http://dx.doi.org/10.5007/2175-7968.2015v35n1p54
TRADUZINDO O GĂŠNERO: GĂ“GOL, KAFKA E LEM
Olga Donata Guerizoli Kempinska* Universidade Federal Fluminense
Resumo: Nesse artigo debruço-me sobre o impacto poĂŠtico da mudança de gĂŞnero gramatical das palavras dentro de um texto literĂĄrio. Com efeito, as diferenças entre as lĂnguas tornam a tradução do gĂŞnero e de sua ambivalĂŞncia muito difĂcil de ser transposta. Expressas atravĂŠs das palavras que designam roupas e mĂĄquinas, as articulaçþes discursivas do sexo e do gĂŞnero, intimamente ligadas Ă s condiçþes culturais de sua construção, podem ser observadas nas narrativas de Nicolai GĂłgol, Franz Kafka e Palavras-chave: Tradução. GĂŞnero. Identidade.
TRANSLATING GENDER: GOGOL, KAFKA AND LEM Abstract: In this paper, I discuss the poetic impact of the change of
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and machines, the discursive articulations of the sex and of the gender,
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olgagkem@gmail.com
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Olga Donata Guerizoli Kempinska
â&#x20AC;&#x153;Que decepção perante a perversidade que atribui a jour como a nuit, contraditoriamente, os timbres escuro aqui, ali claroâ&#x20AC;? ?`V V;`j wyyR wy{J V W )+
conhecida, captada em uma estrutura intensamente quiasmĂĄtica, ` W
vação sonora das palavras â&#x20AC;&#x153;noiteâ&#x20AC;? e â&#x20AC;&#x153;diaâ&#x20AC;? em francĂŞs. Parece um tanto decepcionante que aquele poeta, que mais exigiu do verso em termos de uma â&#x20AC;&#x153;remuneraçãoâ&#x20AC;? poĂŠtica, nĂŁo tenha estranhado nenhuma das perversidades linguĂsticas relacionadas ao gĂŞnero gramatical das palavras. Do ponto de vista do poeta francĂŞs, nĂŁo apareceria como uma perversidade atribuir, contraditoriamente, o gĂŞnero masculino Ă lua, â&#x20AC;&#x153;der Mondâ&#x20AC;?, e o feminino ao sol, â&#x20AC;&#x153;die Sonne|
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na qual existem o lua e a sol? V
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a interpretação do texto e afirmava que â&#x20AC;&#x153;as maneiras de personificar metaforicamente os substantivos inanimados sĂŁo influenciadas Z | ?>V& \ " wyyÂ&#x20AC;  QJ !
ve um interessante exemplo de uma criança russa que se espantava
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energia, o calor, o tamanho e atĂŠ a racionalidade como categorias que sĂŁo utilizadas em diferentes culturas para opor o sol e a lua, o antropĂłlogo, no intrigante texto â&#x20AC;&#x153;O sexo dos astrosâ&#x20AC;?, dedicado, Â&#x201E; > Â&#x192;
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da tensĂŁo entre os dois astros, nĂŁo apenas falta a consequĂŞncia genĂŠrica, tanto na forma das palavras, quanto na sua inserção nos mitos, como tambĂŠm que â&#x20AC;&#x153;na ideologia de vĂĄrias populaçþes, o
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Uma sensibilidade ao potencial poĂŠtico do gĂŞnero gramatical das Â&#x201E;
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exemplo, a feminilidade presente no nome Sarrasine, â&#x20AC;&#x153;perceptĂvel a todo francĂŞs, que acolhe espontaneamente o e final como um
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capta a inversĂŁo grĂĄfico-genĂŠrica presente no nome do protagonista
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Â&#x201E; ] W | ?\V;'Â&#x2021;! wy Q ww{J Foi no contexto da reflexĂŁo sobre a â&#x20AC;&#x153;perversidadeâ&#x20AC;? linguĂstica que envolve o gĂŞnero gramatical das palavras e sobre suas inversĂľes semânticas que chamaram minha atenção algumas ocorrĂŞncias de mudanças genĂŠricas presentes nos textos de Nicolai GĂłgol, $ % &
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gramatical da palavra â&#x20AC;&#x201C; movimento Ă s vezes nĂŁo imediatamente perceptĂvel numa primeira leitura e que coloca desafios especialmente espinhosos ao tradutor. E se essa substituição, longe de remeter a uma simples sinonĂmia, faz questionar, antes, Ă motivação W W Â&#x192;
Â&#x201A; X | ça tĂŞm um papel protagonista dentro das narrativas em questĂŁo e, como veremos, ao trocarem de nome e de gĂŞnero, parecem trocar tambĂŠm de identidade. Enquanto uma contribuição para a reflexĂŁo sobre o alcance da poĂŠtica, este estudo se propĂľe demonstrar os motivos da necessidade de se arriscar uma ampliação do elenco das operaçþes lin } Â&#x201E; Â&#x192; Â&#x192;
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palavras. De fato, o gênero gramatical da palavra pode ter uma participação muito relevante na exposição da materialidade da linguagem, e, com isso, na estimulação dos florescimentos de ambiguidades da referência.
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1. O gĂŞnero do capote No Capote de Nikolai GĂłgol, de 1842, a narrativa inaugural da literatura russa, que conta a estranha histĂłria do pobre funcionĂĄrio V Â&#x201E; V
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de nome e, ao mesmo tempo, de gĂŞnero gramatical e de identidade W [ V )+
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ĂĄrio, a velha, que nĂŁo apenas nĂŁo protegia o protagonista do frio, mas, ainda, o expunha ao escĂĄrnio social, e a nova, que o valorizava e afirmava, tanto fĂsica, quanto espiritual e socialmente, ĂŠ, a meu ver, essencial na organização poĂŠtica do conto de GĂłgol. `
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Em russo, o tĂtulo da narrativa ĂŠ ШиноНŃ&#x152; ?@ #Â&#x152;# MQQ J
a â&#x20AC;&#x153;Ń&#x2C6;иноНŃ&#x152;â&#x20AC;? [â&#x20AC;ŤÝ&#x2022;â&#x20AC;Źiniel], figura da vestimenta valorizante, opĂľe-se ao longo da histĂłria ao â&#x20AC;&#x153;капОŃ&#x201A;â&#x20AC;? [kapot], que remete Ă vestimenta V %
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nina, enquanto que a desvalorizante ĂŠ uma palavra de gĂŞnero mas V )+ Â&#x192;
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Ă dificuldade de se preservar o movimento do sentido da narrativa, e que começam pela tradução de seu tĂtulo. "
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Â&#x201A;Ń&#x2C6;иноНŃ&#x152;|
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que, por causa de sua usura, ĂŠ chamada de forma denegridora de â&#x20AC;&#x153;капОŃ&#x201A;â&#x20AC;?. Na tradução em portuguĂŞs, ocorre nessa passagem uma troca curiosa: a palavra â&#x20AC;&#x153;capoteâ&#x20AC;? ĂŠ usada para transpor a â&#x20AC;&#x153;Ń&#x2C6;иноНŃ&#x152;â&#x20AC;? , enquanto a palavra â&#x20AC;&#x153;roupĂŁoâ&#x20AC;? ĂŠ usada para o â&#x20AC;&#x153;капОŃ&#x201A;â&#x20AC;?, palavra, que, no entanto, ĂŠ mais prĂłxima foneticamente do â&#x20AC;&#x153;capoteâ&#x20AC;?. V )+
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temos: â&#x20AC;&#x153;tinham-lhe negado atĂŠ a denominação nobre de capote e B
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clusive o nobre nome de capote substituindo-o por roupĂŁo | ?#Â&#x152;# MQwQ wÂ&#x2C6;J >Â&#x201E; )+
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â&#x20AC;&#x153;capoteâ&#x20AC;? preserva seu lugar na sequĂŞncia, enquanto â&#x20AC;&#x153;Ń&#x2C6;иноНŃ&#x152;â&#x20AC;? ĂŠ
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traduzida como â&#x20AC;&#x153;casacoâ&#x20AC;?: â&#x20AC;&#x153;Haviam mesmo retirado a nobre denominação de casaco para tratĂĄ-lo desdenhosamente por â&#x20AC;&#x2DC;capoteâ&#x20AC;&#x2122;â&#x20AC;? ?#Â&#x152;# MQQQ w J "
Â&#x192;
Â&#x201A; poteâ&#x20AC;? no original, no qual este remete Ă vestimenta desvalorizante, infelizmente, ĂŠ o tĂtulo que nĂŁo parece adequado, pois, em russo, este remete claramente Ă vestimenta valorizante. Por que essa mudança de nome ĂŠ tĂŁo relevante na poĂŠtica do conto de GĂłgol? Porque a confecção da nova vestimenta produz )
V Â&#x201E;
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pobre funcionĂĄrio parece estar se reinventando em profundidade por meio da reinvenção de sua aparĂŞncia. Colocado, de repente, no domĂnio do individualismo e, ao mesmo tempo, no domĂnio
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%
moda, sempre â&#x20AC;&#x153;inseparĂĄvel do excesso, da desmedida, do exage | ? ( Â&#x2026;!' &Â&#x201D; MQQy Â&#x2C6;QJ V W tagonista um excesso por excelĂŞncia e faz com que ele ultrapasse todos os seus limites: existenciais, econĂ´micos, estĂŠticos, sociais e, como veremos, genĂŠricos. Sua transformação sob o efeito da nova vestimenta oscila grotescamente entre um delĂrio narcisista, uma loucura amorosa e uma possessĂŁo demonĂaca. Nesse contexto de metamorfose do protagonista, a tradução da palavra â&#x20AC;&#x153;Ń&#x2C6;иноНŃ&#x152;â&#x20AC;? como â&#x20AC;&#x153;capoteâ&#x20AC;? apresenta ainda um problema: â&#x20AC;&#x153;Ń&#x2C6;иноНŃ&#x152;â&#x20AC;? ĂŠ em russo uma palavra do gĂŞnero feminino, enquanto â&#x20AC;&#x153;capoteâ&#x20AC;? ĂŠ masculino. Essa diferença nĂŁo me parece irrelevante no conto de GĂłgol, pois a decisĂŁo de encomendar uma nova casaca, B
V Â&#x201E;
)+ ] Desde entĂŁo foi como se sua prĂłpria existĂŞncia tivesse adquirido mais plenitude, como se ele houvesse se casado, como se contasse com outra pessoa a seu lado, como se nĂŁo estivesse sozinho e uma simpĂĄtica companheira tivesse con
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companheira nĂŁo era outra senĂŁo o capote novo de algodĂŁo
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#[gol uma analogia curiosa entre o Capote e um dos contos folclĂłrico-onĂricos do autor ucraniano, intitulado Ivan Shponka e sua Tia: Â&#x2026; X
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X dora tentava forçå-lo a casar com uma loira arrogante, filha % Â&#x201A;? J ! +
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uma pessoa viva, mas uma espĂŠcie de tecido de lĂŁ, e que
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o comerciante, e continuou: â&#x20AC;&#x2DC;Seria melhor o senhor levar uma esposa, ĂŠ o material mais em moda, e tambĂŠm ĂŠ muito
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casacos deleâ&#x20AC;&#x2122; â&#x20AC;&#x201C; e o comerciante começou a medir e a cortar
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O sonho-pesadelo do conto gogoliano, no qual a esposa ĂŠ a lĂŁ, W )+
W X toso com a expressĂŁo idiomĂĄtica â&#x20AC;&#x153;material para uma boa esposaâ&#x20AC;?. No entanto, no Capote, tal como no sonho de Ivan, a matĂŠria-esposa rapidamente perde seu carĂĄter benĂŠfico, transformando-se
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noite de seu uso, que levarå à exposição do protagonista ao frio extremo e ao desespero, provocando sua morte e sua transformação em um fantasma, ladrão de casacas. V
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to, como reversĂvel e seu desdobramento poĂŠtico-genĂŠrico â&#x20AC;&#x153;casaca/ capoteâ&#x20AC;? abre o caminho para uma sĂŠrie de outros pares reversĂveis: roupa/corpo, corpo/fantasma, morte/vida, natureza/artifĂcio, Â&#x2122; V }
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identidade genĂŠrica representada na narrativa gogoliana pode ser colocada em relação com a representação do sexo reversĂvel e do corpo humano dotado de sexo Ăşnico, tal como descrita por Thomas Â&#x192; Making Sex, Body and Gender from the Greeks to Freud. Em contraposição Ă ideia, aparentemente Ăłbvia, segundo Â&#x192; [ Z Â&#x192;
como as condiçþes culturais influenciaram, ao longo dos sĂŠculos, as imagens anatĂ´micas dos ĂłrgĂŁos genitais. â&#x20AC;&#x153;Tal como mapas, as ilustraçþes anatĂ´micas chamam atenção para um detalhe particular X
)Â&#x161; | ? VÂ&#x2014;=!=; wyyM
wÂ&#x2020;Â&#x2C6;J Â&#x192;
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dependeu da representação, distingue dois sistemas de representação do sexo: o modelo de um sexo Ăşnico e o modelo de dois sexos Â&#x201E; W Â&#x203A;Â&#x2026; Â&#x192;
coberta dos ovårios e a dissociação entre a fecundação e o orgasmo feminino passarão a impulsionar a elaboração da representação de
Â&#x201E; V tes dessa ĂŠpoca, predominava no Ocidente o modelo de um Ăşnico sexo, construĂdo ao longo dos sĂŠculos pelos discursos sobre a an
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e, finalmente, pelo discurso da medicina clåssica e renascentista sobre o isomorfismo dos órgãos sexuais masculinos e femininos. O movimento da reversibilidade desenfreada no conto de Gógol, que faz com que a X B + capote, a vestimenta uma in-versão o corpo e o corpo uma in-versão do fantasma, pode ser interpretada como uma transposição da representação } V W
)+ Â&#x201A; | ? VÂ&#x2014;=!=; wyyM MÂ J
como os ĂłrgĂŁos sexuais femininos sĂŁo, segundo as ilustraçþes anatĂ´micas renascentistas, uma mera inversĂŁo dos ĂłrgĂŁos masculinos. Tal como a mulher-vestimenta do conto de GĂłgol, que, submetida a uma sĂŠrie de gestos de in-versĂŁo, acaba sendo uma in-versĂŁo de V Â&#x201E; )+ tema da histĂłria social da cultura, no qual crer ĂŠ ver, aparece, de fato, como uma in-versĂŁo do sexo masculino.
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2. O gĂŞnero da mĂĄquina Uma ambivalĂŞncia relacionada ao gĂŞnero, que lembra a in-versĂŁo gogoliana, pode ser observada tambĂŠm na narrativa ColĂ´nia penal de Franz Kafka, de 1914. TambĂŠm nesse texto, seu/sua protagonista tĂĄcito/a, que ĂŠ o aparelho/a mĂĄquina de execução dos condenados em uma colĂ´nia penal, muda de nome e de gĂŞnero. E tal como no caso da vestimenta do conto de GĂłgol, a troca de gĂŞnero gramatical na narrativa kafkiana claramente aponta para uma mudança de função e de identidade. Na primeira parte do texto, que começa com a introdução do Â&#x2022; Â&#x201A;j Â&#x2022;
ao explorador, percorrendo com um olhar atĂŠ certo ponto de ad )+ Â&#x192;
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sendo descritos pelo comandante de modo exageradamente detalhado, o dispositivo, que inscreve no corpo dos condenados o texto W Â&#x192;
Â&#x201A; | ?der ApparatJ ` Â&#x192;
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aparelhoâ&#x20AC;? ultrapassa sua fase teĂłrica da minuciosa descrição e se Â&#x161;
Â&#x201A; Â&#x201E;Â&#x192; | ?die MachineJ]
â&#x20AC;&#x153;O explorador tinha inclinado o ouvido para o oficial e, as mĂŁos X Â&#x192; Â&#x201E;Â&#x192; | ?&V$&V
MQQÂ Â&#x2C6;Â&#x20AC;J Essa troca de nome e de gĂŞnero â&#x20AC;&#x201C; do masculino para o feminino â&#x20AC;&#x201C;, muito consequente no texto de Kafka bastante bem seguida na )+
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dida em que aponta para a passagem da passividade Ă atividade, movimento contrĂĄrio Ă representação historicamente afirmada das atitudes, reprodutivas e sociais, atribuĂdas aos gĂŞneros. Ă&#x20AC; primeira vista, enquanto o W X )+ dante, a mĂĄquina responde pela atividade de seu funcionamento. ` X B + )+
a atividade escapa, na narrativa de Kafka, a uma determinação simples, revelando-se dinamicamente subversiva, na medida em
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que impossibilita a imobilização da oposição. O funcionamento da måquina Ê, na verdade, rapidamente invertido em uma disfunção, que leva a sua autodesmontagem espetacular durante a relação com o corpo do comandante. E, em um movimento de in-versão gro
X Â&#x201E;Â&#x192; B
}
seu operador-vĂtima, seu Ăşltimo e seu Ăşnico executado voluntĂĄrio, que, pelo excesso da auto-execução, parece ter querido afirmar sua identidade com a mĂĄquina. V Â&#x201E;Â&#x192;
)+
por sua vez, para a prĂłpria negação da caracterĂstica de toda mĂĄquina, a saber, a previsibilidade de seu funcionamento em termos ! W X
)+ )+ } tica, a previsibilidade racional, com a troca de gĂŞnero, que retorna
)+ }
ao tema da poieisis. Entre os mais curiosos dentre os contos lemianos, chama, de fato, a atenção aquele intitulado â&#x20AC;&#x153;Como foi salvo o mundoâ&#x20AC;?, de 1975, que coloca em cena o problema, comum Ă filosofia, Ă poĂŠtica da criação e Ă histĂłria da sexualidade, da precedĂŞncia da ideia com relação Ă existĂŞncia da realidade material. Para encenar os limites desse princĂpio formal, a narrativa lemiana representa a construção
Â&#x201E;Â&#x192;
X Â&#x192;
) terminada letra. Em polonês, a letra que determina a produção da måquina Ê n, mas optei pelo c em português por motivos poÊticos: O Construtor Trurl construiu uma vez uma måquina que sabia fazer tudo que começava com a letra c. Quando estava pronta, para testå-la, ordenou que fizesse cordþes e, depois, que os cacheasse nos carretÊis, o que ela fez, e, em seguida, que os X
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tinuar o teste, aumentando o grau de dificuldade do fazer e con-
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feccionado â&#x20AC;&#x153;cĂŠuâ&#x20AC;?, â&#x20AC;&#x153;ciĂŞnciaâ&#x20AC;? e â&#x20AC;&#x153;contrĂĄrioâ&#x20AC;?. Nesse Ăşltimo caso, â&#x20AC;&#x153;primeiro fez antiprĂłtons, em seguida antielĂŠtrons, antineutrinos, Z
X timatÊria, da qual começava surgir aos poucos, parecido com uma
W B | ? !` wy Â&#x20AC;
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prova de produção da realidade, o desafio da mĂĄquina consistiu em fazer â&#x20AC;&#x153;coisa nenhumaâ&#x20AC;?. Este fazer revelou-se, no entanto, extremamente perigoso, pois o mundo, submetido Ă lei da carĂŞncia e do ) ] Â&#x201A;V Â&#x201E;Â&#x192;
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coisa nenhuma, de modo que, uma por uma, eliminava do mundo diversas coisas, que deixavam de ser como se nunca tivessem
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Â&#x201E;Â&#x192;
finalmente, deixado de produzir â&#x20AC;&#x153;coisa nenhumaâ&#x20AC;?, e que o mundo tenha sido salvo da produção Ă s avessas da matĂŠria, a realidade permaneceu, no entanto, toda â&#x20AC;&#x153;furadaâ&#x20AC;?, perpassada por â&#x20AC;&#x153;coisa nenhumaâ&#x20AC;? e algumas coisas desapareceram dela para sempre. NĂŁo que na realidade sociohistĂłrica contemporânea dos contos
Z Â&#x192;
dispositivos fossem gadgets lĂşdicos de temporada, mas a mĂĄquina do conto â&#x20AC;&#x153;Como foi salvo o mundoâ&#x20AC;? serĂĄ rapidamente substituĂda por uma nova experiĂŞncia. O tema da construção da mĂĄquina criadora e do crescendo de seus testes retorna, de fato, na mesma <
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' | ` % [ Â&#x201E;quina poeta. O desafio consiste na programação de um aparelho que pudesse abranger toda a histĂłria da humanidade, o que resulta em uma construção pitorescamente babĂŠlica, parecida com â&#x20AC;&#x153;uma Â&#x192;
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nĂŁo a produção da matĂŠria do mundo, mas a criação da arte, a mĂĄquina, que no conto anterior era simplesmente â&#x20AC;&#x153;maszynaâ&#x20AC;?, palavra feminina em polonĂŞs, parece ter agora o sexo masculino, refletido em seu nome Eletrobalb. Um aparelho, no masculino, ĂŠ, como no conto de Kafka, responsĂĄvel pela ideação e nĂŁo pelo contato, dis-
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funcional, com a matÊria. Não mais a måquina, mas o eletropoeta lemiano passa a ameaçar com a qualidade de sua produção os poetas X
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que ironicamente lembra a expulsĂŁo platĂ´nica do poeta da cidade, ĂŠ enviado para o espaço sideral, no qual se torna â&#x20AC;&#x153;o motor lĂrico de
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No caso desses dois contos, chama a atenção a composição paralela com vĂĄrios elementos em comum: a construção do dispositivo pelo mesmo personagem, o cientista chamado Trurl, a atribuição de tarefas que consistem em uma poieisis, e, finalmente, as peripĂŠcias relacionadas com os excessos de seu funcionamento. NĂŁo andrĂłides â&#x20AC;&#x201C; e a representação do gĂŞnero feminino na obra de
+ W +
das måquinas, mas, sobretudo, atravÊs do estudo da representação
?@ # V !"V(( MQQ{J Â&#x2022;
duas mĂĄquinas lemianas, a fabricadora de matĂŠria e o fabricador de poemas, passam tambĂŠm a ameaçar os domĂnios humanos de ` Â&#x201E; ) Â&#x201E;
natureza e na dimensĂŁo dos danos produzidos pelas duas mĂĄquinas, que, ambas, excedem-se em seus fazeres, apontando com isso para os limites da racionalidade da programação e para a liberação da Â&#x201A;
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V Â&#x192;
Â&#x153; +
cionamento e apenas ameaça o mundo da literatura e da edição, desvelando, dessa forma, os vĂcios internos desse meio, a mĂĄquina fabricadora da matĂŠria, desprovida de nome prĂłprio e responsĂĄvel por uma verdadeira anti-poieisis, ameaça com seus excessos a prĂłrpia existĂŞncia da realidade.
3. A poĂŠtica do gĂŞnero V W
) Â&#x192;
poieisis, as måquinas lemianas evidenciam a existência de uma diferença fundamental com relação tanto à måquina kafkiana, quanto
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Â&#x2122; Â&#x201E;Â&#x192;
Â&#x201A; Â&#x201E;quinaâ&#x20AC;? e o Eletrobalb, parecem, de fato, resistir ao movimento de Â&#x201A;V Â&#x201E;Â&#x192; |
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fĂsica nem ĂŠ descrita, ao contrĂĄrio do â&#x20AC;&#x153;corpoâ&#x20AC;? labirĂntico-babĂŠlico do Eletrobalb, aparece como radicalmente distinta do aparelho-poeta. Sua função, sobretudo, ĂŠ muito diferente, pois ela nĂŁo cria, ela % V )+
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-se, com isso, nĂŁo mais da visĂŁo do sexo Ăşnico e reversĂvel, mas, antes, da representação, construĂda pelo discurso cientĂfico desde o Y W $ X ) Â&#x153; [
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desvelando a presença de uma poieisis na fabricação da representa)+ Â&#x192; Z V +
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tiva aparecem como intercambiåveis, de fato, aponta para a importância do discurso na construção não apenas do gênero cultural, mas tambÊm do sexo biológico. V
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estudadas no exemplo dos nomes prĂłprios, mostram-se como par
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na capacidade de se colocar entre parêntese a função pråtica e X
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X ção imaginåria, têm sua função pråtica amplamente extrapolada e que passam a se constituir em representaçþes mais imediatas dos
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Traduzindo o gĂŞnero: GĂłgol, Kafka e Lem
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na natureza e que servem para delimitar o humano do animal e
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moda: o vestuårio em Gógol, uma måquina mecânica em Kafka
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moda â&#x20AC;&#x153;que ĂŠ o prĂłprio movimento de um perpĂŠtuo exceder-seâ&#x20AC;? ?"Â&#x2DC;Y VÂ&#x201D;! wyRy {MJ Â&#x192; Â&#x192;
Â&#x2018; mesticação imaginĂĄria do sexo, se tornam tambĂŠm mais propensos ao desvelamento dos agenciamentos de sua representação.
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