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INSUMOS PARA O DEBATE: A LEITURA E A ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: EXPLICITANDO A VISÃO EMBUTIDA NO PROJETO PARALAPRACÁ
Prof. Dra. Liane Castro de Araujo Prof. Assistente da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia Consultora em Alfabetização do Projeto Paralapracá Revisão Técnica: Maria Thereza Marcilio Elaborado em fevereiro de 2014
Introdução A língua escrita faz parte do nosso cotidiano e é um patrimônio cultural cujos usos devem ser disponibilizados a todos, inclusive às crianças pequenas. Partindo desse pressuposto o presente documento visa a delinear o posicionamento do Projeto Paralapracá quanto à questão da alfabetização na Educação Infantil, enfatizando aspectos desse posicionamento presentes nos seus materiais pedagógicos. Para contextualizar esse posicionamento em termos das discussões sobre a Educação Infantil e sobre a alfabetização, o documento retoma concepções de ensino e de aprendizagem da língua escrita e discute como o papel da Educação Infantil na formação de crianças leitoras e produtoras de textos tem se colocado historicamente. Com a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos, a partir da Lei nº 11.274/2006, garantiu-se a inclusão das crianças de seis anos nesse nível de ensino. Em 2009, a emenda constitucional nº 59 estabeleceu a obrigatoriedade e gratuidade de préescola para as crianças a partir dos quatro anos de idade, a serem universalizadas em 2016. Novos desafios foram colocados, tanto em relação às crianças de seis anos, quanto em relação ao atendimento oferecido àquelas que fazem parte da Educação Infantil. Um dos grandes desafios é posicionar-se quanto à alfabetização das crianças e definir o papel da Educação Infantil nesse processo.
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O processo de escolarização das crianças que frequentam a Educação Infantil tem sido muitas vezes contraditório nesse sentido. Ao mesmo tempo em que as crianças pequenas são reconhecidas como sujeito de direitos e de cultura, e inseridas na escola, se vê algumas arbitrariedades no processo inicial do ensino da leitura e da escrita, como práticas descontextualizadas e repetitivas, que não consideram os conhecimentos que as crianças já possuem, a especificidade da Educação Infantil, nem as concepções contemporâneas de alfabetização. Ou a antecipação do trabalho do 1º ano para esse segmento. Assim, tomamos como mote o que se apresenta no próprio modo de geralmente se colocar a questão: deve-se alfabetizar na Educação Infantil? Mas o que seria alfabetizar na Educação Infantil quando colocamos essa questão? Algumas concepções precisam ser discutidas para se responder, esmiuçar e desconstruir a questão. Afinados com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, e tal qual discutido no Caderno de Orientação Assim se explora o mundo da Coleção Paralapracá, assumimos uma concepção de infância e de Educação Infantil que investe nas crianças como sujeitos curiosos, investigadores, que demonstram interesse pelo mundo natural e sociocultural a sua volta, que exploram de diversas formas esse mundo, constroem saberes, se apropriam e produzem cultura. Enfatizando a criança como sujeito de cultura e de direitos, que tem seus modos próprios de ser, de pensar e de agir, a Educação Infantil se organiza no sentido de favorecer e ampliar essa exploração e curiosidade através de múltiplas linguagens, acompanhando seu desenvolvimento cognitivo, linguístico, corporal, emocional e cultural. Ora, diante dessa perspectiva, a linguagem escrita se configura como uma das múltiplas linguagens que fazem parte do contexto sociocultural em que as crianças se inserem e, portanto, também interessa às crianças e se configura como fonte de curiosidade, exploração, indagações e de construção de saberes. Diz o Caderno de orientação Assim se explora o mundo: “Desde quando nasce, a criança está inserida em um universo pleno de símbolos e significados, ou seja, ela começa a constituir sua identidade a partir das práticas culturais com que tem contato” (BRAZILEIRO et al., 2013, p. 13). A linguagem nos constitui. A linguagem escrita é uma prática que faz parte desse universo simbólico que constitui nossa cultura e identidade. Como uma prática sociocultural, a escrita não se apresenta de modo opaco para as crianças, que estabelecem relações com ela, desde que tenham oportunidades para tal. Se a escrita, como sistema de notação da língua falada, não se apresenta como um objeto transparente, pois seu domínio exige uma construção gradual e aprendizados diversos, também não é, em uma sociedade letrada, um objeto opaco, distante do mundo das crianças, pois está presente em diversas situações do seu cotidiano, relacionada a diversas práticas sociais das quais, de algum modo, elas participam ou observam. E que despertam sua curiosidade. Parceria Técnica: Avante - Educação e Mobilização Social
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A Educação Infantil, como um tempo singular da primeira infância, tem sua natureza e objetivos próprios, válidos em si mesmos, não tendo o propósito de preparar as crianças para o Ensino Fundamental. Assim, o trabalho com a língua escrita naquele segmento assenta-se sobre o fato de que esse objeto sociocultural também interessa às crianças pequenas, que participam desse contexto, exploram e observam a escrita e têm o que aprender sobre ela. Aliás, a oportunidade e a familiaridade das crianças de 0 a 5 nos com situações de leitura e escrita – como será discutido adiante – é um ponto chave para refletirmos sobre o papel da Educação Infantil na formação de leitores e produtores de textos, especialmente referente às crianças da rede pública de ensino. Historicamente, no entanto, a alfabetização e o papel da Educação Infantil nesse processo nem sempre foram vistos dessa forma. Conhecer as concepções de alfabetização e suas relações com a Educação Infantil é importante para situar um posicionamento, até porque práticas antigas do ponto de vista das tematizações acadêmicas e mesmo das políticas públicas, além de permitirem compreender o presente, muitas vezes ainda permanecem em algumas práticas educativas atuais. Um dos motivos que leva a uma prática pedagógica voltada para treinos psicomotores e cópia de letras, no intuito de preparar as crianças para a alfabetização ou, por outro lado, ao abandono de qualquer atividade mais sistemática de leitura e produção escrita, é a falta de acesso a referenciais mais claros que orientem a prática. Essas perspectivas estão fundadas em concepções tanto de alfabetização quanto de Educação Infantil que aparecem em diferentes momentos históricos. Panorama histórico das concepções de alfabetização A alfabetização, historicamente, foi considerada por muito tempo como o ensino da língua escrita como um código de transcrição da fala a ser memorizado. Na leitura, o foco era na capacidade de decodificar os sinais gráficos (os grafemas), transformandoos em fonemas e, na escrita, a capacidade de codificar as unidades fonológicas da fala, transformando-os em sinais gráficos. Os métodos tradicionais de alfabetização – analíticos, sintéticos ou mistos – apesar de suas particularidades, das unidades que privilegiam e da operação de análise ou síntese que enfatizam, investem no ensino desse código. A escrita alfabética, no entanto, não é um código de transcrição da fala, mas um sistema complexo construído historicamente, cuja aprendizagem exige a apropriação gradual de suas propriedades, não se tratando simplesmente de memorização de associações entre signos sonoros e gráficos. Esses métodos estão fundamentados em uma concepção empirista, mecanicista de aprendizagem: o conhecimento é visto como acúmulo quantitativo e mecânico de informações, priorizando-se as funções mentais perceptivas, a memorização, a reprodução. A aprendizagem da língua escrita é abordada, nessa perspectiva, como um
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processo de acumulação de informações transmitidas pelo professor e assimiladas de forma passiva pelo aluno. Apesar de suas particularidades, todos esses métodos possuem características comuns, questionadas pelas novas concepções de alfabetização. Esses questionamentos centramse basicamente nessa concepção empirista de base, no fato de se constituírem em metodologias que, em geral, propõem uma alfabetização descontextualizada, dando ênfase ao ensino e não considerando o modo como as crianças aprendem, e no fato de que não se ocupam da dimensão do letramento, da inserção da criança na cultura escrita. A escrita é vista, nesse sentido, apenas como notação da língua falada e não como uma prática social. Até os anos 60, com repercussões até os anos 80, no Brasil, predominava, no âmbito dessa concepção de alfabetização, o discurso sobre a maturação para aprender a ler e escrever, ou seja, a ideia de que a aprendizagem da leitura e escrita resultaria de um amadurecimento de certas habilidades, havendo um momento de “prontidão para alfabetização”, quando a criança teria desenvolvido certas habilidades que permitiriam a aprendizagem da leitura e escrita. O ensino, assim, era condicionado a esse suposto “desabrochar natural” que ocorreria aos seis, sete anos. O que se propunha, então, antes desse momento, eram exercícios preparatórios repetitivos incidindo sobre habilidades psicomotoras, coordenação visomotora, memória visual e auditiva, orientação espacial e temporal, esquema corporal, habilidades gráficas – habilidades consideradas “prérequisitos” para a alfabetização –, todas elas não relacionadas diretamente à leitura e escrita. O trabalho com a leitura e escrita era considerado prematuro antes dos seis, sete anos. Supunha-se que essa preparação criaria as condições necessárias e adequadas para as crianças o enfrentarem. Supunha-se igualmente que, antes da aprendizagem do sistema de escrita alfabética, as crianças não tinham qualquer interesse em ler e escrever e as tentativas de alfabetizá-las antes dessa maturação eram vistas como prejudiciais ao seu desenvolvimento, já que as crianças não estariam prontas para essas aprendizagens. Assim, com base nessa concepção, o trabalho com crianças menores de seis anos deveria evitar o contato direto com a leitura e a escrita, concentrando-se no que julgavam serem os pré-requisitos para essa aprendizagem. Essas ideias justificaram a manutenção da educação pré-escolar isolada – “assepticamente”, como ressalta Emilia Ferreiro – da língua escrita, “desenvolvendo habilidades prévias que, segundo parece, ‘maturam’ em contextos alheios à língua escrita” (FERREIRO, 1993, p. 65). Nota-se como esse encaminhamento retira as crianças do contato com as práticas de leitura e escrita, hoje tão fundamentais na concepção de alfabetização em contexto de letramento.
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Conforme ressalta Kramer (1992), essa concepção de aprendizagem da língua escrita teve um impacto na orientação de políticas públicas para o atendimento de crianças nas décadas de 70 e 80, bem como na prática educativa pré-escolar. Entretanto, a partir dos anos 80 essa concepção de alfabetização e de preparação para a alfabetização começou a ser questionada, a partir das contribuições de vários campos do conhecimento. O fracasso na alfabetização, que continuava a ocorrer apesar dos altos investimentos públicos em programas que apostavam nos exercícios preparatórios, também contribuiu para se repensar a ideia da prontidão para a leitura e escrita. É preciso destacar que a ideia de um sujeito que aprende passivamente vem já, antes dos anos 80, sendo questionado pela epistemologia genética de Piaget, que põe em cheque a concepção empirista de aprendizagem da língua escrita ao afirmar que o sujeito constrói ativamente os conhecimentos. Já nos anos 30, também Vygotsky (1984) argumentava que as crianças podiam descobrir a função simbólica da escrita antes dos seis anos, desde que a escrita fosse ensinada como uma atividade cultural complexa, significativa, e não como uma habilidade perceptiva e motora. Sua perspectiva, no entanto, só chegou até nós nos anos 80. Sem a sustentação empírica e teórica para a ideia de pré-requisitos passou-se a questionar, no âmbito das práticas educativas, o motivo de se esperar até os seis anos para alfabetizar as crianças. E assim surgiram práticas de ensino pré-escolar que substituíram os exercícios preparatórios psicomotores, sem presença da escrita, por exercícios psicomotores que usam letras e palavras, bem como pelo o ensino exaustivo das letras, de sílabas, e de relações entre as letras ou sílabas e seus respectivos “sons”, muitas vezes de modo extremamente artificial e descontextualizado. Práticas que por vezes têm como meta já sair alfabetizado da Educação Infantil. Essas práticas são encaminhadas, ferindo, muitas vezes, os interesses das crianças e o princípio lúdico da educação da infância, inserindo o trabalho com lápis e papel em atividades técnicas muito pouco significativas para elas, roubando-lhes o sentido de explorar a escrita com a curiosidade de quem explora o mundo. Oposta a essa perspectiva, surgiram igualmente práticas assentadas em outro modo de pensar a alfabetização na Educação Infantil. Trata-se da posição que defende que não deve haver qualquer trabalho com a linguagem escrita na Educação Infantil, nesse momento não mais devido à crença numa suposta “maturação”, mas pelo fato de a escrita ser vista como “conteúdo escolar”, não adequado, portanto, às crianças pequenas, e oposta ao princípio lúdico da Educação Infantil. Soares (2010) e Brandão e Leal (2011) reconhecem nessa posição uma espécie de “letramento sem letras”, pois a ênfase é dada às outras linguagens, como a corporal, musical, oral, gráfica, dentre outras, banindo-se a escrita do trabalho pedagógico. Cria-se, no espaço educativo, um mundo à parte em que se exclui os textos. Além disso, nessa perspectiva, deixa-se de Parceria Técnica: Avante - Educação e Mobilização Social
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ver a riqueza da reflexão sobre a língua – especialmente sobre sua dimensão sonora – como um brincar com as palavras. Subjacente a esse posicionamento está a ideia de que a escrita se opõe à infância, bem como de que a escola é um espaço de práticas necessariamente descontextualizadas, vazias, repetitivas. A Educação Infantil seria vista como um espaço “anti-escolar”, no qual essas práticas não caberiam. Ora, essa posição se choca com uma concepção de criança inserida na cultura, com uma concepção de escrita como prática social e com uma concepção de escola como espaço de educar sujeitos socio-historicamente situados, não necessariamente enfadonha e vazia de significado. Conceber a Educação Infantil como espaço de respeito às peculiaridades da infância implica, entretanto, em considerar essa infância, igualmente, como histórico e socioculturalmente condicionada. E não podemos desconsiderar nem negligenciar o contato das crianças pequenas com as diversas linguagens e formas de expressão criadas pelo homem, pela cultura, para interagir entre si e com o mundo – inclusive a linguagem escrita. Nesse sentido, ressalta-se a posição do Projeto Paralapracá quanto à exploração da linguagem escrita como uma das linguagens a serem exploradas pelas crianças. Assim se explora o mundo: o mundo com suas diversas linguagens. Ambas as posições sobre a relação entre a linguagem escrita e a Educação Infantil – o abandono do trabalho com a escrita ou o trabalho exaustivo de memorização e cópia de letras e sílabas – caem por terra ao considerarmos as perspectivas construtivistas, sociointeracionistas e os estudos sobre letramento.
Campos que contribuíram para mudanças nas concepções de alfabetização e no modo de ver as relações entre Educação Infantil e ensino da linguagem escrita Para estabelecer um posicionamento consistente e fundamentado quanto ao papel da Educação Infantil na formação de leitores e produtores de textos, faz-se necessário compreendermos como as perspectivas construtivistas, sociointeracionista e do letramento contribuíram para mudanças na concepção de alfabetização. Além disso, é importante ressaltar também as contribuições do campo de estudos da linguagem, que enfatizam a importância da faceta linguística da alfabetização, possibilitando refletirmos sobre suas implicações para a Educação Infantil. As pesquisas da psicogênese da língua escrita demonstraram que para aprender como o sistema de escrita funciona, o sujeito, desde que em contato com a escrita, vive um sério trabalho conceitual, um processo construtivo e progressivo, no qual elabora respostas para duas questões: o que a escrita representa e como ela representa os sons da língua. Revelaram, assim, uma postura ativa e curiosa das crianças ainda não alfabetizadas, mostrando que elas pensam e criam hipóteses para entender o que é a escrita e como ela Parceria Técnica: Avante - Educação e Mobilização Social
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funciona, mesmo antes de descobrirem que a escrita tem relação com a pauta sonora da língua. A escrita alfabética é compreendida aí como um sistema de notação da linguagem oral, e não um código de transcrição da fala, com relações substitutivas diretas, biunívocas, entre signos, e sua aprendizagem passa a ser vista como um processo ativo por meio do qual a criança, desde seus primeiros contatos com ela, constrói e reconstrói hipóteses sobre sua natureza e funcionamento, desde que tenham oportunidades de estar em contato com esse objeto de conhecimento em situações reais de leitura e produção escrita. Como essa construção conceitual começa muito antes dos seis anos, antes da alfabetização propriamente dita, se configura, então, como um processo que diz respeito à Educação Infantil, colocando-se a necessidade de se refletir sobre como organizar o trabalho pedagógico nesse segmento de modo a favorecer a construção de conhecimentos pelas crianças, suas explorações e descobertas concernindo à língua escrita. Faz parte do trabalho da Educação Infantil favorecer que as crianças avancem em direção à fonetização da escrita, chamando sua atenção para a dimensão sonora da língua. E isso pode ser feito de forma lúdica e significativa, condizente com as curiosidades e possibilidades dos sujeitos infantis. Com a perspectiva construtivista, o foco das reflexões sobre o campo da alfabetização que antes recaia no ensino, no como ensinar, por qual método ensinar, e numa visão adultocêntrica sobre o que seria fácil e difícil, simples e complexo ao se organizar o trabalho pedagógico, passa a ser a aprendizagem: como a criança aprende sobre esse objeto de conhecimento específico, a língua escrita. Essa é uma mudança fundamental, pois o sujeito que aprende, seus processos de construção de conhecimento vão ser considerados no ensino. Entretanto, é preciso também pensar em como – a partir do modo como a criança aprende – organizar ações intencionais que favoreçam os avanços em suas aprendizagens, inclusive na Educação Infantil. Esse é um aspecto importante de ser ressaltado, já que uma má interpretação do construtivismo e da psicogênese levou, por um tempo, a práticas espontaneístas, como se as crianças aprendessem sozinhas, construíssem conhecimentos naturalmente, na relação com o objeto de conhecimento, no caso, a língua escrita. Nesse sentido, outra contribuição fundamental nas mudanças de concepção de alfabetização, também do campo da psicologia, é a contribuição do sociointeracionismo de Vygotsky, que enfatiza o aspecto sociocultural e histórico da aprendizagem, argumentando que a aprendizagem não se dá apenas na relação do sujeito com o objeto de conhecimento, mas nas suas interações com os outros, com a cultura. Essa perspectiva, inclusive, recoloca a importância da mediação do outro – do professor, dos pares – na aprendizagem. O professor atua na zona de desenvolvimento proximal das crianças favorecendo os avanços em suas hipóteses, na construção dos conhecimentos. Parceria Técnica: Avante - Educação e Mobilização Social
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Da mesma forma, enfatizando a importância da dimensão sociocultural da aprendizagem, essa perspectiva garante ao ensino um papel no processo de apropriação de objetos culturais, construídos socialmente, como é o caso da escrita alfabética. Assim, não se trata, nem mesmo na Educação Infantil, de um “florescer” espontâneo, natural. Cabe à escola favorecer o contato constante das crianças com os objetos de conhecimento – no caso a língua escrita – em situações diversificadas, intencionais, sistemáticas e coerentes com o valor fundamental desse segmento que é o brincar como forma de participação na cultura e de produção de cultura, como forma de aprender. A visão da escrita como uma atividade sociocultural vai ser enfatizada pelo campo de estudos sobre letramento, a partir da segunda metade dos anos 80, no Brasil, contribuindo decisivamente para repensar as concepções de alfabetização e sobre o papel da Educação Infantil na formação de leitores e produtores de texto. Ao lado das contribuições com foco na faceta psicológica da alfabetização, os estudos sobre letramento contribuíram para o debate colocando em foco a escrita como prática social e não apenas como um sistema de notação da língua. Esse aspecto já aparece nas formulações sociointeracionistas e construtivistas, mas ganha força com essa dimensão sócio-histórica da língua escrita. Na perspectiva do letramento, os sujeitos imersos em uma sociedade letrada estão, necessariamente, em contato com práticas letradas diversas, independentemente de serem alfabetizados. A apropriação do sistema de escrita alfabética – a alfabetização – amplia enormemente as possibilidades de participação autônoma nessas práticas e amplia o grau de letramento dos sujeitos. Entretanto, as crianças e adultos não alfabetizados convivem também com diversas práticas de leitura e escrita e participam de diversos eventos de letramento, muitos deles acontecendo via oralidade, como no caso de se comentar sobre a escrita, perguntar sobre funções de certo gênero textual, por exemplo. Crianças pequenas participam de eventos de letramento quando ouvem o adulto lendo para elas, quando perguntam ou comentam sobre funções da escrita e de diversos gêneros textuais do cotidiano, quando se interessam por formas da escrita, quando querem entender seu funcionamento. Eventos de letramento são eventos em que a linguagem escrita é essencial à natureza das interações, mesmo via oralidade, e eles acontecem a todo o momento nas interações com as crianças, em ambiente familiar ou escolar, desde que tenham oportunidade de convívio com a escrita, os textos, os gêneros diversos, a literatura. O Almanaque Paralapracá traz inúmeros textos que favorecem interações das crianças com a escrita, a partir de gêneros e situações comunicativas diversas, como histórias, experimentos, curiosidades, adivinhações, fábulas, adivinhas, parlendas, cantigas, instruções de brincadeiras.
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É importante ressaltar, para as crianças pequenas, a importância fundamental do letramento literário, pois além da literatura ter um papel importante na formação leitora, é fundamental na formação dos sujeitos, da sensibilidade estética, na expressão do imaginário e ampliação de conhecimentos de mundo e das experiências culturais, emocionais, cognitivas e linguísticas. Além disso, a literatura afina-se com o que é marca da infância, a imaginação, a fantasia, o brincar com a linguagem. A literatura tem um papel preponderante no trabalho com a linguagem oral e escrita na Educação Infantil. O Projeto Paralapracá, pelos próprios materiais que disponibiliza e pelas discussões que traz em seus Cadernos de Orientação, está assentado na perspectiva que toma a literatura como uma das mais ricas experiências que a Educação Infantil pode oportunizar às crianças, junto com o brincar, e a certeza de que abre as portas para a sua curiosidade e encantamento em relação à escrita. Na parte sobre a leitura literária do Caderno de Orientação Assim se faz literatura, discute-se sobre a importância de oferecer o universo literário às crianças, instigar sua curiosidade em relação aos livros, ao que eles trazem, como eles se organizam. Ao mesmo tempo, o Caderno enfatiza o fato de que ao escutarem a leitura feita pelo adulto, as crianças estão aprendendo muitas coisas em relação à escrita, como a linguagem usada para escrever diferentes gêneros, e os comportamentos e procedimentos relacionados à leitura, que fazem parte da formação leitora, do letramento. Esses comportamentos e procedimentos aparecem nas interações das crianças com os livros e com os outros, em diversos eventos de letramento, que adultos atentos podem observar cotidianamente. Aparecem no seu brincar de ler e brincar de escrever, eventos que hoje são considerados fundamentais na formação leitora. Aparecem também – como é ressaltado no Caderno de Orientação Assim se Brinca – no próprio brincar de faz de conta que encena situações sociais (de casinha, de mercado, de escola, de médico), desde que no ambiente preparado para esse brincar sejam disponibilizados materiais propícios a esses eventos: portadores de escrita como jornais, folhas de cheque, agendas, lista telefônicas, cadernos, livros, computadores, diversos suportes e instrumentos de escrita, como papéis, canetas, lápis1. As crianças aprendem muito observando as atividades dos adultos, como aborda o Caderno Assim se organiza o ambiente e, como podemos ler no Caderno Assim se brinca, as brincadeiras das crianças são “impregnadas de valores, hábitos, formas e conhecimentos de seu grupo social” (BRAZILEIRO et. al., 2013, p. 11). Ora, o faz de conta, o jogo simbólico, é uma forma de explorarem e compreenderem o mundo, a sociedade em que se inserem, de se apropriarem criativamente da cultura e, portanto, as crianças trazem também para esse contexto suas experiências com práticas de leitura e escrita. Ressalta-se, nesse sentido, a importância da organização dos espaços e materiais para favorecer as explorações, A esse propósito ver o capítulo “O brincar, o letramento e o papel do professor”, de Nigel Hall, no livro “A excelência do brincar” (MOYLES, 2006). 1
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interações e aprendizagens, tal qual discutido no Caderno de Orientação Assim se organiza o ambiente. Esses aspectos apontados nos Cadernos Paralapracá condizem com a perspectiva de que a leitura e escrita devem estar presentes na Educação Infantil e de que há o que ensinar e aprender de forma sistemática e planejada nesse segmento da educação, especialmente para as crianças que teriam menos oportunidades de participação de situações mediadas pela escrita e de convívio com a escrita e a leitura em ambientes familiares, não escolares, como é o caso, frequentemente, de crianças atendidas pela rede pública de ensino. Já aí aparece um esboço de posicionamento do Projeto em relação à alfabetização na Educação Infantil. Entretanto, é preciso ainda abordar a contribuição da faceta linguística da alfabetização, pois há aí igualmente uma questão importante a ser considerada no âmbito da reflexão sobre a leitura e escrita na Educação Infantil. É comum, hoje, se considerar o trabalho de letramento nesse segmento – a importância da leitura e da contação de histórias, do convívio com gêneros textuais que circulam socialmente –, mas associar o trabalho de apropriação do sistema de escrita alfabética como algo de uma formalidade que não condiz com a perspectiva da Educação Infantil. É preciso entender esse aspecto para que um posicionamento seja amplo, em relação a todas as facetas do processo de apropriação da linguagem escrita. A adoção da perspectiva psicogenética, que privilegia a faceta psicológica em detrimento da linguística, e a ênfase na dimensão sociodiscursiva com o letramento, trouxeram também consequências mais negativas para o ensino da língua escrita no Brasil, devido, principalmente, a inferências errôneas na transposição dessas concepções para a prática pedagógica – como a ideia de que o convívio com textos seria suficiente para a alfabetização acontecer e a ideia da incompatibilidade entre a concepção construtivista e a questão do método. Se, por um lado, essas perspectivas revelaram a importância de observar as hipóteses que as crianças fazem sobre a natureza e o funcionamento da escrita e de expô-las às práticas sociais reais de leitura e escrita, por outro levaram à perda da especificidade do processo de apropriação do sistema alfabético e a uma desvalorização do ensino sistemático das relações entre fonemas e grafemas na alfabetização. Magda Soares chamou esse processo de “desinvenção da alfabetização” (2003). A autora propõe, em um artigo intitulado “A reinvenção da alfabetização” (SOARES, 2003), que se restitua a importância da especificidade da alfabetização, do processo de apropriação do sistema alfabético, e o foco na faceta linguística da aprendizagem da língua escrita. “Reinventar a alfabetização” implica em recolocar a importância de trabalhar com a apropriação da escrita alfabética de modo sistemático e sistematizado, em novas bases, considerando, no entanto, tanto o letramento como a construção de conhecimento pelos sujeitos. Parceria Técnica: Avante - Educação e Mobilização Social
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Essa é a concepção contemporânea de alfabetização em contexto de letramento ou, segundo expressão de Magda Soares, de alfabetizar letrando, que seria a ação de ensinar a ler e escrever com autonomia – ou seja, levar a apropriar-se do sistema de escrita alfabética – no contexto das práticas sociais de leitura e escrita da sociedade2. Há uma ênfase nesses dois processos, distintos, mas interligados. Como a língua escrita, no nosso sistema alfabético, nota os significantes sonoros e não os significados das palavras, é necessário, para aprender a ler e escrever, prestar atenção à dimensão sonora da língua falada, refletir sobre unidades fonológicas diversas nas quais a língua pode ser segmentada – palavras, sílabas, rimas, unidades intra e intersilábicas, fonemas3 – e às articulações entre fonemas e grafemas. Se o sistema é de base fonológica, ao lado do trabalho com a leitura e escrita em diversos gêneros, é preciso garantir intervenções no sentido de refletir sobre essa base fonológica do sistema de escrita, sobre as unidades sonoras e gráficas menores que a palavra e favorecer a conquista gradual do nível alfabético. E é aí que entram as contribuições dos estudos sobre consciência fonológica (vindos da psicologia cognitiva da leitura), campo que também contribuiu para uma mudança nas concepções de ensino e aprendizagem da língua escrita. Os estudos sobre a consciência fonológica, que chegaram ao Brasil de forma polarizada em relação ao construtivismo pelo fato de vir pelo viés dos métodos fônicos, são hoje considerados e ressignificados em uma perspectiva socioconstrutivista. A consciência fonológica é a capacidade que permite analisar e refletir, de forma explícita, sobre a estrutura fonológica da linguagem oral, ou seja, a consciência de que a fala pode ser segmentada em unidades e que estas unidades podem se repetir em diferentes palavras. Os estudos mostram que, em alguma medida, há relações entre o desenvolvimento da consciência fonológica e a aprendizagem da leitura e escrita. Não se trata de propor, nessa perspectiva, um treinamento fonológico com base empirista, mas de favorecer, de forma lúdica e significativa, a reflexão metalinguística sobre essas unidades fonológicas. A concepção de base continua sendo construtivista, na medida em que considera que a criança pensa, formula hipóteses, elabora questões conceituais, está às voltas com operações que são de ordem cognitiva, não mecânica. No 1º ano, essa perspectiva enfatiza o trabalho com o que específico desse momento, que é a apropriação do sistema alfabético, em contexto de letramento, avançando no sentido de favorecer a consciência fonêmica e a apropriação das relações entre fonemas 2
Essa não é uma concepção hegemônica, pois há os que defendem uma perspectiva psicogenética que não enfatiza o trabalho de consciência fonológica e com as unidades menores que a palavra, e há os que defendem o método fônico, de treinamento fonêmico, como via mais apropriada de alfabetização. 3 As unidades intersilábicas são unidades maiores que a sílaba, como /ola/ em escola, bola, mola, e as itrasilábicas são unidades menores que as sílabas, mas maiores que os fonemas, como /TR/ em trator, trigo, truta. São unidades extremamente interessantes de serem exploradas oralmente e em presença da escrita, e geralmente negligenciadas em um trabalho muito centrado nas sílabas ou nos fonemas. Parceria Técnica: Avante - Educação e Mobilização Social
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e grafemas. Mas como essa questão linguística se coloca na Educação Infantil? Ora, as crianças pequenas são sensíveis à dimensão sonora da língua, desde pequenas se encantando e experimentando jogos de linguagem com rimas e outras sonoridades. Ao brincar com textos da tradição oral, com onomatopeias, com o ritmo de versos, com a materialidade sonora da língua, estão experimentando atividades epilinguísticas relativas à dimensão sonora da língua, prestando a atenção a essa dimensão, o que é fundamental também para a aprendizagem da escrita4. No Caderno de Orientação Assim se Brinca, na parte sobre brincar com as palavras, esse aspecto é discutido e sua relação com o que é próprio à infância é ressaltado – o brincar. “A materialidade sonora da língua, em si, já traz a condição lúdica que permite que essas explorações, sobretudo no contexto da poesia oral e literária, se apresentem como brincadeiras” (BRAZILEIRO et. al., 2013, p. 26). O Almanaque Paralapracá apresenta diversos trava-línguas, parlendas e quadrinhas, textos poéticos da tradição oral que são preciosos para brincar com as sonoridades da língua, rimar, tropeçar nos sons, nas aliterações, ecoar nas assonâncias, perceber o ritmo dos versos, as repetições. A cultura lúdica infantil fornece um repertório riquíssimo para esse trabalho, que é a um só tempo com gêneros de texto e de reflexão fonológica. Provocar a reflexão fonológica e as relações entre a pauta sonora e gráfica da língua, favorecer o uso de estratégias várias de reconhecimento de palavras e ampliar, no contexto de práticas lúdicas, contextualizadas e significativas, o conhecimento das letras – signos da escrita no nosso sistema presentes no ambiente social – são encaminhamentos produtivos que dizem respeito à apropriação do sistema de escrita. E tudo isso pode ser feito de forma prazerosa, instigante, a partir das curiosidades e interesses das crianças pequenas, de brincadeiras próprias à infância, das interações com escritas significativas, como o nome próprio, com os textos poéticos da tradição oral, próprios à cultura infantil, da literatura, no âmbito de situações que respeitem a criança com menos de seis anos em seus processos próprios de aprendizagem. A aprendizagem da língua escrita tem muitas facetas – como ressalta Magda Soares –, que demandam intervenções específicas, mas que devem ser integradas e articuladas na prática pedagógica. E isso desde a Educação Infantil. Posicionamento do Projeto Paralapracá, Instituto C&A Um posicionamento a respeito do trabalho com a leitura e a escrita na Educação Infantil aparece apontado nas reflexões sobre o panorama histórico e sobre as concepções de alfabetização aqui esboçadas. Cabe, no entanto, delineá-lo de modo objetivo a fim de estabelecer o posicionamento do Projeto Paralapracá a esse respeito. 4
Atividades epilinguisticas são os jogos espontâneos com os sons da língua, enquanto as atividades metalinguísticas implicam em uma manipulação explícita dessas unidades fonológicas. Na base de toda atividade metalinguística existem atividades epilinguísticas correspondentes. Parceria Técnica: Avante - Educação e Mobilização Social
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Desde que nascem, as crianças interagem com o mundo em que se inserem, inclusive com a leitura e a escrita. A língua escrita está em toda parte, na rua, na mesa do café, na farda que vai para a escola, nos letreiros, placas, outdoors, na televisão. As crianças veem os adultos lendo e escrevendo, experimentam fazer como eles, perguntam sobre textos e funções da escrita, ouvem histórias e folheiam os livros – e essas são apenas algumas das possibilidades de contato com a escrita no dia a dia. Compete à escola a função de alfabetizar e letrar os sujeitos que atende, e esse aprendizado se articula às experiências extraescolares, já que, por participarem ativamente de culturas letradas, as crianças, umas mais e outras menos, chegam à Educação Infantil com conhecimentos e vivências diversas sobre a leitura e a escrita. Se, dentro da especificidade dos modos de aprender e se desenvolver da criança pequena, a Educação Infantil tem por meta favorecer a exploração do mundo e ampliar suas experiências com o universo natural e sociocultural do qual fazem parte, então é preciso discutir e desconstruir o que se estabelece no próprio modo de geralmente se colocar a questão, apresentada no início deste documento: deve-se alfabetizar na Educação Infantil? Ora, o que significa alfabetizar na Educação Infantil quando colocamos essa questão? Se significa realizar “lições” para trabalhar com letras e sílabas, passar o lápis sobre letras pontilhadas, “ler” e “escrever” palavras formadas por vogais, dentre outras tarefas sem função comunicativa que distanciam as crianças da escrita com a qual elas interagem desde cedo e que não oportunizam vivências realmente produtivas e significativas com a linguagem escrita, então a resposta é definitivamente não, não se deve alfabetizar na Educação Infantil. Esse tipo de proposta, além de contrariar as características da faixa etária atendida na Educação Infantil, é questionado, hoje, inclusive para alfabetizar no Ensino Fundamental. Além de ser uma concepção insuficiente e mal colocada em nosso tempo, transforma a escrita em um objeto de conhecimento instrumental e afasta-se da ideia de um sujeito inteligente que realiza um esforço intelectual complexo e ativo diante dos desafios postos pela leitura e escrita. Então a questão não pode seguir por esse caminho. É preciso conceber, primeiramente, a língua escrita como linguagem, ou seja, como capacidade humana de produção simbólica, de expressar-se através de um conjunto de signos. E conceber a linguagem como forma de interação comunicativa. A língua escrita, nessa perspectiva, é um sistema estruturado e uma prática social que visa a essa interação. A meta do ensino da escrita é, portanto, que as crianças vão se tornando usuários cada vez mais integrados a esse universo letrado, praticando a escrita nas variadas situações nas quais ela é condição necessária à comunicação e, para isso, é preciso que compreendam como nosso sistema alfabético se organiza para comunicar tantas coisas aos sujeitos que o utilizam em diferentes situações, com funções diversas em diferentes esferas da atividade humana. A aprendizagem do sistema alfabético se insere nesse contexto maior de apropriação da cultura escrita e, portanto, esse contexto é o ponto de partida do trabalho na Educação Infantil, invertendo-se a prática de iniciar a Parceria Técnica: Avante - Educação e Mobilização Social
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entrada na escrita pelas letras e sílabas. De qualquer modo, trata-se de conhecer esse universo letrado e não sistematizá-lo, escolarizando o trabalho com os gêneros discursivos. Mas então ficamos ainda com duas perguntas. Se alfabetizar, nessa indagação sobre se devemos ou não alfabetizar na Educação Infantil, implica em favorecer o letramento, então, sim, esse trabalho deve ser feito nesse segmento. Mas referir-se à ação de alfabetizar, numa concepção de alfabetização em contexto de letramento, remete-nos à especificidade da apropriação do sistema alfabético de escrita e não ao aspecto mais amplo de acesso à cultura escrita. Então, deve-se alfabetizar na Educação Infantil? Na Educação Infantil a criança se desenvolve socialmente e cognitivamente de forma lúdica e, assim, o trabalho com a leitura e a escrita deve estar comprometido com as características da infância, com o direito de brincar da criança e o direito em expandir seu conhecimento, considerando os significados que a linguagem escrita adquire para os sujeitos que vivenciam essa fase da vida. As crianças exploram o mundo da linguagem, das palavras, dos textos, dos sons da língua. Assim, partir de situações significativas e planejadas em relação à cultura letrada e à cultura infantil, com o contato com gêneros discursivos diversos, com jogos e brincadeiras com a linguagem, a poesia oral, a literatura, os dois eixos do ensino da linguagem escrita podem e devem ser contemplados na Educação Infantil: o letramento, com as práticas de leitura e escrita, e o sistema de notação alfabética. Considera-se nesse eixo linguístico tanto as experiências com a dimensão sonora da língua (a consciência fonológica) quanto as aproximações com a escrita alfabética – escrita e leitura do nome próprio, escritas a partir de suas hipóteses, descobertas quanto às letras e às relações entre a pauta sonora e gráfica. Um dos objetivos desse segmento, no eixo linguístico, é que as crianças se deem conta, a partir de seus esforços e descobertas postos pelos desafios que o professor planeja, da relação da escrita com a pauta sonora da língua, ainda que, inicialmente, se apresente como uma relação mais global, não termo a termo. É assim que podem prestar atenção nos significantes sonoros e gráficos das palavras e não em seu significado, ultrapassando o que muitos nomeiam como o “realismo nominal” – passo fundamental na fonetização da escrita para a alfabetização acontecer. Para concluir o argumento, é preciso ainda pensar no que significa “alfabetizar” do ponto de vista não da relação com o letramento, mas da relação com o ensino, a escolarização. Em primeiro lugar, a alfabetização pode ser referida como uma etapa específica da escolarização, que prevê a aprendizagem do sistema de escrita alfabética de forma mais sistemática, e pode, por outro lado, ser vista como o processo contínuo de aprendizagem da língua escrita, que se dá desde que as crianças começam a ter curiosidade e formular hipóteses sobre a natureza e o funcionamento desse sistema. Assim, no primeiro caso, estamos falando do 1º ano do Ensino Fundamental, ano escolar em que se espera, a partir de decisões curriculares, que as crianças sejam Parceria Técnica: Avante - Educação e Mobilização Social
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alfabetizadas e consigam ler e escrever com autonomia, ou seja, que se apropriem do princípio alfabético que rege o sistema e saibam relacionar fonemas e grafemas. E, em alguns casos, refere-se também aos anos seguintes, que compõem o ciclo de alfabetização, com as consolidações desse aprendizado. No segundo caso, como um processo contínuo, a alfabetização se configura como um longo processo que se inicia bem antes do 1º ano e segue até o domínio da ortografia da língua portuguesa. Portanto, se inicia na Educação Infantil e segue nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Sendo assim, por esse sentido duplo que o termo alfabetização pode tomar, bem como pela concepção de alfabetização assumida – a alfabetização em contexto de letramento – , torna-se mais coerente falarmos em leitura e escrita na Educação Infantil e não alfabetização na Educação Infantil, ainda que o processo implicado na apropriação do sistema de escrita alfabética se inicie antes do 1º ano. Trata-se, na Educação Infantil, de promover práticas de leitura e escrita significativas e análogas às vivenciadas no contexto sociocultural, extraescolar. De promover a escrita e a leitura pelas próprias crianças, que o farão a partir de suas descobertas e explorações, em situações de fazer de conta que leem e escrevem. Trata-se de brincar com as palavras em jogos e brincadeiras com a linguagem para desenvolver a reflexão fonológica com e sem correspondência com a escrita. Trata-se de reconhecer e grafar letras em situações significativas, bem como reconhecer globalmente certas palavras como os nomes próprios, palavras de uso frequente no ambiente escolar, palavras presentes, repetidas, em textos que se sabe de cor ou títulos de livros. Trata-se de conviver com a escrita como prática e como objeto de conhecimento, de explorar o mundo sociocultural, de explorar a linguagem escrita como uma das linguagens – linguagens que são, ao mesmo tempo, objetos de conhecimento e meios para realizarem essas descobertas. As múltiplas oportunidades de observar o professor lendo e escrevendo, de produzir textos escritos oralmente ou recontar histórias, de explorar semelhanças e diferenças entre textos escritos, de brincar de ler e escrever, de ler e escrever sem saber ainda fazêlo convencionalmente, bem como as oportunidades de explorar o espaço gráfico e as diferenças e semelhanças sonoras e gráficas entre as palavras, são oportunidades, dentre outras, essenciais na apropriação da língua escrita e na formação de leitores e produtores de textos ainda na Educação Infantil, e favorecem o desejo de aprender a ler e escrever. Ao interpretar as explorações das crianças como atos de escrita e leitura, os adultos vão “recortando” para elas essas práticas culturais como dignas de interesse e como objetos de conhecimento. Todos esses encaminhamentos se inserem na perspectiva de exploração da linguagem como parte da exploração do mundo. Não se trata, portanto, nem de adiantar a alfabetização, acelerar o processo de apropriação do princípio alfabético, de antecipar e deslocar o trabalho pedagógico do 1º ano para a Educação Infantil, nem de tornar proibitivo o trabalho com a escrita e a Parceria Técnica: Avante - Educação e Mobilização Social
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leitura com os menores de seis anos. Certamente, é preciso, do ponto de vista curricular, definir em que momento da escolarização se espera que as crianças estejam alfabetizadas. Mas, como enfatiza Emilia Ferreiro, “as crianças têm o ‘mau’ costume de não pedir permissão para começar a aprender”5. Defendendo que é preciso oferecer oportunidades para as crianças conviverem e refletirem sobre a escrita, a pesquisadora diz que alguns aprenderão algumas coisas sobre o sistema de escrita, outros não, e que é parte da onipotência do sistema escolar determinar a idade com que a criança vai aprender, de fato, a ler e escrever. Certo é que se as crianças participam de situações em que a escrita está presente e é utilizada, nas quais os adultos fazem uma mediação adequada entre elas, o mundo letrado e o sistema de escrita – e, no caso da escola, uma mediação sistemática, intencional –, desde cedo todas elas, independentemente de sua origem social, são capazes de aprender muitas coisas sobre a escrita. E isso não pode ser negligenciado na Educação Infantil, especialmente na rede pública de ensino, que atende crianças que, muitas vezes, não estão inseridas em meios familiares e sociais que favorecem essas mediações. Trata-se, assim, de tornar disponível o que já o está no meio sociocultural, e tornar natural e contínuo o ensino e a aprendizagem de algo que faz parte da vida das crianças, que interessa a elas, e que não faz sentido algum ignorar, nem escolarizar excessivamente, no sentido de roubar-lhe o sentido cultural e desconsiderar o modo próprio das crianças pequenas aprenderem. Nas próprias Diretrizes Curriculares Nacionais, enfatiza-se que a proposta pedagógica da Educação Infantil deve prever formas para garantir a continuidade no processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, respeitando as especificidades etárias, sem que haja antecipação de conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental. Mas também não se trata de desconsiderar que as crianças avançam em suas descobertas, independentemente das disposições curriculares. Por trás da complexidade dessa questão está o fato de que a aprendizagem é uma ação contínua e a ruptura entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental é uma ruptura institucional, curricular. Do ponto de vista da criança que aprende, que se desenvolve e se apropria de sua cultura, não há essa fragmentação. É precisamente a experiência com a cultura que garante a continuidade desse processo e, quando há uma separação – ou mesmo uma oposição – entre Educação Infantil e Ensino Fundamental, deixa-se de fora exatamente esse aspecto que os articula: a experiência com a cultura. Por esse motivo, questões como alfabetizar ou não na Educação Infantil e sobre como integrar as abordagens nesses dois segmentos – no caso aqui em relação à língua escrita – persistem e continuam nos interpelando a todo o momento. 5
Citação em entrevista dada à Revista Nova Escola, disponível http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/pratica-pedagogica/ato-ler-evolui-423536.shtml Parceria Técnica: Avante - Educação e Mobilização Social
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Conceber as crianças não como alunos de segmentos determinados e separados, mas como sujeitos socioculturais e históricos em processo constante e contínuo de desenvolvimento – ainda que com peculiaridades em cada momento –, e conceber o trabalho pedagógico não apenas em seu aspecto instrucional, mas em sua dimensão cultural, como conhecimento, linguagem, arte, vida, cultura – como o faz o Projeto Paralapracá – é a resposta mais contundente para se pensar na abordagem da linguagem escrita na educação das crianças desde o início de sua inserção no sistema educacional. O direito à alfabetização e ao letramento é parte fundamental do direito à educação. Assim, pensando na perspectiva da continuidade, a pergunta sobre se devemos ou não alfabetizar na Educação Infantil torna-se inócua, deslocada e podemos desconstruí-la, concebendo a Educação Infantil como a etapa inicial do processo de escolarização em que os primeiros contatos com as diferentes linguagens se dão de modo específico a essa faixa etária, mas em consonância com as diversas aprendizagens socioculturais que devem ser favorecidas e ampliadas, de forma contínua e integrada, e que incluem, sem dúvida, a linguagem escrita.
Glossário Letramento: Conjunto de práticas sociais de uso da linguagem escrita numa dada sociedade ou contexto. Diz respeito à relação que indivíduos e comunidades estabelecem com a escrita nas interações sociais. Alfabetização: Ação de ensinar/aprender a ler e escrever; apropriação do sistema de escrita alfabética. Consciência fonológica (ou reflexão fonológica, análise fonológica): capacidade que permite analisar e refletir, de forma explícita, sobre a estrutura fonológica da linguagem oral, ou seja, a consciência de que a fala pode ser segmentada em unidades e que estas unidades podem se repetir em diferentes palavras. Realismo nominal: característica do pensamento infantil em que a criança compreende a escrita como representação dos objetos e não como notação da língua falada, relacionando o registro das palavras às características físicas do objeto. Como ainda não compreende a palavra como uma sequência sonora, as crianças pensam que os objetos grandes precisam de muitas letras para escrever o nome e objetos pequenos precisam de poucas letras.
Referências:
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BRANDÃO, A. C. P. e LEAL, T. F.; Alfabetizar e letrar na Educação Infantil: o que isso significa? In: BRANDAO, A. C. P. e ROSA, E. Ler e Escrever na Educação Infantil: discutindo praticas pedagógicas. Belo Horizonte: Autentica, 2011. BRASIL. Secretaria da Educação Básica. BEAUCHAMP, J.; PAGEL, S. D.; NASCIMENTO, A. R. do (Orgs.). Ensino Fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007. BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes curriculares nacionais para a Educação Infantil. Brasília: MEC, SEB, 2010. BRAZILEIRO, F. et al. Cadernos Paralapracá, Série Cadernos de Orientação. Barueri, SP: Instituto C&A, 2013. FERREIRO, E. Com todas as letras. São Paulo: Cortez, 1993. FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A.; A Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Medicas, 1984. HALL, N. O brincar, o letramento e o papel do professor. In: MOYLES, J. R. A excelência do brincar. Porto Alegre: Artmed, 2006. KRAMER, S. A Política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. São Paulo: Cortez, 1992. RÊGO, J. C. (Org.). Almanaque Paralapracá: menu de guloseimas lúdicas para educadores da infância. Instituto C&A, 2009. SOARES, M. Alfabetização e literatura. In: Revista Educação: guia da alfabetização. Escrita e leitura: como tornar o ensino significativo. São Paulo: Segmento, CEALE, 2010. n. 1, 90 p. Edição especial. ______. A reinvenção da alfabetização. Presença Pedagógica. Vol 9, n. 52. jul/ago, 2003, p. 14-21.
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