legitimidade e credibilidade desde esta

associação de defesa dos fazendeiros do pantanal, a

regulamentação internacional proibindo o comércio de

SODEPAN desenvolveu suas atividades em Mato Grosso e

parte das dificuldades de desenvolvimento dos habitantes

sociedade civil, só existia

na verdade, uma única

primeira batalha, ajudada pela adoção de uma nova

SODEPAN. Criada em 1985 em Campo Grande, a

peles de jacaré. Em seguida, vem interessar-se pela maior

em Mato Grosso do Sul, tornando-se o principal meio para

do Panatal e, em particular, pelas necessidades dos

origem a um problema de caça ilegal dos jacarés em terras

campo de ação, que se assemelha praticamente a um

os fazendeiros de defender causas comuns. Ela deve sua

criadores de gado. O quadro 4 mostra a extensão de seu

particulares, frequente em meados dos anos 80 e que

programa político para a região, mesmo se quase não dê atenção aos pescadores e aos índios.

levou a um recuo severo de sua população. A SODEPAN

Quadro 4 – Um programa para o Pantanal: a visão da SODEPAN Acesso ao crédito : redução das formalidades administrativas e aumento de apoio financeiro aos criadores de gado através do FCO (Fundo

Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste), um fundo público que é uma das primeiras fontes de financiamento para os fazendeiros.

Saúde animal:

Melhor apoio veterinário e melhor proteção dos produtores. Reorganização da IAGRO (Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal), a instituição pública encarregada destas questões. Melhores garantias através de mecanismos tais como o FEFA (Fundo Emergencial da Febre Aftosa), um fundo de urgência destinado a ajudar os produtores confrontados com episódios de febre aftosa.

Energia: finalização do programa « luz para todos » no Pantanal.

Meio ambiente: revitalização do rio Taquari, bloqueando os sedimentos provindo dos planaltos e criando represas para estabilizar o leito do rio. Procedimentos acelerados para conceder uma etiqueta verde às atividades agrícolas. Definição de períodos durante os quais o fogo

controlado é autorizado.

Pesquisa: desenvolver a pesquisa aplicada em institutos como a EMBRAPA e as universidades.

Políticas sociais: Garantir uma educação de base profissional no Pantanal, obtendo ajudas públicas duráveis para as escolas pantaneiras, em parceria com os agricultores (remuneração dos professores, construção e equipamento de novas salas de aula e novos abrigos

para os alunos). Criação de escolas públicas de agronomia (Escolas Rurais Estaduais) em lugares-chave, de maneira a otimizar a frequentação e a propor uma formação de nível de técnico agrícola. Programas de requalificação para os pescadores profissionais a fim de que possam tornar-se guias turísticos, artesãos ou assistentes para o meio ambiente.

Telecomunicações: instalação de antenas nos lugares-chave para assegurar uma cobertura de telefonia móvel completa.

Turismo: criação de uma ponte aérea entre Foz do Iguaçu e Bonito. Criação de uma companhia aérea regional equipada com pequenos

aparelhos (aviões monomotores de onze lugares) para transportar os turistas na região. Criação de linhas de ônibus diretas entre diferentes pontos de interesse. Revestimento dos 77 km de estrada entre os três centros turísticos de Mato Grosso (Porã Tip, Pretty e Corumbá) Transportes: criação ou reabilitação das estradas, pontes e transporte fluviais.

Fonte: SODEPAN (2009).

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5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »

Ao longo dos anos, a SODEPAN exerceu um lobby

funcionava bem para nós. Estávamos bastante ligados a

particularmente ativo junto ao Estado local para obter

esta organização.

melhores serviços públicos (infraestruturas de transporte

ou saúde), mas com resultados modestos. Ela também

- por que teríamos tido necessidade de quatro, cinco ou

relançou a pesquisa sobre a produção de gado em diferentes

universidades

locais

e

promoveu

seis associações para encontrar soluções entre nós? Era

o

realmente insensato.

reconhecimento da “cultura pantaneira” através de

iniciativas como o Dia do Homem Pantaneiro ou a

- os fazendeiros podem se falar quando querem. Eles

publicação de obras de referência sobre a hisitória local,

não têm realmente necessidade de uma instituição oficial

SODEPAN assegurou-se igualmente do apoio técnico e

só tem sentido quando devem realmente se confrontar,

frequentemente eecritos por membros de famílias locais. A

para fazê-lo – aliás, eles não gostam muito da ideia. Isto

financeiro de diferentes organizações brasileiras para

todos juntos, com um problema ou uma autoridade. Era

testar alternativas econômicas – como a produção de mel

a ideia da SODEPAN. Por que nos dividir em vários

ou o ecoturismo. Neste contexto, esta organização era o

grupos? Isto só nos enfraqueceria.

parceiro evidente, senão indispensável, do projeto do PRP e ela de fato foi associada à gênese: a organização tinha

Como explicou um de nossos interlocutores, a ideia de

franceses desde o início e contribuiu para organizar uma

provinha, sobretudo, da equipe estrangeira, mesmo se esta

representantes no momento das reuniões com peritos

“aumentar o pluralismo” através de novas associações

série de reuniões de informação sobre o PRP no Pantanal.

tivesse o apoio de certos ministros locais que contavam

aproveitar a situação para colocar em questão a influência

Todavia, nossas diferentes entrevistas com fazendeiros e

regional da SODEPAN. Mas, a preocupação dos técnicos

funcionários revelaram que, muito cedo, os peritos

franceses naõ só tinha inimigos na comunidade fazendeira.

a iniciativa para si”. A representatividade social da

chegada de novas associações. Algumas entrevistas com

estrangeiros temeram que a SODEPAN “recuperasse toda

Alguns habitantes viam, na verdade, com bons olhos a

associação foi colocada em questão pelos parceiros

pequenos fazendeiros nos permitiu reunir os seguintes

franceses. É bastante interessante ver que no momento de

comentários:

uma conferência sobre a experiência do PRP organizada

em 2004, os principais peritos estrangeiros não fizeram

- Eu estava feliz em saber que a SODEPAN não estaria

projeto:

“a SODEPAN isso” a “SODEPAN aquilo” e não ter a

nehuma alusão à SODEPAN e até afirmaram que antes do [...]

não

existia

nenhuma

instituição

representando seus habitantes24.

no

mais sozinha. Alguns dentre nós estavam fartos de ouvir:

impressão de ser representados pela organização.

território

- As pessoas queriam novas caras, mas não sabiam como fazer nem quem poderia fazê-lo.

Os parceiros franceses, portanto, apoiaram energicamente

a ideia de multiplicar as associações pantaneiras para

Para alguns fazendeiros, portanto, a liderança da

produção do Pantanal antes da criação do PRP. Esta

demais de sua comunidade – unicamente exercida por um

representar as diferentes sub-regiões e outros grupos de

SODEPAN só correspondia a uma representação estreita

proposta, que não era negociável para os franceses,

punhado de famílias importantes – “sempre as mesmas

suscitou reações mitigadas entre os fazendeiros, vários de

famílias”, como nos disse um dentre eles. Alguns

- muita gente, como eu, não via interesse em criar outras

24 Delorme (2004, pg. 7) : « Essa primeira fase foi fundamental […] porque num território [...]

nossos interlocutores fizeram comentários negativos:

associações. Tínhamos a SODEPAN e sabíamos que ela

não existia nenhuma instituição que representasse as pessoas”.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 49


5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »

pensavam também que a organização se tinha tornado

sociedade civil local do Panatanl. Segundo a metodologia

segmentos mais ricos da comunidade. Um fazendeiro

particular a FPNRF – a primeira etapa para a criação de um

demasiado formal e institucional, privilegiando os

implementada pelos participantes franceses – e em

modesto declarou assim, no momento da entrevista:

“parque participativo” é a da “preparação da sociedade

civil”, o que significava no caso do Pantanal, a

reestruturação integral de sua paisagem associativa.

[A SODEPAN] tornou-se uma sociedade fechada,

Vimos, esta era dominada pela SODEPAN, considerada

interessando-se somente pelos “grandes fazendeiros”. Os

por alguns habitantes e pela equipe francesa como

pequenos não contavam muito. [...] Assim, você deve pagar uma cotização anual para fazer parte, que não pára

insuficientemente representativa e pluralista.

estas tarifas eram fixadas de propósito para nos excluir.

Este aspecto crucial do projeto preliminar foi oficialmente

Estes ressentimentos vieram alimentar uma suspeição

local”. Ele destacava o discurso sobre o “pluralismo”, uma

de aumentar. Nós [os pequenos] começamos a pensar que

batizado “trabalho sobre a organização da população

crescente dos peritos estrangeiros que receavam que a

melhor organização das pessoas”, o aumento da

SODEPAN “quisesse recuperar o PRP e controlá-lo

representatividade das associações” e a “mobilização da

totalmente» 25. Eles consideravam a preeminência desta

população”. Através do trabalho de terreno da equipe

representativa” e “demasiado concentrada” como se lembra

de reuniões e discussões foram organizadas nas diferentes

organização como “nociva”, “antidemocrática”, “não

técnica conduzida pelo principal perito francês, uma série

um dos observadores da época. De outro modo e utilizando

sub-regiões do Pantanal, para difundir estas idéias. Este

consideravam que a SODEPAN era uma forma de CP

associações regionais:

o vocabulário definido por Charnoz (2009b), os franceses

processo levou à criação, em 1999-2000, de três novas

“estreita e concentrada nas elites”, só se interessando pelos

l’UNIPAN

fazendeiros mais ricos e excluindo numerosos subgrupos

(União dos Pantaneiros da Nhecolândia);

l’APANMERA

pertencendo à comunidade do Pantanal.

(Associação dos Pantaneiros da Margem

Esquerda do Rio Aquidauana);

A fase inicial da implementação do PRP – a saber, o

l’AVRN

criação do parque com previsão de quatro anos. Ela tinha

Duas outras associações regionais nasceram num

“projeto preliminar” – foi lançada em 1998 para preparar a

(Associação do Vale do Rio Negro).

segundo tempo:

como primeira responsabilidade delimitar um território (uma

área batizada “área de estudo” nos documentos do projeto)

para

no seio do qual os fazendeiros seriam convidados a se

para

unirem ao parque voluntariamente. Em seguida, tratava-se de redigir uma “Carta do parque” enunciando uma série de

a região do Rio Verde; a região de Taboco.

princípios de gestão e objetivos comuns que os membros

Estas cinco novas entidades tinham federado cerca de 250

lugar, era necessário decidir o estatuto jurídico, as fontes

sucesso (PRP, 2002, pg. 11). O processo também conduziu

fazendeiros em 2002 – um número considerado como um

do parque se comprometeriam em respeitar. Em terceiro

à criação de três associações setoriais:

de financiamento, o pessoal e competências da estrutura

de gestão. Finalmente, era necessário também pressionar

Uma

as autoridades federais e vender o conceito de “parque contrato

coletivo,

a

fim

de

melhor

preparar

consagrada ao desenvolvimento de instalações e

ciclos educativos adaptados ao Pantanal (APPEP,

regional” evidenciando o aspecto de “co-gestão” e o o

Associação de Parceiros, Pais e Professores da Escola

reconhecimento de uma nova categoria jurídica. Mas a

Pantaneira);

característica mais impressionante do projeto vem,

25 Este parágrafo contém passagens de duas entrevistas – com um fazendeiro e com um membro de uma ONG local.

sobretudo, da transformação, julgada indispensável, da

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 50


5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »

Uma

outra visando o desenvolvimento do ecoturismo

A

(APPAN, Associação de Pousadas Pantaneiras);

5.2

última centrada na criação de gado (GTE, Grupo de

Troca de Experiências).

Alimentar o processo com “projetos atrativos”

O “poder de pressão” toma forma não conflituosa logo que

“produtos da terra” – a saber, produtos rurais com grande

um tipo de comportamento esperado, evitando recorrer à

em voga nos parques regionais franceses para federar os

os recursos materiais servem para produzir incitações para

identidade local. Esta estratégia de produção está bastante

obrigação pura e simples. Mas certas incitações podem ser

produtores locais, dar certificados de qualidade de seus

obrigação – é o caso em especial, quando o fato de não

de qualidade comuns (e mais obrigatórias).

concorrentes. Estimamos que tal mecanismo serviu de

O VITPAN visava a produção de carne a partir de animais

âmbito do projeto preliminar do PRP. Desde que este

espessura de gordura bem determinada. Estes animais

tão imperiosas que se assemelham praticamente a uma

produtos e vendê-los sob um certificado único com normas

aproveitar disso se torna um entrave em relação aos base para a transformação da sociedade civil local no

de 10 meses a um ano, alcançando 180 quilos e tendo uma

começou, uma série de projetos de desenvolvimento foi

deviam ser criados em pastos naturais, sem antibióticos,

para as novas associações. Dado os benefícios que os

europeias de agricultura biológica. A comercialização e a

lançada que se mostrou crucial para atrair “voluntários”

com um mínimo de vacinas e segundo as normas

criadores podiam ter, eles suscitaram entusiasmo e

distribuição deviam ser revistas de cima a baixo – os

funcionaram como “iscas”, como o exprimiu um antigo

certificados de qualidade eram dados pelo MAPA,

aos diferentes projetos com a condição de que aderissem

empresa francesa26. Esta situação não convinha a todos

presidente da SODEPAN. As pessoas podiam associar-se

Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e uma

a uma das novas associações; o fato de pertencer à

os parceiros, alguns deles estimavam que os franceses

estas “iscas” mobilizaram mais de 250 fazendas a favor da

empresa. De qualquer modo, cada um esperava que o

hectares (FPNRF, 2002, p. 17). De fato, como vários de

produtividade de toda a região. Para se associar ao

impunham sem nenhuma obrigação técnica sua própria

SODEPAN, em especial, não era suficiente. Com o tempo,

VITPAN fosse estimular a utilização econômica e a

iniciativa do PRP, representando cerca de dois milhões de

projeto, os fazendeiros deviam aderir a uma das novas

nossos interlocutores lembraram, o famoso “trabalho de

associações regionais e comprometerem-se em respeitar

mobilização da população local” resumiu-se a um exercício

de propaganda para a criação do parque e suas diferentes

as diretivas técnicas. O VITPAN seduziu sobretudo os

representava para os fazendeiros a adesão aos diferentes

preocupados em aumentar rapidamente sua produtividade.

pequenos fazendeiros (menos de 10 000 hectares)

associações, destacando o interesse imediato que

Com a promessa de valor adicionado e melhoramento da

projetos piloto.

comercialização das carnes produzidas localmente, este

O projeto VITPAN

projeto alimentou nos “pequenos” a esperança de serem

“salvos”. No final de 2002, o vitelo pantaneiro alcançava um

O VITPAN (Vitelo pantaneiro) mostrou-se ser o projeto

preço de venda de 700 BRL por cabeça, ou seja, mais de

mais sedutor para os fazendeiros. Foi também o mais

duas vezes o preço de um animal normal. Cinco por cento

do preço de venda era transferido ao novo IPP (o

importante. A ideia principal consistia em desenvolver uma

mecanismo institucional administrando o parque regional)

nova linha de produtos cárneos (o vitelo pantaneiro) dotada

para seus gastos de funcionamento.

de uma identidade local visível e comercializável a um

preço superior às tarifas médias. Ainda neste sentido, o

26 Ecocert/Brasil.

conceito era importado da França, inspirado pelos

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 51


5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »

Se para os locais, o VITPAN era um projeto guia do PRP,

criando especialmente um site Internet e participando de

notamos que não era diretamente financiado pelos fundos estrangeiros,

mas

unicamente

pelo

Ministério

diferentes feiras profissionais. Mas o ecoturismo não é

da

realmente desenvolvido no Pantanal nos anos seguintes

100 000 EUR suplementares). Quanto ao apoio cientifico,

sempre pesadas (entre outros exemplos, o custo dos

Agricultura (80 000 EUR para a primeira fase, em seguida era

assegurado

pelas

universidades

locais

e

após sua criação, por causa das obrigações logísticas transportes) e fortes riscos do turismo americano29. Várias

a

EMBRAPA27. Vê-se neste sentido que as prioridades dos

pousadas fecharam desde aquela época e o número de

financiadores

em 2008, no momento em que nós efetuamos este trabalho

fazendeiros não eram exatamente as mesmas que a dos estrangeiros.

Enquanto

os

aderentes da APPAN tinha diminuído de mais da metada

primeiros

estavam, sobretudo preocupados com a viabilidade

de terreno.

econômica da produção de gado, os segundos procuravam

O programa procurava também diversificar a produção de

conduzi-los em direção a novas preocupações e

carne além do gado, a fim de “mercantilizar” a fauna e ter

atividades. Outros projetos, contudo, não diretamente ligados à produção de gado, nasceram com o apoio de

lucro. Tratava-se quer capturar espécies selvagens, quer

os habitantes. De qualquer modo, os peritos estrangeiros

brasileiros, o projeto piloto interessou-se pela produção de

criá-las. Com a ajuda de pesquisadores franceses e

fundos estrangeiros, mas interessaram claramente menos conseguiram fazer de maneira que a adesão a uma

porco monteiro, mobilizando rapidamente 21 fazendas. Ele

VITPAN.

capivara, o cateto, a ema e o jacaré. Novos circuitos

voltou-se também para outras espécies selvagens, como a

associação fosse uma condição para beneficiar do projeto

comerciais foram identificados para vender estes produtos.

Interesse e expectativas menores dos nativos: os

Mesmo se não podemos falar de fracasso, este projeto

Uma série de outras iniciativas foi empenhada no âmbito

espécies30. A criação em 2004-2005 de uma instalação

biodiversidade da região do Rio Negro do Pantanal”. Este

de diferentes espécies foi uma etapa decisiva – a estação

outros projetos

teve somente um sucesso limitado. Em 2008, a produção

era ainda bastante modesta e só dizia respeito a algumas

de um “projeto de ações piloto para a valorização da

último grito em matéria de tratamento de carnes provindo

programa beneficiava de um financiamento da cooperação

experimental

Campo

Grande

Meat

Technology

francesa (58%) e, em menor medida, da UE (14%) e de

Experimental Station, sob a responsabiliodade do CIRAD e

nossos interlocutores, o programa suscitou o interesse de

mesmo tempo comerciais e de pesquisa, mas ela levou ao

outros parceiros locais28 (28%). Como o explicou um de

financiada pelo FFEM. Até hoje ela serve para fins ao

“alguns fazendeiros mais originais voltados para o futuro

desenvolvimento sólido de uma insdústria da carne de

A primeira dimensão do programa dizia respeito à

A terceira parte deste programa visava reduzir os conflitos

para os pequenos fazendeiros. Isto conduziu à criação, em

único projeto ligado à proteção do meio ambiente. As

[...], que não tinham medo de se lançar no desconhecido”.

espécies selvagens.

promoção do ecoturismo, apresentada como alternativa

entre onças pintadas, onças pardas e criadores de gado. O

fevereiro de 2001, de uma associação setorial, a APPAN, que reunia no início 16 fazendas, cuja maior parte, já

27 A EMBRAPA (empresa Brasileira de Pesquisa Agrícola) é um órgão federal cuja missão é realizar pesquisas aplicadas e transferância de tecnologia em apoio ao desenvolvimento durável da agroindústria brasileira. 28 Mais precisamente, 44% do programa foram financiados pelo FFEM, 14% pelo CIRAD

funcionava como pousadas. Esta nova organização tem como objetivo federar as pousadas, propor ofertas

(rede francesa pública de pesquisa), 14% pela EU e 28% pela EMBRAPA e o estado local do Mato Grosso do Sul. 29 Sobretudo depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 – um fenômeno igualmente

turísticas coordenadas, vender mais amplamente a

destinação do Pantanal, assegurar a formação de guias e melhor

negociar

com

os

viajantes

nacionais

observado na Soufrière. 30 Uma das dificuldades encontradas vem do fato que o « consumo » de espécies selvagens

e

internacionais. Ela também apostou na comunicação,

no Brasil está amplamente assimilada à caça ilegal e tabu.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 52


5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »

perdas inflingidas por esses animais selvagens representa

de três a onze, recebendo praticamente 500 alunos. Sua

cerca de 0,2% do total de cabeças por ano, ou seja,

ação ganhou vários prêmios brasileiros. Mas a derrocada

centenas de cabeças por fazendeiro, o que torna

do PRP depois de 2005 perturbou gravemente este

numerosos fazendeiros bastante sensíveis a esta questão

movimento, que o Estado local decidiu não mais manter. A

foram apresentadas aos criadores para reduzir este

algumas funcionavam ainda no momento em que

daí uma caça ilegal da onça pintada. Algumas técnicas problema.

Profissionais

zimbabuanos

maior parte das escolas pantaneiras fechou, portanto, e só

também

efetuamos este trabalho de terreno.

asseguraram uma formação para os guias turísticos, a fim de ensinar-lhes a praticar uma “caça racional”. Este projeto

Globalmente, a mobilização dos fazendeiros a favor do

se mostrou ao mesmo tempo útil e frutuoso. A WCS ainda

parque regional através de projetos “atrativos” mostrou-se

trabalha sobre estas questões.

eficaz, mas se chocou com alguns obstáculos. Os

fazendeiros estavam bem mais interessados pelos

Enfim, o “projeto preliminar” do PRP comprometeu-se

aspectos produtivos do que pelos aspectos ambientais e

com ações educativas, apoiando-se na rede de escolas

sociais, como o lembra o primeiro presidente do PRP:

pantaneiras que tinha necessidade de ser reforçada. Projeto mais “social” de todos os projetos “atrativos”, ele

O projeto VITPAN era para os fazendeiros o projeto guia

motivados. Desde os meados dos anos 90, alguns

questões, como a conservação, o ecoturismo ou a

responder às necessidades das famlilias de seus

reuniões. Para uma reunião sobre o VITPAN, você chega a

suscitou o interesse de um punhado de fazendeiros já

[…] mas no momento em que nós quisemos abordar outras

fazendeiros têm criado escolas no Pantanal para melhor

educação, tivemos muitas dificuldades para organizar

trabalhadores e evitar um êxodo para a cidade no

mobilizar 40 a 50 pessoas enquanto para uma reunião

momento em que as crianças atingem a idade de serem

sobre a educação, a assitência reduzia-se a seis ou oito

escolarizadas. Os fazenderos encarregam-se de todas as

pessoas. O sucesso ainda era menor para o ecoturismo.

cargas de funcionamento, o Estado assumindo os salários dos professores nas mesmas base que em outro

Em 1998 e com a desvalorização progressiva da moeda

brasileira31, os preços da carne viram uma nova melhoria

lugar.

momentânea. Esta situação incitou fortemente os criadores a privilegiar a produção de carne, o que explica em parte a

A influência do “projeto preliminar” do PRP para a criação

importância constante dada pelo projeto do PRP a este

de novas associações teve importância na criação da

aspecto e a falta de entusiasmo dos participantes para

APPEP, em 1998. Até 2003 e com o apoio financeiro do

projetos mais “aventurosos”.

projeto do PRP, o número de escolas pantaneiras passou

5.3

O impacto da deslegitimação: uma PC em perda de intensidade e de inclusão

Em alguns anos, oito novas organizações saíram do nada,

dos fazendeiros a unirem-se a associações oficiais e a

reunindo centenas de fazendeiros – um resultado que a

comprometerem-se com um empreendimento coletivo. O

A situação parecia de fato excepcional em relação à falta

solidariedade entre eles. Tradicionalmente, os fazendeiros

equipe francesa reivindicava na época como um “sucesso”.

que não quer dizer, porém, que não praticam a

tradicional de espírito associativo na comunidade

ajudam-se, de maneira pontual, como o fazem os bons

fazendeira. A criação da SODEPAN, nos anos 80, já tinha

sido bastante notável neste sentido. Durante nosso

31 A moeda brasileira passou de 1,2 BRL para um dólar em dezembro de 1998 a uma taxa de 3,6/1 em dezembro de 2002. Durante este período, o preço do boi brasileiro dobrou na moeda local enquanto seu preço em dólar desabava.

trabalho de terreno, numerosas pessoas interrogadas sublinharam a reticência típica e profundamente enraizada

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 53


5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »

vizinhos – uma atitude que era vital no passado, dado o

autoridades locais – que até mesmo praticamente

isolamento geográfico de numerosas fazendas32. Por esta

abandonaram o projeto depois de 2005. Quanto a APPAN,

propensão e vontade de sentir-se “donos de seu reino”.

sem nenhuma ajuda do Estado nem mesmo um início de

razão, os fazendeiros do Pantanal têm também a

esta se esforçou para promover o ecoturismo no Pantanal

Eles querem preservar esta autonomia. Eles resmungam,

coordenação entre seus membros.

os quais devem tomar decisões. Em todas as áreas, a

No final, esse “pluralismo artificial” fez nascer associações

levar a bom termo juntos um projeto de importância. Como

e conchas vazias”, para retomar a expressão de um

portanto, quando têm um patrão, até mesmo parceiros com escolha é a deles. Esta comunidade não tem o hábito de

criadas demasiado rápido que pareciam muito com “anões

nos disse um dos fazendeiros:

membro de uma ONG. Não somente elas se mostraram ineficazes em termos de mobilzação e de organização das

populações locais em torno de diferentes causas, mas,

Aderir a uma cooperativa, uma associação ou a um

além disso, elas se mostraram prejudiciais para a

sindicato significa que você perde uma parte de sua

comunidade fazendeira em seu conjunto, destruindo o

liberdade.

estatuto e a legitimidade da única associação de

Para a mentalidade local, o aparecimento de oito novas

fazendeiros que funcionava bem, a saber a SODEPAN. Ao

associações era praticamente inconcebível. Esta “mania

contrário destas novas associações, a SODEPAN, não era

interlocutores, parecia até suspeita para os que conhecem

uma organização comunitária mesmo se, na prática,

associativa”,

como

o

qualificou

um

de

“uma experiência de laboratório”33 e se aparentava mais a

nossos

estivesse sob o controle das grandes famílias locais.

bem a aversão dos locais a todo compromisso coletivo.

Contudo, vimos, centenas de “voluntários” foram levados a unir-se a estas novas associações visto que era a única

O desejo de evitar que o projeto do PRP não fosse

oferecia

Mas

relativamente pouco representativa adaptava-se bem a

vontade de participar regularmente das reuniões ou definir

pelos técnicos estrangeiros. Todavia, ela fez a única

recuperado por uma única associação comunitária

maneira para eles de participar do projeto VITPAN, o qual a

perspectiva

de

ganhos

rápidos.

priori, à lógica das “melhores práticas PC” acompanhadas

rapidamente ficou claro que estes “voluntários” não tinham

organização bem implantada perder sua legitimidade

e representar juntos as espectativas de sua comunidade.

enquanto “voz dos fazendeiros”, assim com sua aptidão

Os anos seguintes iam revelar o lastimável funcionamento

para considerar o peso da comunidade fazendeira durante

vez menos pessoas para suas raras reuniões – ao

paralelamente organizações credíveis para efetivamente

as negociações com o Estado, por exemplo, sem criar

destas novas “associações regionais”, que atraiam cada

representar os interesses desta comunidade. Aqui, o modo

contrário da SODEPAN. Sua função de representação

de bloqueamento é o da deslegitimação.

perdeu-se, assim como sua aptidão a, por exemplo, coordenar

os

comportamentos

dos

fazendeiros,

Com essas « associações representativas » instaladas no

compreendendo nisto a sobrevivência do projeto VITPAN. Nenhuma dentre elas ganhou suficientemente influência

centro do sistema de governo do PRP, a PC era na prática

Estado. Como sugeriram várias pessoas interrogadas,

participação

para ter um poder de negociação no seio da comunidade

nossos interlocutores, que o processo abriu a via para uma

as duas associações culturais, apesar de sua extrema

32 A vida moderna na cidade (onde reside a maior parte dos fazendeiros) assim como as estradas e os automóveis mudaram em parte a situação. 33 Entrevista com um fazendeiro.

de fraca intensidade34 para os fazendeiros, sua

em qualquer área, especialmente para obter fundos do

sendo

mais

formal

ou,

no

máximo,

consultativa. Nós estamos de acordo, como para vários de

cada associação era “demasiado pequena e inexperiente” fazendeira ou fora dela. Esta observação vale também para

especificidade. Assim, a APPEP teve de administrar seu

34 Segundo a definição dada na seção 4.2.3.

programa educativo sem obter um apoio suficiente das

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 54


5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »

recuperação do projeto PRP por outros atores influentes –

fazendeiros o centro da “comunidade tradicional”. Esta

um fenômeno que devia manifestar-se ulteriormente, como

situação se concretizou enquanto que os criadores do

sentimento que sua marginalização era um “complô”,

em matéria de PC. Comentando este trabalho, o principal

veremos na seção seguinte. Alguns fazendeiros têm até o

projeto afirmavam terem tido recurso às melhores práticas

previsto desde o início. Como o diz um dentre eles:

perito estrangeiro do PRP indicou que sua equipe tinha

começado por recensear todas as pessoas vivendo e

trabalhando na região, de maneira a garantir a integração

Os políticos queriam enfraquecer a SODEPAN para tomar

tão ampla como possível dos atores sociais no dispositivo.

o controle do parque e fazer disso um instrumento a sua

disposição.

Para garantir a participação, é necessario saber quem

Outro observador vem fortalecer esta tese do “complô” da

vive no local e o que fazem. De fato, desde a primeira

parte dos técnicos estrangeiros:

fase do projeto, nós demos um diagnóstico institucional

para saber quem vivia na região e quais eram suas

atividades35.

Os estrangeiros e o Estado destruíram nossa comunidade

com uma demagogie contínua [...] Eles queriam nos

Por essa razão, as novas organizações não associaram

marginalizar de uma maneira ou de outra a fim de terem as

alguns dos grandes grupos vivendo e trabalhando na área

mãos livres.

prevista para o parque. Os trabalhadores agrícolas e os pescadores, em especial, nunca foram mobilizados, até

Não somente o processo de “pluralização” ocasionou uma

mesmo contatados para definir uma visão comum. O número

PC de fraca intensidade no parque participativo – visto que

limitado de subgrupos comunitários implicados no “processo

ele enfraqueceu desde o início a voz dos fazendeiros –

de pluralização” transpôs o grau estreito de inclusão da PC

mas, além disso endossou seu medíocre grau de inclusão

do discurso “tradicionalista” em prática institucional.

já presente no discurso sobre as “tradições” que faziam dos

5.4

Conclusão

Nós vimos que a perícia estrangeira tinha pesado no

suficientes quatro anos para destruir a influência da

“projeto preliminar” de maneira fundamental e que não era

SODEPAN sem por essa razão conseguir impor as novas

necessariamente conforme à exigência das populações

associações fantasmas. Entretanto, este “pluralismo

locais: o destaque foi sobretudo a obrigação de começar

artificial” abraçou a ideia de uma comunidade local

por “fixar a sociedade civil local”, de pluralizá-la em lugar

exclusivamente centrada nos fazendeiros, deixando de

de construir o PRP em instituições comunitárias existentes.

lado os outros grupos sociais presentes no Pantanal. Tudo

Esta atitude era provavelmente louvável do ponto de vista

isso se voltou contra o princípio próprio de PC que se

do discurso geral sobre a PC, mas, assim como o “inferno

tornou, como sempre, um instrumento propício a um

mostrou prejudicial para os próprios fazendeiros. Ele

inclusivo.

está cheio de boas intenções”, este “projeto preliminar” se

controle e um bloqueio sociais e não um modo de governo

colocou em questão a legitimidade, e, por conseguinte a

influência da única associação de fazendeiros digna deste nome, a SODEPAN, que teria podido em seguida

neutralizar alguns atores. A curto prazo, o “projeto

preparatório” reduziu sobretudo a liderança e a capacidade

35 Delorme (2004, pg. 6): « para conseguir a participação é necessário saber quais são as pessoas que estão vivendo nesse lugar e o que elas estão fazendo. Foi feito, no primeiro momemnto, na primeira fase do prjeto, um diagnóstico institucional para saber quem eram as pessoas que viviam lá e o que elas estavam fazendo”.

dos fazendeiros de resistir às forças não comunitárias para

a gestão do parque que ia em breve nascer. Foram

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 55


5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »

Como nós veremos, a SODEPAN conseguiu preservar

fazendeiros de perderem rapidamente o controle de “seu

certa influência nos primeiros momentos de funcionamento

parque”.

o primeiro presidente do parque. Mas isso não impede os

seguinte.

do parque, visto que seu presidente se tornou naturalmente

O

processo

de

recuperação

política

e

desapossamento que se seguiu é estudado na seção

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 56


6.

O poder institucional em ação

Nós examinaremos a evolução do parque natural regional

de fato marcada pela presença contínua de peritos

em sua instituição central, o IPP. Esta instituição é

“projeto preliminar” e depois da criação oficial do PRP. Estes

do Pantanal a fim de comparar a teoria e a prática do poder

estrangeiros que jamais desapareceram, mesmo no final do

considerada como uma “formação de poder” (para uma

técnicos ficaram lá, ultrapassando amplamente seu papel de

definição ver Charnoz [2009b]) que reúne diferentes atores

“animadores” dotados de um forte poder institucional do fato

locais, nacionais e internacionais visando partilhar uma

de suas relações estreitas com os investidores .

série de responsabilidades. Assim, nós nos interessaremos pelo “poder institucional” e pela capacidade, viável, destes

Em terceiro lugar, identificaremos um processos paralelo

diferentes atores de explorar esta instituição.

de « recuperação política » ativa cuja origem fazemos remontar a 1999, pouco depois do lançamento do “projeto

Nós veremos primeiro que a constituição jurídica do parque

preliminar”. Através de diferentes canais formais e

instaurava um sistema de co-gestão na qual as decisões

informais de poder publico, um punhado de políticos locais

deviam ser tomadas ao mesmo tempo pelos fazendeiros e

começou a exercer uma influência direta crescente na

das forças era claramente favorável aos fazendeiros locais,

impuseram – a nomeação de várias pessoas ao mesmo

diferentes níveis do poder brasileiro. No papel, o equilíbrio

estrutura da IPP. Eles, “sugeriram” especialmente – e

visto que o IPP devia “deixá-los dirigir” e garantir um real

tempo nas instâncias dirigentes do IPP e na equipe técnica.

de PC. A este respeito, o IPP era a incarnação do discurso

relação aos membros do parque. Além disso, eles

tradição » e dava prioridade às necessidades da

“recuperação política” do IPP ocasionou uma série de erros

grau de inclusão, de alcance e de intensidade em matéria

Esses novos responsáveis eram pouco devedores em

fundador da aliança original, que pregava a « salvação pela

defendiam uma ordem do dia bastante obscura. Esta

“comunidade local” (seção 7.4).

e irregularidades de gestão que acabaram por provocar a falência do parque.

Em seguida, mostraremos como as práticas institucionais

levaram a destituir os fazendeiros de sua autoridade e a

Finalmente, mostraremos que esta derrocada foi acelerada

estrangeiros ocupavam um lugar central. Para nós, trata-se

presidente para o parque – um artista pantaneiro conhecido

que ele é menos o resultado de uma vontade deliberada de

explorar a notoriedade para ganhar novamente o controle

que da inércia da gestão regularmente combinada com a

controle político, levando à supressão total da comunidade

fazer emergir uma “formação de poder” na qual os atores

e não retardada pela eleição, em abril de 2003, de um novo

de um processo “passivo” e não “ativo”, porque estimamos

em todo o país e de quem os fazendeiros esperavam

desapossar as populações locais de suas prerrogativas do

da situação. Na verdade, esta eleição abriu as veias do

influência dos atores estrangeiros. A governância da IPP foi

local.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 57


6. O poder institucional em ação

6.1 Uma PC altamente inclusiva, ampla e intensa: o compromisso fundador de um « dispositivo de gestão compartilhada » Em 2 de agosto de 2002, o Estado de Mato Grosso do

sociedade civil. O decreto estipulava explicitamente que:

Sul criava em seu território uma nova categoria jurídica para a proteção do meio ambiente, a AEPA (Área

A área especial de proteção do meio ambiente [deve ser]

assinado pelo governador36 consagra imediatamente a

participativa.

Especial de Proteção Ambiental). O mesmo decreto

inteiramente

existência desta categoria criando o “parque natural

regional do Pantanal”. Em relação ao quadro jurídico

gerida

de

maneira

democrática

e

O PRP mostrou-se, portanto, como uma “inciativa conjunta”

brasileiro – o sistema SNUC – a AEPA é revolucionária

reunindo o Estado e as partes diretamente interessadas

de vários pontos de vista.

através

de

um

dispositivo

de

co-gestão

(gestão

compartilhada). Cinco municípios foram integrados

Primeiramente, ao contrário da maior parte das categorias

igualmente: Aquidauna, Corguinho, Miranda, Rio Negro e

SNUC, a AEPA não baseia sua proteção do meio ambiente

Rio Verde de Mato Grosso.

sua promoção. Ela não acarreta, portanto, a retirada de

Enfim,

Ela procura mais reforçar sua presença e instaurar um tipo

livremente aderir ou não. Este aspecto é particularmente

em uma limitação das atividades humanas, mas mais em

direitos de propriedade e de pagamento de indenização.

a AEPA é

definida

como

um

dispositivo

exclusivamente voluntário ao qual os fazendeiros podem

de desenvolvimento mais sustentável. Como o exprime

inovador na paisagem jurídica brasileira, tomando para si o

oficialmente o decreto fundador, o objetivo do PRP consiste

discurso sobre a PC. Por conseguinte, o território do PRP

em:

não seria necessariamente contínuo visto que ele

representava o total das terras dos fazendeiros que teriam escolhido aderir.

[…] manter a população pantaneira que exerce uma

atividade de produção no Pantanal ao mesmo tempo preservando seu equilíbrio econômico, social e ecológico;

Alguns estados da federação brasileira já tinham defendido

humano e natural da comunidade.

ambiente, diferente do quadro padrão do SNUC. O Estado

novas categorias jurídicas para a conservação do meio

[…] basear seu desenvolvimento econômico no patrimônio

de Rondônia também criou duas outras classes, a das

A AEPA tinha como objetivo específico de:

“florestas públicas destinadas à extração” e a das “florestas públicas destinadas à proteção sustentável” autorizando novas práticas produtivas nas áreas protegidas. Mas

[…] demonstrar a viabilidade da criação extensiva de gado.

nenhum Estado foi mais longe que o de Mato Grosso do

Tudo isso provava o apego à nova construção do

Sul para tentar confiar o controle aos produtores locais com

discurso sobre « a salvação pela tradição », analisada

a adaptação do conceito francês de “parque natural

anteriormente, e cuja existência tinha como objetivo

regional”. Mesmo se se fala de “área protegida” para o

quo.

fazendeiros – afora a verificação do respeito às leis

reforçar a comunidade fazendeira e preservar o statu

PRP, não se tratava de interferir na gestão ambiental dos

habituais. Além disso, o PRP queria mais implicar os atores

A segunda característica importante desta nova categoria

vem da natureza participativa. A gestão da AEPA devia ser

feita baseada na partilha implicando três níveis de governo do

Brasil:

o

Governo

Federal,

o

Estado

local

36 Decreto n° 10.906, Estado do Mato Grosso do Sul.

(compreendendo municípios) e as organizações locais da

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 58


6. O poder institucional em ação

locais do que os parques naturais franceses na medida em

recentemente criadas; um representante da SODEPAN;

iniciativa enquanto na França, ela cabe às municipalidades

parque; um representante de cada um dos municípios

que os fazendeiros eram os principais parceiros desta

todos os fazendeiros diretamente interessados pelo

implicados39; um representante do governo do Mato

rurais.

Grosso do Sul; um representante do governador e um

Nesta base, um “território de estudo” foi definido, e

representante do “sindicato regional dos trabalhadores

correspondia à superfície máxima do parque, que cobria

agrícolas”. A assembleia geral incarnava, portanto, o

quatro sub-regiões do Pantanal. Estas escolhas foram

espírito de co-gestão do PRP. Mesmo os trabalhadores

realizadas, a priori, pela equipe técnica a fim de conceder

agrícolas, apenas evocados no processo até então, deviam

ao parque uma “coerência e uma diversidade ecológicas”

ser representados. Mas a composição da assembleia

assim como o explica os documentos do projeto. Este

enfatizava fortemente os fazendeiros, representados ao

plano previa uma possível extensão do parque de 5

mesmo tempo a título coletivo de maneira individual.

milhões de hectares para uma população potencial de

O segundo mecanismo de governância do IPP era

14 000 pessoas – o que teria sem dúvida feito disto a área protegida mais vasta do mundo. O essencial desse espaço

garantido pelo Conselho de Administração, bem mais

3000 a 50 000 hectares) praticando sobretudo a criação

Conselho devia supervisionar e aprovar o orçamento, a

próximo da gestão do parque que a Assembleia. O

(98%) era constituído de propriedades particulares (de

estratégia e o plano de trabalho do PRP, mas também,

extensiva de gado. Todos os fazendeiros considerados a

priori pelo projeto não se juntou: só 250 o fez, para uma

certificar-se de sua boa execução pelos altos responsáveis

zona úmida do Pantanal. Para os primeiros anos de

“associações fundadoras” de proprietários (incluindo a

satisfatório.

representantes do Estado (FPNRF, 2002, p. 17) e um

Em 15 de fevereiro de 2001, ou seja, um ano antes da

A este nível, os trabalhadores agrícolas não eram mais

do IPP. Um representante de cada uma das nove

superfície total de 2 milhões de hectares – ou seja, 15% da

SODEPAN) tomava parte do Conselho, assim como dois

funcionamento, este resultado foi julgado bastante

representante de cada um dos municípios considerados40.

constituição oficial do PRP, o órgão encarregado de sua

representados.

Pantanal (IPP). O IPP vai em seguida ser reconhecido37

O IPP dotou-se em seguida de um presidente, eleito pela

público” (ou OSCI – Organização da Sociedade Civil de

implicava, todavia pesadas obrigações legais. Sua

gestão é criado – trata-se do Instituto do Parque do

Assembleia Geral41. Este cargo não remunerado

pelo parlamento local como uma “ONG de interesse

Interesse Público) o que o assemelha a uma entidade

influência no funcionamento do IPP era ligada ao estilo de

pública/privada comparada a SMMA da Soufrière. Como a

gestão do titular e de sua capacidade/incapacidade para

SMMA igualmente, o IPP baseia sua estrutura e sua

delegar.

legitimidade em um trabalho prévio de “mobilização das populações locais”.

A governância do IPP era assegurada por vários órgãos. Primeiro foi colocado sob a autoridade da Assembleia

Geral do parque, encarregada de aprovar a Carta do

37 Em novembro de 2002

um plano de desenvolvimento plurianual e de verificar a

dos municípios 40 Aquidauana, Miranda, Corumbá, Rio Verde e Rio Negro 41 Durante os primeiros meses, o IPP tinha um “conselho de direção”, diretoria executiva que

38 Como o vimos, a Carta nunca foi, com efeito, concluída

Parque no momento da primeira sessão anual38, de validar

39. Mais precisamente, um representante do Coselho de Desenvolvimento Rural de cada um

coerência das ações e despesas. A assembleia devia

devia reunir-se uma vez por mês. Ora, esse ritmo levou a atrasos no trabalho da equipe técnica. Em dezembro de 2002, a Assembleia confirmou a criação da função de “presidente” a caráter permanente.

reunir-se três vezes por ano e era composta como se segue: um representante de cada uma das associações

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 59


6. O poder institucional em ação

Enfim, o IPP era composto de uma Equipe Técnica,

como um espaço de partilha do poder entre o governo do

reunindo diferentes peritos, trabalhadores de terreno e

Estado, o município e a comunidade rural, reduzida no

secretário executivo encarregado da gestão cotidiana. A

sobretudo, se certificar do grau de inclusão da PC em

assistentes administrativos colocados sob a alçada de um

essencial aos fazendeiros. A Assembleia Geral devia,

equipe associou-se a um coordenador executivo

relação aos fazendeiros locais enquanto o Conselho de

continuvam imprecisos e que finalmente exerceu uma

PC. Todos esses elementos refletiam bem o acordo

francês, cujas responsabilidades e estatuto hierárquico

Administração devia cuidar da intensidade e do alcance da

influência determinante.

fundador da aliança original que apoiou o PRP, convencida

da eficácia da “salvação pela tradição” e da necessidade

A estrutura de governo do IPP foi, portanto, concebida

6.2

de gerir os fazendeiros tradicionais.

Uma verdadeira recuperação política a serviço de ordens do dia obscuras

Enquanto o conceito jurídico do PRP parece ligado a uma

competências técnicas para controlar efetivamente o que o

governância fortemente participativa, na realidade, as

IPP fazia. Na verdade, em quatro anos de atividade, o

radicalmente diferente.

presidente. Como várias entrevistas o confirmou, a

Em primeiro lugar, mesmo se o IPP retirasse sua

descontentamento no seio do IPP limitava-se, sobretudo a

reuniria na prática. Só alguns fazendeiros assistiam a cada

presidente.

tempo. A Assembleia não representou seu papel de fórum

Quanto à presidência do parque, sua prática institucional

incarnar a visão do PRP e os compromissos comuns

existência do IPP (2001-2003), o cargo foi ocupado pelo

instituições e as pessoas trabalharam de maneira

Conselho, confiou a vigilância das operações ao margem

legitimidade de sua assembleia geral, esta raramente se

de

manobra

do

conselho

em

caso

de

falar – mais frequentemente de maneira informal – ao

uma das sessões, cada vez menos numerosos com o para discutir a Carta do parque – o documento devia

evoluiu com o tempo. Durante os dois primeiros anos de

assumidos por seus membros. De fato, esta Carta nunca

antigo presidente da SODEPAN. Este fazendeiro originário

foi finalizada nem adotada, além de uma seção de trabalho

de uma velha família pantaneira assumiu um papel

Assim, a Assembleia só fez apenas eleger os presidentes

um dos interlocutores, “ele queria assinar o mínimo

organizada durante o “projeto preliminar” (Gouveia, 2006).

bastante ativo na gestão cotidiana da estrutura. Segundo

e nem isso, visto que na curta história do parque, só houve

cheque”, mas tensões aparecem rapidamente quando o

eleições. Quanto ao grau de inclusão social da assembleia,

beneficio dos peritos estrangeiros ainda implicados no

um único cadidato declarado para cada uma das duas

presidente começou a perder seu poder de gestão em

não tivemos a possibilidade de confirmar a existência de

processo.

enviar um representante. Nenhum dos trabalhadores

A equipe técnica do IPP tinha efetivamente vários técnicos

fazendeiros nunca evocou tal organização.

praticamente levar em conta a gestão e a estrutura do IPP.

um “sindicato de trabalhadores rurais”, que tivesse podido

questionados conhecia a existência disso – e nenhum dos

estrangeiros que acompanhavam seu programa sem

Pouco a pouco, além disso, o Estado local aumentou sua

O Conselho de Administraçao tinha mais influência do que

influência no IPP, ocasionando uma perda de controle para

a Assembleia na gestão do IPP, mas este também se

o Conselho de Administração e o presidente. Através das

reuniu menos que o previsto, com uma taxa de participação

secretarias de Estado, um punhado de políticos influentes

flutuante. As pessoas que faziam parte do Conselho

parecia agir ao mesmo tempo no interesse do partido e ao

tinham, na prática, pouco tempo ou não bastante

serviço de indivíduos tendo “boas relações”. Segundo

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 60


6. O poder institucional em ação

diferentes interlocutores, esta “recuperação política” tinha

Como o IPP teria podido recusar as ordens e as pessoas

sido cuidadosamente preparada ao longo do “projeto

enviadas por seus investidores?

preparatório” de 1998-2000. No início, tratava-se de

aproximar a iniciativa do PRP das mais altas autoridades do

Durante os dois primeiros anos, o presidente do IPP teve

alguns indivíduos. Em seguida, logo que o IPP se tornou

organização parece ter funcionado bem, graças a uma

progressivamente pela nomeação de algumas pessoas no

continuasse ainda restrito, todos os fundos internacionais

Estado, para garantir a influência mais direta e pessoal de

efetivamente um papel concreto na gestão cotidiana. A

operacional, esta tomada de poder, manifestou-se

gestão financeira rigorosa, mesmo se o orçamento global

seio da equipe de gestão – um processo que, depois de

não tendo sido pagos. Mas, vimos, o presidente tinha

2003, tornou-se desproporcional e incontrolável. Desde

começado a dividir seu poder de decisão com os técnicos

mostrou-se cada vez mais interessado pelo prjeto do PRP,

importância, o das pessoas, sempre mais numerosas,

1999, depois de um período de hesitação, o governo local

estrangeiros. Visto que outro grupo começava a tomar

que conseguia mobilizar fundos estrangeiros. No que diz

nomedas por suas relações políticas e que consideravam

respeito à implicação do Estado, lembremos que o projeto

não serem de nenhuma maneira devedoras perante o

tinha, no início, sido confiado a FEMAP – uma fundação

presidente.

local encarregada de implementar a política de meio

ambiente definida pela Secretaria de Meio Ambiente, mas

No fim de 2003, o presidente compreendeu que tinha

autoridades não estavam suficientemente associadas –

“coalização objetiva de interesses” foi constituída contra

posicionamento institucional do PRP não lhe permitia

estavam à vontade com um presidente vindo da

rapidamente,

alguns

estimaram

que

as

principais

perdido praticamente todo o poder de gestão e que uma

uma preocupação que, oficialmente, provinha do fato que o

ele, composta de dois grupos: 1) os franceses, que não

“assegurar-se da implicação total de todos os ministérios

SODEPAN; 2) e os trabalhadores cada vez mais

(finanças, infraestruturas, produção ou meio ambiente),

numerosos enviados pelo Estado para constituir a “equipe

dado seu “modo de funcionamento vertical42”. Por

técnica do IPP” e que viam em tudo a vantagem de

do projeto PRP com o Estado local”, uma nova convenção

maior parte dos fazendeiros interrogados, não teve

trabalhar lá (bons salários ou veículos de serviço43). A

conseguinte e para garantir a “melhor cooperação possível

palavras bastante duras para denunciar este processo.

entre o Estado de Mato Grosso do Sul e a FPNRF foi

Escutemos um antigo vice-presidente do IPP:

assinada em 28 de junho de 2000. A responsabilidade do

PRP ia caber a um nível superior – o da Secretaria do

Estado e do Governo, que exercia uma autoridade direta em

A maior parte das pessoas enviadas pelo Governo não fez

todos os outros ministérios. Entretempo a responsabilidade

nada [...] Elas contentavam-se em fingir. Mas era

do apoio administrativo era também transferida da FEMAP

necessário pagá-las!

para a agência de desenvolvimento econômico sob controle político

estreito

a

CODEMS

(Companhia

Desenvolvimento Econômico de Mato Grosso do Sul).

Sua nomeação o inspirou o seguinte comentário:

de

Você sabe, quando um político diz: um vai trabalhar lá, é

É, portanto, nesta base de forte supervisão estatal que o

ponto final. O que você pode dizer? Essa pessoa tem

IPP foi criado em 2001, com um conselho de administração

influência nos ministérios do qual o IPP depende [...]

que tinha dois representantes do Estado, incluindo o do

governador. O IPP devia igualmente ser apoiado

financeiramente pelo Estado, através de uma dotação

anual, o que dava ainda mais poder às autoridades públicas

42 As passagens deste parágrafo são tiradas de uma entrevista com um funcionário local. 43 Não somos responsáveis por este julgamento, exprimidos por dois de nossos interlocutores.

na estrutura. Como o comentou um antigo funcionário do

IPP, que via bem como as coisas iam evoluir:

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 61


6. O poder institucional em ação

Outros observadores acrescentaram:

O Governo serviu-se da estrutura do IPP para “triangular”

os recursos. Ele dava fundos ao IPP, a responsabilidade

- Eles davam os cargos a seus amigos e às pessoas que

para o IPP de recrutar algumas pessoas, por razões e

ajudavam o partido.

filiações políticas, ou de lançar-se em projetos públicos sem relação direta com o parque regional.

Segundo os cálculos deste professor, entre cinco e seis

- Era a distribuição de prêmios […] Tudo dependia de uma

milhões de BRL (ou seja 2 milhões de euros) foram assim

estratégia eleitoral.

“triangulados” durante toda a duração de vida do IPP. O

Um professor de universidade, aliás fazendeiro, estimou

objetivo preciso desta « triangulação » ainda não foi

que este processo ia mais longe do que o simples

determinado, mas um inquérito público está em

nepotismo:

6.3

andamento (em 2009).

Uma vã esperança de cuidado comunitária … quem vai acelerar a derrocada final

Estes jogos de poder tiveram que rapidamente ser

uma segunda fase”, durante a qual o projeto ia tomar mais

com uma gestão eficaz – muito pelo contrário – levando

comunidade queria também aproveitar o peso do nome

Em seguida, a estrutura de governância tornando-se

atores não locais. Em seguida, o slogan “Almir Sater” fazia

interrompidos. Primeiro, a recuperação política não rimou

importância e encontrar seu ritmo normal. Mas a

cada vez mais obsevadores a constatar certa confusão.

célebre para contrabalancear a influência crescente dos

cada vez mais complexa, o IPP começou a encontrar

consenso na comunidade dividida na maneira de gerir o

dificuldades técnicas para a implementação dos projetos

projeto VITPAN.

se tratasse do projeto guia do PRP para a maior parte

Mas há mais: esta eleição tinha também uma significação

de desenvolvimento, em especial o VITPAN – mesmo se

dos fazendeiros e o que suscitou mais expectativas. Os

estratégica para os membros do pessoal nomeados pelo

conduzindo

este candidato. Como nos explicou um de nossos

erros de gestão repercutiram na comunidade inteira, a

um

descontentamento

praticamente geral no início de 2003.

poder político que, paradoxalmente, apoiavam igualmente

tornado

interlocutores:

Preocupada em remediar esses problemas técnicos e de

Não somente a candidatura de Almir Sater fazia

governância, a Assembleia Geral reuniu-se para eleger um

consenso e parecia garantir a unidade entre fazendeiros,

novo presidente, em 23 de abril de 2000. Esta data marca

mas, além disso, ela tinha preferência pela equipe

uma reviravolta na curta história do IPP. A Assembleia vai

técnica do IPP porque esta gente sabia bem que Sater

eleger Almir Sater, um cantor pantaneiro conhecido em

não se implicaria localmente, ao contrário do presidente

Pantanal. Várias razões explicam a escolha de uma figura

cheques!

todo o Brasil e proprietário de 25 000 hectares de terras no

anterior. Sobretudo, ele não pediria para assinar todos os

pública por excelência, elucidada por um bom número de

interlocutores.

Aqui está o que diz outro:

Em primeiro lugar, a comunidade dos fazendeiros queria

Todo mundo estava contente em eleger Sater presidente:

também atrair mais a atenção e a simpatia e, portanto,

de ‘pai’ e as pessoas do IPP porque sabiam que seria um

restabelecer a situação de seu parque regional, mas

os fazendeiros, porque recuperariam neste caso, um tipo

mais meios financeiros. Falava-se, então de “passar para

‘pai’ ausente.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 62


6. O poder institucional em ação

Desde sua eleição, o novo presidente deu uma autonomia

Como testemunham os processos em andamento em

total à equipe técnica do IPP, visto que ele escolhe confiar

2009, casos de má gestão financeira aparecem também.

executivo, sem exercer verdadeiramente controle. Para

políticos. Para começar, os diferentes secretários

todas as responsabilidades de gestão ao secretário

Alguns falam até de desvio de fundos para fins pessoais ou

um dos fazendeiros:

executivos pagaram regularmente as despesas ligadas ao projeto com fundos concedidos a outros projetos. Alguns

observadores estimam também que eles financiaram

A eleição de Almir Sater ocasionou uma deserção total de

despesas de importância secundária (viagens, reuniões,

cargo, em beneficio dos ‘técnicos’, que não tinham nenhum fazendeiro entre eles!

equipamento

O secretário executivo é oficialmente escolhido por

e federais, que totalizam montantes enormes. As

escolha tinha sido fortemente inspirada por alguns

não mais assumir seus compromissos financeiros, a partir

do

Conselho

eles

de 2003.

nomeado, o qual é pouco conhecido pelos fazendeiros, é Através

Sobretudo,

dificuldades vão agravar-se quando o Estado começa a

políticos. A administração do IPP pelo Secretario contestada.

escritório...).

“esqueceram” de liquidar certo número de impostos locais

Sater, mas, para vários de nossos interlocutores, esta

bastante

de

de

Tudo isso leva à interrupção de todas as atividades do IPP

vão reclamar várias vezes seguidas ao presidente das

terrano, o IPP ainda tinha uma existência jurídica, mas era

Administração ou das reuniões informais, os fazendeiros

em julho de 2005. Em 2008, durante nosso trabalho de

tramóias evidentes reinando no IPP. O presidente vai,

objeto de um inquérito público e estava pesadamente

sem nenhum efeito tangivel – sempre influenciado por

impostos e salários atrasados) avizinhava um milhão BRL

portanto, mudar duas vezes de secretário executivo –

endividado. O restante de sua dívida (compreendendo os

alguns políticos. Os titulares sucessivos não parecem ter

na metade de 2008 (ou seja 400 000 EUR), um outro

suscitado qualquer confiança nos fazendeiros.

milhão tendo já sido reembolsado.

Sob influência, o IPP continua a aumentar seus efetivos ao

As frustrações dos fazendeiros diante do “escândalo do

longo do período, alcançando 50 permanentes, enquanto

PRP” são imensas. Eles atacam, sobretudo o Estado e os

mesmo suas finanças estão longe de aumentar tão

políticos que, por intervenções que estimam exageradas,

rapidamente. Vários funcionários são integrados em bases

provocaram esta catástrofe. Sua raiva é também dirigida,

técnicas obscuras, mas com salários superiores ao dos

mas em menor escala, contra a influência estrangeira

administradores locais. Duas Secretarias locais (Produção

constante, que “complicou tudo”. Em 2009, Almir Sater

e Meio Ambiente) vão especialmente recorrer a este

ainda era presidente do que restava do IPP. Ele será sem

mecanismo.

dúvida chamado para se explicar perante a justiça. Hoje,

ele é abertamente criticado mesmo se a maior parte dos

Todas estas pressões vão mostrar-se pesadas demais para

fazendeiros continua a respeitar esta figura pública que,

uma nova organização ainda frágil. Como o comenta um

para vários brasileiros, incarna o Pantanal. Um bom

observador:

número de frazendeiros pensa que Almir Sater é “ingênuo”

Nessa fase, o IPP tornou-se uma grande desordem para o

seus sentimentos diante do fracasso do IPP:

demais e que foi manipulado. Um dos fazendeiros resumiu

Estado. [ele tinha] aberto numerosas frentes, mas nenhuma funcionava corretamente.

Cabe a nós pagarmos esta dívida, doravante, mesmo sabendo que ela é do Governo.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 63


6. O poder institucional em ação

6.4

Conclusão

Interessamo-nos pela gestão e a história do parque,

pescadores) – uma situação perfeitamente bem ilustrada

criação, em agosto de 2002, e a interrupção de suas

“recuperação política” progressiva do IPP, através da

mesmo tão curta: 36 meses de existência entre sua

pela estrutura institucional do parque. Em seguida, houve a

operações, em julho de 2005. Nós vimos que a prática

nomeação imposta pelo Estado de pessoas pouco

institucional da “participação comunitária” tinha sido

competentes em gestão, mas tendo as relações pessoais,

falsificada desde o início pela noção ambígua de

contavam. Globalmente, estes processos sucessivos de

enviesada em vários níveis. Em primeiro lugar, ela foi

as filiações políticas e os interesses particulares que

“comunidade local” que, no final designava simplesmente

poder produtivo e institucional conduziram a uma

os “fazendeiros”, sem levar em conta os trabalhadores

supressão total dos nativos, distanciados da gestão desse

rurais (os peões) e outras comunidades (como os

tipo de “parque comunitário”.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 64


7.

O papel do capital social e seu impacto na PC

Nós vimos, a história do Pantanal oferece uma mistura

nossa opinião, para sua própria marginalização do

intenções ou de efeitos concretos contra os partidários da

os atores a par do funcionamento institucional em particular

complexa de dinâmicas de bloqueamento, que se trate de

funcionamento institucional do PRP – aproveitaram-no mais

conservação do meio ambiente, os novos atores

os políticos e peritos franceses. Enfim, nós sugerimos que

econômicos da região, os trabalhadores agrícolas, os

o “fracasso do PRP” poderia muito bem, ter plantado,

grupos de pescadores e os próprios fazendeiros. Veremos

apesar de tudo, as sementes de um renovamento do capital

como esta “mil-folhas” encontrou sua origem no capital

social local. Em todo o caso, ele suscitou uma autocrítica e

social. Nós começaremos por interessarmo-nos pelos

significação, dos elementos para fazer evoluir no modo de

excluídos dos processos do PRP: esta separa çãoé, na

termos de implicação do Estado nos dispositivos de PC.

social da comunidade e os efeitos que teve neste capital

uma reflexão em torno da ação coletiva e da sua

trabalhadores agrícolas do Pantanal que foram totalmente

cooperação entre fazendeiros e das precauções a tomar em

verdade, apoiada por sua relação simbiótica com um

Este processo é particularmente patente na evolução da

paternalismo antigo da parte dos fazendeiros que explica

estratégia de resposta dos fazendeiros diante do

que seu capital social seja totalmente estrangeiro a toda

desmoronamento do PRP, que passaram da lealdade à

forma de instituição e ação coletiva. Nós analisaremos em

tomada de posição – demasiado tarde, contudo, para poder

seguida o capital social da grande maioria dos fazendeiros

inverter a situação. Vemo-lo ainda no funcionamento atual

do Pantanal. Seu individualismo visceral e sua preferência

de uma associação relativamente recente de produtores,

por modos de comunicação informais contribuíram em

7.1

que parece ter tirado as lições da experiência do PRP.

Paternalismo simbiótico: manter os peões fora das instituições e da ação coletiva

A ausência total de peões na concepção e a governância

integrar de uma maneira ou de outra no projeto PRP reflete

característico do capital social (CS) específico e da posição

pequeno mundo da fazenda; sua dominação estrutural

do ambicioso projeto de PC previsto para o Pantanal é

várias características sociais: absorção total dos peões no

estrutural deste subgrupo da comunidade. Nós definimos

pelos fazendeiros do fato de um paternalismo antigo; sua

unem os membros de um grupo dado e este grupo com

ações e as reivindicações coletivas; sua retirada de um

de CS (Charnoz, 2009b) como as “laços coletivos” que

falta de hábito (e de capacidade aparente) para decidir as

outros. No caso dos peões, é o CS transversal (bridging)

“mundo moderno e agressivo à margem do Pantanal; e seu

que parece particularmente concernido – a saber, a

sentimento subjetivo de relativa liberdade e de satisfação

maneira como eles criam laços com grupos externos. Os

diante da vida que levam.

de uma maneira estruturalmente dependente. Por

Durante toda a duração do processo do PRP, nem os

comunidade autônoma digna de consideração e de se

estrangeiros se interessaram pela natureza interna da

peões estão de fato estreitamente ligados aos fazendeiros,

conseguinte, sua incapacidade de afirmar-se como uma

defensores brasileiros do projeto, nem seus apoios

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 65


7. O papel do capital social e seu impacto na PC

fazenda pantaneira tradicional para a sobrevivência da qual

próprias crenças e, em especial, um folclore bastante vivo

eles trabalhavam. As profundas desigualdades sociais e o

no Pantanal, povoado de personagens e espíritos míticos.

paternalismo instalado há séculos nos espaços sociais que

Fundamentalmente, os peões vivem em um mundo

são as fazendas não foram nem abordados nem

espiritual distinto do dos fazendeiros que, hoje, são

baseados em uma distinção binária e hierárquica entre, de

permitiram captar sua visão do tempo, bastante circular, e

questionados. Como tal, as fazendas constituem universos

cidadãos modernos. As entrevistas com os peões

uma parte, os fazendeiros e suas famílias (os proprietários)

sua falta de percepção das evoluções que os cercam. É

e, de outra, os trabalhadores rurais e suas famílias (os

particularmente surpreendente constatar que nenhum

Estas pessoas trabalham por salários medíocres e um

se desenrolava, de positivo ou negativo, na região do

peões). A vida dos peões está banhada no paternalismo.

podia ter um discurso estruturado e informado sobre o que

alojamento modesto proposto pelo proprietário assim como

Pantanal. Enquanto poderia se pensar que são os

caso de dificuldades pontuais (problemas de saúde

a região pareceu seriamente limitada por uma falta de

por produtos cárneos, gêneros alimentícios e ajuda em

melhores peritos para o pantanal, sua compreensão sobre

especialmente). Alguns fazendeiros tentaram até, nós

educação, de sensibilização, até mesmo de vontade de

vimos, desenvolver serviços educativos para as crianças

descobrir o “mundo exterior”. Sua relação simbiótica com

de seus trabalhadores, com resultados mitigados.

os fazendeiros está baseada não somente no fato de que

eles são uma mão-de-obra barata, mas também na

Para alguns observadores locais, esta relação parece

vantagem considerável que eles representam para as

saudável. Para os antropólogos que nós encontramos, os

relações públicas quando os fazendeiros precisam de

peões têm até um forte sentimento subjetivo de sua própria

atenção e de dinheiro. Se a maior parte dos fazendeiros

liberdade:

vive doravante na cidade e só vêm a suas terras por

obrigação ou durante seu tempo livre, os peões vivem lá

todo o tempo e compõem estas imagens magníficas

Os peões vivem fora, sem ter todos os dias um patrão nas

conhecidas em todo o Brasil de « cowboys » a cavalo,

costas […] se não estão contentes com seu destino ou com

seu empregador, eles sabem que sempre podem subir em

conduzido rebanhos (comitivas) nos espaços infinitos,

Esta capacidade de passar de um empregador a outro

externa da comunidade pantaneira e alimenta a reputação

contando histórias tiradas de um folclore único, etc. É,

seu cavalo e ir bater à porta de uma outra fazenda.

portanto, o peão que carrega o essencial da identidade

alimentou visivelmente nos peões, um sentimento de

positiva e a afeição pública da qual ela beneficia. Também

interrogar-se sobre a verdadeira autonomia que ela atribui.

do financiadores – este sentimento que a vida continua

autonomia durante gerações. O que não impede de

ele mantém na opinião pública – e nas direções europeias

Quando mudam de fazenda, os peões encontram-se em

“tradicional e em harmonia com o meio ambiente”.

um mundo idêntico que lhes oferece as mesmas

Contudo, eles não tinham nada a ganhar com o vasto

oportunidades, limitadas, de desenvolvimento pessoal. Seu

projeto do PRP – e não puderam dar suas opiniões. Sua

nível de educação é habitualmente bastante fraco e um

presença resumiu-se a uma menção nos “folhetos

bom número dentre eles quase não sabe ler e escrever.

informativos e apresentações PowerPoint consagrados ao

Mesmo se a maioria aprendeu os rudimentos da língua na

modo de vida na região”44.

ler e escrever. A este respeito, eles estão muito próximos

Os peões não são exigentes. Apesar dos séculos

uma educação formal esquecida há muito tempo.

um grupo à parte, eles nunca organizaram qualquer

escola, seu modo de vida não lhes dar quase a ocasião de

passados nas fazendas e sua identificação clara como

dos pescadores de Saint-Lucie, cuja maioria tinha recebido

Nossas entrevistas com antropólogos locais confirmam que

44 Segundo um membrpo de um ONG trabalhando no Pantanal.

os peões constituem uma sociedade à parte, com suas

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 66


7. O papel do capital social e seu impacto na PC

forma de ação coletiva para discutir, enquanto grupo,

em um pequeno mundo circular no qual eles não têm

problemas são tratados de maneira informal e entre

poucos meios ou vontade de se libertarem deste « mundo

com os fazendeiros sobre qualquer questão. Todos os

nehuma ocasião de se desenvolverem. Eles parecem ter

indivíduos. Os peões com os quais falamos disseram

seguro, mas fechado », para retomar a expressão do lugar.

claramente que ignoravam a existência de um sindicato

Mesmo se é difícil denunciar uma forma de “exploração

defendendo seus interesses – um traço típico das

pura e simples”, as fazendas são sociedade autárquicas

sociedades paternalistas. Durante nossas entrevistas,

onde a coesão e as desigualdades andam de mãos dadas.

tímida e aparentemente habituada a baixar a cabeça

Nós evocamos (Charnoz, 2009b) a definição que dá

que os fazendeiros são claramente mais “claros” de pele

“conscientemente articulados e observáveis”), em

descobrimos gente simples e tranquila, profundamente

quando discutem com brancos. É necessário lembrar

Lukes

que os peões, que têm frequentemente sangue índio nas

dos

“interesses

subjetivos”

(interesses

oposição a “interesses objetivos” (que são os objetivos e

veias. Eles sempre responderam brevemente a nossas

os desejos que os atores “gostariam e prefereriam

questões, sem jamais fornecer informações além do que

alcançar se pudessem decidir por si mesmos). (Lukes,

que dizia respeito a sua vida, seu trabalho e sua relação

particularmente bem adaptado à aplicação destes

era perguntado. Eles sempre mostraram reservas, no

1975, pg. 34). O mundo das fazendas parece estar

com os fazendeiros. A impressão geral é a de um

conceitos. A relação paternalista entre peões e

temperamento tipicamente “passivo”, uma percepção

fazendeiros é tão constitutiva de sua identidade que

confirmada por diferentes pessoas que questionamos,

nenhuma vontade de mudança parece surgir.

membros de ONGs ou turistas contatados ao acaso.

Como um dispositivo de PC poderia conseguir implicar as

Nosso trabalho de terreno nas fazendas deu-nos um

populações tendo tal estado de espírito e em presença de

sentimento difuso sobre peões, mais ou menos fechados

7.2

um poder estrutural tão forte e tão eficaz?

Individualismo e informalismo: inaptidão institucional da parte dos fazendeiros

A implementação do processo do PRP acompanha, nós

comportamentos oportunistas que desorganizaram a

vimos, duas dinâmicas potentes de bloqueamento, que

implementação de projetos importantes.

primeira deu vantagem aos técnicos estrangeiros quando a

Nós vimos que o CS transversal era essencial para

punhado de políticos e pessoas com relações convenientes.

PRP. Nós afirmamos agora que o CS soldado é o que

acabaram por suprimir todo o poder dos fazendeiros. A

segunda favoreceu a recuperação institucional do IPP por um

compreender a situação dos peões no seio do dispositivo

Nós afirmamos aqui que estes dois exercícios de poder institucional

foram

amplamente

facilitados

exprime melhor a posição e a evolução dos fazendeiros

pelo

no seio do projeto. Esta forma de CS (Charnoz, 2009b)

enfraquecimento da SODEPAN (seção 4.3), mas também

reenvia para a natureza e para a força dos laços no seio

fazendeiros. Entendemos com isto a dificuldade e a relativa

amalgamadas que contaram e, juntas, fazem com que: 1)

pela « inaptidão institucional » da grande maioria dos

de dado grupo. No PRP, são as diferentes normas sociais

incapacidade destes últimos a empreender ações coletivas

os fazendeiros sejam incapazes de cooperar e

formais e a unir-se a instituições oficiais. Esta característica

coordenar-se em torno de projetos importantes do PRP;

conduziu a uma falta crônica de acompanhamento

2) eles não souberam se comprometer junto às

governância do PRP. Ela também deixou correr livre os

responsabilidade destas relações a uma única pessoa.

institucional da parte dos fazendeiros do ponto de vista da

instituições formais (como o IPP), preferindo confiar a

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 67


7. O papel do capital social e seu impacto na PC

Esta falta de hábito de cooperação flagrante nos

produção. Durante uma entrevista, o primeiro presidente

segundo a qual “eles são os únicos em suas terras” e só

“diferendo político nasceu entre os fazendeiros, em torno

fazendeiros parece instalada em sua convicção tradicional

do IPP lembrou-se de que no fim de seu mandato, um

podem contar com eles mesmos. Todos os fazendeiros que

nós

encontramos

mostram

francamente

do vitelo, com três ou quatro grupos opostos”. As tensões

seu

eram tais que o IPP nem pôde, em dois anos completos,

“individualismo”, que apresentam de maneira positiva como um

desejo

de

“autonomia”.

esclarecimento suplementar:

Um

deles

deu

levar os produtores do projeto VITPAN a constituir uma

um

simples cooperativa – etapa, contudo indispensável para

organizar este novo setor econômico.

Não, nós não temos o hábito de nos associar. As

Para muitos, esta incapacidade de agir coletivamente

frágeis no Pantanal. Por uma simples razão: aqui, nós

sobre os responsáveis do IPP, visto que isto prejudicava

impediu os fazendeiros de ter uma verdadeira influência

associações, as cooperativas, etc., todas essas coisas são

gravemente sua credibilidade e sua liderança moral como

estamos na cultura do instante. Nós queremos que as coisas sejam imediatamente proveitosas. [...] Nós não

parceiros fiáveis. Mas de toda a maneira, a influência dos

resultado imediato.

incapacidade de implicar-se em uma qualquer instituição,

fazendeiros ia ser contrariada por um outro problema: sua

gostamos de agir em grupos – a não ser que isso tenha um

comum à maioria dos fazendeiros. Um observador local

Durante a duração de vida do IPP, certo número de

falou-nos a este próposito de « informalismo » - uma situação

recorrentes ligados à dificuldade de coordenação. Esta

organizações comunitárias (seção 4.3), mas também por

crítico VITPAN. Os problemas encontrados atestam

para organizações que procuram fornecer-lhes serviços.

projetos que foi lançado se chocou com problemas

que se traduz primeiro pela existência rara e frágil de

deficiência foi particularmente flagrante no caso do projeto

uma falta de interesse de interação, da parte dos criadores,

efetivamente a profundidade da implantação deste

“individualismo” e deste “imediatismo” na comunidade.

Os problemas encontrados no Pantanal pela EMBRAPA,

coordenação e boa vontade da parte dos produtores. Ele

são reveladores. Há décadas, a EMBRAPA tem trabalhado

produção de carne, para poder comercializar esta

produção e à conservação. As entrevistas realizadas em

Projeto complexo, o VITPAN exigia certo grau de

primeiro instituto público de pesquisa agronômica no Brasil,

necessitava, sobretudo, de uma padronização rigorosa da

na região em diferentes aspectos técnicos ligados à

produção coletiva sob uma marca única e na qual os

2008 em Campo Grande mostram que hoje, seu principal

consumidores tivessem confiança. Acordos rapidamente

problema não é de encontrar novas soluções para os

apareceram em torno de técnicas e padrões de produção –

criadores, mas de implementar e difundir as que foram

até memso para itinerários de coleta de carne, mais ou

identificadas há muito tempo. A transferência de uma

menos cômodos para os diferentes produtores. Os

inovação do instituto para os produtores pantaneiros

procedimentos eram pouco ou mal aplicados, de maneira

mostrou-se particularmente difícil.

rapidamente de interessar os distribuidores.

Este quebra-cabeça conduziu a EMBRAPA a consagrar

Os produtores rapidamente desconfiaram uns dos outros,

que estas parecem proibir a apropriação local das técnicas

que o produto – de qualidade decepcionante – cessou

mais recursos à pesquisa sobre dinâmicas sociais, visto

por causa de comportamentos oportunistas. Cada um tinha

agrícolas e dos institutos de pesquisa. O órgão interessa-

de fato interesse em não respeitar a idade a qual os vitelos

se especialmente cada vez mais pela maneira como as

podiam ser enviados ao matadouro. A incitação financeira

evoluções intervêm na comunidade tradicional dos

conduzia os produtores a levar os animais mais velhos,

criadores, voltando a uma sociologia de conhecimento e

mais pesados e, portanto, mais caros para a venda. Mas

redes de informação. Os pesquisadores analisaram os

sua carne, demasiado gorda, estragava toda a linha de

processos de adoção, de indiferença ou rejeição diante das

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 68


7. O papel do capital social e seu impacto na PC

novas tecnologias (ver, por exemplo, Cezar, 2000). Eles

participativo

não levam em conta as fontes formais de saber e de

fazendeiros preferem os modos informais de comunicação.

possibilidades de formação.

fazendas vizinhas para obter informações. Por outro lado,

mostram que, globalmente, os fazendeiros do Pantanal

de

difusão

de

conhecimentos

e

de

informações que iria além dos quadros formais. Os

conselho técnico – como a informaçao escrita ou

Eles discutem entre si e observam o que acontece nas

as redes de aprendizado são estruturadas em torno de um

Para começar, as pessoas não gostam de ler ou ter o

número restrito de “pessoas de confiança” que servem de

sentimento de “voltar à escola”. Além disso, a esmagante

modelos para outros fazendeiros e se tornam mais ou

maioria dos fazendeiros estima não ter meios de participar

menos “líderes de opinião”. Em geral, estas “pessoas de

causa de sua idade frequentemente avançada ou do fato

vasta, compreendem melhor a utilidade das instituições

pessoalmente de processos formais – falta de tempo, por

confiança” apóiam-se numa rede de informação bem mais

da distância cultural entre criador tradicional e um perito

formais e são mais aptas a servir-se dela.

técnico – um sentimento que valia também para o IPP. Enquanto a EMBRAPA tinha concebido uma política

Nós deduzimos a partir desta discussão que no seio do

visando fazer participar os fazendeiros das decisões de

IPP, os fazendeiros também se voltaram para estas

pesquisa, o balanço que ele fez mostra que fracassou

pessoas de confiança que devem controlar em seu nome a

permite aos fazendeiros vir a qualquer momento discutir

esta confiança depositada nos presidentes sucessivos do

não “abrem a porta”.

Ela por outro lado, impediu o Conselho de Administração

amplamente. Mesmo sua política de “portas abertas”, que

institução e fazer ouvir sua voz junto aos dirigentes. Mas

com pesquisadores, não tem nenhum efeito: os criadores

IPP não foi suficiente para contrabalançar as outras forças.

de

A EMBRAPA está atualmente refletindo sobre um sistema

7.3

desempenhar

permanente.

seu

papel-chave

de

supervisão

Da lealdade à exposição de opinião: renovar o capital social local

Apesar de seus defeitos – e na verdade por causa destes

exposição de opinião depois do fracasso da PC no projeto

no seio da comunidade fazendeira sobre a necessidade de

termos renovados e mais eficazes – como testemunha os

– o projeto do PRP engrenou um processo de introspecção

do PRP, abrindo o caminho para uma cooperação segundo

reforçar sua capacidade de ação coletiva. Isso transparece,

sucessos recentes de uma organização local de criadores

consecutivo do desmoramento do IPP encontrou novos

final do projeto do PRP já possa ser avaliado em 2009.

antes de tudo, na maneira como o descontentamento

de gados biológicos. Mas isso não significa que o impacto

modos de expressão. Nós detalhamos (Charnoz, 2009b)

Mesmo se a comunidade fazendeira pareça orientar-se

os três tipos de resposta de uma comunidade provocados

para uma curva de aprendizagem positiva, só o tempo

por uma frustração social ela mesma causada por

poderá dizer se as inércias serão vencidas.

dispositivos de PC decepcionantes: a defecção (retirada

efetiva ou psicológica); a lealdade (silêncio e resignação,

A escolha da lealdade

exposição de opinião (agravos abertos e ações para fazer

Depois de 2003 e diante da via tomada pelo IPP,

de exposição de opinião era a melhor da mesma forma que

desmoronamento. Diante desta perspectiva e diante da

em nome de um princípio superior de unidade); ou a

nomerosos

mudar as coisas). Nós afirmamos então, que a estratégia

fazendeiros

previam

seu

inação relativa do presidente, os membros do Conselho

levar a uma renovação do capital social local e, por

Administrativo

conseguinte, mais ação coletiva. Aqui, nós mostramos que

não

escolheram

exprimir-se,

mas

continuar leais, refletindo aí uma estratégia amplamente

os fazendeiros passaram da lealdade efetivamente à

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 69


7. O papel do capital social e seu impacto na PC

partilhada pela comunidade fazendeira. Depois de várias

Nós vemos aí o quanto os laços sociais impedem o

Almir

organizaçao comunitária, conduzindo a optar por uma

discussões para advertir do perigo com o presidente Sater,

eles

renunciaram

a

assistir

equilíbrio do poder de exercer corretamente em uma

como

espectadores a esta “tragédia anunciada”, como lembra

lealdade mais do que por uma expressão de opinião,

um dos protagonistas da época. Nós vimos, Almir Sater

mesmo

reagiu nomeando por duas vezes um novo secretário

diante

de

uma

catástrofe

anunciada.

A

necessidade de unidade, a vontade de não manchar a

executivo seguindo as recomendações políticas que

reputação de um íntimo importante mas também a regra

nada fizeram para acalmar os fazendeiros. Estas

tácita que recusa todo conflito público no seio da

mudanças não conduziram a nenhuma melhora na

comunidade uniram-se para dar maus mecanismos

gestão, como temiam, muito pelo contrário.

regulamentares ao IPP. À primeira vista, esta estratégia de

lealdade pode parecer incoerente diante do individualismo

Os membros do Conselho teriam podido exercer seu direito

furioso – que nós já analisamos – da comunidade

de veto em relação aos responsáveis do IPP, mas eles não

fazendeira. Mas se pode muito bem imaginar uma

e as amizades ultrapassaram as dificuldades a este

conflito público baseado, para um bom número de outras

o fizeram, para não desapoiar Sater. As lealdades pessoais

comunidade regida por normas estritas para evitar todo

estado. Como lembra um fazendeiro:

interações numa forma afirmada de individualismo.

A expressão da opinião: empreender um processo de

A um dado momento, paramos de reclamar a Almir. Ninguém queria criticá-lo severamente e encurralá-lo. [...]

aprendizagem coletiva

controlaria nada.

Se

Ou como diz outro :

suscitando outra forma de resposta nos anos seguintes,

Nós tinhámos de toda a maneira o sentimento que ele não

os

fazendeiros

optaram

pela

lealdade,

o

desmoronamento do PRP não foi fácil de “digerir”,

feita de discussões sobre o que não tinha dado certo, o que

Para muitos dentre nós, Almir é um amigo de infância.

teria de ser feito, mas também o que deveria fazer em

queremos fazer ouvir nossa comunidade. Não podemos

expressão de opinião.

seguida – ou seja uma estratégia que se aparenta a

Fomos à escola juntos. [...] Ele é o melhor quando fazer-lhe mal. Isso seria nos fazer mal.

Uma série de entrevistas de fato revelou que a experiência do PRP tinha suscitado esperanças e expectativas que não

Este grupo comunitário encontrou-se, portanto em uma

desapareceram com ele. Acima de tudo, a “catástrofe” –

situação esquizofrênica, de um lado inquieto com o futuro

como

de “seu parque”, mas sem nenhum recurso jurídico para

eles

qualificam

frequentemente

este

fazer partir o presidente ou impor-lhe um secretário

desmoronamento – levou os membros da comunidade a

um fazendeiro:

sua cultura dualista de coesão e de individualismo. Para

interrogarem-se sobre as vantagens e os incovenientes de

executivo que este grupo teria escolhido. Como o explica

começar, numerosos fazendeiros parecem doravante

admitir que o individualismo e o opoturnismo prejudicaram

O Conselho Administrativo tinha poder sobre o presidente,

os projetos do PRP e que as “coisas deverão mudar no

suficientemente para fazer balançar todo o edificio. Mas a

futuro”. Assim:

decisão de exercer ou não este poder é função das

relações pessoais. O poder é uma coisa, as relações

pessoais outra. [...] Os membros do conselho disseram-se

As coisas levam tempo para evoluir aqui. Os pantaneiros

utilizar meu direito de veto para demitir quem quer que

Devemos parar de trabalhar cada um em seu canto.

devem organizar-se mais e de maneira eficaz. [...]

“eu não posso arruinar a reputação do presidente; não vou

Devemos unir esforços […] O parque era a melhor ideia

seja; poderia fazê-lo, mas não o farei”

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 70


7. O papel do capital social e seu impacto na PC

considerada

oportunidade.

para

nós,

mas

despediçamos

processo que tem o risco de levar tempo e que poderia

nossa

realmente comprometer a responsabilidade penal do último presidente. Como o exprimiu, de maneira poética, um

Quanto ao principío de lealdade (em nome de uma

dentre eles:

aparente unidade ou amizades pessoais), parece-nos que

os fazendeiros não terão nisto mais recursos de maneira

O IPP é como um bebê que amamos e que está dormindo.

automática se forem novamente confrontados com um

Nós o cobrimos ternamente esperando que ele se acorde.

exprimir seu descontentamento em tempo útil, mesmo se

Um futuro escrito

vários se arrependem de não ter adotado.

Globalmente, as entrevista no terreno convenceu-nos de

A existência de um processo coletivo de aprendizagem

contudo, incitar a mudança – mesmo se isso levar tempo,

dilema deste tipo. Da próxima vez, eles optarão mais por isto signifique desapoiar um dos seus – uma atitude que

que o fracasso de um dispositivo participativo podia, especialmente no Pantanal. Evidentemente, a evolução

transparece também na maneira como os fazendeiros

far-se-á lentamente na região. Como o explica um

consideram o Estado: eles estão ainda mais circunspectos

fazendeiro:

diante de sua ingerência em seus negócios. As “instruções e interferências políticas” mostradas no caso do IPP desde a época foram abundantemente comentadas pelos

Quando alguém concebe um novo sistema, um novo

é simplesmente inevitável:

investimento, um período de transição e, frequentemente,

fazendeiros. Alguns consideram que a recuperação política

modelo,

é

necessário

prever

um

tempo

para

o

de decepção. Você deve fortemente investir-se, intelectual

e praticamente. Mas você também deve fazer evoluir as

Num IPP nova fórmula, nós teríamos dificuldades para

mentalidades. Isto pode produzir-se no Pantanal, mas

fazer realmente melhor (quanto à influência dos políticos].

muito, muito lentamente […] Será necessário sem dúvida

Chega sempre um momento no qual você depende de uma

de dez a quinze anos para que as coisas evoluam.

decisão municipal, estatal ou federal. Que isso se

manifeste pelo imposto ou por outros meios, sempre existe

As práticas de transmissão de terra são uma boa ilustração

uma ligação estreita [de maneira que os políticos]

disto. Enquanto a comunidade local tem dificuldades para

conseguem sempre fazer fracassar um projeto se eles têm

sobreviver, suas normas sociais em matéria de partilha de

vontade!

terras herdadas só evoluem lentamente. A prática da

repartição das terras entre herdeiros machos quase não

Outros fazendeiros estimam que as transgressões políticas

evoluiu enquanto até mesmo numerosas propriedades se

estão diretamente ligadas à “corrupção do Governo atual”,

encontram aquém do limite de viabilidade (cerca de 7 000

“uma situação que poderia muito bem mudar com as

hectares). Alguns fazendeiros interrogados aparentemente

próximas eleições”. Outros pensam ainda que se pode

pediram a seus filhos para não “dividirem a terra e o

impedir a influência do Estado se o recurso aos fundos

trabalho” mas esse processo, mal aceito e um pouco

públicos num projeto de PC for reduzido ao mínimo estrito.

caótico, não parece fazer o consenso.

A perspectiva de uma co-gestão com o Estado perdeu o essencial de sua credibilidade mas isso não quer dizer que

Estas inércias interrogam sobre a capacidade de

a ideia do PRP tenha sido abandonada. Ao contrário: a maior parte das pessoas interrogadas estima que seria

sobrevivência desta comunidade nas próximas décadas.

ainda mais “comunitária”. Nós encontramos vários

do tempo a adotar para avaliar o impacto final de uma

Paralelamente, elas levantam também a questão da escala

necessário avançar fazendo do PRP uma “organização”

intervenção de PC, mesmo em caso de “fracasso” (como o

fazendeiros que defendem ativamente o relançamento do

PRP), visto que ela terá, contudo, “revelado” à comunidade

PRP uma vez que a dívida tenha sido apagada – um

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 71


7. O papel do capital social e seu impacto na PC

algumas dessas fraquezas. De fato, esse processo já parece

apoio do WWF. Esta cooperativa tem-se saído bem até

dar seus frutos. Depois da interrupção do projeto VITPAN,

agora, instaurando regras comuns de produção e uma rede

pôde-se observar o crescimento potente de uma nova

comercial. Os fazendeiros evitaram cuidadosamente ter de

exclusivamente a partir de fundos particulares e beneficia do

carne de vaca biológica com algumas 100 000 cabeças.

associação de produtores de gados biológicos. Esta trabalha

7.4

apelar para fundos públicos. Até hoje, 30 fazendas produzem

Conclusão

Nós vimos como os diferentes processos de bloqueio

desempenharam um papel no desmoronamento do PRP.

capital social da comunidade e eram, de fato, ligados a este

de um projeto participativo tão ambicioso tinha engrenado

inerentes ao projeto do PRP tinham tido um efeito no

Enfim, nós sugerimos que a mais longo prazo, o fracasso

capital social. Nós mostramos a imbricação estreita do CS

um processo de aprendizagem que, reforçando as

transversal dos peões numa relação simbiótica e

capacidades locais, era propício a novas iniciativas. Em

procurar) qualquer meio de expressão no processo do

de resposta alternativa às frustrações parece ter provocado

paternalista com os fazendeiros e que os impediu de ter (de

2009, a escolha da expressão de opinião como estratégia

PRP. Nós demonstramos em seguida a natureza complexa

uma “introspecção comunitária” para retraçar as causas

do CS soldando os fazendeiros que, combina imediatismo,

deste fracasso – um processo que poderia mostrar-se

individualismo, informalismo e unidade – tantos fatores que

benéfico em termos de ação coletiva.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 72


8.

Conclusões

Assim, da gênese ao desmoronamento do projeto do

governância do IPP acompanhou rapidamente o reforço

enquanto mesmo este projeto teria de ser o exemplo

pessoal trabalhando em tempo completo. Paralelamente,

PRP, vários processos de bloqueio tiveram lugar,

do poder institucional concedido aos membros do

perfeito de um dispositivo participativo. Esses processos,

uma

simultâneos ou sucessivos, terão tido um impacto

verdadeira

“recuperação

política”

interveio,

conduzida por alguns políticos da terra com intenções

profundo ou terão continuado puramente institucionais. A

obscuras,

primeira camada dessa “mil-folhas” encontra-se na

mas

extremamente

governância do IPP.

vontade dos produtores locais instalados há muito, de

nefastas

para

a

impedir os esforços crescentes dos partidários da

Contudo, para reaalmente compreender esses processos

econômicos que põem em perigo sua sobrevivência.

de seus efeitos de poder para se interessar pelos agentes

discursos em torno da “salvação pela tradição” cujo

É aí onde o capital social entra em consideração. Nós

etiqueta “verde” aos fazendeiros, esta postura também

estão envolvidos lhes cortou toda a possibilidade de

conservação do Pantanal e os dos novos atores

múltiplos de bloqueio, é necessário ultrapassar a análise

Essas intenções fundamentais eram apoiadas pelos

« catalisadores » que lhes permitiu ter uma tal ressonância.

espírito impregnou todo o PRP. Concedendo uma

mostramos que o paternalismo simbiótico no qual os peões

reforçou sua posição estrutural visto que eles acabaram

expressão duante o processo do PRP. Ao mesmo tempo, o

segundo

que

informalismo de suas relações sociais explica a inaptidão

e grupos de pescadores instalados no Pantanal há

fracasso do PRP, extremamente embarassante para os

por incarnar a comunidade tradicional inteira. Daí um nível

de

bloqueio,

menos

visível,

antigo apego dos fazendeiros ao individualismo e ao

praticamente sufocou as vozes dos trabalhadores rurais

institucional no princípio de sua própria supressão. O

gerações.

fazendeiros, parece, contudo, ter engrenado um processo

de introspecção no seio desta comunidade que bem

Mas as coisas foram ainda mais longe. Como nós vimos,

poderia, no futuro, relançar sua capacidade de ação

um terceiro processo de bloqueio apareceu durante a

coletiva.

fase de implementação que, em vários níveis, atingiu os

próprios fazendeiros. Trata-se em primeiro lugar da

As implicações operacionais de nosso trabalho de terreno

aumentar o “pluralismo” da sociedade civil e que

sublinhamos em nosso estudo de casos sobre Saint-Lucie

vontade, defendida pelos peritos estrangeiros, de

no Pantanal vêm completar e reforçar as que

nós

enfraqueceu e totalmente desconsiderou a única

(Charnoz, 2009c) :

o aparecimento desse tipo de entidades é ao mesmo

1. A avaliação de dispositivos de PC está longe de ser

institucionalização da PC num órgão oficial como o IPP,

que o habitualmente fixado pelos investidores

organização de fazendeiros eficaz num contexto no qual tempo raríssimo e frágil. Trata-se em seguida da

cômoda e exige um horizonte temporal mais vasto do

que distancia a grande maioria dos fazendeiros de seu

implicados

funcionamento cotidiano. Essa falta de implicação na

na

gestão

do

meio

ambiente.

Os

investidores deveriam aceitar investir mais tempo e

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 73


Conclusões

dinheiro nestes dispositivos, ser mais tolerantes diante

também todo seu sentido em caso de problemas

de sucesso apesar dos fracassos aparentes. Os

apóiam sociedades paternalistas;

dos altos e baixos inevitáveis e conservar a esperança

deontológicos – quando, por exemplo, os investidores

investidores deveriam aceitar a ideia de que os dispositivos de PC são apostas que não se podem

3. Os investidores deveriam também se esforçar para

tempo para se concretizarem. A evolução do capital

das partes diretamente interessadas menos preparadas

tais avaliações;

devem resumir-se às fases iniciais de consulta, nem

ganhar com certeza ou cujos benefícios levam muito

encontrar soluções para melhor defender os interesses

social deve beneficiar de uma atenção crescente em

para um processo participativo. Estes esforços não

mesmo de criação de associações, mesmo se isto

2. A « participação institucional » conduz frequentemente

pareça

os grupos mais pobres e mais frágeis « à saída », sua

proibição em participar do processo de tomada de

“perito” externo encarregado de representar ou

Governo e dos investidores internacionais. No caso do

observar atenta e constantemente os jogos de poder no

parque regional do Pantanal, os trabalhadores rurais e

seio das instituições .

os pescadores foram os grandes ausentes do estes

problemas,

A

atores menos potentes, como o fato de designar um

dispositivo, uma legitimidade “local” aos olhos do

remediar

necessidades.

garantir o equilíbrio dos poderes e a influência dos

superar as dificuldades. Ela concede também ao

Para

às

três noções distintas. Várias soluções podem permitir

decisão, enquanto os grupos mais potentes vão

processo.

corresponder

representação, a participação e a influência efetiva são

os

Dada às dinâmicas que participam do capital social local do

investidores podiam reforçar a dimensão sociopolítica

Pantanal, reforçadas pela experiência do PRP, a principal

assim como os mecanismos de acompanhamento

aparecimento da “maturidade institucional”, que só

implicados nos dispositivos participativos de gestão do

desde então de saber se os investidores internacionais

de seus processos de avaliação ex ante e ex post

lição a tirar deste projeto parece estar realcionada ao lento

permanente. Idealmente, os investidores internacionais

intervém depois de algumas tentativas e erros. Trata-se

meio ambiente deveriam ter mais consciência de suas

estão prontos e financeiramente aptos a acompanhar tais

implicações sociais e políticas nas sociedades locais,

processos a longo prazo e a aceitar os fracassos como um

por motivos ao mesmo tempo de ética e eficacidade.

fenômeno normal em toda tentativa de desenvolvimento

Este ponto é particularmente importante quando o

institucional. Isto é a atitude radicalmente oposta a sua

à comunidade comprometer-se eficazmente nas

compromisso político em demonstrar a “eficácia do

capital social local parece ter a possibilidade de permitir

cultura cada vez mais orientada para os resultados e a seu

instituições que ela acabará por apropriar-se. Ele toma

desenvolvimento”.

© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 74


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Série “Documents de travail” publicadas desde janeiro de 2009 Os números anteriores são consultáveis no site http://recherche.afd.fr.

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Documentos de trabalho Publicados desde janeiro de 2009 Os números anteriores podem ser consultados no site: http://recherche.afd.fr

N° 78

« L’itinéraire professionnel du jeune Africain » Les résultats d’une enquête auprès de jeunes leaders Africains sur les « dispositifs de formation professionnelle post-primaire »

Richard Walther, consultant ITG, Marie Tamoifo, porte-parole de la jeunesse africaine et de la diaspora

N° 79 N° 80

Contact : Nicolas Lejosne, département de la Recherche, AFD - janvier 2009.

Le ciblage des politiques de lutte contre la pauvreté : quel bilan des expériences dans les pays en développement ? Emmanuelle Lavallée, Anne Olivier, Laure Pasquier-Doumer, Anne-Sophie Robilliard, DIAL - février 2009.

Les nouveaux dispositifs de formation professionnelle post-primaire. Les résultats d’une enquête terrain au Cameroun, Mali et Maroc

Richard Walther, Consultant ITG

N° 81 N° 82

Contact : Nicolas Lejosne, département de la Recherche, AFD - mars 2009.

Economic Integration and Investment Incentives in Regulated Industries

Emmanuelle Auriol, Toulouse School of Economics, Sara Biancini, Université de Cergy-Pontoise, THEMA,

Comments by : Yannick Perez and Vincent Rious - April 2009.

Capital naturel et développement durable en Nouvelle-Calédonie - Etude 1. Mesures de la « richesse totale »

et soutenabilité du développement de la Nouvelle-Calédonie

Clément Brelaud, Cécile Couharde, Vincent Géronimi, Elodie Maître d’Hôtel, Katia Radja, Patrick Schembri,

Armand Taranco, Université de Versailles - Saint-Quentin-en-Yvelines, GEMDEV N° 83 N° 84 N° 85 N° 86 N° 87 N° 88

Contact : Valérie Reboud, département de la Recherche, AFD - juin 2009.

The Global Discourse on “Participation” and its Emergence in Biodiversity Protection Olivier Charnoz. - July 2009.

Community Participation in Biodiversity Protection: an Enhanced Analytical Framework for Practitioners

Olivier Charnoz - August 2009.

Les Petits opérateurs privés de la distribution d’eau à Maputo : d’un problème à une solution ? Aymeric Blanc, Jérémie Cavé, LATTS, Emmanuel Chaponnière, Hydroconseil Contact : Aymeric Blanc, département de la recherche, AFD - août 2009.

Les transports face aux défis de l’énergie et du climat Benjamin Dessus, Global Chance.

Contact : Nils Devernois, département de la Recherche, AFD - septembre 2009.

Fiscalité locale : une grille de lecture économique

Guy Gilbert, professeur des universités à l’Ecole normale supérieure (ENS) de Cachan

Contact : Réjane Hugounenq, département de la Recherche, AFD - septembre 2009.

Les coûts de formation et d’insertion professionnelles - Conclusions d’une enquête terrain en Côte d’Ivoire

Richard Walther, expert AFD avec la collaboration de Boubakar Savadogo (Akilia) et de Borel Foko (Pôle de Dakar)

Contact : Nicolas Lejosne, département de la Recherche, AFD - octobre 2009.

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Documentos de trabalho

N° 89

Présentation de la base de données. Institutional Profiles Database 2009 (IPD 2009)

Institutional Profiles Database III - Presentation of the Institutional Profiles Database 2009 (IPD 2009)

Denis de Crombrugghe, Kristine Farla, Nicolas Meisel, Chris de Neubourg, Jacques Ould Aoudia, Adam Szirmai N° 90

Contact : Nicolas Meisel, département de la Recherche, AFD - décembre 2009. Migration, santé et soins médicaux à Mayotte

Sophie Florence, Jacques Lebas, Pierre Chauvin, Equipe de recherche sur les déterminants sociaux de la santé et du recours aux soins UMRS 707 (Inserm - UPMC)

N° 91

Contact : Christophe Paquet, département Technique opérationnel (DTO), AFD - janvier 2010.

Capital naturel et developpement durable en Nouvelle-Calédonie - Etude 2. Soutenabilité de la croissance néo-

calédonienne : un enjeu de politiques publiques

Cécile Couharde, Vincent Géronimi, Elodie Maître d’Hôtel, Katia Radja, Patrick Schembri, Armand Taranco Université de Versailles – Saint-Quentin-en-Yvelines, GEMDEV

N° 92

Contact : Valérie Reboud, département Technique opérationnel, AFD - janvier 2010.

La participation communautaire par delà l’idéalisation et la diabolisation : Protection de la biodiversité à Soufrière, Sainte-Lucie

Community Participation Beyond Idealisation and Demonisation: Biodiversity Protection in Soufrière, St. Lucia Olivier Charnoz, Research Department, AFD - January 2010.

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