Manifesto
Foi um rio que passou em minha vida E meu coração se deixou levar Paulinho da Viola
A arte é a resistência de um rio represado
O
rio desce irreversivelmente... Contudo, não é a corredeira em si que traz medo aos incautos perante as transformações, mas sim, seu obscuro desembocar e a velocidade com que, à deriva, um mar bravio está a engolfá-los após uma asfixiante queda.
O rio desce irreversivelmente desde a cômoda e saudosa manancial dourada, quando era tão somente tradição sob a proteção de represas, rememorada nostalgicamente pelos reacionários, náufragos arrastados pela enxurrada sócio-política-econômica-culturaltecnológica-psicológica que, segundo eles, está a levar-nos ao cataclismo da humanidade. A reação tenta, energicamente, com mais violência que as águas, o retorno à sua nascente ideológica, tal qual peixes em piracema, para desovar seus sonhos sobre o tempo feliz das calmas águas, num tempo bíblico onde: sexo era apenas um dever humano de reprodução, prática exclusiva entre macho e fêmea, mesmo quando feito para o prazer; toda forma de nudez era coberta por falsas escamas; a fêmea era punida se tivesse uma gravidez indesejada ou mesmo se decidisse fazer o que bem entendesse com seu corpo e, como dizem, “mulher que anda de saia curta tá pedindo para ser estuprada”; crianças eram criadas por “pai” e “mãe” e era melhor estarem na rua a serem criadas por pederastas ou bruxas; ocupações, posições e até mesmo as cores eram bem definidas, diferenciando homens de mulheres; a mulher era submissa e tinha o dever de servir como sua propriedade; negros e indígenas sequer possuíam almas. Os reaças fazem a transposição do rio alterando o curso de volta para o leito, um lugar-tempo de quando não haviam sido ainda arrastados pela tromba d’água da história. Nesse movimento retrógrado, lançam tudo e todos às margens para evitar que esses marginais se organizem nas correntes e consigam guiar um rio cujo caminho não se sabe em qual pororoca vai dar. Um rio obsceno, profano, e que, portanto, não pode mais correr senão de volta na história para o lago sagrado. Evitando a foz-apocalipse da qual supõem o destino final desse rio, a reação tomou fôlego, embarreirou córregos, represou os desejos inconscientes da humanidade. Obscenografica surge como um barco desancorado de qualquer ideia-porto, uma embarcação construída com arte, não para dar rumo ao rio, mas para que seja possível navegá-lo, empurrado pelos ventos que sopram nossa sociedade, para que ninguém nade sozinho e acabe por morrer na praia. Que seja possível romper com todos os tabus que impedem esse rio de correr. Esse movimento não é contracorrente. É pois a própria correnteza, que dá forma a história e ruma 8