Suplemento Ascensão

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SUPLEMENTO

Ascensão 2010

29 Abril 2010 | O MIRANTE

O MIRANTE SEMANÁRIO REGIONAL - DIÁRIO ONLINE

Comentário

A descarga de adrenalina que atinge o povo quando os toiros passam em correria louca Sem entrada de toiros na Quinta-feira de Ascensão, não há festa na Chamusca. Quem visita a vila naquele dia pode sentir como que uma energia eléctrica a percorrer a multidão que se aglomera ao longo da Rua Direita de S. Pedro, quando os animais, enquadrados por campinos trajados a rigor e com batedores a cavalo na frente e à rectaguarda, passam em correria desenfreada em direcção à praça de toiros. Antigamente eram os toiros que eram lidados na tourada que passavam por aquele troço da Estrada Nacional 118, muitas vezes ainda de madrugada. Agora passam uma espécie de “toiros profissionais”. Fazem o desfile e regressam a casa. Atletas de um atletismo diferente que enlouquecem os assistentes só com a sua presença. A entrada começa sempre duas horas ou mais depois da hora marcada. A excitação vai crescendo à medida que o tempo passa. A carrinha da organização passa vezes sem conta, rua acima, rua abaixo. Por vezes em marcha lenta. Por vezes a acelerar. “É agora! É agora! Já lá vêm! Já lá vêm!”. Falsos alarmes de dez em dez minutos. O sol queima. As bebidas frescas escorrem pelas gargantas. Ninguém arreda pé. O bruá, bruá vai crescendo, crescendo, crescendo… Passam cavaleiros e amazonas. Um cavalo relincha. Há um cão perdido que atravessa a estrada com a indiferença de quem já viu tudo. Alguns homens de idade trajam a rigor. Roupa domingueira com corte do século passado. Colete, jaqueta, chapéu de aba direita. As mulheres capricham nas toilettes e na maquilhagem. Algumas põem uma flor nos cabelos. O vermelho papoila explode em manchas aqui e ali. Rapazes novos atam à cabeça fitas coloridas com a frase que dá o mote ao ritual: “Estou em Ascensão”. Quem vem de fora pela primeira vez impacienta-se, desanima, cansa-se de esperar sem saber que a espera é premeditada. Calculada. Só os bons amantes sabem saborear os trilhos que levam ao clímax. De repente a multidão agita-se. Os de trás empurram os da frente. A estrada fica mais estreita. Afunila-se. As ferraduras dos cavalos arrancam chispas do pavimento. Agitam-se lenços e camisolas. Centenas de gargantas gritam de alegria e excitação à medida que passa o emaranhado de cavaleiros, campinos e toiros. Os mais ágeis saltam no meio da estrada como se estivessem possuídos pelo demónio. Correm para as bermas e regressam num bailado descontrolado. Há electricidade no ar e nos corpos. Pessoas debruçam-se e acotovelam-se em janelas, varandas, atrelados de tractores e caixas de camionetas. Um ou outro atrevido consegue tocar num dos toiros de raspão. Os animais vão de cabeça baixa e raramente saem da formação. Nos anos em que algum sai ou se atrasa é o delírio do povo e uma dor de cabeça para quem tem a seu cargo a segurança. Alguns toiros derrapam ao dar a curva para entrar na praça. Espumam pela boca. Estacam quando de repente se confrontam com o silêncio e a sombra. Os espectadores recompõem-se a pouco e pouco. O coração baixa das 140 para as 70 pulsações por minuto. As pernas e o corpo ainda tremem e a saliva mantém o gosto acre do instinto por mais alguns minutos. Duas horas e meia de preliminares para breves segundos de prazer. Cumprido o ritual, reconfortada a alma e saciados os sentidos, partem todos à procura do almoço, em animadas conversas. Alberto Bastos

Uma festa de fazer parar o trânsito numa das mais movimentadas estradas nacionais Nem que viesse o Papa à Chamusca a entrada de toiros não deixava de se fazer. De 12 a 16 de Maio quem gosta de festas populares e bem ribatejanas não pode estar noutro lado. A Ascensão na Chamusca tem convívio, toiros e touradas e muita música com artistas locais e consagrados. 3

O senhor Armando do Café da Praça que fez e refez a vida sem nunca se lamentar “As pessoas olhavam-nos de lado mas cedo descobriram que éramos pessoas de bem” 6

Quando havia festa iam todos ao barbeiro para cortar o cabelo e serem escanhoados

João Lino vê passar os toiros à porta mas só vai à festa para cantar no rancho folclórico 8

Este suplemento faz parte integrante da edição n.º 930 deste jornal e não pode ser vendido separadamente


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João Chora

Silvina de Sá

Célia Barroca

Uma festa de fazer parar o trânsito numa das mais movimentadas estradas nacionais Nem que viesse o Papa à Chamusca a entrada de toiros não deixava de se fazer De 12 a 16 de Maio quem gosta de festas populares e bem ribatejanas não pode estar noutro lado. A Ascensão na Chamusca tem convívio, toiros e touradas e muita música com artistas locais e consagrados.

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Papa não vai passar pela Chamusca e mesmo que passasse não iria impedir que se realizasse a entrada de toiros de 13 de Maio, feriado municipal no concelho, Quinta-feira de Ascensão. O boato da passagem de Bento XVI pela vila, embora não tivesse qualquer credibilidade, chegou até ao presidente da autarquia, Sérgio Carrinho (CDU), que o acolheu com um sorriso. “A Ascensão é um dos momentos consensuais entre os habitantes da vila. O outro é a procissão de Sexta-feira Santa organizada pela Santa Casa da Misericórdia. Há pessoas daqui que podem não vir no Natal mas não faltam à Ascensão, que é a altura do encontro da grande família chamusquense”, refere o autarca. Sérgio Carrinho conta que a primeira coisa que lhe perguntam quando chega a altura da Ascenção, não é pelos artistas que vão tocar na festa. “O que todos querem saber é se há entrada de toiros. Isso é que é indispensável”, afirma, “é por isso que por vezes surgem boatos como o do Papa”, acrescenta. A entrada de toiros é da parte da manhã. Toda a manhã, embora a correria dos toiros desde a entrada sul da vila até à praça de toiros, do lado contrário, não dure mais que dez ou quinze minutos. Antes da entrada de toiros há uma iniciativa que passa muitas vezes despercebida mas que tem grande

significado simbólico. Trata-se da ida ao campo para a apanha da espiga. Quem lá vai traz raminhos de espigas, papoilas e outras flores silvestres. O ramo é pendurado atrás das portas das casas para dar sorte todo o ano. As tasquinhas são o grande local de encontro e confraternização. Os espectáculos ajudam a ganhar embalagem para os copos e petiscos pela noite dentro. Os artistas de fora actuam no palco principal. Na Chamusca sabe-se receber bem. Luís Represas na quarta-feira, dia 12; Teresa Tapadas na quinta-feira, dia 13; Pedro Barroso, dia 14, sexta-feira e os Mundo Secreto no sábado, dia 15. No domingo à noite decorre um Cortejo Senhorial intitulado – “O Príncipe Chamusquense”. Uma evocação histórica do fundador da vila, Ruy Gomes da Silva. Merece ainda destaque a passagem de modelos no dia 15 de Maio pela meianoite. A “Oficina do Corpo – Miss e Mister Facebook Portugal 2010” acontece no final do concerto dos “Mundo Secreto”. Os modelos femininos e masculinos desfilam numa passerelle com 2 metros de largo e em forma de T com grandes dimensões, com a devida iluminação e sistema de sonoro. Todas as informações sobre este evento

podem ser obtidas através de um telefone para João Caneco, nº 916014367. Em frente à câmara, no antigo Centro de Artesanato, que recebe o nome de Tertúlia do Fado, decorrem os espectáculos dos artistas da terra. Todos os dias a partir da meia-noite. João Chora, Manuel João Ferreira, Silvina de Sá e Célia Barroca, uma riachense que é como se fosse da terra. No Jardim Parque está montado o palco da juventude por onde vão passar bandas de música moderna. “Se houver quem

Manuel João Ferreira saiba de uma grande festa sem excessos que diga”, desafia o presidente da câmara. Para acrescentar uma nota tranquilizadora. “Há bebedeiras, sim senhor. Há algumas brigas também. Mas são poucas e rapidamente sanadas pelo pessoal que assiste. Todos se querem divertir e estragar a festa não vale. E para quem insiste em ser arauto do caos e da desgraça basta ir ver no dia seguinte que o jardim não está destruído nem vandalizado”.


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Imagens da Ascensテ」o 2009


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ExperiĂŞncia e juventude em confronto na Feira Taurina da AscensĂŁo na Chamusca Bezerrista Pedro Caldeira apresenta-se pela primeira vez na sua terra natal Toiros portugueses, um mano a mano entre os dois grupos de forcados da Chamusca, toureiros experientes e praticantes ambiciosos.

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uas corridas de toiros e uma novilhada sĂŁo o conjunto de eventos que a empresa Arena Chamusquense apresentou dia 26 de Abril, para a Feira Taurina da Semana da AscensĂŁo. Os espectĂĄculos vĂŁo decorrer nos dias 9 de Maio, Ă s 16h00. 13 de Maio, 17h00 e 15 de Maio, 22h00. Com toiros portugueses. A grande novidade da Feira deste ano ĂŠ o facto da novilhada, que se realizava habitualmente Ă noite, passar para a tarde de domingo. â€œĂ‰ uma experiĂŞncia que tem como objectivo a captação de um maior nĂşmero de espectadoresâ€?, disse o representante da empresa. No que diz respeito aos cartĂŠis das duas grandes corridas de toiros, a empresa arriscou em levar Ă Chamusca um misto de experiĂŞncia e juventude irreverente. Na tradicional Corrida Ă Portuguesa de Quinta-feira de AscensĂŁo, toureiam: o experiente LuĂ­s Rouxinol, o irreverente Marcos TenĂłrio e o praticante Marcelo Mendes. Os forcados Amadores da Chamusca e Aposento da Chamusca que num mano a mano emocionante pegarĂŁo os seis toiros da Ganadaria AntĂłnio Silva. SĂĄbado Ă noite no encerramento da Feira Taurino, vĂŁo estar em competição

de sĂĄbado estarĂĄ o cavaleiro praticante, Mateus Prieto, na sua primeira corrida como cavaleiro praticante. Os forcados Amadores da Chamusca e de Coruche pegarĂŁo os toiros da Ganadaria Vinhas. Bezerrista Pedro Caldeira apresenta-se na Chamusca Na novilhada de 9 de Maio, onde toureiam os cavaleiros amadores, Paulo D’Azambuja, Sofia Almeida e JoĂŁo Domingues, a grande novidade e motivo de emoção ĂŠ a apresentação do jovem bezerrista, Pedro Caldeira, um filho da Chamusca que sonha ser matador de toiros. Pedro Caldeira que tem corrido muitas das tentas que se fazem um pouco por todo o Ribatejo, foi um dos quinze semi-finalistas do concurso â€œĂ€ Procura de Novos Toureirosâ€?, que decorreu em 2007 no Campo Pequeno. Actualmente Pedro tem 15 anos e diz sentir-se muito feliz. “Tourear na minha terra ĂŠ a concretização de um primeiro sonho e um orgulho que nĂŁo tem medidaâ€?. O jovem tem treinado muito e com uma entrega muito forte. “Quero ser matador de toiros, nĂŁo vou desistir, sei que tenho pela frente uma tarefa muito difĂ­cil, mas garanto que estou disposto a trabalhar sem desfalecimento para que isso aconteça. Espero que a minha apresentação na Chamusca seja um sucesso para me dar ainda mais confiança para o futuroâ€?, afirma

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a experiência de António Ribeiro Telles, numa alternância com a juventude do seu sobrinho, Ribeiro Telles Bastos, uma competição familiar que ninguÊm quer perder. O Bandarilheiro Ernesto Manuel, que esteve na conferência de imprensa em representação da família Telles, ga-

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rantiu que a Praça de Toiros da Chamusca ĂŠ das mais emocionantes para AntĂłnio Telles. “EstĂĄ ligado Ă Chamusca por laços muito fortes, a sua esposa ĂŠ natural desta magnĂ­fica terra. AntĂłnio Telles garante todo o seu empenho numa grande actuaçãoâ€?, referiu. A completar o cartel


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O senhor Armando do Café da Praça que fez e refez a vida sem nunca se lamentar “As pessoas olhavam-nos de lado mas cedo descobriram que éramos pessoas de bem” Esteve oito meses num campo de refugiados com a mulher e seis filhos menores e quando chegou a Portugal, fugido da guerra, meterem-no num autocarro e mandaram-no para a Chamusca, uma terra que nem o condutor sabia onde ficava. Ainda hoje guarda o dinheiro que trouxe consigo de Angola onde nasceu e viveu até aos 46 anos. Dinheiro criado pelo Estado Português mas que o Estado português nunca reconheceu para cambiar.

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A

rmando Dias tinha 46 anos quando aterrou em Lisboa com a mulher e seis filhos menores. Era meia-noite e a família, proveniente de Angola, não teve oportunidade de ver nada da capital do Império que se desmembrava. “Deram-nos umas mantas e umas camisolas, permitiram que trocássemos angolares (moeda de Angola) por escudos mas apenas até 5 mil escudos (25 euros) e meteram-nos num autocarro com outras pessoas. O destino era a Chamusca. Nem o condutor sabia onde ficava aquela terra”. Estávamos em 1975. A descolonização não acabara com a guerra. Dera início a outras guerras. A família Dias vinha fugida. Angolanos que nunca tinham saído de Angola deixavam tudo o que tinham. A 11 de Novembro de 1975, três partidos declararam unilateralmente a independência do país, em três cidades diferentes. “Antes de conseguirmos vir para Portugal estivemos oito meses num campo de refugiados junto à fronteira com a África do Sul. Fomos para lá porque nos queriam matar. Já tinham morto um sobrinho meu. Felizmente os sul-africanos trataram de nós. Deramnos de comer. Tínhamos assistência médica. Só não nos deixavam passar a fronteira”. No Café da Praça o ruído feito pelos poucos clientes entra pelo microfone do gravador e torna inaudíveis algumas palavras. Colheres fazem tilintar chávenas, homens discutem futebol, mulheres falam de tudo e de nada. O moinho de café pára no exacto momento em que Armando Dias, 81 anos de idade, conta que ainda tem em casa todo o dinheiro inútil que nunca lhe foi permitido cambiar. Portugal criara moeda própria para as colónias mas não reconhecia as notas que fazia circular por lá. “São mais de duzentos contos. Na altura tinha chegado e sobrado para eu refazer a vida aqui”. Não há revolta, nem desalento

de cor nunca sentimos qualquer tipo de racismo. Curiosamente isso só acontece agora, de vez em quando, com um dos meus netos. Ele às vezes anda triste. Diz que há outros miúdos que lhe chamam preto. Eu animo-o. Digo-lhe que vai passar”. O filho que está a tomar conta do café chama-se Abel, como o avô português de Sátão, já falecido, que nunca regressou a Portugal. Armando Dias fecha a conversa a falar do seu verdadeiro património. A minha mais nova é enfermeira. Chamase Emília, como a minha mãe. Quando chegou a Portugal tinha 3 anos. O Hélio é polícia. Está em Lisboa. O António trabalha no ciclo preparatório. O Nelson vende queijos. Guarda para o fim a referência a Armando, o electricista. “Está há 15 anos em Angola. Trabalha em Luanda”. Ironias do destino. Angola exportou um Armando Dias para Portugal há 35 anos. Agora Portugal devolveu um Armando Dias a Angola. São as voltas que o mundo dá

foto O MIRANTE

na voz. Um homem que é homem cerra os dentes às dificuldades e em vez de se lamuriar, trabalha para voltar à tona, sem nunca perder a dignidade e o orgulho próprio. É no Café da Praça do senhor Armando, agora comandado pelo filho Abel, que se inicia o dia de quem madruga na Chamusca. É no Café da Praça que acaba o dia dos noctívagos da festa da semana da Ascensão. Cinco e meia da manhã. Há mil e um ditados populares que exaltam o trabalho e quem trabalha. “Quando chegámos à Chamusca o motorista ainda andou uma data de tempo à procura da pensão para onde o IARN (Instituto de Apoio aos Retornados’’) nos tinha mandado. Estivemos 18 meses nessa pensão. Eu ia fazendo uns biscates para sobreviver. Depois fomos para o bairro das casas fabricadas. Eu metime a criar porcos mas tive azar porque apanharam uma doença e o veterinário teve que os mandar abater. Depois, pedi um empréstimo e comprei umas vacas. Aluguei um espaço e comecei a vender leite. Depois comecei também a vender bolos, até chegar a este café”. O jovem rebelde que foi à procura da sua própria vida aos 19 anos Armando Dias é filho de pai português e mãe angolana. Nasceu em Mariano Machado, próximo de Nova Lisboa, que agora se chama Huambo. “O meu pai era de Sátão, distrito de Viseu. Chamava-se Abel Dias. Fez parte do serviço militar em Angola e depois de desmobilizado voltou para lá. Para o Huambo. A minha mãe chamava-se Emília. Era mulata. Sou filho de pai branco e de mãe mulata. Eles não viveram muito tempo juntos. Naquela altura era assim. O meu pai era carpinteiro mas também montou uma

cerâmica onde fabricávamos tijolos. Aos 19 anos fugi de casa e fui trabalhar para o Alto Cuíto, para o comércio. Ao fim de algum tempo montei o meu próprio negócio. Perdi-o por falta de experiência e voltei a trabalhar por conta de um patrão. Em Angola não faltava trabalho para quem queria trabalhar. Depois voltei a ter o meu negócio”. Quando me vim embora estávamos no Bailundo, Teixeira de Sousa. Tem o cabelo branco bem penteado para trás. Um sorriso franco. Veste uma camisa aos quadrados onde predomina o castanho. No bolso da camisa trás a carteira. Usa óculos. A meio da conversa chega a esposa, Maria José. “Não tenho razões de queixa das pessoas da Chamusca. Quando chegámos havia quem estranhasse a nossa presença e nos olhasse de lado mas a pouco e pouco foram-se habituando. Nunca criámos problemas. As pessoas perceberam que éramos pessoas de bem. Que não éramos bichos que tinham vindo da selva. Apesar de sermos


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“Devem continuar “Quem manda deve a apostar nos criar mais emprego na espectĂĄculos musicaisâ€? provĂ­nciaâ€?

“Vou lĂĄ sempre mas nunca fico atĂŠ muito tardeâ€?

ClĂĄudia Costa, 30 anos, Carregueira, FuncionĂĄria da Junta de Freguesia

LuĂ­s Vieira, 45 anos, Chamusca, proprietĂĄrio do ramo de Hotelaria

Artur Antunes, 31 anos, Vulcanizador, Chamusca

ClĂĄudia Costa nĂŁo perde uma Festa da AscensĂŁo na Chamusca. Se puder vai todos os dias. O convĂ­vio com os amigos que nĂŁo vĂŞ com tanta regularidade quanto gostaria durante o ano e os espectĂĄculos musicais sĂŁo o que mais a cativam. Espera que a festa nunca deixe de se realizar. “Apesar da situação financeira da Câmara nĂŁo permitir muitos gastos devem continuar a apostar na mĂşsica. É o que traz mais pessoas ao concelho e ajuda ao desenvolvimento da terraâ€?, diz. Quanto ao futuro tem esperança que o concelho seja mais desenvolvido mas nĂŁo acredita muito nisso. “Pelo que tenho visto receio que fique pior, com menos população e empresas a fecharâ€?, afirma.

O sĂĄbado ĂŠ o Ăşnico dia da semana em que LuĂ­s Vieira pode desfrutar das festas da AscensĂŁo. Dono do restaurante “O Corticeiroâ€?, na Chamusca, o trabalho nĂŁo lhe permite ir todos os dias. O feriado municipal da Quinta-Feira da AscensĂŁo ĂŠ dos melhores para o seu negĂłcio. Como bom ribatejano nĂŁo dispensa a entrada de toiros e as touradas, “A entrada devia demorar mais tempo porque estamos muito tempo Ă espera e depois os toiros passam no instante. Quase que nem dĂĄ para ver nadaâ€?, lamenta. Acredita que daqui a duas dĂŠcadas o concelho esteja muito melhor mas nada se faz sem trabalho. “Para isso ĂŠ preciso que quem governa aposte em empregos na provĂ­ncia em vez de fazerem tudo na capitalâ€?, conclui.

A entrada de toiros ĂŠ o que Artur Antunes mais aprecia durante a festa da AscensĂŁo e espera que nunca acabem com essa tradição a que assiste desde criança. Natural do Pinheiro Grande, mas a trabalhar na Chamusca, o vulcanizador cumpre o ritual de todos os anos visitar as festas da AscensĂŁo. Se o trabalho deixar faz questĂŁo de lĂĄ ir todos os dias. Mas nĂŁo gosta de ficar atĂŠ tarde. “No mĂĄximo Ă uma da manhĂŁ vou para casaâ€?, garante. Em relação ao futuro do concelho da Chamusca nĂŁo arrisca prognĂłsticos. “Prefiro esperar para ver mas nĂŁo acredito que o concelho melhore se nĂŁo houver investimentos que criem mais empregosâ€?, refere.

Zona de Actividades EconĂłmicas, Lt. 13 5FMFN t $IBNVTDB

“A entrada de toiros nĂŁo pode acabarâ€? JosĂŠ Lucas, 30 anos, Auxiliar de AgĂŞncia FunerĂĄria, Chamusca Desde que vive em SantarĂŠm que JosĂŠ Lucas nĂŁo vai tanto Ă festa da AscensĂŁo quanto gostaria. Passa o dia na Chamusca onde trabalha e regressa ao final da tarde a casa. “Depois jĂĄ nĂŁo me apetece voltar Ă Chamusca Ă noiteâ€?, confessa. Quando era mais novo nĂŁo falhava um dia dos festejos. A entrada de toiros na Quinta-feira da AscensĂŁo ĂŠ o que mais gosta. “A entrada de toiros pelas ruas atĂŠ Ă praça tem que se manter. É uma mais valia para o concelho e mostra as nossas tradiçþes aos visitantesâ€?, diz. Lamenta que o concelho esteja envelhecido e acredita que a situação irĂĄ piorar nos nas prĂłximas duas dĂŠcadas. “Os jovens sĂŁo obrigados a ir procurar oportunidades fora do concelhoâ€?, refere.


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Quando havia festa todos os homens iam ao barbeiro para cortar o cabelo e serem escanhoados João Lino vê passar os toiros à porta mas só vai à festa para cantar no rancho folclórico

foto O MIRANTE

É o último dos antigos barbeiros da Chamusca. Trabalha há 48 anos e não pára apesar de reformado. Noutros tempos era um bom imitador de Salazar.

N

a Chamusca, quando havia festa, os barbeiros não tinham mãos a medir. “Toda a gente queria estar bem apresentada. Os homens iam todos cortar o cabelo e fazer a barba. Agora é tudo mais informal”, conta o barbeiro João Lino enquanto ensaboa cuidadosamente o rosto de um cliente. São 11 da manhã de uma quinta-feira, estamos a 15 dias do feriado da Ascensão. A velha cadeira da barbearia está reclinada. Há mais dois clientes à espera. João Lino já não usa o assentador de cabedal para afiar a navalha com que os vai escanhoando. A sida acabou com aquela operação. A navalha moderna tem uma ranhura onde encaixam lâminas descartáveis. Faz-se uma barba e deitam-se as lâminas fora. “Isto assim é muito melhor. Antigamente quando a navalha estava romba era um problema. O cliente até vinha atrás dela”. Estamos na última das barbearias tradicionais da Chamusca. João Lino começou lá como aprendiz do senhor Cegonho e após uma curta passagem por outro barbeiro, Artur Nogueira, regressou ao primeiro posto como patrão de si mesmo. “Foi na altura de eu ir à inspecção. Tinha 19 anos. Como não tinha peso não passei na inspecção. O meu pai comprou-me a barbearia porque o senhor Cegonho foi para França. Já aqui estou há 48 anos”.

Vai a uma gaveta e mostra o equipamento antigo. Uma máquina pente zero manual, uma navalha com cabo de madrepérola, um assentador… A barbearia fica a algumas dezenas de metros da praça de toiros. Tem porta aberta para o troço da Estrada Nacional 118 que, dentro da vila ganha o nome de Rua Direita de S. Pedro. O barbeiro não se lembra de alguma vez ter cortado o cabelo a algum toureiro ilustre. “A Chamusca é terra de forcados. Aos forcados sim, corto cabelos e faço barbas. Mas nada de penteados especiais”. O ambiente taurino está presente na decoração. Para além do inevitável calendário com uma fotografia de uma raparigaça com generosas mamas ao léu, há quadros com pinturas de cenas de touradas. Noutros tempos o dia de maior trabalho era o sábado. “Fazia-se a barba à semana. Uma vez por semana ao sábado. O trabalhador do campo despegava mas só recebia lá para as dez ou onze horas da noite. Primeiro os patrões jantavam e só depois iam pagar aos desgraçados que tinham andado toda a semana a trabalhar. Eles recebiam, iam para a taberna comer uma bucha e beber um copo e só depois é que vinham para o sacana do barbeiro que tinha que aguentar aqui até de madrugada”, conta João Lino. “Naquele tempo a barba era 15 tostões. Barba e cabelo eram 3 escudos e cinquenta centavos. Agora a barba são 2 euros, cabelo 5 e barba e cabelo 7 euros”. Numa das paredes está um anúncio de uma funerária. “Morreu o dr. Fiado”. É uma brincadeira. O barbeiro esclarece. “É mentira. Não morreu. Ainda há quem fique a dever”.

Numa gaiola um casal de canários. Um aviso a anunciar que dia 1 de Maio, Dia do Trabalhador, não há cortes de cabelo nem de barbas para ninguém. “Noutros dias tudo bem. No 1º de Maio não. Por vezes venho aqui aos domingos se alguém me telefona. E às vezes os que me telefonam são os que têm mais tempo livre durante a semana”, diz a sorrir. O espelho é omnipresente. A decoração remete para as antigas barbearias. Lugares de convívio de homens. Ali mulher não entra. Nunca entrou. Mesmo a esposa do barbeiro que passa à porta duas vezes enquanto decorre a conversa, fica do lado de fora. É o marido que sai para falar com ela. Noutros tempos havia revistas pornográficas, a telefonia a válvulas meio roufenha, calendários com raparigas nuas em poses provocantes e o jornal A Bola.

Aconteceram algumas modificações mas a filosofia mantém-se. João Lino lembra-se que tem no canto das revistas e jornais a edição da Playboy com nus da assistente do programa “Preço Certo” e arranja-se logo uma brincadeira. Fazem-se comparações jocosas entre a depilação da zona púbica da checa Lenka da Silva e a pele bem barbeada do cliente que está na cadeira. Terá sido o barbeiro da Chamusca a rapar a Lenkazinha? Soltam-se risos. O senhor que está na cadeira diz que a modelo fotografada já não é nova. Ele tem 82 anos. A assistente do apresentador Fernando Mendes, 35. “Mas vocês faziam um bom casal!”, diz alguém. O senhor que estava a ler A Bola sai. Foi à barbearia como quem vai à biblioteca. O cabelo já o tinha cortado no dia anterior. O único toque dissonante é dado pela televisão que está a um canto com o som muito alto. Os clientes estão de costas para ela mas podem espreitá-la através do espelho. João Lino começou a guardar gado mal saiu da escola. Deveria ter uns treze anos. Quando lhe perguntamos a idade não diz que tem 69. Com um sorriso, evita o número que se presta a dupla interpretação com conotação sexual. “Tenho 68 A”. Além de barbeiro é vocalista no Rancho Folclórico. “Sempre gostei de cantar. Já em miúdo ía com um amigo meu ali para o outeiro do cabeço cantar em cima das oliveiras. Canções do Fernando Farinha, do António Calvário. Era o que ouvíamos no aparelho”. Anos mais tarde continuava a cantar mas também fazia imitações. “Quando estava na paródia com a malta imitava o Salazar. E pelo meio até metia as falas dos locutores. ‘Acrescentou o senhor Presidente do Conselho”, recita numa voz radiofónica. Sobre a Ascensão diz que só lá vai para a actuação do rancho. Na Quinta-feira da Ascensão assiste, a partir de casa, à entrada de toiros. “Daqui vê-se melhor porque eles já vêm cansados e passam mais devagar”

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“A festa não é festa sem a festa brava” Filipe Troieira, 22 anos, Mecânico de Automóveis, Vale de Cavalos Quem quiser encontrar Filipe Troieira nos dias da Ascensão deve procurá-lo no recinto das festas. É lá que ele vai estar todas as noites. O jovem não perde os espectáculos ligados à festa brava como as picarias e as corridas de toiros. Na Quinta-feira de Ascensão não perde a entrada de toiros na Chamusca. Quando era mais novo chegou a não pregar olho para ver a emoção do espectáculo. “Fui habituado a gostar de toiros e cavalos praticamente desde que nasci por isso esta festa é muito especial para mim”, garante. Quanto ao desenvolvimento do concelho é céptico. “Se não nos derem boas oportunidades temos que procurá-las noutros lados”, justifica.

“Ascensão é na Chamusca” Julita Saraiva, 50 anos, Funcionária daJunta de Freguesia da Chamusca, Chamusca Não há um único dia que Julita Saraiva não vá ao recinto das festas da Ascensão. Para a funcionária da Junta de Freguesia da Chamusca, Ascensão é na vila onde vive há cerca de três décadas. Julita gosta de se divertir e aproveita os dias de festa para conviver e rever amigos que regressam à Chamusca nesta altura do ano. Apesar de ser ribatejana – natural de Torres Novas – Julita diz que a costela de aficionada se perdeu pelo caminho. “Não gosto de largadas nem corridas de toiros. Fazme confusão ver como são tratados os animais”, confessa. Acredita que dentro de vinte anos o concelho vai estar muito mais desenvolvido e sem problemas financeiros.

“Só se estiver doente é que não vou à Ascensão” Isabel Farinha, 46 anos, Empregada de Balcão, Chamusca Só se não estiver doente é que Isabel Farinha perde os dias de festa da Ascensão. Desde criança que a empregada de balcão gosta de assistir aos espectáculos musicais, picarias e corridas de toiros. Mas o que Isabel mais gosta é mesmo da entrada de toiros pelas ruas da Chamusca na Quinta-feira da Ascensão. “Já quando era mais nova ficava horas à espera para ver a largada”. Outra coisa de que gosta é de conviver com os amigos. Pouco optimista, Isabel Farinha acredita que o concelho da Chamusca vai estar pior daqui a 20 anos do que está agora. “A população está cada vez mais envelhecida, não há desenvolvimento nem emprego para as pessoas quererem cá ficar”, reflecte.


ASCENSÃO 2010 | 11

João Ferreira é o mestre da música Depois do Revirarock junta dezenas de jovens no AcordAteclA João Ferreira foi professor de português e francês mas o seu nome está associado à música. Em Ulme, sua terra natal, fundou há 25 anos um grupo chamado Revirarock que ainda hoje existe. A ideia era importada do estrangeiro e florescia em algumas cidades europeias, incluindo Lisboa. Pôr grupos de jovens a cantar na sua língua mãe êxitos da música pop e rock internacional. A surpresa foi um projecto do género se ter desenvolvido a partir de uma pequena localidade do interior. Os jovens do Revirarock tocavam, cantavam e dançavam. Faziam espectáculos. Participavam em programas de televisão. Gravaram. A última vez que actuaram foi o ano passado na semana da Ascensão. Uma actuação no cine-teatro da Chamusca que serviu de rampa de lançamento para um novo projecto do professor João Ferreira, AcordAteclA (ler, Acorda a Tecla). “Foi uma surpresa para toda a gente. Trinta e cinco jovens em palco a tocar guitarra.

Uma audição pública alargada ao fim de oito meses de trabalho. Eu próprio fiquei surpreendido com o resultado”. O professor tem 60 anos. Está aposentado mas não desligado do ensino e muito menos da dinamização de jovens. Sempre na área da música. Ainda dava aulas e já desenvolvia trabalho no Centro de Recursos Educativos da Chamusca onde continua. Ao mesmo tempo mantém em actividade o Centro Cultural de Ulme que, tal como o Revirarock, completa as bodas de prata este ano. “O AcordAteclA tem uma abrangência maior. Concelhia. O ponto de partida continua a ser o Centro Cultural de Ulme mas temos um núcleo no Chouto e vão arrancar núcleos na Chamusca e Carregueira. É algo diferente do Revirarock. Não se trata de fazer espectáculos mas de ensinar música de maneira informal. Pôr jovens a tocar cordas e teclas, na desportiva, como eu costumo dizer. Não somos nenhum conservatório nem

queremos ser. Temos jovens que andam no conservatório e podemos encaminhar alguns jovens para essa via de ensino mas o que nos move é despertar o gosto pela música”, explica. A conversa decorre no Centro de Recursos Educativos que é da câmara municipal. Ali dão-se aulas de informática e de música. Ao nível da música existe desde o primeiro dia a participação do Centro Cultural de Ulme. “Quando isto nasceu não havia nada e nós no Centro Cultural já tínhamos alguns meios que passámos a utilizar aqui”, justifica. Para quem não conhece, convém explicar que o Centro Cultural de Ulme é o professor João Ferreira e o professor João Ferreira é o Centro Cultural de Ulme, passe o exagero, porque há sempre mais alguém para ajudar e dezenas de jovens a aprender. O “mestre da música” viveu algum tempo em Lisboa. Ele e a esposa, que também é professora, chegaram a participar num grupo de Música Popular

Portuguesa chamado Almanaque. Depois foi colocado na escola da Chamusca e regressou a Ulme. Quando lhe falam da receita para motivar jovens diz:

“Ninguém aprende se não quiser aprender. Eles têm que querer e muitas vezes a iniciativa ter que partir deles. Das sugestões deles”.


12 | ASCENSテグ 2010


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