Punhalada - Zine Manifesto Contra o Golpe - 2ª Edição

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ÍNDICE Capa

Josafá Neves Artista plástico

3 Akemi Nitahara Jornalista da EBC e representante dos funcionários no Conselho Curador (dissolvido) da empresa 4 Anônimo Elaborado com base em pesquisas e consultas à profissionais que atuam ou atuaram no MEC 6 Anônimo

Ex-engenheiro da Petrobras

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Bruno Monteiro Jornalista e ativista de Direitos Humanos

11 CaboLoza

Atuou na PM-DF com políticas públicas, Direitos Humanos e Ações Sociais por mais de 8 anos.

12 CFEMEA

Centro Feminista de Estudos e Assessoria

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Cristiane Benedetto Advogada especializada em regularização fundiária.

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Emilio Chernavsky e Rafael Dubeux Chernavsky é doutor em economia pela USP. Dubeux é doutor em relações internacionais pela UnB

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Senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP)

18 Alexandre Arbex Valadares e Marcelo Galiza Valadares é graduado em Direito (UNIRIO), mestre em Ciência Política (Iuperj) e doutor em Filosofia (UFRJ). Galiza éraduado em Ciências Econômicas (UnB), mestre em Desenvolvimento Econômico (Unicamp). 21 Letícia Bartholo Socióloga (Unb). Mestre em Demografia (Unicamp). Gestora governamental. 23 Márcio Tavares Historiador e curador e Assessor Técnico da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados 25

Marcos Toscano Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, graduado em direito pela UFPE e mestre em filosofia pela UNB.

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Deputada Federal Maria do Rosário (PT-RS)

28 Marivaldo Pereira Ex-Secretário Executivo do Ministério da Justiça e Ex-Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça 29

Pablo Holmes Professor do Instituto de Ciência Política/UnB

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Senador Paulo Paim (PT/RS) Presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado.


A EBC PÓS-IMPEACHMENT AKEMI NITAHARA

Jornalista da EBC e representante dos funcionários no Conselho Curador (dissolvido) da empresa O governo empossado após o processo de impeachment não aguardou ser efetivado no poder para intervir na Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Apenas três dias depois do afastamento provisório da presidenta Dilma Rousseff, em maio, foram publicadas a exoneração de Ricardo Melo como diretor-presidente da empresa e a nomeação de Laerte Rímoli para o cargo. Como a Lei de criação da EBC (11.652) previa o mandato do diretor-presidente por quatro anos, Ricardo conseguiu um mandado de segurança que o devolveu ao cargo 15 dias depois de exonerado. Mas nesse período em que esteve fora, as intervenções foram profundas. Com nítida perseguição política, houve demissão em massa de pessoas que ocupavam cargos comissionados e funcionários do quadro também perderam posições de chefia que ocupavam. Com a justificativa de corte de gastos, foram suspensos contratos de produções para a TV, como o Observatório da Imprensa, Espaço Público, Brasilianas.org, ABZ do Ziraldo e Papo de Mãe, e também das rádios, alguns com valores bem baixos. Com isso, as grades da TV Brasil e das rádios foram tomadas por reprises. Na tevê, a faixa da reflexão, que trazia debates e entrevistas sobre diferentes questões, foi simplesmente tirada do ar de um dia para o outro, sem nenhuma satisfação ao telespectador. Com o retorno de Ricardo Melo, uma nova grade foi desenhada, mas apenas dois programas de entrevistas retornaram à programação, em horário bem mais cedo e sem o retorno dos apresentadores dispensados. Apenas dois dias após ser efetivado no poder, o governo PMDB investiu novamente contra a EBC. Dessa vez, ferindo de morte o projeto de comunicação pública do país com a edição da Medida Provisória 744, publicada no dia 2 de setembro. Medida autoritária, editada sem diálogo com a sociedade, os funcionários ou o Conselho Curador da Empresa, apesar dos pedidos das entidades nesse sentido.

públicos de comunicação, que dão espaço para o que não é de interesse da mídia comercial, como programação infantil, educativa, cinema nacional e música clássica. Ao retirar da lei todos os artigos que garantem autonomia em relação ao governo e participação social na empresa, a MP 744 torna a EBC uma estatal vinculada, inclusive editorialmente, à Casa Civil. As principais mudanças foram a extinção do Conselho Curador, que garantia participação e controle social efetivos na empresa, e o fim do mandato do diretor-presidente, que passa a ser nomeado e exonerado pelo presidente da república a qualquer momento. Com a MP, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli, entendeu que a liminar que mantinha Melo no cargo perdeu o objeto e Rímoli reassumiu a presidência da empresa. Mesmo sem um aviso formal às redações sobre mudanças editoriais, no dia a dia os funcionários percebem mudanças, às vezes sutis, na publicação dos conteúdos. São manchetes amenizadas para não ficarem contrárias ao governo, informações desfavoráveis colocada no “pé” dos textos, falas de populares cortadas para tirar a palavra “golpe”, galeria de fotos de manifestação não publicada ou publicada sem cartazes com os dizeres “fora Temer”, interrupção da programação das rádios, inclusive as musicais, para a transmissão de pronunciamento do presidente Michel Temer em cerimônia sem urgência jornalística para tanto. Enquanto a EBC passa por um sufocamento orçamentário, com atrasos constantes no pagamento das empresas terceirizadas de limpeza e transporte, cerca de R$ 800 milhões da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP), que é paga pelas empresas de telecomunicações, permanecem bloqueados pelo governo. O recurso não chega e tem sido usado para engordar o superávit primário.

A EBC agrega a TV Brasil, as rádios Nacional e MEC no Rio de Janeiro, em Brasília e na Amazônia, a Agência Brasil e a Radioagência Nacional. Todos veículos

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ANÔNIMO

Elaborado com base em pesquisas e consultas à profissionais que atuam ou atuaram no MEC A agenda educacional do governo Temer, sob responsabilidade de Mendonça Filho no MEC é marcada pela falta de diálogo, pela truculência e por medidas tomadas em gabinetes, permeadas por concepções privatistas e desconhecimento dos acúmulos produzidos pelas entidades e instituições do campo educacional. Ignora o Plano Nacional de Educação (PNE) como referência para a gestão. Em tal cenário, a principal medida que rebaixa a educação e inviabiliza a expansão da oferta e a garantia do direito é a PEC 241 (Proposta de Emenda Constitucional), apelidada, por isso, de “PEC da Morte” ou PEC do Fim do Mundo. A PEC 241 propõe profundo e excessivo ajuste sobre as despesas da União – com impacto nos demais entes federados. A medida, na prática, inviabiliza as principais metas da Lei do PNE, aprovado por unanimidade no Congresso Nacional, após amplo debate na sociedade. Outra medida igualmente devastadora para que se garanta o direito à educação à milhares de pessoas, nos diferentes níveis e modalidades, é a proposta de autoria de José Serra (PLS 131/15) que quer mudar a lei que estabelece a participação mínima da Petrobras no consórcio de exploração do pré-sal e derivados. O regime de partilha na exploração do petróleo é uma conquista da sociedade e gera fontes essenciais para viabilizar as metas e estratégias dos planos de educação e, assim, garantir o direito constitucional à educação. Patrocina, portanto, projeto que vai alterar o modelo de partilha do pré-sal, substituindo pelo modelo de concessão e com isso reduzirá os recursos do Fundo Social, entregando riquezas que poderiam ser investidas em educação à grandes corporações. As medidas, bem como outras patrocinadas pelo atual governo voltadas à desvinculações de receitas ao financiamento constitucional, são medidas devastadoras para o país e não deixam a menor possibilidade de que seja atingido o investimento equivalente a 10% do Produto Interno Bruto na educação, conforme previsto em lei. A universalização da escolaridade obrigatória, dos 4 aos 17 anos, prevista na Constituição, não será garantida com as medidas acima que corroem a oferta e a garantia do direito. Ademais, o governo Temer não se ocupou com qualquer medida para garantir acesso a 1,4 milhões de crianças na faixa de 4 e 5 anos, 600 mil na faixa de 6 a 14 anos e 1,5 milhões na faixa etária de 15 e 17 anos. Ou

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seja, o governo Temer silencia para mais de 3 milhões de pessoas (crianças, adolescentes e jovens) que estão fora da escola, conforme estimativas. Não deu andamento aos processos de negociação e pactuação entre os entes federados para desenvolver ações conjuntas cumprir o PNE, que o governo ignora. Em relação às creches e pré-escola desmantelou a estrutura de coordenação nacional da política de educação infantil no MEC, amplamente reconhecida pelas redes da infância e não adotou ou anunciou qualquer medida atinente à garantir o acesso das crianças de 0 a 5 anos de idade à Educação Infantil em instituições educativas de qualidade, sem anúncio de novas obras. O governo vem, ainda, tratando, com vigor, repassar para o Ministério do Desenvolvimento Social a gestão das creches (0-3) e, também, são fortes as indicações para a adoção de parcerias público-privadas para a administração das unidades de educação infantil. Ignorou o MIEIB No Ensino Médio, além de não propor nenhuma medida forte para assegurar a universalização obrigatória e reduzir a evasão, propôs uma reforma no “canetaço”, reforma construída a poucas mãos, ignorando o legislativo e a sociedade. A reforma foi criticada, de forma quase unânime, pela comunidade educacional. A mesma não trata de questões basilares para o médio; propõe a fragmentação e hierarquia do conhecimento escolar e empobrece a formação a ser oferecida; afunda a concepção de educação integral; exclui disciplinas como filosofia, sociologia, artes e educação física; desmonta a meta de formação de professores e sugere o reconhecimento de “notório saber” e revoga o ensino de língua espanhola, entre outras iniciativas equivocadas. Ignorou inúmeras entidades de estudos e pesquisas e o movimento estudantil. Em relação à inclusão das pessoas com deficiência, esvaziou a SECADI, com numeroso exoneração de servidores. As sinalizações são de retorno a uma política assistencialista às pessoas com deficiência e de privatização do atendimento e segregação, com estímulo às APAES, indicando para retrocesso em relação à inclusão de alunos com deficiência nas escolas regulares Que cresceu mais de 300% nos últimos anos. As políticas educacionais voltadas às populações do campo, aos negros, aos indígenas, aos quilombolas, LGBT e demais grupos historicamente


marginalizados foram paralisadas. Não dialogou com CADARA, FONEC ou CONTAG ou ABGLT, por exemplo. Umas outra meta central para a educação do País, constante do PNE é a alfabetização das crianças. Em contraponto, o governo de Temer acabou com o Pacto pela Alfabetização na Idade Certa, inspirado em experiências bem sucedidas, especialmente no estado do Ceará. Desestruturou o Programa Mais Programa Educação e sua concepção de educação Integral, inviabilizando o cumprimento da meta 6 do PNE. Revogou o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB), construído a muitas mãos, com sua concepção ampla de avaliação, reduzindo-a a testes padronizados. Inviabilizou, também o novo SINAES, avaliação da educação superior. Ao invés de propor medidas efetivas para erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir a taxa de analfabetismo funcional, acabou com o Brasil Alfabetizado e desmantelou a equipe da EJA no MEC. Não viabilizou qualquer medida para estimular matrículas de EJA na forma integrada à educação profissional. Não dialogou com os Fóruns de EJA do Brasil. Ao invés de promover matrículas da educação profissional técnica de nível médio, com expansão no setor público, abre as portas para o chamado “Sistema S” e inviabiliza a rede federal. Suspendeu o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), Pronatec EJA e desmantela a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, reduzindo drasticamente o orçamento necessário para a manutenção das atividades nos Institutos Federais. Cortou até internet das Universidades e o orçamento anunciado para 2017 foi reduzido em 20% e é insuficiente para as despesas essenciais das Universidades Federais e incompatível com o processo de expansão e inclusão no ensino superior que vinha sendo viabilizado nos últimos anos. Deixou atrasados inúmeros contratos do FIES, cortou recursos do PROUNI e indica a possibilidade de cobrança de mensalidades nas públicas. No campo da educação superior estão comprometidas ainda, com as iniciativas do governo usurpador, a meta de ampliação da proporção de mestres e doutores do corpo docente. O governo vem ainda anunciando sucessivos cortes em programas de bolsas, da iniciação cientifica às bolsas de produtividades, afetando a pesquisa e a produção cientifica, acadêmica e tecnológica. O governo deveria assegurar que todos os professores e as professoras da educação

básica possuam formação de nível superior e tenham boa remuneração. Ao contrário promove ataque aos professores e a pretensos privilégios, sugerindo revisões rebaixadas à lei que garante piso salarial profissional nacional, inviabilizando a meta de equiparação do rendimento médio dos docentes ao dos(as) demais profissionais com escolaridade equivalente. Sugere uma má explicada contratação de profissional que apresentem “notório saber”. A atual gestão, ainda, ignora a Política Nacional de Formação dos Profissionais da Educação Básica e os Fóruns Permanentes de Apoio à Formação Docente constituídos em cada estado, mais uma vez vez propondo soluções mágicas e de gabinetes. Também as iniciativas de intercâmbio estudantil, especialmente na graduação, e o estímulo à pesquisa, especialmente a jovens que nunca teriam oportunidades, foram afetadas. Iniciativas como o Ciência sem Fronteiras, Pibid, Pibic e outras bolsas, estimulam a produção acadêmica e a pesquisa e são todas iniciativas que sofreram graves cortes pelo Governo usurpador. Também acabou com o Cadastro Nacional de Concluintes (CNE), portal dos diplomas, cujo o objetivo era combater as fraudes e dar publicidade. Revogou as nomeações de conselheiros amplamente reconhecidos pela comunidade educacional e indicados após amplo processo de consulta. Desmantelou o Fórum Nacional de Educação (FNE) e suas condições de funcionamento operacionais, com inúmeras exonerações e diminuição do quadro de pessoal. Vem substituindo técnicos e servidores qualificados por indicações partidárias e de grandes corporações privadas, além de perfis bem questionáveis: a secretaria executiva é tocada por responsáveis pelo fracassado sistema de bonificação de São Paulo; a secretaria de regulação é ligado a um dos maiores grupos de educação superior privado do país; tem assessora especial indicada, ex-chefe de gabinete de Raul Jungmann; uma assessora da executiva é ex-secretária de José Serra e sócia de suposta mesada de 70 mil; na ASPAR tem ex-administrador regional da gestão do governador que foi preso, Arruda; a diretoria de Políticas de Educação Profissional e Tecnológica conta com ligado ao senador Aloysio Nunes e por aí vai... Chegou até mesmo nomear um dos ideólogos e defensores da inconstitucional medida “Escola sem Partido” para assessor especial...

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PETROBAS ANÔNIMO

Ex-engenheiro da Petrobras com 36 anos de experiência no setor petrolífero. O aprofundamento da desintegração da Petrobras a partir do golpe Em 1953, com a aprovação da Lei nº 2004, foi criada a Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobras, com a missão de ser a executora do monopólio estatal do petróleo. O período de monopólio, exercido até 1997, foi uma fase histórica do País. A Petrobras foi implantada, expandida e integrada, com esforço e dedicação de muitos brasileiros. Até 1985, a Petrobras construiu seu parque de refino e garantiu o abastecimento nacional de combustíveis. Foram construídas 12 refinarias e foram feitos grandes investimentos em oleodutos, terminais petroquímica e fertilizantes. A Petrobras promoveu a formação de mão de obra qualificada, desenvolveu produtos e serviços em todo o território nacional e tornou-se impulsora de um projeto de desenvolvimento nacional. A estatal manteve-se como executora do monopólio estatal do petróleo nas atividades de exploração, produção, refino, transporte e comércio exterior até a promulgação da Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997. A partir dessa lei, a União passou a poder contratar essas atividades com outras empresas. Na área de exploração e produção, a concorrência, a partir da introdução do regime de concessão, não inibiu as atividades da integrada e competente empresa construída ao longo do monopólio. Foi sob esse regime que a Petrobras descobriu a província do Pré-Sal, a partir da perfuração na área de Parati em 2006. A seguir, veio a extraordinária descoberta de Lula, o campo de maior produção no País. Também são extraordinárias as descobertas de Búzios e Libra. Cada um desses campos tem volumes recuperáveis de petróleo acima de 10 bilhões de barris. O risco assumido pela Petrobras na descoberta do Pré-Sal jamais seria assumido por empresas privadas. Essa descoberta é o principal evento do setor petrolífero mundial das últimas décadas. Foi a estatal criada pelo monopólio que garantiu ao Brasil a liderança tecnológica mundial em águas profundas. A descoberta do Pré-Sal levou à introdução do regime de partilha de produção, tendo a Petrobras como operadora e com

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participação mínima de 30%, nos termos da Lei nº 12.351, de 22 de dezembro de 2010. Atualmente, o Pré-Sal já produz mais de 1 milhão de barris de petróleo por dia, o que já representa cerca de 38% de toda a produção nacional de petróleo, produção essa obtida em apenas dez anos após a descoberta. A produção do Pré-Sal exigiu altos investimentos na área de exploração e produção. No entanto, também foram altos os investimentos em unidades de refino e fertilizantes, muitos deles suspensos ou cancelados. É importante reconhecer que houve sérios problemas de gestão e de corrupção na área de abastecimento de 2005 a 2014. Os investimentos na área de exploração e produção foram altos, mas estão gerando recursos para o caixa da empresa; o mesmo não se pode dizer da área de abastecimento. Os altos investimentos levaram ao aumento do endividamento da Petrobras. Houve, ainda, a redução de valores de ativos da empresa, principalmente na área de abastecimento. Isso levou ao aumento da alavancagem da empresa. O Plano de Negócios e Gestão da Petrobras para o período de 2015 a 2019 – PNG 20152019 sinalizou uma alteração de rota no cenário de investimentos da Petrobras e no plano de desinvestimentos. O PNG 2015-2019, primeiro sob a Presidência de Aldemir Bendine, apresentou uma previsão de investimentos de US$ 130,3, o que representou um corte de investimento de US$ 90,3 bilhões em relação ao PNG 20142018, que previa investimentos de US$ 220,6 bilhões. Esse corte incluiu oito plataformas, três refinarias, uma petroquímica, duas fábricas de fertilizantes, entre outros. Para reduzir a alavancagem líquida1, a estatal anunciou a suspensão de uma série de investimentos, entre eles as refinarias Premium I e II e o Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro – Comperj, e reduziu a previsão de contratação de novas plataformas.

1 Razão entre a dívida líquida e a soma do patrimônio líquido com a dívida líquida.


Na área de exploração e produção, a previsão de investimentos foi reduzida em US$ 76,5 bilhões, o que trouxe impactos diretos sobre a sua curva de produção no País. O corte previsto nas metas de produção foi de 33%, com uma redução de 4,2 milhões de barris de petróleo por dia – mmbpd para 2,8 mmbpd. De acordo com o PNG 2015-2019, o montante de desinvestimentos da Petrobras para o período entre 2015 e 2016 foi de US$ 15,1 bilhões. O plano também previa esforços em reestruturação de negócios, desmobilização de ativos e desinvestimentos adicionais, totalizando US$ 42,6 bilhões entre 2017 e 2018. Em julho de 2015, o Conselho de Administração da Petrobras aprovou a reestruturação e venda de ativos da Transportadora Associada de Gás – TAG, que opera os gasodutos da empresa. Também foi apresentado o cronograma para a oferta pública inicial de ações da BR Distribuidora. Em decorrência do golpe, em maio de 2016, o Sr. Aldemir Bendine renunciou aos cargos de Conselheiro de Administração e de Presidente da Companhia. Em face dessa renúncia, o Conselho de Administração nomeou o Sr. Pedro Parente para o cargo de Conselheiro de Administração da Petrobras. O Conselho também elegeu o Sr. Parente para o cargo de Presidente da empresa. O processo de redução dos investimentos e de venda de ativos se acentua a partir dessa eleição. Em maio de 2016, a Diretoria da Petrobras aprovou a condução de negociações com a empresa Brookfield para a venda da Nova Transportadora do Sudeste – NTS, resultante da reestruturação e venda de ativos da TAG. Em julho de 2016, o Conselho de Administração aprovou, a alteração do modelo de alienação de participação na BR Distribuidora, encerrando o processo competitivo em curso e iniciando uma nova modalidade de venda. O novo processo buscará parceiros com os quais a Petrobras compartilhará o controle da distribuidora, de forma que a Petrobras fique majoritária no capital total, mas com uma participação de 49% no capital votante. Dessa forma, além da NTS, será privatizada a BR Distribuidora. Em setembro de 2016, foi apresentado o Plano de Negócios e Gestão – PNG 2017-2021.

O primeiro plano sob a presidência do Sr. Pedro Parente, representa um novo marco na história da Petrobras. O PNG 2017-2021 tem como foco a redução da relação dívida líquida/EBITDA, chamada de alavancagem, de 5,3 para 2,5. Para se obter essa redução, em três anos, será grande o corte nos investimentos, elevadas as amortizações e aprofundado o plano de desinvestimentos. Esse plano estima uma fonte de recursos de US$ 179 bilhões de 2017 a 2021, assim distribuída: geração de caixa operacional, após dividendos: US$ 158 bilhões; parcerias e desinvestimentos: US$ 19 bilhões; uso do caixa: US$ 2 bilhões. Essa fonte de recursos terá os seguintes usos: investimentos: US$ 74 bilhões; amortizações: US$ 73 bilhões; despesas financeiras: US$ 35 bilhões. Os usos e fontes de recursos é mostrado na Figura 1.

Figura 1 - Usos e fontes de recursos. As parcerias e desinvestimentos no total de US$ 19 bilhões representam a venda de ativos, alguns estratégicos para a Petrobras. Em vez de realizar essa venda, esses recursos poderiam ser obtidos com a redução da amortização prevista de US$ 73 bilhões para US$ 54 bilhões. Com uma amortização de US$ 54 bilhões, a dívida bruta da empresa cairia de US$ 124 bilhões para US$ 70 bilhões. Assim a alavancagem cairia para cerca de 3, em vez de cair para 2,5, e os ativos seriam preservados. O custo de rolagem da dívida ou de novas captações pela Petrobras é de cerca de 8,6% ao ano. Esse custo é menor que a rentabilidade de ativos estratégicos como a BR Distribuidora e a NTS.

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Mesmo com a queda nos preços do petróleo, as grandes petrolíferas mundiais não optaram pela venda de suas distribuidoras, uma vez que elas são fundamentais financeira e estrategicamente. A marca das petrolíferas é mostrada nos postos de gasolina. O PNG 2017-2021 também estima investimentos de somente US$ 74 bilhões, valor muito menor que o PNG 2015-2019, que foi de US$ 130,3 bilhões. Desse total, US$ 60,6 serão investidos na área de exploração e produção, com foco no Pré-Sal. Nas outras áreas, os investimentos são praticamente os necessários à continuidade operacional. O novo plano da Petrobras indica a criação de uma empresa de petróleo, com foco na produção de áreas do Pré-Sal já descobertas, na privatização de subsidiárias estratégicas e a venda de participação de ativos no polígono do Pré-Sal, com destaque para ativos do Pós-Sal na Bacia de Campos. Essa “empresa de petróleo” poderá, no futuro, também ser privatizada. Isso representaria a transferência das extraordinárias jazidas do Pré-Sal e respectivas instalações para outras empresas estrangeiras. A empresa estatal integrada, com participação estratégica em todo o território nacional, proprietária de refinarias, fábricas de fertilizantes, unidades petroquímicas, plantas de biocombustíveis e operadora de oleodutos, gasodutos, terminais está sendo, desnecessariamente, desintegrada. O PNG 2017-2021 é produto do golpe e sinaliza para o fim do principal projeto nacional de iniciativa do então Presidente Getúlio Vargas, concebido na luta “O Petróleo é Nosso” que contou com o apoio do povo e do Congresso Nacional. Cabe aos brasileiros preservar esse projeto. Os erros cometidos por vários gestores da Petrobras não devem ser utilizados como justificativa para a desintegração da empresa. Tecnicamente, não há necessidade para essa desintegração, que trará enormes prejuízos ao povo brasileiro.

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UM GOLPE NOS DIREITOS BRUNO MONTEIRO

Jornalista e ativista de Direitos Humanos. Foi Diretor de Comunicação e Chefe de Gabinete da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República na gestão da Ministra Maria do Rosário (2011-2014), Chefe de Gabinete da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República na gestão da Ministra Eleonora Menicucci (2015) e Assessor Especial da Presidenta da República Dilma Rousseff (2016). A chegada da esquerda ao governo em 2003 inaugurou uma nova era no Brasil. Concordando ou não com as diretrizes dos governos Lula e Dilma, é inegável reconhecer que estes 13 anos e meio significaram uma histórica transição sobre o foco da ação do Estado. A superação da miséria como prioridade absoluta marcou um novo início. No exato momento em que o Presidente da República de origem popular e oriundo das lutas dos/as trabalhadores/as disse no seu discurso de posse que “se, ao final do meu mandato, todos os brasileiros tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e jantar, terei cumprido a missão da minha vida” deu o tom dessa mudança. Vivenciamos uma gradual evolução. Saímos do Mapa da Fome e vidas se transformaram. Trabalhadores conquistaram qualificação profissional, milhões ascenderam à classe média, jovens de periferias ingressaram nas universidades e alcançaram o tão distante diploma superior. Ter casa própria, carro e viajar deixaram de ser sonhos distantes e se tornaram possibilidades concretas. E as pessoas não se conformaram nem se acomodaram com o que alcançaram. Quando a Presidenta Dilma Rousseff disse que “o fim da miséria é só um começo”, resumiu a constante inquietude e busca por mais realizações. E o campo que melhor resume esse processo interrupto de reivindicações é a busca por direitos. Durante muito tempo, vivemos numa conformidade de que as coisas eram assim porque sempre foram e continuariam sendo, como se vivêssemos condenados a aturar uma realidade estanque de estado das coisas, sob orientação de valores machistas, racistas, patriarcais, homofóbicos e elitistas.

No entanto, quando uma significativa parcela da população venceu a barreira da fome, que até bem pouco tempo atrás parecia intransponível, foi aberta uma porteira que felizmente não se consegue mais fechar. A primeira gestão de Dilma iniciou tendo Direitos Humanos como identidade. Não simplesmente porque estava assumindo o poder pela primeira vez uma mulher e ex-presa política que combateu o regime de exceção ditatorial, mas pelo expresso compromisso que ela assumiu com essa pauta como continuidade daquela inversão de prioridades iniciada por Lula. Com isso, o Brasil viveu uma ousada e necessária ação governamental para resgate de dívidas e consolidação de avanços. Foi criada a Comissão Nacional da Verdade, que investigou com profundidade e independência as violações de Direitos Humanos ocorridas durante a ditadura militar e apontou os responsáveis pelas atrocidades daquele período; o Estado meteu a colher na briga de marido e mulher e criou mecanismos legais e serviços de atenção às mulheres que sofrem violência; pessoas com deficiência passaram a contar com um plano nacional de direitos, reunindo ações que lhes garante autonomia e dignidade; o governo assumiu a realização de estudos oficiais sobre a violência cometida contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais e defendeu com clareza a necessidade de legislações que reconheçam os direitos dessa população e enfrentem os crimes; crianças e adolescentes foram chamados para opinarem naquilo que lhes diz respeito e auxiliarem na formatação de políticas públicas, superando a ideia de que seriam somente o futuro, enquanto no presente teria sempre alguém que por elas

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decidia; criou-se mecanismos eficientes de garantia da presença dos negros nos cursos de formação e no mercado de trabalho; empregadas domésticas quebraram as correntes que as prendiam à senzala e passaram a ser reconhecidas como trabalhadoras. Enfim, vivenciamos uma intensa agitação popular de seres humanos que romperam a barreira da invisibilidade e passaram a reivindicar protagonismo. É evidente e seria uma miopia dizer que tudo foi feito pelo governo neste período. Muito se deixou de fazer e muitas outras ações só tiveram um primeiro passo. Mas a contraofensiva daqueles que se acostumaram e tinham seus privilégios garantidos pelo sistema anterior não deixa dúvidas de que a preocupação era em interromper imediatamente este processo antes que ele se tornasse irreversível. Não por acaso o início do golpe é em 2013, quando os setores mais conservadores com representação no Congresso Nacional levam um dos seus para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Ali ficou claro que eles já estavam engasgados em engolir tamanha transformação social. O enfrentamento ao projeto político em curso no Brasil foi invocando os valores da família tradicional, condenando as expressões de liberdade, atribuindo aos jovens a responsabilidade pela criminalidade e associando defensores/ as de Direitos Humanos à violência. A reação se deu nas ruas, de forma espontânea e politizada, com gritos que estavam presos na garganta desde 1500. A polarização virou tema de debates políticos, matérias jornalísticas, conversas de família, entre amigos, manifestações em redes sociais. Esse clima tomou conta da campanha presidencial de 2014, a mais polarizada da nossa história recente, sobretudo a partir de uma discussão acalorada sobre valores e direitos. Para desespero dos defensores do modelo tradicional de sociedade, pela quarta vez, provaram o gosto amargo da derrota. Mas não estavam dispostos a engolir mais

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avanços. A eleição da bancada mais conservadora pós-ditadura no Congresso revelou que estávamos diante de um tempo nefasto. Foi neste Congresso que vimos avançar retrocessos como o Estatuto da Família, o projeto de “cura gay”, a redução da maioridade penal e, como cereja do bolo, o golpe de Estado de 2016, em nome de Deus, da família, de interesses corporativos e econômicos. Não por coincidência, o primeiro escalão do governo golpista é formado somente por homens brancos. Estruturas estatais que tratavam de Direitos Humanos, Políticas para as Mulheres e Igualdade Racial foram rebaixadas, perderam orçamento e importância. É a prova inequívoca de que o golpe foi contra as conquistas dessas populações que os opressores de sempre preferiam manter sob o rótulo de minorias. Engana-se quem considera que essa redução de status, importância e símbolos é somente em nome da austeridade fiscal. Isso faz parte do roteiro essencial do golpe, que foi e é contra os avanços sociais e de direitos que mexeram no estado das coisas e provocaram tanta convulsão popular. Reagir ao golpe, portanto, significa reafirmar direitos, mostrar que o pouco ou o muito que se conseguiu até aqui nos mobiliza a buscar ainda mais e que quem passou a ser reconhecido como ser humano jamais vai admitir voltar para a invisibilidade tão cômoda aos nossos algozes. Estamos diante de um momento em que a mobilização e reivindicação por direitos é indigesta para os golpistas e necessária para que não sejamos sugados por uma nova onda de retrocessos e ódio. Tendo como armas o respeito e os direitos, haveremos de enfrentar essa maré e vencermos com democracia e Direitos Humanos.


POLICIAR POLÍCIA CABOLOZA

Atuou na PM-DF com políticas públicas, Direitos Humanos e Ações Sociais por mais de 8 anos.

É inerente à profissão policial militar cumprir com algumas prerrogativas como: “Ordem absurda não se cumpre!” Porém, e parece que um porém geralmente costuma incumbir uma decepcionante salvaguarda, exceções potencialmente viram regras. A exemplo da referência administrativa de política que se tem, em termos de representação estatal que nos comporta quanto cidadãos brasileiros, a corrupção é normativa. Eis nossa cultura, eis o que norteia nossa conduta, principalmente quanto mais se é apático e mecânico, em conformidade à realização capitalista de indução ao consumismo e futilidade baseados na alienação e bestialidade humanas. É interessante que o PM seja burro, por isso foi difícil aceitar que um soldado tenha nível superior de escolaridade, e não que isso torne alguém realmente melhor, como provam muitos analfabetos, mas quanto mais fácil a lavagem cerebral, maior a chance de se corresponder à lógica das atrocidades análogas ao golpe que se vive no Brasil. O comandante que profere uma ordem humanamente vexatória à tropa, correspondendo unicamente aos interesses de sua panela diplomática detentora de “poder”, reverbera sua atitude e pensamento egoístas e antidemocráticos também por empatia. O policial militar tem a opção por zelar pelos direitos humanos, tem a opção por ser cortês e preservacionista independentemente de com quem. Ele não deveria estar ali para tomar partido, mas para garantir a integridade física e o respeito aos direitos de todo e qualquer cidadão. Poderia ser uma espécie de Jesus que faz o bem sem olhar a quem, uma cara maneiro, amigo, justiceiro e , por que não, rastafári.

Contudo infelizmente, e isso é realmente assustador, o PM brasileiro precisa carregar uma tralha de equipamentos inclusive para se preservar da hostilidade que encara dia a dia, comendo o pão amassado pelo diabo, mesmo sendo o melhor pai do mundo ou mãe solteira de cinco leões. O problema da polícia não está na ideia ou necessariamente nos manuais de instrução policiais, está no âmago do nosso lado coxinha, que revela nosso jeitinho brasileiro de ser esperto ao contrário. Afinal a polícia parece existir porque pessoas temem pessoas. A polícia é cria nossa. Num contexto em que legislação é praticamente uma farsa, o que se esperar de amparo legal em prol de cidadãos lesados desde a dimensão de impostos pagos, à precariedade dos serviços públicos prestados? Não ficam aparentes necessariamente mudanças na ação policial diante do golpe em voga, mas a permanência de uma tendência que sempre acometeu a polícia militar brasileira, onde ela hegemonicamente reverbera a voz que vem de cima, do lugar dos semideuses cunhas. É sistêmico! O argumento de que a corda arrebenta do lado mais fraco está impregnado historicamente na dinâmica da “hierarquia e disciplina”. Não adianta apenas criticar, a contracultura que age a favor de uma reforma ideológica deve habitar as atitudes cotidianas. Hei soldado, você está do nosso lado! Policie-se.

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NO GOLPE MISÓGINO, OS DIREITOS DAS MULHERES VÃO PRIMEIRO A LEILÃO CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA (CFEMEA) Na lista das piores ações do Michel Temer depois de consolidar o golpe parlamentar, a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/2016 na Câmara dos Deputados atinge em cheio os direitos das mulheres. A PEC da Maldade limita os gastos federais ao índice de inflação do ano anterior; desvincula os benefícios do salário mínimo; e congela em 20 anos os gastos públicos, como os em saúde e educação. A proposta é a principal meta do atual governo para destruir as políticas públicas em curso. O congelamento dos investimentos inviabiliza a execução de políticas fundamentais para a sociedade e que não podem ser medidas pelos índices de inflação ou de mercado financeiro. A Previdência Social, junto com a Assistência Social e a Saúde, representam o nosso sistema de Seguridade Social. O tripé das políticas públicas mais redistributivas de renda foram comemoradas pelos movimentos sociais e pela sociedade brasileira à época da formulação da nossa Constituição Cidadã de 1988. O desmonte desse sistema representa o abandono da população por parte do Estado. O desmonte das políticas públicas causam um grande impacto na vida cotidiana das brasileiras. Com a precarização das políticas de saúde e educação, é sobre elas que recai o aumento das jornadas de trabalho e os maiores empecilhos da conciliação entre vida familiar e trabalho assalariado. A realidade das brasileiras caminha no sentido oposto ao proposto pela PEC. São mais e mais mulheres chefes de família, com salários defasados em relação aos homens, trabalhos mais precarizados e com maiores chances de desemprego. O que as mulheres brasileiras precisam é de políticas públicas efetivas, capazes de liberar tempo de trabalho reprodutivo para terem oportunidades mais igualitárias. A primeira presidenta eleita foi afastada do seu cargo num golpe parlamentar e midiático que destituiu concreta e simbolicamente o poder do voto, de eleição e de governo de

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milhões de brasileiras. Um ataque violento que reverbera no imaginário social, liberando e estimulando a violência machista reinante em nossa sociedade, não só contra a presidenta Dilma Rousseff, mas contra as mulheres em geral. Não por acaso, durante o primeiro semestre de 2016, o número de denúncias de violência contra as mulheres recebidas pelo Disque 180 aumentou em mais de 100%. Estão nos querendo dizer que não somos competentes, que não somos capazes, que não temos o direito de decidir nem sobre as questões de interesse público, nem sobre as nossas próprias vidas. A lição urgente que deve ser aprendida é que em situações de crise política e econômica, nós mulheres e tod@s que estamos subrrepresentad@s nos espaços de poder e decisão somos @s primeir@s prejudicad@s e temos os direitos vendidos e negociados em primeiríssimo turno. A arena política da representação partidária é virulenta contra nós mulheres. Somente um novo sistema político, provido de mecanismos para enfrentar o poder patriarcal e o poder econômico, pode avançar para a democratização do poder com a participação das mulheres. As estruturas patrimonialistas mantidas por esses poderes sustentam a corrupção, privilégios raciais e diversas formas de exploração do nosso trabalho produtivo e reprodutivo, bem como de apropriação privada dos bens comuns. Precisamos de um outro sistema político, com antídotos para evitar que o fundamentalismo religioso e outras forças restritivas das liberdades (sexual, de credo, política etc.) nos imponham retrocessos ainda maiores. No cerne desse conflito político, há que se travar embates envergadura, em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, da questão do planejamento reprodutivo, aborto legal, da educação não sexista. Todos esses embates são estratégicos para enfrentar o conservadorismo, para denunciar o golpe, a misoginia e efetivamente promover a autonomia das mulheres.


RETROCESSOS SE AVIZINHAM NA POLÍTICA DE DESTINAÇÃO DE IMÓVEIS PARA PROVISÃO HABITACIONAL CRISTIANE BENEDETTO Advogada especializada em regularização fundiária. Trabalhou como Coordenadora Geral de Habitação e Regularização Fundiária na Secretaria do Patrimônio da União de dez2008 a maio2016 Políticas sociais de grande impacto correm o risco de serem extintas, pois aos poucos estão sendo minadas pelo atual governo federal. Uma delas é a política de destinação de imóveis públicos federais que apoia diversos programas sociais, entre os quais: habitação, regularização fundiária de comunidades urbanas e rurais, reforma agrária, educação, saúde e desenvolvimento local. A Secretaria do Patrimônio da União - SPU, órgão do executivo federal vinculado ao Ministério do Planejamento, responsável pela gestão dos bens imóveis da União1, corre o risco de sofrer grandes retrocessos nos próximos anos. Há no órgão diversas ações que vem sendo ameaçadas de continuidade pelo Governo atual. Aqui pretendemos abordar um pequeno recorte deste tema, que é a política de destinação de imóveis públicos da União, em apoio ao programa habitacional Minha Casa Minha Vida - Entidades, que está suspenso pelo Ministério das Cidades, sem previsão de novas contratações. Esta modalidade do programa habitacional tem o diferencial de ter os recursos públicos direcionados para elaboração e execução de projetos habitacionais, tendo como protagonistas desta ação entidades sem fins lucrativos, habilitadas no Ministério das Cidades, que organizam grupos de famílias de baixa renda para o atendimento da demanda habitacional. Essa modalidade foi desenvolvida pelo Governo Lula e Dilma a partir de demanda e luta dos Movimentos Sociais de Moradia e teve resultados exitosos na combinação de bons projetos em áreas melhor dotadas de infraestrutura, com atendimento a famílias com renda mensal de

até três salários mínimos. A SPU, após 8 anos de trabalho, conseguiu identificar e vistoriar mais de 150 imóveis da União, dos quais cerca de 130 foram reservados para produção social da moradia com recursos dos programas federais. Foram destinados, até junho de 2016, metade desses imóveis. A outra metade está em processo de destinação às entidades, vários deles ainda pendentes de regularização patrimonial. Isso só foi possível porque a partir de 2003 passou por uma revolucionária reformulação institucional, que delineou a nova política de gestão de imóveis públicos federais, visando inverter a lógica histórica e perversa marcada pela centralização de poder e pela visão meramente arrecadatória deste patrimônio imobiliário que sempre foi usado para beneficiar poucos em detrimento de muitos. Desde então, o órgão passou por um amplo processo de reestruturação que está intrinsecamente ligado às mudanças instituídas no âmbito federal a partir da vitória nas urnas de Lula como Presidente da República, quando foram construídas e articuladas novas políticas de gestão do território, que passaram a tratar as demandas por habitação e por regularização fundiária de interesse social como prioritárias para minimização das desigualdades e consecução da nova ordem jurídico-urbanística. Não podemos esquecer que esta nova ordemjurídica, por sua vez, adveio das conquistas sociais no processo da constituinte, quando atores sociais assumiram o protagonismo no debate sobre a gestão das cidades, entre os quais os movimentos sociais de luta por moradia e pela reforma urbana.

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As destinações de imóveis da União, em linhas gerais, passaram a ser gratuitas, às pessoas físicas ou jurídicas, quando presente o interesse público ou social, dispensandose o procedimento licitatório para pessoas físicas, entes federativos, associações sem fins lucrativos e cooperativas, que se enquadram nos critérios legais. Em uma ação sem precedentes históricos, em março de 2008 a SPU instituiu o Grupo de Trabalho Nacional de apoio à Produção Social da Moradia - GTN, com a incumbência de definir critérios para destinação de imóveis da União para programas de provisão habitacional de interesse social e propor estratégias para fortalecimento desse tipo de gestão democrática. Na época isso só foi possível devido a forte atuação dos movimentos sociais de luta por moradia que reivindicaram mais uma vez a participação efetiva e direta nas tomadas de decisões em instâncias estratégicas do Governo Federal. O GTN foi formado por representantes do órgão, do Ministério das Cidades, da Caixa Econômica Federal e pelos segmentos da sociedade civil com assento do Conselho Nacional das Cidades – ConCidades (Portaria SPU nº 80, de 27 de março de 2008), entre os quais movimentos sociais de moradia, Organizações Não Governamentais, Universidades, Poder Público estadual e Municipal, entidades de classe, etc. A metodologia desenvolvida pelo grupo de trabalho se mostrou inovadora, pois nos primeiros 6 meses de funcionamento ele identificou, vistoriou e reservou, por meio de Portaria específica, 21 imóveis para desenvolvimento de projetos geridos por entidades sem fins lucrativos, com a possibilidade de beneficiar até 1.500 famílias de baixa renda1.

1 DOU, Portaria SPU 388, de 22/10/2008, e Portarias SPU 46 e 47, de 6 de abril de 2015. Informações na página oficial da SPU - http://www.planejamento. gov.br/assuntos/patrimonio-da-uniao/ 14

O êxito do formato estabelecido resultou na instituição de Grupos de trabalho estaduais - GTEs, nas Superintendências do Patrimônio da União, presente em cada Estado da federação. Todavia, há que se ressaltar que atualmente a maioria dos GTEs não está funcionando. Estima-se que há sérios riscos dessas ações desaparecerem na atual gestão, por falta de priorização e investimentos. Resta saber se os movimentos sociais assumirão novamente o protagonismo na luta por moradia e reivindicarão a participação no processo de deliberação da nova política de destinação de imóveis da União que vem sendo desenhada. Diante do caráter antidemocrático, autoritário e privatista do governo Michel Temer, os principais avanços que estão em risco de serem sepultados referem-se à garantia de uma gestão democrática do patrimônio da União com a participação ativa de movimentos sociais, assim como o fortalecimento de novos sujeitos coletivos de direitos; a desburocratização das destinações de imóveis da União; a ampliação do acesso a informações, antes concentradas em poder de poucos; a gestão compartilhada que possibilitou o diálogo permanente durante as etapas da identificação, seleção e destinação de imóveis da União; e, o fomento e a realização de articulações e parcerias que buscavam compatibilizar as limitações de recursos internos com o atendimento das demandas institucionais e da população. Resta saber se esses sujeitos de direitos resistirão ao cenário de violência, retrocessos sociais e exploração econômica que se avizinha. Torcemos que sim. (Endnotes) 1 Constituição Federal, art. 20 e página oficial da SPU - http://www. planejamento.gov.br/assuntos/ges tao/ patrimonio-da-uniao/bens-da-uniao

noticias/spu-altera-procedimentos-nadestinacao-de-imoveis-para-fins-sociais


CORTINA DE FUMAÇA PARA O ESTADO MÍNIMO? EMÍLIO CHERNAVSKY E RAFAEL DUBEUX Chernavsky é doutor em economia pela USP. Dubeux é doutor em relações internacionais pela UnB Na última terça-feira 25 a Câmara dos Deputados aprovou em segundo turno a PEC 241, Proposta de Emenda à Constituição que limita por vinte anos em termos reais os gastos primários da União aos valores realizados em 2016. Ela tem sido defendida no Congresso e nos meios de comunicação como indispensável para reverter o desequilíbrio fiscal do Governo Federal e salvar o país do desastre; segundo o relator da proposta na Câmara, “sem a sua aprovação, nossa economia entrará em colapso nos próximos anos, com devastadoras consequências para a coesão social. [...] o Dia do Juízo Fiscal chegará e atingirá a todos.” Tal previsão apocalíptica se apoia no diagnóstico de que o Brasil se encontra numa profunda crise fiscal, com uma trajetória explosiva de crescimento da dívida pública que aumentará seu custo de financiamento e levará, em um futuro próximo, à recusa por parte dos investidores em financiá-la; nessa situação, somente restaria ao governo aumentar fortemente os impostos ou recorrer à emissão inflacionária de moeda. Já antevendo essa possibilidade os empresários teriam deixado de investir, contribuindo para a recessão atual que se aprofundará se nada for feito. É nesse contexto que a PEC, ao sinalizar aos agentes o esforço em buscar a sustentabilidade da dívida seria crucial para rapidamente recuperar a confiança, reduzir a taxa de juros e retomar o investimento e, com ele, o crescimento econômico e a arrecadação fiscal. É verdade que o país atravessa uma recessão profunda e que a situação fiscal não é confortável, e que a dívida

pública assumiu nos últimos dois anos uma trajetória indesejada. Contudo, não é claro que a introdução de um limite aos gastos como o proposto pela PEC seja capaz de cumprir suas promessas, mesmo que ele fosse mantido no tempo – o que não é certo diante dos sacrifícios que impõe à população e do desgaste político que provoca numa base governamental frágil. De fato, mesmo assumindo que a medida ajude a aumentar a confiança dos empresários no governo e a reduzir os juros, as perspectivas de rentabilidade do investimento produtivo são pouco promissoras. Isto porque o consumo interno deve permanecer em queda por um longo período com a continuidade da deterioração do mercado de trabalho e a cautela dos bancos em emprestar com a alta da inadimplência, e a demanda externa deve seguir prejudicada pela valorização real da taxa de câmbio e pela estagnação da economia internacional. Por outro lado, mesmo que o governo supere as dificuldades de regulação e financiamento e as empresas do setor resolvam seus problemas jurídicos e financeiros ou, ainda, firmas estrangeiras entrem no mercado – nada do que é garantido – é difícil crer que o investimento em infraestrutura possa alavancar a economia em ambiente tão adverso. Sem a prometida retomada do investimento privado, e com o investimento público contido em função do limite aos gastos, a expansão do PIB e a arrecadação do governo não se recuperariam, e a dívida pública continuaria a crescer. Anunciada como imprescindível para retomar o crescimento e solucionar o problema fiscal, a PEC fracassaria na busca de

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ambos os objetivos. Mesmo com esse fracasso, o limite aos gastos poderia ainda ser defendido com base em sua contribuição para uma melhor administração das finanças públicas, uma vez que eleva a previsibilidade da política fiscal e evita o aumento dos gastos em momentos favoráveis que acentua o ciclo econômico. Todavia, não parece ser esse o objetivo da proposta, pois, se assim fosse, o limite deveria, como tipicamente ocorre nos países em que é adotado, ser indexado à evolução do PIB ou da receita do governo, para que os gastos possam acompanhar a capacidade do país de custeá-los. Poderia também ser indexado à dívida pública, que é justamente o indicador que se pretende reduzir ou estabilizar. Ainda, poderia ser definido como uma taxa de crescimento em termos reais aplicada durante um período curto, possivelmente equivalente ao da legislatura, o que permitiria adaptar a política fiscal a choques adversos e a mudanças nas preferências da sociedade de forma clara e transparente. Ao seguir outro caminho e inscrever na Constituição uma regra singularmente severa e inflexível que congela o total de gastos primários independentemente do crescimento do PIB e, especialmente, ao fixar a validade dessa regra para um período muito mais longo que o fixado em qualquer regra adotada no mundo, a proposta se afasta claramente das práticas internacionais e revela seu objetivo central, embora disfarçado: redesenhar o Estado para que a parcela do gasto público na renda nacional, hoje em torno de 40% do PIB segundo dados do FMI, que situa o Brasil próximo à média dos países desenvolvidos, seja cada vez menor, chegando a algo entre 20 e 25% em vinte anos como hoje é, por exemplo, respectivamente no Nepal e na Zâmbia. Com isso, também cada vez menor seria a capacidade do Estado de reparar injustiças históricas e promover uma sociedade menos desigual por meio da

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transferência de recursos a seus estratos mais vulneráveis e do fornecimento de mais e melhores serviços públicos a uma população que cresce em número e em demandas. De fato, se a concentração promovida pela proposta do aumento da renda resultante do crescimento da economia em mãos privadas estivesse em vigor desde 2003, os recursos hoje disponíveis para o gasto público seriam cerca de um terço menores do que são, impactando diretamente aposentadorias e pensões e serviços públicos como os de saúde e de educação. A escolha do tamanho do Estado, ou seja, dos recursos que ele controla e das obrigações que possui, é uma escolha legítima a ser feita por um país democrático. Nesse sentido, a proposta do governo traça um caminho contrário ao perseguido pela maioria dos países emergentes, que, em paralelo à elevação da renda per capita, têm aumentado – não diminuído – a participação dos gastos públicos no PIB. Ela inviabiliza o Estado de bem-estar inscrito em nossa Constituição e que é adotado pela ampla maioria dos países desenvolvidos. Em seu lugar, resgata um modelo de sociedade em que o Estado pouco gasta e pouco faz, o Estado mínimo vigente na maioria dos países onde a população permanece na pobreza. Para quem não utiliza quotidianamente serviços públicos, esse Estado pode parecer ideal. Já para a ampla maioria da população que deles depende para educar seus filhos e cuidar de sua saúde e para quem almeja uma sociedade mais justa, a proposta constitui um imenso retrocesso, e dificilmente seria escolhida de forma explícita pelo voto. Por isso, é preciso uma cortina de fumaça para dissimulá-la. O catastrofismo em torno da ameaça de colapso econômico em caso de a PEC não ser aprovada cumpre exatamente esse papel.


UMA SOLUÇÃO FALSA PARA UM PROBLEMA VERDADEIRO SENADOR RANDOLFE RODRIGUES (REDE-AP) Que o Brasil vive uma crise econômica, fiscal e orçamentária grave, ninguém pode ter dúvidas. Mas daí a concluir que a única alternativa para o país é a aprovação de medidas de austeridade brutal que prejudiquem políticas públicas essenciais aos mais pobres, é outra história. E é justamente isso o que está sendo feito com a PEC 241/2016. Pela proposta, os gastos públicos não poderiam ter aumento real, acima da inflação, pelos próximos vinte anos. Os argumentos favoráveis dariam conta que o aumento de gastos do governo aumenta em proporções exageradas e que muito dinheiro público é desperdiçado com benefícios a servidores públicos. Mas é justamente nesse discurso que estão graves problemas da proposta: ela não ataca nem a má-gestão, nem os benefícios a categorias que têm privilégios, que são uma ínfima minoria do serviço público no país, é bom que se diga. Pelo contrário, ataca todo o orçamento público federal, nele incluído as políticas de saúde, educação e segurança pública e só cria compensação para o legislativo e o judiciário, que teriam a possibilidade de remanejamento de parte do executivo. Assim, a proposta impediria a evolução de gastos mesmo se nos próximos vinte anos a economia crescer e a arrecadação aumentar. Trata-se de uma medida altamente controversa, que ao invés de ajudar a resolver o problema, pode nos colocar numa espiral de recessão, pela ausência de investimentos necessários para o crescimento econômico. Muito menos agressivo, por exemplo, seria impor um limite, não por Emenda à Constituição, mas por Lei, por um prazo de dois anos, até quando terminaria o governo Temer. E aí está outro ponto absurdo na proposta: o fato de ser por emenda à Constituição em um período de grave crise política como o atual. Temer, um vice-presidente que assume no lugar da titular após um processo de impedimento altamente controverso, angaria uma maioria eventual de dois terços no parlamento e resolve alterar a constituição para impor uma

medida para os próximos vinte anos! Uma completa desfaçatez, um ataque frontal a democracia. O povo, e só ele, poderia eleger um presidente da república com essas ideias, que aí sim imporia uma política de austeridade que findasse no seu mandato ou em período bem delimitado e razoável, como ocorre em alguns países, como Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Holanda, Hungria, Israel, México e Peru, que preveem no máximo seis anos de limitação, com revisão periódica. Em projeção atual, se estivesse em vigor desde 2003, só o Ministério Público teria perdido quase 30 bilhões de reais. Duvido muito que com essa defasagem, a instituição conseguiria custear tantas operações de combate a corrupção exitosas, como feito hoje em dia. A saúde por sua vez teria perdido R$318 bilhões, enquanto a educação perderia R$24 bilhões a cada ano. O salário mínimo, hoje em 880 reais, estagnaria em 400 reais. A PEC 241 é fruto de uma visão de país e de mundo sem qualquer preocupação com o combate à desigualdade e à miséria. Infelizmente já víamos esse tipo de política ser proposta e aplicada no governo anterior, com restrições ao seguro desemprego, seguro defeso e pensões. Naquele momento me opus frontalmente, ressaltando o quão nefasto seria penalizar os mais pobres por uma crise que deveria ser resolvida no andar de cima, com taxação de grandes fortunas, de lucros e dividendos e uma reforma estatal que de fato cortasse privilégios desmedidos, como reajustes travestidos de auxílio-moradia. Sou relator de uma proposta que aliviaria as contas públicas, a PEC 106/2015, que reduziria em um quarto a quantidade de deputados e senadores. Enfim, se a intenção é resolver o problema, não faltam remédios. Mas a PEC 241, além de ser um remédio sem nenhuma comprovação de resultado, tem efeitos colaterais que sacrificarão os brasileiros, em especial os mais pobres. Mais do que nunca, é necessário dizer: o povo não pode pagar a conta da crise.

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TERRA ARRASADA: DESMONTE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO CAMPO BRASILEIRO ALEXANDRE ARBEX VALADARES E MARCELO GALIZA Valadares é graduado em Direito (UNIRIO), mestre em Ciência Política (Iuperj) e doutor em Filosofia (UFRJ). Galiza é graduado em Ciências Econômicas (UnB), mestre em Desenvolvimento Econômico (Unicamp). Desde meados da década de 1990, o Estado brasileiro incluiu a discussão da agricultura familiar e do seu potencial como modelo social, econômico e produtivo na agenda política. O reconhecimento da relevância deste setor representou um avanço em relação à noção de desenvolvimento rural solidificada nos anos 1960 e 1970 pela “revolução verde”. Até então, as “políticas de desenvolvimento rural” tinham caráter eminentemente assistencial, voltado a agricultores que não tiveram acesso à tecnologia nem se integraram à indústria. A estruturação dessa nova abordagem foi repleta de disputas. O processo de institucionalização no governo federal da agricultura familiar enquanto categoria política foi uma resposta do Estado a grandes mobilizações sociais, ligadas às lutas de movimentos como a Comissão Pastoral da Terra, atuante já na década de 1970, à recomposição dos sindicatos rurais nos anos 1980 e à emergência de movimentos sociais de trabalhadores sem terra. A afirmação institucional da agricultura familiar representou o reconhecimento de direitos sociais, políticos e econômicos a uma população antes invisibilizada e a promoção de direitos difusos e coletivos – direito à terra, ao território e à autodeterminação de comunidades tradicionais, à alimentação saudável e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – que, associados a um projeto de desenvolvimento nacional, ganharam

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expressão no lema da I Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, em 2008: “por um Brasil rural com gente, com sustentabilidade, inclusão, diversidade, igualdade e solidariedade”. O gradual fortalecimento desses atores políticos passou a se chocar com a hegemonia do agronegócio, até então portador exclusivo da proposta de desenvolvimento para a agricultura. A tradicional força política desse setor agigantou-se a partir da crise cambial de 1999, quando, estimuladas por vultosos investimentos públicos, as exportações agrícolas passaram a exercer papel central na estratégia macroeconômica. O choque de interesses entre os dois setores traduziu-se em uma acirrada disputa política, cuja vitória, nesse contexto, pendeu para os interesses do agronegócio. O fraco apoio à reforma agrária, a degradação do meio ambiente e o aumento da violência no campo são os aspectos mais evidentes desse processo. Outro indicador que respalda essa avaliação diz respeito à área do país destinada à agricultura familiar e ao agronegócio. De 1990 a 2015, houve diminuição considerável na área destinada à plantação dos alimentos básicos do nosso cardápio: a área plantada de arroz reduziu 48%, a de mandioca recuou 22% e a de feijão diminuiu 40%, enquanto a população aumentou 41%. No mesmo período, a área plantada de soja aumentou 178% e a cana, 135%. São 42 milhões de hectares


–70% de toda a área agricultável utilizada no país – que ignoram a diversidade alimentar e nutricional em benefício de um modelo monocultor intensivo em insumos químicos e tóxicos. Apesar das contradições, a década de 2000, especialmente, criou importantes oportunidades para o avanço do projeto de desenvolvimento rural com base na agricultura familiar. Uma série de transformações ocorreu nas áreas rurais: incremento da renda do trabalho e das transferências governamentais (Bolsa Família e Previdência), com aumento do consumo de bens duráveis; melhoria nas condições de infraestrutura, com ampliação do acesso à energia, à água, à telefonia e à internet; expansão das políticas sociais, com destaque para o avanço da educação básica e superior; instituição e ampliação de políticas produtivas, como crédito, assistência técnica e programas de compra pública da produção (PAA e PNAE), entre outras. Essas políticas possibilitaram a permanência de muitos jovens nas áreas rurais, refreando o processo de êxodo e oferecendo novas perspectivas de desenvolvimento rural. O impeachment da presidenta Dilma coloca em risco todos esses avanços. No dia 27 de abril de 2016, a Frente Parlamentar da Agropecuária entregou ao então vice-presidente Michel Temer um documento intitulado “Pauta Positiva para o Biênio 2016/2017”, uma agenda assinada por mais de 40 entidades representativas do setor. Além de deixar claro o projeto de país defendido pelo agronegócio, essa Pauta permite, na medida em que é implementada, dimensionar o poder e a capacidade de influência deste setor sobre os rumos da política do país. Desde que assumiu, o presidente não eleito parece usá-la como uma cartilha para conduzir as ações de governo na área. Antes de tudo, a Pauta reivindica a redução do tamanho do Estado e o fortalecimento do Ministério da

Agricultura, que deve gerenciar todo o processo de reorganização do setor. Em contrapartida, sugere a extinção do MDA, com incorporação de suas atividades pelo MAPA, e transferência dos chamados “programas sociais” do campo para o MDS. Noutros termos, a Pauta defende medidas que aumentam o estímulo do Estado ao setor agropecuário, mas que diminuem a presença desse mesmo Estado em relação aos trabalhadores. Os primeiros atos do governo não eleito contemplaram, de imediato, essa demanda do agronegócio. É verdade que a extinção do MDA já havia sido aventada no governo Dilma, quando já transparecia a compreensão do caráter assistencial da pauta agrária. Entretanto, os grupos que tradicionalmente integravam a base social dos governos petistas constrangiam, em algum grau, o avanço da pauta ruralista, algo que não ocorre mais na composição do governo. Confirmada recentemente pelo decreto 8889/2016, a extinção do MDA, com a consequente absorção do pouco que restou de sua antiga estrutura pela Casa Civil, representou não só o desmonte dos quatros técnicos, a perda de capacidade de comando e o comprometimento da memória institucional das políticas públicas para a agricultura familiar, mas, ainda, a submissão de toda a pauta agrária ao controle político do bloco de poder do governo. No atual contexto, a agricultura familiar deixa de ser reconhecida como setor de atividade econômica importante para o país. A Pauta elenca uma série de outros pontos estratégicos para o agronegócio, todos eles já, em algum grau, incorporados à agenda governista. Abertura à aquisição de terras por estrangeiros, revisão das demarcações de áreas indígenas e quilombolas, desregulação do processo de licenciamento ambiental, afrouxamento da regulação que limita o comércio e o uso de agrotóxicos e da legislação fitossanitária, esvaziamento

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– via revisão legal – do conceito de trabalho escravo e limitação da competência de atuação dos fiscais de trabalho, expansão da terceirização das relações (já precárias) de trabalho no campo: todos esses elementos inseremse, com cada vez mais força, no discurso governista, sempre associados a um suposto imperativo de “modernização” e “eficiência”, que, a rigor, representa tão somente um retrocesso em direção a um modelo socialmente excludente, concentrador de terra e renda, e cuja dinâmica é marcada pela exploração predatória do trabalho humano e dos recursos naturais. Quanto à pauta fundiária, as medidas que se anunciam põem em risco todos os avanços duramente obtidos por essa política ao longo das últimas décadas. A principal proposta, referente à titulação de centenas de milhares de assentados, significará, em curto prazo, uma ampla transferência do patrimônio fundiário público para o mercado, alimentado a especulação imobiliária e criando condições para um forte ciclo de reconcentração da terra. Tais consequências representarão, na prática, um verdadeiro desmonte da política de reforma agrária. Por fim, se aprovada a PEC 241, as perspectivas para a agricultura familiar são ainda mais sombrias. O congelamento dos gastos públicos por 20 anos causará às políticas de saúde, educação e assistência social uma perda estimada de cerca de metade do gasto total em relação PIB. Isso fatalmente reverterá os avanços obtidos nos últimos anos, como a ampliação do acesso da população rural aos seus direitos e a redução das desigualdades entre campo e cidade. Essa ruptura, reintensificando o fluxo de migrações rural–urbano, pode resultar no fim da agricultura familiar no Brasil, na perda de nossa soberania alimentar e em alimentos mais caros e menos saudáveis, uma vez que a agricultura familiar responde pela

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produção de quase 70% dos alimentos consumidos pela população brasileira. A volta do Brasil ao mapa da fome da ONU não parece iimprovável. Se as políticas sociais que chegaram ao campo recentemente correm sérios riscos, as políticas agrícolas e agrárias voltadas à agricultura familiar sofrerão cortes ainda maiores. Isso porque as políticas previdenciárias e assistenciais têm importantes componentes de gastos obrigatórios (não discricionários), o que pressionará as demais áreas da política social a compensá-las. As áreas de saúde e educação, por sua vez, deverão, obrigatoriamente, manter o nível de gastos congelados. Assim, as demais políticas sociais deverão absorver a pressão orçamentária desencadeada pela PEC. Entre essas, muito provavelmente as políticas da área de desenvolvimento rural estarão entre as mais seriamente afetadas, uma vez que o orçamento expressa, em grande medida, o poder político de cada grupo no interior do governo. O cenário traçado parece não deixar dúvidas de que a agenda ruralista está sendo efetivada, ponto a ponto, pelo governo não eleito. O fechamento dos canais de diálogo e de participação política, o aumento da repressão policial contra trabalhadores rurais e a criminalização dos movimentos sociais conformam um contexto hostil que infelizmente se manifestará nos índices de violência no campo. Neste cenário de terra arrasada, o agronegócio encontrará caminho livre para se expandir sem limites.


RISCOS REAIS E SIMBÓLICOS, SEU TIO FANFARRÃO E O DISCURSO SOBRE O BOLSA FAMÍLIA NO GOVERNO ATUAL LETÍCIA BARTHOLO Socióloga (Unb). Mestre em Demografia (Unicamp). Gestora governamental. Foi diretora do Cadastro Único (2009-2011) e Secretária Nacional Adjunta de Renda de Cidadania (2012-2016). A vida é repleta de riscos. Riscos concretos e simbólicos. Ignorar a importância dos riscos simbólicos é um passo para que ganhem concretude e avancem sobre a vida real. Com as políticas públicas não é diferente. Há riscos concretos, a exemplo da restrição fiscal ou de erros no desenho de um programa social. E há riscos simbólicos, que não prejudicam diretamente a política pública, mas que legitimam o caminho que levará ao prejuízo. O discurso sobre o Bolsa Família entoado pelo governo ora vigente é um exemplo de risco simbólico, com roupagens de moralidade e competência técnica, mas que se desnuda em puro preconceito. A opção por falar aqui de riscos simbólicos não deixa de ser um bom sinal. Efetivamente, não houve nenhum desmonte do Bolsa Família até então. Ao contrário, a gestão atual manteve e aumentou o reajuste nos valores dos benefícios e nas linhas de pobreza, já anunciado no governo anterior. De fato, do ponto de vista técnico, é mesmo injustificável que algum desmonte aconteça no Bolsa Família, pelos resultados expressivamente positivos que apresentou em pouco mais de uma década. O Bolsa Família é das políticas públicas mais avaliadas e fiscalizadas no Brasil e é, certamente, dos programas de transferência condicionada de renda mais bem avaliados no mundo. Transfere diretamente, para cerca de 13,8 milhões de famílias pobres, um benefício médio da ordem de R$ 182,00 e acompanha a frequência à escola e o acesso à saúde de crianças e adolescentes. Foi um dos maiores responsáveis por tirar o Brasil do Mapa da Fome. Contribuiu pra diminuição da pobreza e da desigualdade de renda. Reduziu a mortalidade infantil por desnutrição, por diarreia e por doenças respiratórias do trato inferior. As crianças e adolescentes do Bolsa Família frequentam mais as aulas e têm chegado ao ensino médio com rendimento superior aos demais estudantes das escolas públicas. E têm chegado inclusive às universidades, com o apoio das políticas de cotas e da expansão de vagas ocorrida nos últimos anos. As mulheres do Bolsa Família têm cultivado maior respeito próprio e passado até mesmo a questionar sua sujeição à autoridade tradicional masculina. O Bolsa Família não desestimula ninguém a trabalhar com dignidade – pelo contrário, contribui para

que as pessoas se mantenham no mercado de trabalho formal por mais tempo.1 Com todos esses resultados positivos, muito maiores do que se esperava há uma década, fica muito difícil destruir o Programa, né? Pois é, no curto prazo sim. Mas, se a narrativa do Governo Federal sobre o Bolsa Família estimula inverdades e preconceitos, passa a construir a trilha que permite desmontes no médio prazo. E é o que tem ocorrido no momento atual. E é também aí que entra seu tio fanfarrão e de perfil conservador que você só encontra no Natal. O que tem a ver o seu tio com o Bolsa Família? Ora, é que os argumentos sobre o Programa no governo atual cabem muito bem na boca dele. Veja só. O primeiro argumento é o de que o Bolsa Família está inchado. Afinal, se a pobreza caiu, por que o Bolsa Família cresceu? Ou então a pobreza não caiu? – assim lhe perguntaria seu tio, enquanto abocanha mais um pedaço de peru. Bem, um dos motivos da pobreza ter caído foi exatamente o Bolsa Família ter crescido. Mas é verdade que a meta de atendimento do Bolsa Família é maior do que o número de pobres identificado nas pesquisas oficiais. Porém, essa escolha é proposital e tecnicamente embasada. As pesquisas oficiais são, em regra, como um retrato: mostram quem é pobre numa determinada semana, ou mês. Só que a pobreza não é fixa. Quer dizer, claro que tem um grupo de pessoas que é cronicamente pobre – aquele que não sai da pobreza. Mas a pobreza é sobremaneira composta por um grupo que, embora não seja sempre pobre, cai nessa situação com frequência. E o Bolsa Família precisa estar preparado para atender a todo mundo que entrar na pobreza num período de dois anos -número que será sempre bem maior do que o de quem é pobre numa semana. Caso contrário, haveria longas filas de famílias, muito pobres e com crianças, esperando para entrar no Bolsa Família. E a pobreza tem fome, não pode esperar.

1 Para esses e outros resultados, acesse Campello e Neri (2013) e Santos, Leichsenring, Menezes Filho e mendes da Silva (2016). 21


O segundo argumento é de que o Bolsa Família não tem controle. O seu tio certamente lhe diria, entre um gole e outro de vinho: “tem até mulher de vereador que recebe o Bolsa Família! Eu vi no Jornal Nacional”. Esse argumento omite três coisas importantes. Primeiro, o Bolsa Família conta com amplos mecanismos de controle desde 2005, que são constantemente aperfeiçoados. Funcionam como a malha fina do Imposto de Renda: por meio do cruzamento de bases de dados, o Governo avalia indícios de irregularidades e chama o cidadão para comprovar a informação que declarou. Segundo, quem achou a mulher do vereador na base de dados do Bolsa Família foi o próprio controle do Programa – sinal de que funciona. E, terceiro, todo programa social, em qualquer lugar do mundo, tem um nível de erro e mesmo de fraude. E o do Bolsa Família é dos mais baixos entre os programas da mesma espécie em todo mundo - a ONU, o Banco Mundial e mesmo o Tribunal de Contas da União atestam essa qualidade. O terceiro é o de que o Bolsa Família não tem portas de saída: “tem que colocar esse pessoal pra trabalhar, se não, vão viver as custas do Estado e ninguém quer viver de esmola!”. Quantas vezes seu tio já lhe disse isso? Muita bobagem num comentário só, não? Ora, o Bolsa Família não é esmola, é política de seguridade social não contributiva, que existe em qualquer país decente deste mundo cão. Além disso, a carga tributária dos mais pobres é maior que a dos ricos no Brasil, de modo que podemos dizer que quem paga o Bolsa Família são os próprios beneficiários. E os mais pobres trabalham (e muito!), mas o mercado de trabalho brasileiro tem problemas em incorporá-los. É obvio e elementar que é preciso haver políticas públicas que apoiem os cidadãos a terem um trabalho produtivo digno, saírem da pobreza e, em consequência de não serem mais pobres, deixarem o Bolsa Família. Mas, primeiro, essa é uma estratégia de longo prazo e, segundo, isso não é responsabilidade do Bolsa Família, não é mesmo? A gente pede pras cotas universitárias resolverem o problema dos transplantes de órgãos na saúde pública? Não, né? Então por que pedir para um programa de transferência de renda criar empregos? Ou seja, sim, esse é um problema do Estado brasileiro. Não, esse não é um problema do Bolsa Família. E não se justifica, portanto, que parte do orçamento de um programa tão virtuoso seja desviada para ações de capacitação ou geração de empregos para os pobres. Repito, essas ações precisam ser realizadas e articuladas para as pessoas que recebem o Bolsa Família. Mas concordar com essa necessidade é bem diferente de achar que o Bolsa Família deve ter o orçamento diminuído para viabilizá-las. O Bolsa Família destina 0,5% do PIB a 25% da população. A

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gente devia se envergonhar de destinar tão pouco aos pobres. E tem resultados ótimos! Nada justifica, portanto, que sua fatia seja diminuída. Repito: NA-DA. Nem contextos de restrição fiscal, nem unicórnios cor-de-rosa. Porque ele não deixa que as crianças, por conta da fome, prejudiquem sua capacidade de aprendizado. Porque ele contém a pobreza atual e evita a pobreza futura. E é por isso que toda vez que um ministro diz que vai diminuir o Bolsa Família e gastar com microcrédito para os mais pobres, uma estrelinha do céu entra em depressão e vira um buraco negro. Agora repare o que sustenta esses três argumentos? Reparou? Pois é, o preconceito contra os mais pobres. É porque temos a visão de que os pobres mentem, são acomodados e são pobres por decisão voluntária e não por motivos estruturais, que aceitamos essa argumentação falaciosa de bom grado. E, quando um governo começa a ecoar esse tipo de argumento no seio da sociedade brasileira, eminentemente conservadora, ele encontra um caldo de cultura muito adequado para que os preconceitos se reverberem sem reflexão, até o ponto em que o Bolsa Família fica deslegitimado socialmente. E aí o Governo pode então justificar cortes sem maiores dificuldades. Vai poder facilmente usar o argumento das portas de saída para criar prêmios aos prefeitos que tirarem mais pessoas do Programa. Ou dizer que o cadastro do Bolsa Família é ruim e justificar reduções por conta disso, entre outras ideias que andam circulando por aí. Quando isso concretamente acontecer, teremos passado do risco simbólico ao risco real. E será tarde demais pra voltar atrás. Então, no próximo natal, quando seu tio soltar alguma dessas, entenda que ele está virando um risco real. Que está ajudando a legitimar desmontes que impedem a construção de uma sociedade mais justa. Por isso, não baixe a cabeça em tom condescendente, enquanto lhe serve um pouco mais de salpicão. Fixe-lhe altivamente nos olhos, levante uma taça de vinho e peça a ele que brinde a sua própria ignorância e preconceito. E nesta noite, em que todos estarão constrangidos com seu comportamento agressivo numa celebração que deveria ser amena, deite sua consciência tranquila e durma o sono dos anjos. Porque mais vale um tio constrangido, do que um País de volta ao Mapa da Fome.


BARBÁRIE NOS TRÓPICOS: CULTURA E CIVILIZAÇÃO MÁRCIO TAVARES

Historiador e curador. Assessor Técnico da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados O antropólogo Darcy Ribeiro dizia que tínhamos a potência de construir uma civilização brasileira. Uma civilização, que redimida da tragédia de sua formação nacional marcada pela violência continuada, possibilitou a unidade política e buscou suprimir toda identidade étnica distinta da do Europeu. Civilização nos trópicos, com potencial de emergir em um original caráter polifacético, poliétnico, multicultural, que fundida nos valores de respeito e tolerância construiria uma nova forma de convívio em sociedade, apontando soluções para um mundo em crise de toda ordem. A visão do potencial brasileiro que Darcy Ribeiro vislumbrava não estava calcada numa visão idealizada da história. Para ele, o que bloqueava o florescimento civilizatório era justamente essa constituição social violenta que terminava por guetificar classes, raças e culturas. Darcy afirmava que abaixo de uma aparente homogeneidade cultural brasileira, estava escondido um brutal processo de estratificação social. Essa profunda divisão da sociedade, que seria típica do capitalismo, estaria exacerbada no Brasil, fazendo com que uma pequeníssima camada privilegiada estivesse em oposição ao grosso da população. Praticamente um sistema de castas onde a mobilidade social seria praticamente inviabilizada. Isto é, historicamente, o potencial civilizacional brasileiro que tem sido massacrado por uma pequena elite que vive amedrontada por qualquer tentativa de melhora das condições de vida das camadas oprimidas e instada a manter seus privilégios inigualáveis. A compreensão desse quadro dramático é fundamental para compreender o motivo pelos quais os básicos direitos à educação e à fruição dos bens culturais tenham sido sistematicamente negados à maioria da população brasileiro ao

longo de 500 anos. O pensamento de Ribeiro é instrumental na reflexão sobre o golpe de 2016 e sobre a forma como o setor cultural reagiu a ele. É absolutamente evidente que o ilegítimo afastamento da presidenta Dilma Rousseff foi patrocinado justamente pela elite de que falava o antropólogo, repetindo o seu modus operandi histórico. A sensível melhora nas condições de vida da população desestabilizou o sistema social baseado no privilégio e a democratização dos bens culturais e fomento à cidadania cultural foi um dos elementos do desajuste entre privilegiados e a maioria da população, tendo a “luta contra a corrupção” como simples significante vazio com o intuito de convencer a opinião pública. Contudo, de tempos em tempos, o país é pontuado em experiências, tentativas e projetos – quase sempre interrompidos – o que demonstra toda a força transformadora guardada nos recônditos do Brasil. Foi o que aconteceu no país a partir de 2003, pois com todas as limitações que possam ser apontadas, o Brasil iniciou um processo de desenvolvimento que visava incluir a maioria marginalizada no âmbito da sociedade. Nesse quadro específico as políticas de cultura mudaram seu estatuto. Cultura no Brasil que sempre tinha sido algo para poucos, para iluminados, concentrada em uma ínfima minoria, passou a ser considerada uma política pública para o conjunto da população, não apenas para a comunidade cultural. Mesmo que ainda padecendo de maior estrutura e maiores recursos, o Ministério da Cultura-MinC, durante os governos de Lula e Dilma, construiu uma geração inovadora e transformadora de políticas culturais. Passou-se a entender a cultura em sua dimensão cidadã, econômica e artística. Programas como os pontos

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de cultura atuaram no fomento e na visibilização de manifestações culturais nos quatro cantos do país, garantindo instrumentos para a formação de novas formas de relacionamento entre os grupos de produção cultural e também propiciando uma inclusão de questões de gênero, etnia, religiosidades no escopo da política cultural. As políticas de cidadania cultural abriram espaço para o surgimento de movimentos sociais da cultura, um fato inédito e que no contexto pós-golpe de 2016 terá uma significativa importância na resistência democrática. Ao mesmo tempo em que se incluiu uma dimensão cidadã, também foram aumentados em volume inédito os demais instrumentos de fomento, seja através de editais ou da Lei Rouanet. O que levou, mesmo com a lacuna de nunca ter efetivado plenamente um programa integrado e integral para a arte brasileira, à construção de novas possibilidades para o desenvolvimento das linguagens artísticas. Compreender essa proposição de políticas culturais que atua no reforço das identidades, constituindo possibilidades para o povo possa conhecer e refletir sobre si mesmo, formando uma comunidade crítica e atuante é importante para compreender a razão dos ataques tão virulentos do governo golpista contra a comunidade cultural e contra as políticas culturais. A primeira ação do ilegítimo governo de Temer foi anunciar a extinção do Ministério da Cultura. Ali se comprovou o enraizamento dos novos movimentos sociais da cultura, pois a ocupação das sedes do MinC em todas as unidades da federação demonstrou a impossibilidade de terminar com a estrutura de formulação de políticas para a cultura, uma vez que já se compreende em amplos segmentos da população que a cultura é um direito humano básico e fundamental. A campanha #FicaMinC, pela permanência do Ministério da Cultura, é a única vitória que os segmentos democráticos obtiveram desde o golpe parlamentar, o que torna ainda mais emblemático o tema. Todavia, o retorno do Ministério não significou a manutenção das políticas. A atual gestão tem sido marcada pelo desmantelo

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da estrutura administrativa e pelo uso político de estruturas consagradas como a Comissão do Oscar. O impedimento que o filme brasileiro Aquarius representasse, pela sua qualidade estética evidente, o Brasil no Oscar em uma eleição marcada por declarações políticas demonstra os ataques terríveis a que a institucionalidade brasileira está submetida desde o golpe. Além disso, tivemos vários editais de fomento cancelados, prejudicando um sem número de grupos e de artistas, afetando toda a cadeia da produção cultural. Tudo leva a crer que voltaremos à visão que predominou no país nos anos 1990, quando imperou o olhar de que a gestão da cultura deveria ser realizada numa relação entre a comunidade cultural e o mundo privado, mas com fundos públicos. Trata-se de um modelo que torna a produção cultural refém do marketing, mas o atual ministro da Cultura, ao invés de investir na substituição do mecanismo da Lei Rouanet pelo PROCULTURA – que fortalece o Fundo Nacional de Cultura, por exemplo – e tramita hoje no Senado, propõe apenas uma mudança cosmética na lei atual. Para aprofundar a dramática situação, a PEC 241, recentemente aprovada em plenário na Câmara dos Deputados, certamente terá um efeito perverso na área cultural, porque os recursos para a cultura são discricionários e não obrigatórios. Em um cenário de enxugamento dos gastos sociais que acontecerá, a cultura deverá ser uma das primeiras áreas a sofrer. A PEC da morte significa no médio prazo a extinção do MinC por inanição de recursos, provavelmente nem os equipamentos culturais gestados pelo ministério terão dinheiro para se manter. O patrimônio artístico e cultural brasileiro corre dramático risco. O sonho de Darcy Ribeiro de uma civilização nos trópicos foi novamente adiado, mas devemos usar seus ensinamentos como instrumento de reflexão, de resistência e de persistência no próprio sonho de uma civilização nos trópicos. A barbárie anda à espreita, cabe a nós combatê-la.

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FOME: DO NUNCA RETORNO1 MARCOS TOSCANO

MAIS

AO

ETERNO

Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, graduado em direito pela UFPE e mestre em filosofia pela UNB. O Brasil não é um país rico. Há uma crença quase generalizada de que o somos, mas isso é apenas uma avaliação ufanista e equivocada de nossa real situação econômica. Quantas vezes não ouvimos por aí que o único problema é a “divisão do bolo”? Detesto dar más notícias, mas a realidade é bem pior que isso. O bolo não é apenas extremamente mal dividido: ele também não é tão grande assim. Hoje, talvez seja um exagero dizer que somos um país pobre. Se a renda domiciliar fosse perfeitamente dividida - coisa que não parece ter acontecido nem nas experiências de igualdade mais radicais e violentas da história - o brasileiro ganharia algo em torno de R$ 1.113 reais mensais por cabeça2, segundo dados da PNAD. Para uma família de 5 pessoas, isso significa um orçamento doméstico de R$ 5.565 reais por mês, uma soma capaz de propiciar uma vida digna. Podemos dizer, portanto, que somos um país de renda média em termos abstratos.

Mas essa família não existe. Nunca existiu. À renda domiciliar per capita modesta se soma uma péssima distribuição. Somos um dos países mais desiguais do mundo, fato comprovado em diversos índices e relatórios de agências internacionais4. A renda parca e mal distribuída tem sua mais terrível expressão na pobreza generalizada em que vive o povo brasileiro desde sempre.

Mas esses são dados recentes, de 2015. Em 2003, a renda domiciliar mensal per capita estava na casa dos R$ 883 e a renda total da nossa família imaginária no cenário de

Os efeitos deletérios da pobreza são amplos e duradouros. Uma infância pobre irá afetar negativamente a expectativa de vida, condição de saúde, escolaridade, empregabilidade e renda média de um indivíduo5. Todos conhecemos exceções notáveis a esse determinismo, mas que são

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O título é um plágiohomenagem ao Professor Luciano Oliveira, que mesmo distante me inspira. “Tortura: do nunca mais ao eterno retorno” é um opúsculo de leitura obrigatória sobre seu tema-título. 2 Dados divulgados pelo IBGE, que podem ser conferido em http:// agenciabrasil.ebc.com.br/economia/ noticia/2016-02/ibge-renda-capitamedia-do-brasileiro-atinge-r-1113em-2015.

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igualdade absoluta em torno de R$ 4.4163. A situação já é mais apertada. São cinco pessoas, provavelmente três crianças em idade escolar. As despesas com habitação, alimentação e transporte provavelmente consomem uma fatia considerável desse orçamento. Nossa família igualitária ainda consegue manter um padrão de vida decente, mas depende quase que completamente de serviços públicos para ter acesso a educação, saúde, previdência e lazer.

Esses são valores corrigidos pelo IPCA, portanto comparáveis aos dos dias atuais. O dado pode ser conferido em http://www.planejamento.gov.br/servicos/ central-de-conteudos/publicacoes/idbportugues.pdf. 4 O índice de GINI talvez seja o melhor indicador nesse sentido http:// data.worldbank.org/indicator/SI.POV. GINI. 5 Veja mais sobre o tema em http://borgenproject.org/5-effects-


notáveis justamente por serem exceções. Nossa geração teve o privilégio de viver um dos mais significativos experimentos sociais da história recente: nos últimos 13 anos o Brasil conseguiu promover uma das maiores reduções de pobreza e miséria em um país periférico. Em 2001, 25% da população brasileira era pobre e 10% era extremamente pobre; em 2013 esses índices se reduziram, respectivamente, para 9% e 4%. Estimase que ao menos 25 milhões de pessoas tenham deixado a condição de pobreza e extrema pobreza nesse período. Ao mesmo tempo, 60% da população melhorou suas condições de vida, ascendendo a uma classe social superior. Todos esses dados são de um recente relatório do Banco mundial sobre o combate a pobreza na América Latina6. Ainda segundo o relatório do Banco mundial, essa ascensão social massiva se deve a uma combinação dos seguintes fatores: crescimento econômico estável, política de valorização do salário mínimo, políticas de transferência de renda (bolsa família e benefício de prestação continuada), geração de empregos formais e melhoria na cobertura de serviços públicos essenciais (água, luz, saneamento, atenção primária à saúde, etc.). Trata-se portanto do resultado de uma boa situação econômica aliada a políticas públicas de caráter fortemente distributivo. Os esforços de combate à pobreza renderam ainda outra enorme vitória para os brasileiros. Praticamente no mesmo período, de 2002 a 2014, conseguimos reduzir a fome em 82% e no ano de 2015 a FAO-ONU declarou que o Brasil estava oficialmente fora do Mapa da Fome7. Muita gente não compreende a dimensão dessa conquista ou nem lembra dela. Mas quem sentia fome e passou a comer não vai esquecer nunca. Infelizmente, essa conquista histórica do povo brasileiro está sob grave ameaça. O governo que se instalou após o golpe parlamentar já começou a implantar um ajuste fiscal em que só há espaço para medidas que irão precarizar diretamente a vida da população mais pobre. A mais grave delas é a notória

poverty/.

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https://openknowledge. worldbank.org/handle/10986/21751 7 http://www.fao.org/hunger/en/

PEC 241, que servirá de base para toda uma agenda posterior de redução de direitos. Ao estabelecer um regime excessivamente rígido e prolongado de limite de gastos públicos e suprimir os patamares orçamentários mínimos previstos na Constituição para políticas sociais, a PEC consegue atacar todos os fundamentos que nos fizeram reduzir a pobreza tão expressivamente em tão pouco tempo. O congelamento orçamentário draconiano irá dificultar a recuperação da economia, inviabilizar a valorização do salário mínimo, elevar a taxa de desemprego, minguar o volume de recursos públicos destinados à transferência de renda e precarizar os serviços públicos essenciais. O resultado pode ser um rápido retorno aos altos índices de pobreza e pobreza extrema de 13 anos atrás, quando mais de 35% dos brasileiros se encaixava nessas categorias. Pode ser pior. Talvez os brasileiros mais pobres voltem a viver uma situação de fome endêmica. Um retrocesso terrível, inaceitável, porém cada vez mais provável. Não escrevi este texto para negar a importância de manter contas públicas equilibradas ou para descartar a priori qualquer mecanismo formal de ajuste fiscal. O grande beneficiário da estabilidade orçamentária e financeira é o próprio povo, que não pode ficar à mercê de arrochos erráticos e supressores de direitos. Mas esse ajuste não pode recair sobre os mais pobres; pelo contrário, deve ser desenhado para protegê-los durante os anos difíceis. Esse deveria ser o princípio orientador de qualquer política fiscal. No regime golpista, no entanto, o único dogma parece ser a proibição absoluta de elevar impostos que atinjam os mais ricos; o retorno do país ao Mapa da Fome, por outro lado, não parece ser uma preocupação tão grave.


ESTUDANTES DÃO LIÇÃO AO ESTADO BRASILEIRO DEPUTADA FEDERAL MARIA DO ROSÁRIO (PT-RS) Desde o início do mês de outubro, estudantes dos Institutos Federais estão ocupando e mobilizando suas unidades de ensino com debates a respeito da PEC 55 que congela os investimentos em educação e sobre a reforma do ensino médio proposto pelo governo ilegítimo de Michel Temer. A iniciativa desses estudantes deve ser saudada por nós, pois denuncia a forma truculenta com que este governo ilegítimo vem tratando um tema que nos é tão caro como a educação. Não existe futuro para um País que não investe na educação de seus jovens. Nos governos de Lula e Dilma foram feitos os maiores investimentos da história em educação. Os recursos foram ampliados de R$ 18 bilhões em 2002 para mais de R$ 115 bilhões em 2014. Foram criadas 422 escolas técnicas, mais do que todos os outros governos somados (140 escolas). O acesso ao ensino superior aumentou em 100% indo de 3,5 milhões de estudantes em 2002 para 7,1 milhões de estudantes em 2014. Foram criadas 18 novas universidades federais e 173 novos campus. Além da expansão da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, brasileiros de todos os cantos do País contavam com outra grande oportunidade de mudar de vida: o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). Criado em 2011 pelo governo Dilma, o Pronatec contabilizou 7,6 milhões de matrículas em 4.145 municípios, 1,3 milhão delas feitas por pessoas de baixa renda, beneficiárias do Brasil Sem Miséria. Esse era o Brasil que apostava no futuro dos seus jovens. Hoje a realidade é outra. Os investimentos passaram a ser vistos como despesas e, sendo assim, devem ser cortados na carne. Infelizmente quem pagará por esses cortes serão os nossos jovens e o futuro do nosso País. A PEC 55 em discussão no Congresso Nacional não reduz gastos em educação de imediato, mas limita o aumento de

investimentos do Estado brasileiro no futuro. Portanto, com o aumento da expectativa de vida, certamente haverá aumento populacional e, portanto, mais gastos serão necessários. Dessa forma, a despesa per capta com educação, que já é pequena, apesar dos aumentos nos governos de Lula e Dilma, ficará muito menor. Fica evidente que a PEC engessará as políticas públicas e desacelerará o progresso socioeconômico, pois reduzirá gastos sociais e investimentos comprometendo o futuro dos brasileiros/brasileiras. Ademais, o Governo Temer reduziu o orçamento das Universidades e Institutos Federais de R$ 7,9 bilhões em 2016 para R$ 6,7 bilhões em 2017 prejudicando a compra de livros e materiais didáticos para os/as estudantes. Não bastasse isso, a reforma do ensino médio (Medida Provisória 746) proposta por Temer, sem diálogo com a comunidade escolar e/ou com os Conselhos de Educação, cria um ensino médio genérico, de pouca qualidade, integrando disciplinas com o intuito de atacar o problema da falta de profissionais sendo que a forma de se atacar tal problema seria através da formação de professores. Isso não permitiria que a qualidade do ensino fosse afetada. Além de precipitada e autoritária as medidas do MEC deixam de abordar problemas importantes da educação como a redução do número de estudantes por sala de aula, a valorização e formação permanente de educadores/as, entre outros. Portanto, as mobilizações que vemos acontecer hoje nos Institutos Federais são legítimas e nos dão uma lição. Eles nos ensinam que a democracia se fortalece com a luta cotidiana e que retrocessos não serão tolerados. Quem experimentou um Estado que investiu no futuro nunca se submeterá a um Estado que tenta impor o passado.

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HOMICÍDIOS NO BRASIL: QUEM SE IMPORTA? MARIVALDO PEREIRA

Ex-Secretário Executivo do Ministério da Justiça e Ex-Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça A ascensão do governo ilegítimo liderado pela dupla PMDB/PSDB acabou com qualquer possibilidade de termos uma política nacional de enfrentamento aos homicídios em nosso país. Essa aliança trouxe de volta ao poder uma elite branca, envelhecida, totalmente desconectada da sociedade e disposta cumprir o acordo que viabilizou sua chegada ao poder. Logo de saída, o “novo” governo desestruturou os órgãos responsáveis por políticas públicas, como cultura, direitos humanos, igualdade racial e mulheres. Com uma canetada, decretou o sucateamento do ensino médio em todo o Brasil. Tenta agora enterrar por longos 20 anos qualquer possibilidade de valorização, continuidade e aumento das políticas sociais com a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição 55/2016 (PEC 241/16 na Câmara). Proposta cujo texto congela por duas décadas os gastos sociais, com impacto direto na saúde, na educação e na segurança pública. É nesse contexto de desestruturação das políticas sociais que o Ministro da Justiça Alexandre de Moraes, questionado sobre a continuidade do Pacto Nacional pela Redução de Homicídios, política que estava sendo construída na gestão anterior, sem titubear, respondeu à grande imprensa: ‘’ - Não diz respeito às ações deste governo!’’ Embora absurda, a afirmação do Ministro é coerente com os compromissos que orientam esse governo, cujo primeiro escalão é composto quase que exclusivamente por homens que nunca enfrentaram preconceito, opressão e exclusão, cujas ideias e ações nos remontam ao coronelismo e ao autoritarismo característicos dos períodos históricos que intercedem os tempos de normalidade democrática no Brasil. As mortes violentas no Brasil permanecem em índices assustadores. Somente em 2015, foram registrados mais de 58 mil homicídios1. É como se 160 pessoas fossem mortas por dia em nosso país, número maior que o verificado na Síria para o mesmo período, país que vive uma guerra extremamente violenta2. Num ranking de 154 países, estamos entre as 12 maiores taxas de homicídios por 100 mil habitantes. A resistência do atual governo em enfrentar o tema pode ser explicada quando constatamos o perfil social das principais vítimas desses homicídios. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações e Estatísticas de Segurança Pública – SINESP3 de 2014, os homicídios são um fenômeno espacialmente distribuído de forma desigual em nosso país.

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Para se ter uma ideia, o Brasil possui 5.570 municípios, além do Distrito Federal, mas apenas 81 deles concentram quase 50% do total de homicídios dolosos registrado a cada ano. Ao se analisar a distribuição desses crimes dentro de cada município, verifica-se que eles não ocorrem de forma difusa, mas estão concentrados nos bairros de maior vulnerabilidade social. De acordo com o Atlas da Violência 20164, publicação do IPEA e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as maiores vítimas dos homicídios no país são os jovens, afro-brasileiros, com baixa ou nenhuma escolaridade, e moradores de regiões com maior vulnerabilidade social, situação que, há décadas, é denunciada pelos jovens da periferia, como nos versos da música Fórmula Mágica da Paz, de autoria do Grupo Racionais MC’s, ao descrever o público que visita os cemitérios na periferia no Dia de Finados: “(...)2 de Novembro era finados. Eu parei em frente ao São Luis do outro lado. E durante uma meia hora olhei um por um e o que todas as Senhoras tinham em comum: a roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela vida dura. Colocando flores sobre a sepultura (“podia ser a minha mãe”). Que loucura!” Não foram os votos da população mais atingida pelos homicídios que levaram ao poder os dirigentes do atual governo. Por essa razão e pelo que representam, é compreensível que o tema não diga respeito às suas ações, as quais estão integralmente focadas na imposição de sacrifícios cada vez maiores à população mais pobre e na preservação dos interesses da elite financeira, burocrática e política que os levaram ao poder. Enquanto esperamos o dia em que a vontade das urnas voltará a se fazer presente na direção do nosso país, resta-nos lutar com os instrumentos de que ainda dispomos para mudar essa insana realidade e tornar diferente o destino de milhares de jovens condenados a engrossar a triste estatística dos homicídios. Condenados que já estão, desde o nascimento, pois o preconceito racial, de gênero, sexual e social rondam assustadoramente o Brasil incentivados por um governo não eleito, mas que elege como sua principal bandeira a imposição de sacrifícios à parcela mais pobre da população.


O CONGELAMENTO DE GASTOS PÚBLICOS TORNARÁ OS POBRES AINDA MAIS POBRES. PABLO HOLMES

Professor do Instituto de Ciência Política/UnB Em 2014, a proporção da população brasileira que tinha algum tipo de plano de saúde privado era de aproximadamente 30%. Ou seja, cerca de 140 milhões de pessoas dependiam quase que exclusivamente do Sistema Único de Saúde para ter acesso a qualquer tratamento médico. Em 2015, 14 milhões de famílias recebiam o bolsa família e mais de 27 milhões dependiam de algum benefício de prestação continuada. Ou seja, ao menos 60 milhões de brasileiros necessitavam em alguma medida do auxílio do governo federal para não descender a condições de pobreza extrema. Em um país que manteve, historicamente, índices estáveis de pobreza e desigualdade dos mais altos do mundo, o Estado brasileiro jamais realmente foi um instrumento de inclusão social, senão mais um meio para manutenção de privilégios de pequenos grupos. Contudo, ao menos desde a Constituição de 1988, produziram-se alguns poucos mecanismos estatais com a finalidade de garantir condições mínimas de existência à população mais pobre. Depois de ascender ao poder graças a um acordo patrocinado pelos setores da classe política historicamente ligados às oligarquias mais excludentes, o Presidente Michel Temer tenta aprovar, a toque de caixa, uma Emenda Constitucional que altera, profundamente, exatamente os pactos políticos mais importantes de 1988. A medida propõe que os gastos públicos sejam congelados por 20 anos, limitando possíveis aumentos apenas à

variação da inflação do ano anterior. Nesse prazo, a população brasileira continuará a crescer e se tornará mais velha. E embora a economia possa crescer nesses 20 anos, a intenção do governo é impedir que esse crescimento possa ser utilizado de qualquer maneira para atender as necessidades dos mais pobres e vulneráveis. As consequências dessas medidas são fáceis de ser percebidas. Como a emenda congela os gastos públicos aos níveis do ano anterior, isso quer dizer que possíveis aumentos no orçamento de um setor implicam necessariamente que alguma outra área irá perder recursos. Mas em áreas sensíveis como saúde, educação ou assistência social, qualquer congelamento ou perda de recursos pode representar uma diminuição da já precária rede de proteção pública. Ademais, em um país em que minorias privilegiadas conseguiram, historicamente, garantir para si os benefícios do Estado, é difícil acreditar que os mais pobres terão alguma chance de competir pelos recursos tornados ainda mais escassos. Segundo pesquisadores do IPEA, os gastos do governo federal com saúde por pessoa, que no ano de 2015 foram de R$ 519,00, seriam de aproximadamente R$ 411,00 em 2036, ao final da vigência da PEC. Isso em um quadro otimista, em que a economia crescesse 2% ao ano. Em outras palavras, com uma população de idosos que tende a dobrar nos próximos 20 anos, pretendemos investir cada vez menos em saúde. Mesmo que o país se

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torne mais rico. Além disso, a verdade é que o Brasil investe muito pouco em saúde, quando comparamos nossos gastos com os de outros países. Somando os investimentos de todos os níveis (União, Estados e municípios), o Brasil investiu, em 2013, o equivalente a 591 dólares por pessoa. Muito abaixo do investimento público per capita de países como Alemanha, de 3.600 dólares per capita, Reino Unido, de 2700 dólares per capita, ou França, que investiu 3.300 dólares per capita. Também perdemos para países como Argentina, que gasta 1700 dólares per capita com saúde. E o Chile, que investe 795 dólares. Quando olhamos para a assistência direta aos mais pobres, o quadro é ainda mais assustador. Segundo projeções, em um prazo de 20 anos de vigência da PEC, a assistência aos mais necessitados perderá aproximadamente 54% dos recursos de que hoje dispõe. Isso terá impacto direto em programas como o bolsa família e outros benefícios de prestação continuada, exatamente, aqueles que atingem os mais pobres e dependentes. Ou seja, idosos, crianças pobres, portadores de deficiência e os incapazes para o trabalho. Além disso, a PEC é um erro também do ponto de vista econômico. Nenhum país do mundo jamais criou um mecanismo de controle de gastos semelhante ao que é proposto pelo governo. Os países que incorporaram alguma regra de contenção de gastos, fizeram por no máximo 4 ou 5 anos, sempre tornando os limites passíveis de revisões de acordo com as condições concretas da economia. A Holanda, por exemplo, reviu os limites de gastos aprovados graças ao aumento da pobreza depois da crise de 2008, impedindo que os efeitos da crise fossem ainda mais devastadores, tanto para empresas como para os

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cidadãos mais vulneráveis. Ao impor um limite tão rígido para os gastos públicos, a proposta não se limita a fazer um ajuste fiscal. Ela altera completamente a relação entre Estado e sociedade. Em 20 anos, ela diminui o tamanho do Estado brasileiro, fazendo-o compatível com o tamanho de países da África sub-saariana, países conhecidos por seus altos níveis de miséria e desigualdade. Segundo projeções de economistas do FMI, em 2035, o país poderá produzir um superávit primário de 6,5%. Algo nunca tentado na história da política econômica. Ou seja, a proposta submete o Brasil à condição de cobaia de um experimento econômico que não tem precedentes. E que pode ser pago às custas das vidas dos brasileiros mais pobres. O prazo de 20 anos de vigência viola ainda a frágil democracia brasileira. Ela impõe que governos eleitos tenham uma maioria de três quintos, caso optem por uma política econômica que não seja exatamente aquela proposta pelos governantes de hoje. Um governo frágil, sem legitimidade popular, que ascendeu ao poder sem passar por eleições, impõe à população brasileira um programa que terá de ser seguido por 2 décadas. A democracia exige que sejam disponibilizadas à população uma pluralidade de projetos e ideias. Sobre os quais ela possa escolher. Está longe de ser consenso na ciência econômica que uma política de austeridade desse tipo é a única política correta a ser adotada. Ao impor essa medida, o governo Michel Temer produz um verdadeiro Estado de Exceção econômico. Uma geração inteira poderá sofrer as conseqüências de decisões de um governo a que faltam legitimidade e apoio, sem poder participar ou mesmo alterar os rumos do país pelo voto popular.


UMA PONTE PARA O PASSADO SENADOR PAULO PAIM (PT/RS)

Presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado.

A legislação trabalhista é uma conquista e um avanço social. Podemos afirmar que há dois Brasis aí. Aquele em que antesnão havia férias nem descanso remunerado, não havia salário-mínimo e muito menos licençamaternidade. As pessoas trabalhavam doze, catorze, dezesseis horas por dia. Era comum encontrar crianças com oito, nove anos em trabalhos forçados. Havia um processo em gestação que levaria a um colapso social. Com a promulgação de novas leis a partir de 1931 e a chegada da CLT, em 1943, o país começou a mudar de rumo nas suas relações de trabalho com a incorporação das necessidades dos trabalhadores e de suas famílias. Surge o Ministério do Trabalho, a garantia da carteira de trabalho, do saláriomínimo, da jornada de trabalho, entre outros direitos. A vida do país prosseguiu. Tivemos períodos de abertura de indústrias, com incentivo às empresas e grande geração de emprego e outros de inflação alta, recessão e milhões de desempregados. Tivemos governos de exceção e desde 1989 elegemos o presidente da República pelas urnas. Em todas essas décadas sempre que o país não apresentava níveis concretos de crescimento surgiram tentativas de retirar direitos trabalhistas e sociais. Programas aplicavam a tese de que a CLT é arcaica, ultrapassada, que a Previdência Social é deficitária (Análise da ANFIP - Associação dos Auditores Fiscais da Receita - prova o contrário), que não há caminho fora das privatizações. Jorge Souto Maior - juiz do Trabalho - disse em 2007, que “direito trabalhista não é custo para as empresas” e que flexibilizar as relações de emprego diminui salários e não aquece a economia. A legislação nunca foi um entrave ao desenvolvimento econômico do país. Se isso fosse uma situação válida, “o país já teria um desenvolvimento econômico invejável”. Em 1974, veio a criação do trabalho temporário. Dizia-se que era preciso diminuir os custos, para que em determinadas épocas do ano as empresas pudessem contratar.

Em 1988 surgiu a lei do banco de hora. “O Brasil já fez de tudo que poderia ser feito do ponto de vista da flexibilização. Além disso, a economia não cresceu”. Agora, com “Uma ponte para o futuro”, do presidente Michel Temer, e sua proposta de reformas trabalhista e previdenciária, volta à baila a terceirização da atividade-fim, o negociado acima do legislado, o aumento da jornada de trabalho das atuais 8 horas diárias para 12 horas, a redução do horário de almoço do trabalhador de 1 hora para 15 minutos, a aposentadoria aos 65 anos, ou seja, a desregulamentação das relações do trabalho. Estaremos voltando ao início do século 20? O governo chama de “modernização”. Mas, alto lá, como assim? Vejamos a proposta do negociado acima do legislado. Ela nada mais é do que a possibilidade de uma convenção ou um acordo coletivo de trabalho de categorias econômicas e profissionais prevalecer sobre a lei vigente. Ou seja, tudo que está garantido na legislação poderá ser rejeitado pelo lado mais forte – pelo fogo do dragão. Optar por essa proposta é negar o desemprego, o trabalho escravo e infantil, os baixos salários, as péssimas condições de segurança e as discriminações que ainda existem em muito no país. A nossa legislação, queiram ou não, ainda garante padrões mínimos para uma vida digna às pessoas. Ela sensibiliza e humaniza a relação capital e trabalho. Flexibilizar o que foi conquistado não é sinônimo de modernização e muito menos de crescimento econômico. O país só vai crescer e se modernizar a partir de um novo pacto federativo, uma ampla reforma tributária, taxa de juros que estimule o mercado sem empobrecer a população, valorização do salário-mínimo, salário descente para aposentados e pensionistas, poupança interna, combate à sonegação de impostos, que hoje chega a R$ 400 bilhões por ano, penalização de corruptos e corruptores, entre outros meios, que harmonize e gere um comprometimento entre os setores público e privado.

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Punhalada é uma publicação colaborativa que visa à mobilização política e a promover discussões sobre nossa democracia e nossos direitos. Nessa edição, o Punhalada reúne textos que buscam registrar, absorver e repensar esses primeiros meses de governo Temer.

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