A educação integral como resposta à ruptura

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DA EDUCAÇÃO INFANTIL AO ENSINO FUNDAMENTAL: A EDUCAÇÃO INTEGRAL COMO RESPOSTA À RUPTURA


Recomendações construídas com base em estudos e trabalhos do grupo de referência, articulado à convite do Centro de Referências em Educação Integral, para discutir a transição entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental à luz da Educação Integral. Compõem este grupo: Agda Sardenberg (Associação Cidade Escola Aprendiz e Centro de Referências em Educação Integral) | Ana Mello (Fórum Municipal de Educação Infantil de São Paulo) | Andréia Botelho de Rezende (Escola de Aplicação da USP) | Andressa Pellanda (Campanha Nacional pelo Direito à Educação e Rede Nacional Primeira Infância) | Adriana Oliveira (Unifesp) | Beatriz Goulart (Cenários Pedagógicos e Centro de Referências em Educação Integral) | Beatriz Ferraz (Movimento Nacional pela BNCC) | Bruna Ribeiro (MOVE - Avaliação e Estratégia em Desenvolvimento Social) | Camila Oliveira (Associação Cidade Escola Aprendiz e Centro de Referências em Educação Integral) | Claudia Santos (Projeto Âncora) | Cristina Nogueira (Instituto Singularidades) | Edilene Cristine Morikaw (Projeto ncora) | Elvira Souza Lima | Flávia Silveira (Associação Cidade Escola Aprendiz e Centro de Referências em Educação Integral) | Gabriel Lima Verde (Instituto Alana) | Gilvania Nascimento (União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação UNCME) | Kelly Santos (Escola de educadores) | Janine Ribeiro (Instituto C&A) | Julia Dietrich (Associação Cidade Escola Aprendiz e Centro de Referências em Educação Integral) | Levindo Diniz (Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG) | Maria Thereza Marcilio (Avante Educação e Mobilização Social e Rede Nacional Primeira Infância - RNPI) | Maria Carmem Silveira Barbosa (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS) | Mariana Antonieta Prado (Instituto Alana) | Natacha Costa (Associação Cidade Escola Aprendiz e Centro de Referências em Educação Integral) | Patrícia Lacerda (Instituto C&A e Centro de Referências em Educação Integral) | Peterson Rigatto - Movimento Interfóruns de Educação Infantil no Brasil (MIEIB) | Rita Coelho (Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG) | Sonia Larrubia (Secretaria Municipal de Educação de São Paulo) | Stela Barbieri |


Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias. Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça: - Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia. Carlos Drummond de Andrade (em O sorvete e outras histórias)

A educação integral é uma concepção que compreende que a educação deve garantir o desenvolvimento dos sujeitos em todas as suas dimensões – intelectual, física, emocional, social e cultural - entendendo-as de forma integrada. Esta concepção reconhece oportunidades educativas que vão além dos conteúdos compartimentados do currículo e deve se constituir como projeto coletivo, compartilhado por crianças, jovens, famílias, educadores, gestores e comunidades locais. Paralelamente, uma proposta de educação integral confere centralidade ao educando e educanda. Isso significa que todas as dimensões do projeto pedagógico (currículo, práticas educativas, recursos, agentes educativos, espaços e tempos) devem ser construídas, permanentemente avaliadas e reorientadas a partir do contexto, interesses, necessidades de aprendizagem e desenvolvimento de cada sujeito. Ao mesmo tempo, embora a centralidade dos processos educativos deva estar nas crianças e jovens, nessa perspectiva, todos – escola, família, comunidade e a própria cidade –, são educadores/as e aprendizes de um mesmo e colaborativo processo de aprendizagem. Por defender fortemente os pressupostos apontados acima, assim como a presença de múltiplas linguagens e interdisciplinaridade, e de atividades fora da sala de aula e para além dos muros da escola, a educação integral se apresenta como uma possível resposta a um dos grandes desafios da educação no Brasil hoje: a transição entre a Educação infantil e o Ensino Fundamental.


Educação Infantil e Ensino Fundamental são frequentemente separados, porém, do ponto de vista da criança, não há fragmentação. Os adultos e as instituições é que muitas vezes opõem Educação Infantil e Ensino Fundamental, deixando de fora o que seria capaz de articulá-los: a experiência com a cultura. (KRAMER, 2006, p.19) A Educação Infantil corresponde a uma etapa que tem sido foco de discussão no Brasil nos últimos anos e que levou à consolidação de um movimento social forte e consistente, capaz de garantir importantes marcos no país e significativos avanços e mudanças nas políticas públicas voltadas para a infância, marcadamente nas políticas de defesa e proteção da infância, assim como nas políticas educacionais. Neste sentido é fundamental a garantia de condições para que a passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental seja caracterizada pela continuidade e não pela ruptura. Os debates e práticas hoje presentes nas séries iniciais do Ensino Fundamental têm comumente afirmado o abandono das premissas conquistadas na Educação Infantil e a assunção precoce de modelos tradicionais de escolarização. Na perspectiva da educação integral é, portanto, fundamental estabelecer o diálogo da Educação Infantil com o Ensino Fundamental fortalecendo uma passagem mais orgânica entre estas etapas de forma que se traduza em políticas e práticas que qualifiquem o Ensino Fundamental na perspectiva da educação integral e que protejam a Educação Infantil de retrocessos. Assim, uma transição de qualidade entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental deve assegurar os direitos garantidos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) e pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (2014). Entre os diversos princípios que devem nortear as decisões da gestão pública e o trabalho cotidiano de cada profissional da educação, aponta-se a urgência de se repensar a organização dessas etapas. Fundamentalmente, é necessário readequar a organização escolar, considerando como infância a etapa de zero a dez anos. Essa reorganização é fundamental nessa faixa etária, para garantir um trabalho que efetivamente considere e respeite as necessidades e potencialidades de todas e de cada criança em suas diferentes etapas de desenvolvimento.


Princípios para uma transição de qualidade entre Educação Infantil e Ensino Fundamental: Infância e etapas do desenvolvimento: é preciso considerar as etapas de desenvolvimento e repensar a organização da educação, considerando como Infância o período do zero aos dez anos. Nesse sentido, é necessário entender o Ensino Fundamental como uma etapa de continuidade do trabalho realizado na Educação Infantil, sem institucionalizar uma lógica de subordinação entre os dois ciclos. Direitos: é necessário que as crianças sejam reconhecidas como sujeitos de direitos, atores sociais com expressão e linguagens singulares. Equidade: todas as crianças têm direito a aprender, a ter sua identidade reconhecida e valorizada e a acessar oportunidades educativas diversificadas, a partir da interação com múltiplas linguagens, recursos, espaços, saberes e agentes. É fundamental que redes e escolas se organizem como um espaço de constituição de relações que possam transformar as profundas desigualdades sociais que caracterizam a sociedade contemporânea, assumindo as identidades das crianças como ponto de partida para o diálogo com a diversidade e a com a construção de comunidades e sociedades justas, democráticas e solidárias. Inclusão: todas as pessoas são capazes de aprender, em diferentes lugares, com diferentes pessoas e ao longo de toda a vida. Nesse sentido, é preciso reconhecer e valorizar a singularidade dos processos educativos e a diversidade das crianças. Ao reconhecer a singularidade, as múltiplas identidades e necessidades de aprendizagem de todos os sujeitos, assim como ao defender a proposição de que todos e todas podem aprender, a educação é, necessariamente, inclusiva, e portanto é necessário garantir mecanismos adequados para que todas as crianças, independente da particularidade que apresentem, possam aprender e se desenvolver. Educar e cuidar: na medida em que se considera igualmente importantes as diversas dimensões do desenvolvimento humano, é preciso considerar a indissociabilidade entre educar e cuidar. Pedagogias da infância/Culturas da infância: é preciso considerar as culturas da infância e as crianças como produtoras de culturas próprias construídas na interação com seus pares e no intercâmbio entre idades e gerações. Sustentabilidade: é preciso que a comunidade escolar e cada indivíduo que a compõe possam repensar seu papel no território e o impacto de suas ações – coletivas e individuais – na comunidade e no cotidiano de cada um/uma. Portanto, propostas pedagógicas na Educação Infantil e Ensino Fundamental devem considerar esta temática, envolvendo as crianças na disposição curricular e nos processos de gestão.


Participação: é preciso reconhecer a centralidade das crianças no processo educativo e, ao mesmo tempo, construir uma cultura de participação de toda a comunidade escolar nas diversas instâncias de decisão. Nesse sentido, a transição deve ser pensada do ponto de vista das crianças, dos/das professores/as, da gestão, do currículo e de toda a comunidade escolar. Assim, a participação das famílias e dos/das educandos/as, para além dos espaços institucionalizados, deve ocorrer no cotidiano escolar, incidindo nas decisões curriculares incidir nas decisões curriculares e pedagógicas da unidade. Currículo: o currículo deve garantir os direitos apresentados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e nas Diretrizes Curriculares Nacionais, a serem expressos, como preconizado pelo Plano Nacional de Educação, em uma Base Nacional Curricular Comum. O curriculo é parte integrante da cultura e deve se voltar para uma formação integral dos educandos e educandas. Nesta medida, não pode ser concebido de forma fragmentada, mas antes deve considerar diferentes praticas culturais e sociais, multiplas formas de linguagem e o conhecimento sistematizado pela humanidade. No que tange ao Ensino Fundamental, deve ser garantido o trabalho com os campos de experiência, dando continuidade aos processos de criação e experimentação das crianças na Educação Infantil. A criança tem direito de aprender a buscar conhecimento sobre si, sobre o outro e sobre o ambiente. Brincar: é necessário reconhecer o brincar como elemento estruturante da educação e como linguagem fundamental das crianças em todas as etapas do seu desenvolvimento. A proposta curricular da rede e os projetos politico-pedagógicos das escolas devem garantir condições para que o tempo do brincar espontâneo aconteça de forma estruturada e permanente. Autonomia: é necessário reconhecer e garantir a autonomia e liberdade das escolas/comunidades escolares para pensar seus projetos político-pedagógicos, considerando, inclusive, insumos, infraestrutura e recursos necessários para a execução dos mesmos. A autonomia dos educandos e educandas deve ser reconhecida, valorizada e promovida em todos processos educativos. Desenvolvimento físico e corporal: é fundamental que se repense a organização dos tempos e espaços escolares, para que os corpos possam expressar-se livremente e em sua multiplicidade.


O corpo é instrumento e fonte fundamental de expressão, comunicação, prazer e autoconhecimento e para que possa desenvolver sua potencialidade é necessária a oferta e o planejamento de ambientes investigativos, interativos, desafiadores que permitam e instiguem múltiplas possibilidades de interação e descobertas pelas crianças. Práticas pedagógicas: é necessário que se recorra a uma pluralidade de práticas pedagógicas, de acordo com a singularidade, os interesses e as necessidades de cada estudante e da intencionalidade pedagógica de cada momento formativo. É preciso ainda implementar tempos flexíveis que permitam a organização das atividades de acordo com essa intencionalidade pedagógica, respeitando a multidimensionalidade e o tempo de aprendizagem e desenvolvimento de cada criança. Avaliação: a avaliação deve ocorrer de forma processual e a serviço da reflexão e tomada de decisões acerca do planejamento/replanejamento do processo educativo, sempre que possível fazendo uso de ferramentas adequadas para este processo. A avaliação deve ser reconhecida como um dispositivo que atue na perspectiva da garantia dos direitos das crianças e, portanto, deve ser estruturada em diálogo entre a rede e as unidades educativas. Registro: a documentação pedagógica deve propiciar o acompanhamento do percurso de aprendizagem das crianças visando a qualificação das práticas cotidianas. Ambiências: é preciso garantir materialidade, recursos e mobiliário adequados para a execução da proposta curricular para a infância, considerando os tempos e espaços do brincar, a necessidade de expressão das crianças (corpos e mentes) e as culturas próprias da infância, a fim de favorecer a multidimensionalidade da sua formação e sua autonomia. Os espaços devem ser pensados sob a ótica das crianças e, portanto, é necessário envolvê-las na concepção e avaliação da ocupação dos diferentes ambientes da escola. Por fim, é necessário garantir espaços de convivência e interação das crianças com a natureza, fonte importante de aprendizagens sensíveis e inspirações. Condições de trabalho: paralelamente a estes outros princípios, é preciso garantir boas condições de trabalho a todos os/as profissionais de educação, para que haja qualidade em uma proposta pedagógica para a infância. A carreira docente e de outros profissionais da educação deve ser pensada do zero aos dez anos, integrando educadores de diferentes segmentos. Entendido também como outro aspecto das condições de trabalho, o processo de construção da política educacional deve envolver os profissionais da educação assim como garantir espaços e estratégias de formação continuada.


Ao mesmo tempo, entendido como aspecto central, é necessário garantir o limite do número de alunos por sala de aula e as condições materiais e de infraestrutura necessárias para as práticas educativas. Formação: a formação deve articular os segmentos da Educação Infantil ao Ensino Fundamental, discutindo uma concepção integrada para uma proposta pedagógica do zero aos dez anos de idade. A formação dos profissionais da educação deve partir da escuta dos seus interesses e necessidades, abordando as diferentes etapas do desenvolvimento da criança, suas múltiplas linguagens e formas de expressão. É necessário que haja uma cultura de planejamento e sistematização das processos educativos, de forma a subsidiar e potencializar as reflexões acerca das práticas educativas. Financiamento: é necessário pensar o financiamento da política educacional a fim de atender a perspectiva do zero aos dez anos, considerando o sistema da politica educacional brasileira. É necessário atender ao Caqi na Educação Infantil, assim como no Ensino Fundamental, considerando, inclusive, as remodelações necessárias para o Ensino Fundamental à luz dos elementos da Educação Infantil.


Referências bibliográficas: Site do Centro de Referências em Educação Integral Disponível em: http://educacaointegral.org.br/ ARAÚJO, V.C. (org.). Educação infantil em jornada de tempo integral: dilemas e perspectivas. Brasília, DF: Ministério da Educação; Vitória: EDUFES, 2015. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_ docman&view=download&alias=32831-seb-educacao-infantil-em-jornada-detempo-integral-pdf&Itemid=30192 Consultado em agosto de 2016. BARBOSA, M.C. (et al.) A infância no ensino fundamental de 9 anos. Porto Alegre: Penso: 2012. BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacaobasica-2013-pdf/file Consultado em agosto de 2016. BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Resolução CNE/CEB nº 5/2009. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_ docman&view=download&alias=9769-diretrizescurriculares-2012&category_ slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192 Consultado em agosto de 2016. BRASIL. Ministério da Educação. Ensino Fundamental de 9 anos: orientações para a inclusão da criança de 6 anos de idade. Brasília: FNDE, 2009. Disponível em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/ ensifund9anobasefinal.pdf Consultado em agosto de 2016. CRAIDY, C.M.; BARBOSA, M.C.S. Ingresso obrigatório no ensino fundamental de 6 anos. Falsa solução para um falso problema. In BARBOSA, M.C. (et al.) A infância no ensino fundamental de 9 anos. Porto Alegre: Penso: 2012, p.19-26. KRAMER, S. A infância e sua singularidade. In: Ministério da Educação. Ensino Fundamental de 9 anos: orientações para a inclusão da criança de 6 anos de idade. Brasília: FNDE, 2009. p. 13-24. Disponível em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/ ensifund9anobasefinal.pdf Consultado em agosto de 2016. LOBO, A.P. A educação infantil, a criança e o ensino fundamental de 9 anos. In: BARBOSA (et al). A infância no ensino fundamental de 9 anos. Porto Alegre: Penso, 2012, p.69-78.


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