lho d’água
MÁRIO ROBERTO
poemas e contos
8 sumário prefácio por Aisha Ajiyobiojo caça
19 poeira densa
mãe
câmera 25 firmamento
beijo 31 suco de limão
36 estratégias para evitar o silêncio 40 clima
marmita
cabelo
boca 45 a imitação da paixão
50 a carta 17
Pessoas que brilham muito tendem a morrer e renascer diversas vezes. A intimidade com a morte em vida nos dá a capacidade de irmos além e, inevitavelmente, enxergar a vida através de olhos d’água. Águas intensas, onde habitam desejos, amores, dores, procuras e encontros. Mário, nascido em Inhambupe, como um rio que emerge das profundezas do chão, nos convida a mergulhar na complexidade do eu, das relações e da existência.
Como podemos encontrar o caminho de volta para casa, mesmo com uma constelação inteira nas costas? Com o vento apagando nossas pegadas, nos impossibilitando de pegar o exato caminho de volta, somos provocades a perceber que talvez seja cedo demais para querer fazer isso.
Banke Ferraz traz numa canção: “A verdade nua e crua nunca mais volta”. Até podemos revisitar, mandar saudações e cartas para eus do passado, futuro ou paralelos. Mas quem nos faz é justamente a solidão da singularidade que habita a presença.
Neste livreto, podemos experienciar justamente a sacralidade de cada encontro, de cada vento, boca ou rio. Também a potência de se estar só. Não voltamos, mas catalisamos novas metamorfoses que, embora dolorosas, tendem a nos transformar e fortalecer. Como o caminho da
lagarta que se torna borboleta, esse livro clama por cada ser que já entrou para dentro de si, fazendo de seu corpo casulo e se reinventou para, posteriormente, abandonar uma antiga camada e seguir vivendo com mais um ponto de vista, através de outros pontos de vida.
Mário diz que “toda carta de amor é sobre solidão”.
Voltar para si, se integrar e fortalecer no silêncio, na sua verdade, na sua infinitude, é um corajoso ato de amor.
Afinal, para amar de verdade, é preciso transbordar, e só transborda mesmo quem se enche, primeiramente, de si.
Aisha Ajiyobiojo
artista da dança
Dedico este livro às disciplinas da Escola de Dança da UFBA, "Oficina de Leituras e Escritas", e aos seus respectivos professores: Lenira Rengel, Lucas Valentim e Daniela Guimarães, cuja orientação e incentivo foram fundamentais para o desenvolvimento da minha escrita.
“Dourar o vale e a serra
Pupila, íris, pálpebra, retina
Ah! Se esse olho d'água filtrasse
A sentina do mundo e da minha alma”,
trecho da música Olho D'Água, composta por Caetano Veloso e Waly Salomão, interpretada por Maria Bethânia (1992).
pupila, íris, pálpebra, retina lágrima
caça
por muito tempo andei a p a s s o s de onça para não chamar atenção do caçador
poe i ra ensa d
Engraçado que, enquanto caminhava, olhava para trás e não conseguia enxergar minhas pegadas. O vento soprava forte, levantando do chão uma poeira densa que irritava meus olhos. Agora me pergunto:
q u a l é o c a m i n h o de v o l t a para c a s a ?
mãe olho d'água, fonte de água doce, subterrânea que deságua no mar
câmera caixa mágica que prende, em seu interior, memórias
Em qual parte do corpo se inscreve a saudade daqueles que já não estão presentes?
firmamento
Ela me convida para descer a ladeira do Rio Inhambupe
Apontando para o céu, encontra com o dedo a lua nova, esguia e descansada sobre uma rama de nuvens, sorrindo
“Este mês é de chuva, meu filho”, disse enquanto agarrava meu braço se equilibrando sobre os paralelepípedos E não foi preciso dizer mais nada
A luz amarela dos postes encontrou nossas feições iluminando uma melancolia moça, ingênua mas que requeria a memória mais envelhecida
A memória de meu avô
Procurando a Estrela Dalva, Vó Beinha se lembra que ainda é noite e que levará um tempo para rever a segunda estrela mais brilhante do céu
O tempo da perda do luto do abraço do meu avô e uma constelação inteira sobre minhas costas.
De que maneira o estado de solidão pode ser utilizado como propulsor, catalisador e transformador para a instauração de um estado de autoconhecimento e fortalecimento da autoestima?
beijo
encontro de dois ou mais rios
que d um n e s a gu a m ut r o o o
suco de limão
como se eu fosse um �� de �� que ele tivesse que tomar na hora pra não amargar
A maioria das cartas de amor são sobre solidão.
O que o silêncio, em um encontro, quer comunicar?
Estratégias para evitar o silêncio
O pátio de Belas Artes estava vazio naquela tarde, e como era de costume me sentava sozinho numa das mesas improvisadas pelos alunos. Era horário de almoço e não existia fome, mesmo depois de fumar um cigarrinho de maconha. A melhor companhia naquele momento era o café que havia pego de graça no casarão principal, na sala da diretoria. Era horário de almoço, meio-dia e meia em todo o resto de Salvador, menos ali naquela mesa. Sob as sombras das árvores e seus desenhos gráficos fazendo gravura na superfície da mesa, o tempo havia parado. Meu estômago anestesiado e vazio, recebia o café de maneira contrária à natureza humana: o café socava meu estômago, mas eu sentia como se fosse um beijo. Uma cólica aguda e em seguida uma vontade de cagar nada. Eu estava em paz. Quem me beijasse naquele momento sentiria o gosto amargo do café numa sagrada harmonia de folhas secas, defumadas. Minha respiração intercalada com uma baforada do cigarrinho, encontrou um ritmo de vida próprio - a fumaça que saia da minha boca tomava lentamente a forma de nuvem em minha frente. O calor que fazia naquele pátioe que não interrompia o momento - era responsável por afastar os ventos daquele espaço e uma gota de suor crescia nos poros de minha testa e não escorria, parada.
Havia uma redoma, que aglomerava ali os fatores responsáveis pela condensação da nuvem de fumaça e, em algum aspecto, eu me identificava com a sua presença. Mas essa atmosfera foi interrompida pela presença dele, que vinha em direção a mesa com a sua marmita na mão, uma espécie de Chico Buarque nos seus vinte e poucos anos, os cachos castanho-dourados, definidos. Felipe nunca foi um mistério para mim, ele era o Felipe e ponto. E aí que percebo que minha atração por pessoas misteriosas está na questão que, talvez elas não saibam quem são e se escondem atrás de um mistério. Mas estar na presença de Felipe me desconcertava, racionalmente não existia nenhum tipo de atração - apesar da sua beleza - inconscientemente não sei e, me preparei para o cenário interessante que se estabeleceria após ele perguntar se poderia sentar comigo. Minha resposta foi impulsiva e imediata: "Claro!". Ele se ajeitou entre o banco e a mesa, pousou a marmita e nos segundos seguintes, automaticamente comecei a traçar estratégias de diálogos que já nasciam falidas, estratégias para evitar o silêncio.
Não queria que minha presença fosse um incômodo, mas ao mesmo tempo as palavras se conectavam de maneira ilógica na minha cabeça. Poderia ter perguntado sobre inúmeros assuntos, poderia ter falado sobre o tempo abafado, mas na minha cabeça nenhum tópico fazia sentido naquele momento. Então, meio que naturalmente de forma não natural, foi se estabelecendo um pacto de silêncio entre Felipe e eu, talvez um pacto que só eu havia assinado. Meu
Deus, como deve ter sido constrangedor para Felipe! Eu que me tornei mestre em puxar assuntos aleatórios para evitar constrangimento no silêncio, naquele momento eu voltava a ser um aprendiz.
Acredito ter jogado sozinho o jogo do silêncio, um pouco egoísta da minha parte, mas como não conseguia colocar em prática nenhuma estratégia, apenas me entreguei ao fluxo da situação. Sim, uma situação foi estabelecida. E nesses momentos não disfarço com o celular e nem tento fingir estar empenhando em alguma outra ação: Felipe, sentado naquela mesa em minha frente, se transfigurou numa tela, pintada com os traços mais bonitos e macios, feitos pelas suas próprias mãos. Fumando o meu cigarrinho, eu o observava de maneira disfarçada. Com minha visão periférica estava atento a cada movimento. Eu, que me esforçava para fazer parte daquela tela, já havia desistido e apenas observava a sua construção.
O cheiro da marmita tomou conta do ambiente por alguns poucos minutos, fazendo meu estômago acordar de um transe. (Agora tento lembrar o conteúdo da refeição, mas me fugiu da memória, único elemento daquela tela que não ficou gravada na minha cabeça). Eu, que me esforçava para fazer parte daquela pintura, me imaginara substituindo o conteúdo do recipiente: "Ao me levar até sua boca, qual sabor seria predominante? Qual textura sentiria ao me mastigar?". Ainda me pergunto se quando levou meus olhos castanhos até a sua boca sentiu na ponta da sua língua o sabor salgado das minhas lágrimas passadas. Não me
questiono sobre o pós almoço, tenho certeza de uma pequena indigestão, que no entanto poderia ser resolvida com o suco de um limão em um copo d’água. Voltei pra mim com a ponta do cigarrinho queimando os meus dedos; dei uma última tragada e senti a piteira queimando nos meus lábios; o cheiro do café frio chegava ao meu nariz e pela primeira vez naquele dia sentia o meu rosto, queimando. Um olhar repentino de Felipe em minha direção denunciava sua curiosidade, e me fazia corar por dentro. A gota de suor parada na testa tomava embalo para descer, trazendo junto suas pariceiras: fecho os olhos para não ver cair o aguaceiro. Cada poro do meu corpo trabalhava para equilibrar a sua temperatura. Desnorteado e úmido, aquele olhar convocara a minha presença, e a presença de todo o líquido contido em mim. Como se um rio de águas termais tivesse passado dentro de mim. Não tive jeito de me salvar. Era meio-dia e cinquenta e cinco, aqui e em todo o resto do mundo. E em pensamento o perguntei se a comida estava gostosa, ele não respondeu. Organizou os talheres de plástico dentro da marmita já vazia, levantou-se do banco, pediu licença e saiu.
clima
termômetro
marmita
baú onde se guarda joias de valor imensurável
↣
“...uma espécie de Chico Buarque nos seus vinte e poucos anos, os cachos castanho-dourados, definidos.”
cabelo p e n s a m e n t o s m a t e r i a l i z a d o s me f oi s d e q u e r a t i n a
boca
todo o meu desejo a um palmo dos teus olhos
a imitação da paixão
Ele não tem pressa e me perguntei se era possível a paixão Eu imerso em tempos artificiais cabeça e peitos pra fora d’água
No mezanino café e cana ao fixar meus olhos em seu rosto seu sorriso algum tipo de explosão química em câmera lenta que se inicia na menina dos olhos, arrepia o colo e desce pelos oblíquos ereto molhando a cabeça da pica.
Talvez, algum sopro quente de paixão que lentamente se debandou pelo meu corpo e se fez encanto.
Agora imito o sentimento para tentar rever seu rosto.
↣ Deus abençoe os poetas solitários.
Carta que recebi de um querido amigo, a quem não vejo há um bom tempo.
Salvador, Bahia 25 de outubro de 2018
É meia noite e quinze, tomo o último gole da terceira latinha de cerveja enquanto inicio a escrita. Esta carta será encaminhada através do vento; espero que chegue até você dentro de uma garrafa azul. A entrega é pelo ar, onde a cabeça se encontra no momento.
É inverno aqui do outro lado do mundo, mas o sol insiste em nascer luminoso e incômodo. Me pergunto por que tanta luz; peço apenas um pouco de céu e ele me responde com mais azul. “Essa claridade passou a me perturbar, uma claridade que revela tudo me pondo mudo e estranho no mundo”. Hoje acordei com a vista embaçada, a cabeça alcançaria um pé-direito duplo, se pé-direito duplo essa casa tivesse.
Acordar tem sido uma pequena odisseia; parece que todo início de dia é início de vida um incêndio, um clarão! a luz contrai a minha pupila e mais uma vez preciso aprender a andar, a falar e a fazer fogo. Cada interação humana me atinge como um meteorito. O quarto de onde escrevo se tornou meu refúgio, minha caverna. Qualquer
cômodo da casa é grande demais para caber a minha pequenez. Eu estou nu e tenho o sonho de recriar o homem Neandertal.
Ontem dobrei a medicação, sem prescrição acordei sobre uma rama de nuvens ouvindo Tropix. E parecia a primeira vez.
Te sinto tão perto, mas não te alcanço. O peito sentiu uma angústia mais cedo, Mário. Por que me lembrei de você?
Preciso te tocar, olhar nos teus olhos. Junto à carta te envio uma flor e uma estrela. Usa uma delas como brinco! Pendurada na orelha.
Me permiti fazer um caminho tortuoso antes de tudo começar. E se estabeleceu um nível de desorganização, de desencontro, que qualquer coisa que eu fizesse iria de encontro com o que eu não sou. O erro se tornou meu caminho. Toda e qualquer ação exigia de mim um esforço super-humano. Aqui se iniciou minha jornada como superhumano e a exaustão vinha no final do dia e ao acordar e depois e depois.
Naquele momento eu era o próprio rasgo, uma profunda incisão na parede de uma galeria, e em certos momentos me confundia entre ser a superfície da cisão e o espaço que nela se formava o buraco. Um projeto de instalação anti-mim. Sobrevivente de mim mesmo. Mesmo assim me permiti voltar. Por mais difícil que tenha sido, consegui tocar a sua pele. E eu sei que você sentiu. Continuarei nessa busca. Questão que só a solidão, o
silêncio e o tempo podem resolver.
Lembro da cerveja e tento dar o último gole do líquido agora quente… tentativa abortada tem uma mosca na minha cerveja implorando por ser amada. Foi revelador perceber que sempre estou fazendo um esforço para amar as pessoas. Eu nunca amei um homem e cheguei a conclusão que a maioria das cartas de amor são sobre solidão, todos os poemas de amor escondem um vazio. Sou apenas um iniciante muito jovem para amar, porque ainda não aprendi o amor.
Dia desses me encontrei com ele e me surpreendi com o quanto somos diferentes agora. Me disse que com a sua ajuda conseguiu sair do pátio do Colégio Social de Inhambupe; ingressou no ensino fundamental e irá lidar com situações que mudarão o rumo da sua vida. E você já está lidando há muito tempo com elas. Parou de usar o uniforme branco com detalhes vermelhos nos punhos das mangas, embora ainda vista a bermuda vermelha para fortalecer as suas pernas pequenas e doloridas. Abracei-o, beijei-lhe a testa e jurei-lhe proteção.
Me encontro aberto para o mundo agora, mas ainda tenho o desejo de fazer parte e não apenas passar por ele. Ser o mundo e cada coisa contida nele. E aos poucos fui me tornando poeta para aprender a viver. Deixe o mundo saber o que você tem a oferecer. Essa é uma das respostas. Queria conseguir descrever essa sensação, queria contar tudo no seu ouvido. Queria ser um, Mário.
Quando a gente retorna, a vida passa a ser uma tentativa constante de se estar presente. Quando estiver perdido em sua linha do tempo, firme os pés no chão. Quando a pressão baixar, deite-se no chão e levante as pernas o mais alto que puder. Tudo acontece ao mesmo tempo, mas para nós frágeis super-humanos a vida acontece agora e o presente é o começo da resistência. Proteja o corpo, dance o corpo, cuide dele. Por enquanto ele é você, ele é seu!
Lembre-se de adubar as plantas na lua nova, podar e trocar de vaso na minguante. Raspar a cabeça após uma grande tristeza. Regular o sono e dobrar a medicação. Cobrir os espelhos, não andar descalço e se recolher em dia de tempestade. Toda a perda de tempo faz parte do processo de compreensão do problema. Renascer é uma experiência traumática, então tenha paciência com o seu processo. Respeite a tempestade.
Sobre as músicas que tenho ouvido? Essas aí. Chegou a hora!
Com amor.
Sempre Seu,
Mário Roberto
Mário Roberto
(1994, Inhambupe — Bahia) Artista visual, fotógrafo e artista da dança, graduando em Licenciatura em Dança pela Universidade Federal da Bahia. Sua pesquisa concentra-se na investigação da atuação e performance de corpos dissidentes, assim como na compreensão de sua própria identidade e expressão enquanto corpo LGBTQIA+ inserido em um contexto social de heteronormatividade compulsória. Por meio da fotografia documental e experimental, fotoperformance, dança e escrita, constrói narrativas que ampliam o campo da representatividade e resistência.
“Agora me pergunto:
q u a l é o c a m i n h o de v o l t a para c a s a ? ”