Do grão a colheita

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO E GESTÃO SOCIAL

FABIANE BRAZILEIRO PARANHOS NEVES

DO GRÃO À COLHEITA? REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE UM PROJETO DE INVESTIMENTO SOCIAL PRIVADO NO CALABAR.

Salvador 2011


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FABIANE BRAZILEIRO PARANHOS NEVES

DO GRÃO À COLHEITA? REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE UM PROJETO DE INVESTIMENTO SOCIAL PRIVADO NO CALABAR.

Dissertação apresentada ao Programa de Desenvolvimento e Gestão Social, Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Administração. Orientadora: Profª Dra. Maria Teresa Ribeiro

Salvador 2011


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FABIANE BRAZILEIRO PARANHOS NEVES

DO GRÃO À COLHEITA? REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE UM PROJETO DE INVESTIMENTO SOCIAL PRIVADO NO CALABAR.

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Administração, Mestrado Multidisciplinar e Profissionalizante em Desenvolvimento e Gestão Social, Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em:..........................

Banca Examinadora

Maria Teresa Ribeiro – Orientadora_______________________________________ Doutora em Economia pela Université Paris III – Sorbonne Nouvelle

José Célio Silveira Andrade_____________________________________________ Doutor em Administração pela Universidade Federal da Bahia

Márcia Mara de Oliveira Marinho________________________________________ Doutora em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia – Reino Unido


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A Deus, por me permitir nesta vida fazer escolhas para o meu crescimento pessoal. Mรกrcio, companheiro de todas as horas, minha entrega e amor eterno. Nanda e Rique, filhos amados, pelo amor รกgape. Maria Teresa, mestra querida, por seu cuidado e respeito pelo ser humano.


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AGRADECIMENTOS

São muito especiais... Aos meus pais que na simplicidade de cada um compreenderam a necessidade de me fortalecer de conhecimentos para que eu pudesse construir a minha caminhada profissional e assim saber traçar com autonomia meus próprios passos. À Sônia Bandeira que com sua delicadeza e generosidade incentivou-me e ofereceu-se para ouvir e contribuir com as minhas ideias ainda iniciais para este mestrado. A Carlos Pinto que competentemente me ajuda a repensar e reconstruir o meu “eu” fazendo com que eu siga sempre em frente. À Karine por saber avaliar meu corpo nos momentos de maior tensão, permitindo que os exercícios físicos me fortalecessem nos longos momentos de escrita, sem dores e maiores intervenções. À Rosa, amiga querida dos momentos de reconstrução. As amigas do pilates por me incentivarem nos períodos de dor e de fraqueza. A Carlos Alberto (in memoriam), meu amigo e fiel escudeiro, das andanças por todo o Calabar em qualquer momento, fosse sol ou chuva, dia ou noite. À equipe da Avante por acreditar em mim e nas minhas idéias e pelo espaço contínuo de aprendizagem e incentivo. Ao querido Professor Meirelles pelas leituras e comentários sempre pertinentes. À Bárbara, Arlete, Camila, Edilene, dona Bernadete, Priscila, Cristiene, Eliene, Arlete Amorim e Ciba, meus agradecimentos pela acolhida e confiança e pela oportunidade de aprender muito com cada um, cada história, cada vida, cada caminhada. À Andrea Luz pelo companheirismo e cumplicidade por todo o trabalho desenvolvido no Projeto Grãos. À Clarice Valladares pelo segundo olhar sempre carinhoso e muito atento sobre a escrita. À Maria Teresa Ribeiro, orientadora competente, segura e cuidadosa, ensinando a confiar no outro e em si próprio. À Cíndia, assistente do Grãos, que soube apoiar com presteza e agilidade todas as demandas do Projeto.


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- Dói-te alguma coisa? - Dói-me a vida, doutor. - E o que fazes quando te assaltam essas dores? - O que melhor sei fazer, excelência. - E o que é? - É sonhar. Mia Couto, 2009.


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NEVES, Fabiane Brazileiro Paranhos. Do grão à colheita? Reflexões críticas sobre um projeto de investimento social privado no Calabar. 98 f. 2011. Dissertação (Mestrado) – Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.

RESUMO

Esta pesquisa, de caráter qualitativo, tem como objetivo compreender em que medida os investimentos privados podem favorecer a inserção social das mulheres participantes do Projeto Grãos: Cultivando em Parceria para Colher Autonomia, realizado pela Avante ONG, financiado pelo Instituto Walmart e desenvolvido na comunidade do Calabar, em Salvador, Bahia. Busca-se, a partir de uma leitura crítica, com base em conceitos como responsabilidade social empresarial e o papel do Estado e das ONGs frente às ações sociais financiadas com recursos privados, refletir sobre a efetividade destas ações. As atividades do Projeto Grãos voltadas para o fomento e criação de grupos produtivos na comunidade do Calabar são a base para as reflexões sobre a parceria entre ONG e empresa privada, sem nenhuma interface com o poder público local na perspectiva de sua continuidade. Estas ações são desvinculadas das políticas públicas que poderiam assegurar a inclusão cidadã de comunidades como o Calabar. Para esta pesquisa foram feitas entrevistas semi-estruturadas com os principais atores envolvidos no Projeto Grãos: as mulheres dos grupos produtivos, o líder comunitário, consultores da Avante e a coordenação do Instituto Walmart. Com base nos resultados pode-se compreender que Projetos como o Grãos geram transformações pontuais ao seu público direto, entretanto, sem a parceria com o Estado, os investimentos privados apenas mitigam as desigualdades sociais. Concluiu-se também que é preciso intervir em questões estruturantes como os direitos fundamentais do cidadão, para que estes, conscientemente, possam criar estratégias que visem a garantia dos seus direitos.

Palavras-chave: Responsabilidade Investimento social privado.

social

empresarial.

Papel

do

Estado.

ONGs.


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NEVES, Fabiane Brazileiro Paranhos. From Grain to harvest? Critical reflections of a privity social investiment project in Calabar– Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.

ABSTRACT This research, which presents a qualitative character, aimed at understanding the extent to which private investment can promote the social inclusion of women participating in the Project Grãos: Cultivando em Parceria para colher Autonomia (Grains: Cultivating in Partnership in order to gather Authonomy), held by Avante NGO, funded by the Walmart Institute and developed at the community of Calabar, in Salvador, Bahia. From a critical reading, based on concepts such as corporate social responsibility and the role of the State and NGOs in the face of social actions financed with private resources, it intends to reflect on the effectiveness of these actions. The Project activities which aimed at encouraging and creating productive groups in the community of Calabar are the basis for reflections on the partnership between NGO and private enterprise, without any interface with the local government in view of its continuity. These actions are not linked to public policies that would ensure the citizenship inclusion of communities as Calabar. In order to develop this research, interviews were semi-structured for the key-actors involved in the Project: the women of the productive groups, the community leader, Avante consultants and the coordination of the Walmart Institute. Based on the results we can understand that projects such as that generate specific changes to their direct public, however, without a partnership with the State, private investment only mitigate social inequalities. It can also be concluded that it is necessary to intervene on structural issues such as the fundamental rights of citizens so that they can consciously create strategies to guarantee these rights.

Keywords: Corporate Social Responsibility. Role of State. NGOs. Private resources


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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

COOPS

Cooperativa Pedacinhos de Sabor

COOPERCID

Cooperativa Costurando Ideias

ISP

Investimento Social Privado

PG

Projeto Gr達os

RSE

Responsabilidade Social Empresarial


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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..............................................................................................

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2 CONTEXTUALINDO OS ATORES ENVOLVIDOS NA PROBLEMÁTICA 18 – UM BREVE RELATO................................................................................... 2.1 O PROJETO GRÃOS................................................................................

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2.2 O CALABAR..............................................................................................

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2.3 A AVANTE..................................................................................................

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2.4 O INSTITUTO WALMART..........................................................................

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3 DIALOGANDO COM OS AUTORES............................................................

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4 ORGANIZANDO O CAMINHO DA PESQUISA............................................

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5 DIALOGANDO COM OS ATORES..............................................................

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6 CONCLUSÕES............................................................................................

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REFERÊNCIAS...............................................................................................

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1 INTRODUÇÃO

Acho que só tem um jeito pra gente tratar desse assunto: É reunindo todo o povo botar todo mundo junto ir conversar com o prefeito e cobrar nosso direito que vem sendo enrolado muito.1

Na busca por compreender melhor os resultados das ações de natureza privada em áreas públicas, tomo como ponto de partida o Projeto Grãos – Cultivando em parceria para colher autonomia (PG) - desenvolvido pela Avante – Educação e Mobilização social, ONG e financiado pelo Instituto Walmart (IWM), na comunidade do Calabar. O Projeto GRÃOS acontece no Calabar, comunidade que vem estreitando os laços com a Avante, desde o ano de 2005, por meio de parcerias em diferentes projetos ligados a educação e geração de renda, como, por exemplo, a Biblioteca Comunitária do Calabar e o Consórcio Social da Juventude. Em 2005 o Instituto Walmart procurou a Avante demandando a idealização e execução de um Projeto Social, dando início, junto com outras ONGs, às atividades do Instituto Walmart no estado da Bahia. Foi nesta oportunidade que a equipe da Avante elaborou o Projeto Grãos e o desenvolveu na comunidade do Calabar com o apoio da Associação de Moradores.

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Esse cordel foi feito pelos moradores do Calabar em setembro de 1982 e retirado do livro Cala Boca

Calabar de Fernando Conceição. O autor é ex-morador da comunidade e atual professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA).


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A Avante ficou responsável por executar o projeto com o acompanhamento trimestral de uma coordenação do Instituto Walmart – organização ligada à rede Walmart de supermercados e junto à Associação de Moradores do Calabar que abraçou o projeto entendendo ser importante para a comunidade. A comunidade do Calabar, que está situada entre os bairros de Ondina, Jardim Apipema e Barra, nos anos de 1970 e 1980, fora palco de resistência e enfrentamento do poder público, mostrando uma organização comunitária coesa e coerente frente à luta por melhores condições de vida e direitos fundamentais como água encanada, luz e saneamento básico. Atualmente, o Calabar sofre com o aumento da violência, do tráfico de drogas, do desemprego e da baixa escolaridade dos seus moradores. Hoje, em virtude de disputas por pontos de drogas, há uma separação dentro da própria comunidade, afastando ainda mais os moradores de serviços públicos essenciais como postos de saúde, creches e escolas; exacerbando a violência e a exclusão social desta população. O Instituto Walmart é uma organização vinculada à rede mundial de supermercados Walmart, criado recentemente (final de 2005) no Brasil, com sedes regionais nas principais capitais onde existam lojas de supermercado de sua rede e tem por objetivo, de acordo com o Relatório de Sustentabilidade 2010 – Walmart Brasil, “[...] dar mais foco às ações de Responsabilidade Social e ao investimento social privado da empresa [...]”. A sede regional do Instituto Walmart na Bahia, então, buscou a Avante ONG para iniciar projetos na linha de geração de renda. A Avante ONG, criada há mais de 15 anos, objetiva o “[...] fomento à participação cidadã, mediante ações educativas e desenvolvimento de tecnologias e processos de intervenção social, visando à garantia de direitos sociais básicos e ao fortalecimento da sociedade civil [...]” (AVANTE..., 2010). Com o apoio do Instituto Walmart, a Avante pretendeu semear seus princípios e suas práticas, aprendendo e construindo com a comunidade da qual é vizinha, em uma parceria com vistas ao desenvolvimento humano e social dos seus participantes. As ações voltadas para o fomento e criação de grupos produtivos na comunidade do Calabar, por meio do Projeto Grãos, levaram-me a reflexões sobre a parceria entre ONG e empresa privada, sobre a inexistente interface com o poder


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público e como as ações do Projeto estavam desvinculadas de políticas voltadas para os direitos fundamentais do homem. A sociedade contemporânea é testemunha do crescimento econômico globalizado. Entretanto, vivemos numa sociedade cada vez mais exclusora e desigual. Além das guerras causadas por diferentes razões, também sofremos com doenças que vitimizam milhares de pessoas e assistimos ao aumento da violência urbana e da miséria. O capitalismo exige para sua reprodução e expansão a continuidade do processo de acumlação que se dá, fundamentalmente, pela apropriação do trabalho excedente, ou pelo lucro. Os grandes grupos econômicos, principalmente as empresas transnacionais, como o Walmart, direcionam esse processo, com a colaboração do Estado. As crises recorrentes desse modo de produção vai, a partir do anos 1990, sob a égide do Consenso de Washington – resultado de uma política americana em 1990 -, defender o nível de interferência e participação do Estado na economia. Com isso buscava-se a desregulação necessária para a mundialização do capital financeiro e a criação de novas áreas de expansão dos investimentos privados em áreas públicas antes dominadas pelo Estado (processo de privatização). Essa redução da participação do Estado e a defesa do mercado como o grande ente regulador têm como resultado a elevação das taxas de pobreza, violência, miséria, baixa escolaridade... Como consequência, pessoas com baixa escolaridade não conseguem se inserir no mercado formal de trabalho, que também vem sendo reduzido pela crescente modernização das empresas e a flexibilização do trabalho, retornando ao ciclo de miséria, desemprego, marginalidade. Nessa perspectiva, se olharmos para o governo brasileiro, veremos que este também acatou as decisões dos organismos internacionais (como o Banco Mundial, por exemplo) no que se refere às restrições financeiras provenientes do neoliberalismo e tem negligenciado o direcionamento dos investimentos, visando corrigir questões sociais estruturantes. Desta forma, cria-se terreno fértil para o crescimento de instituições da sociedade civil (ONGs, associações comunitárias, culturais e religiosas, fundações,


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cooperativas, entre outras) voltadas para as lacunas sociais existentes, mas administradas pelo setor privado. Essas organizações foram estimuladas pelos próprios organismos internacionais na perspectiva de uma parceria público-privada, ou na constituição de um terceiro setor, que atuaria mais próximo das comunidades. A discussão do papel do Estado na garantia dos direitos universais foi eliminada das agendas de discussão dessas instituições. É baseada nesse contexto que busco compreender em que medida os investimentos privados em áreas públicas podem gerar transformações na inserção social, direcionando meu olhar especificamente para o Projeto Grãos, desenvolvido pela Avante e financiado pelo Instituto Walmart na comunidade do Calabar. Tenho vivenciado diariamente, há mais de quatro anos, os encontros e desencontros não só das mulheres do Projeto Grãos, como também dos seus filhos e familiares. Essa convivência fez despertar em mim o desejo de ir mais a fundo nas questões relacionadas ao Grãos, aos atores envolvidos neste processo, à conjuntura política e social em que estamos vivendo, à consciência sobre os direitos civis, à intervenção privada em local público, às transformações sociais destas ações e à garantia destas conquistas. Fernandes (1994) convida-me ainda a refletir sobre outras questões: Se o Estado não diminui e o Mercado não sai, questiona-se: que tipo de mercado? Que tipo de Estado? Que limites para o lucro? Quão ampla a cidadania? Quanto espaço para a participação? Qual a medida da desigualdade aceitável? Quão centralizado o Estado? Assim, essa investigação buscará também refletir, dentro desse universo, a contribuição do Projeto Grãos para a inserção social das mulheres que formaram grupos produtivos no Calabar; como também refletir sobre o limite entre as parcerias público e privada sem o envolvimento direto do poder público na perspectiva da continuidade destas ações. Trabalho com/pelo/para o Calabar há anos, o que me faz ser conhecida e conhecer múltiplas histórias e diferentes pessoas. Algumas dessas histórias fizeram parte da teia da pesquisa e serão apresentadas nesse documento, outras tantas


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histórias, quem sabe um dia serão publicadas por mim e pelos próprios moradores; um antigo desejo meu e de alguns alunos, jovens “calabenses”. Fazer parte do universo investigado me implica muito mais do que qualquer outra análise de um objeto totalmente novo para o pesquisador. Todavia, assumo consciente os limites e os desafios desta pesquisa, reconhecendo que as análises aqui concebidas servirão como reflexão sobre a ação; não só no próprio andamento do Projeto Grãos, como na futura interface com diferentes atores de uma nova intervenção. O mestrado profissional sugere um projeto-dissertação; um estudo que envolve o seu fazer profissional. Dessa forma, o objeto e o pesquisador se entrelaçam ao abordar o mundo real, e procurar entender os fenômenos sociais dentro da prática profissional. Esta pesquisa reflete diretamente o meu trabalho desenvolvido no Calabar, portanto serei tanto participante quanto observadora do objeto em estudo. Ao invés de uma visão linear e unilateral serão considerados todos os saberes. Desse modo, não há como, no ato de pesquisar, libertar-se dos valores que dão sentido a prática em geral e à minha prática. A escolha metodológica de trabalho que orientou este estudo ocorreu na perspectiva de que “a pesquisa é conduzida frequentemente por estudiosos que são ao mesmo tempo participantes subjetivos na comunidade em estudo e observadores objetivos daquela fonte” (ANGROSINO, 2009, p.34). A dissertação-projeto implica, ao meu ver, uma reflexão permanente sobre a ação, olhando “duas vezes o mesmo objeto sob ângulos diferentes. É o espírito mesmo da multireferencialidade. [...] Assim, na ação, o pesquisador passa e repassa seu olhar sobre o „objeto‟, isto é, sobre o que vai em direção ao fim de um processo realizando uma ação de mudança permanente” (BARBIÉ, 2007).

No meu caso, após a pesquisa, ainda estarei no campo observando e dando continuidade às ações do Projeto Grãos; buscando equilibrar os resultados desta investigação com a realidade árdua da comunidade do Calabar.


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Os temas que envolvem esta pesquisa, como Responsabilidade Social empresarial (RSE), Investimento Social Privado (ISP), dentre outros, começam a fazer parte das agendas de pesquisa das universidades e das próprias entidades da sociedade civil envolvidas. Acredita-se que as reflexões levantadas neste estudo podem gerar conhecimentos significativos para a contínua discussão acadêmica contribuindo com a visão dos diferentes atores envolvidos, assim como com os resultados obtidos por meio desta análise. Para esta investigação, escolhi fazer entrevistas semi-estruturadas com os principais atores envolvidos no Projeto Grãos: as mulheres dos grupos produtivos; o líder comunitário, diretor da Associação de Moradores do Calabar, que acompanhou o desenvolvimento do Projeto desde o início; três consultores da Avante ligados diretamente ao Projeto Grãos e membros do Setor de Desenvolvimento Institucional; e a coordenação do Instituto Walmart responsável pelo acompanhamento e pelo investimento dos recursos privados. Na fundamentação teórica, reflito sobre os temas da pesquisa como Responsabilidade Social Empresarial, ONGs, o papel do Estado, o frágil equilíbrio entre o público e o privado, à luz de teóricos como Gilberto Dupas, Maria da Glória Gohn e Maria Célia Paoli. A análise das entrevistas contém as ideias e entendimentos dos diferentes atores envolvidos no Projeto Grãos como as mulheres que compõem os grupos produtivos do Calabar, o líder comunitário local e três representantes da Avante ONG. Embora o Instituto Walmart não tenha respondido às perguntas da entrevista, esta ausência é comentada na análise, assim como os conceitos desse Instituto constantes, no Relatório de Sustentabilidade oferecido em “troca” da entrevista. Por fim, nas linhas da conclusão, debruço-me sobre os resultados deste estudo com um pensamento crítico sobre todo o caminhar do Projeto Grãos: seus pontos positivos, os desafios e as muitas aprendizagens advindas desta ação. Para além deste estudo, fica a vontade de, um dia, quem sabe, nos encontros de Aprendizagem Organizacional da Avante ONG, fomentar a discussão sobre os investimentos privados advindos de projetos que visam amenizar as


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disparidades sociais sem intervir em questões estruturantes como os direitos fundamentais do cidadão e sobre o papel do Estado na continuidade destas ações.


2 CONTEXTUALIZANDO OS ATORES PROBLEMÁTICA – UM BREVE RELATO

ENVOLVIDOS

NA

Cada ator envolvido na problemática também está, por sua vez, imerso no seu contexto com suas particularidades, sua história e trajetória de cada um. Assim, contextualizo concisamente o Projeto Grãos, a comunidade do Calabar, a Avante e o Instituto Walmart para apoiar no entendimento da problemática pesquisada.

2.1 O PROJETO GRÃOS A primeira fase do Projeto Grãos foi iniciada em dezembro de 2006 e terminou em dezembro de 2008. Inicialmente o Projeto Grãos tinha como objetivo formar uma central de prestação de serviços gerenciada pelos próprios moradores do Calabar, assim como qualificar profissionalmente cerca de 180 pessoas nas áreas de alimentação, corte e costura, paisagismo e jardinagem e elétrica predial. O público alvo eram 90 jovens de 18 a 25 anos e 90 familiares, preferencialmente dos jovens participantes, sem limite de idade. Como desdobramento do objetivo principal foram realizadas atividades com as famílias, com os jovens e as qualificações profissionais. Os encontros de Família, assim denominados, tinham uma regularidade semanal e objetivavam mobilizar e qualificar socialmente as famílias mediante acesso à informação para o desenvolvimento de atitudes e habilidades necessárias ao cuidado, proteção e educação de seus filhos, assim como informar sobre os direitos sociais e deveres das famílias e dos mecanismos institucionais que lhes permitiam exercê-los.


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As atividades com os jovens, coordenadas por uma psicóloga, objetivavam formar 20 jovens líderes, possibilitando atuação transformadora do contexto em que viviam, mediante a realização de ações voluntárias e da inserção dos jovens em redes de articulação da juventude. Como primeiro passo, a Avante, junto com a Associação de Moradores do Calabar convocou uma assembléia Geral para ouvir os moradores sobre as atividades empreendedoras já existentes e aquelas que poderiam gerar renda para a comunidade. O encontro foi frustrante, pois além de poucos membros da diretoria da Associação apareceram apenas cinco jovens para a discussão sobre as capacitações profissionais. De qualquer forma, os presentes foram ouvidos e, a partir deste encontro escolheu-se as áreas de: alimentação, corte e costura, elétrica predial e paisagismo e jardinagem para formarem a central de prestação de serviços. Por meio da rádio comunitária, da Associação de Moradores, da Biblioteca comunitária e de cartazes e faixas os moradores foram mobilizados a participarem da apresentação do Projeto seguida de inscrição para os cursos oferecidos. Foi neste período que me inseri como coordenadora do Projeto Grãos. Já no encontro de apresentação e esclarecimento do Projeto, muitas pessoas desistiram ao tomar conhecimento do objetivo de formar uma central de prestação de serviços, que seria alimentada por grupos associativos nas áreas de alimentação, corte e costura, elétrica predial e paisagismo e jardinagem. Todavia, as turmas foram compostas de acordo com a demanda: 20 participantes de paisagismo e jardinagem; 45 interessados em elétrica predial, 45 em corte e costura e 60 em alimentação. As aulas foram realizadas pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai-Cimatec). Contudo, a presença começou a oscilar desde as aulas de qualificação profissional. Atribuímos a isso alguns fatores: o nível de escolaridade dos participantes era muito abaixo dos requisitos necessários para os cursos, principalmente os de costura e elétrica predial onde noções básicas de matemática se faziam indispensáveis; a maioria nunca tinha trabalhado nas atividades afins; o projeto não repassava recursos individuais para os participantes, como uma bolsa auxílio, por exemplo – encaminhamento dado a todos os programas federais dos


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quais os moradores do Calabar participaram (Consórcio Social da Juventude, ProJovem etc.); havia grande dificuldade na relação interpessoal – algumas pessoas tinham que conviver, muitas vezes, com vizinhos “inimigos”, desafetos de outrora ou não conseguiam conviver com discordâncias surgidas nos encontros. Como ampliação cultural eram realizados bimestralmente os “Encontrões”, momentos onde todos estavam juntos para a troca de experiência, convivência coletiva, discussões acerca dos empreendimentos coletivos e avaliação das ações do Projeto. Foram feitos encontros na Biblioteca Central dos Barris – Sala Walter da Silveira, Estação de trem da Calçada, Parque Mundo Verde – Lauro de Freitas, Espaço UNISER, dentre outros. Os encontros de Família abrangiam a todos os adultos do Projeto e aos jovens que também já eram pais. Esta ação complementar se fazia importante para a nossa equipe, por entendermos o lugar que as famílias ocupam na vida dos jovens e a possibilidade de fortalecer os vínculos familiares e as relações comunitárias. Desse modo, as oficinas buscaram ampliar as informações e os conhecimentos das pessoas de modo a fortalecer a sua compreensão sobre o mundo, sobre sua comunidade e, sobretudo em termos do seu papel na família, na perspectiva da formação dos jovens como pessoa e como cidadãos. Para tanto, foram criados espaços de reflexão e de troca de experiências entre os participantes, trabalhando seus valores, atitudes e comportamentos, através da análise de temáticas relativas às competências familiares, focando especialmente os desafios enfrentados na educação dos filhos, na convivência do casal, nas relações de vizinhança, e seus efeitos no enfrentamento dos problemas do dia a dia na vida em sociedade. Após a qualificação técnica muitos resolveram seguir por conta própria com o apoio do certificado do curso técnico – o que entendemos ser um resultado alcançado não esperado. Com os grupos já diminutos e após a qualificação técnica começou-se a discutir os aspectos do associativismo. Nesse período, com a necessidade de se definir a produção e fazer o estudo de viabilidade econômica de cada grupo, a evasão novamente abateu-se nos grupos.


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O grupo de jardinagem não chegou a discutir nem o estudo de viabilidade econômica. Os jovens que escolheram essa área se deram conta que não tinham nenhuma afinidade com a terra e o grupo foi desfeito ainda na Etapa I do Projeto Grãos. O

grupo

de

elétrica,

apesar

de

ter

discutido

a

viabilidade

do

empreendimento desarticulou-se cedo. Apenas 3 ou 4 integrantes levaram a diante a ideia de formar uma cooperativa. Entretanto, dois foram absorvidos pelo mercado formal, um montou uma lanchonete e o terceiro que já tinha problemas com o alcoolismo, se entregou ao vício com a desculpa de que “o bolsa-família” cobriria a parte dele nas despesas da casa, uma vez que a mulher seguia trabalhando. Já os grupos de costura e alimentação se mantiveram na firme proposta de formarem um empreendimento produtivo. As meninas de costura deram ao grupo o nome de Cooperativa Costurando Ideias (Coopercid) e as meninas de alimentação batizaram de Cooperativa Pedacinhos de Sabor (Coops). Os encontros da Associativismo levaram-nas a pensar e a definir temas importantes para o desenvolvimento do empreendimento, como por exemplo: regimento interno, atuação produtiva, funcionamento dos grupos, papéis a serem assumidos, responsabilidades... Novamente vimos aumentar ainda mais a evasão. As mulheres da Coops, então contando com 5 integrantes, logo conseguiram identificar um local para funcionar a cozinha do grupo. A Sociedade Beneficente e Recreativa do Calabar (SBRC) - cedeu um espaço no amplo prédio da sede para o funcionamento da Coops. Como o Projeto Grãos previa recursos para a instalação dos empreendimentos foi o primeiro espaço a ser concluído. Já o grupo de costura levou mais tempo para identificar um espaço que permitisse colocar as máquinas de costura, uma mesa de corte e todos os aviamentos necessários à produção. Entretanto, também conseguiram junto à SBRC o espaço construído pelo do antigo Juventude Unida do Calabar (JUC) - e àquela época abandonado por falta de conservação e cuidados. Diferente do grupo de cozinha, este terminou a primeira etapa do Projeto Grãos com 10 participantes. Com o apoio de um avaliador externo, o Projeto Grãos foi sofrendo mudanças significativas ao longo da sua trajetória. A ideia da Central de Prestação


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de Serviços foi desfeita e passou-se a objetivar a formação de grupos produtivos dentro do viés associativo e cooperativo, uma vez que só se concretizaram os grupos de alimentação e costura. Algumas aprendizagens ficaram da primeira etapa do Projeto Grãos: os participantes foram convidados para uma forma de trabalho associativo a qual possuem pouca ou nenhuma referência; o trabalho está relacionado na maioria das vezes ao emprego assalariado ou por conta própria, o que dificultou o entendimento da “cultura” associativa; a luta pela sobrevivência cotidiana dos participantes envolvidos no Projeto dificulta a permanência dos mesmos nas atividades de formação dos empreendimentos; a ausência de capital de giro imprescindível para o início de um empreendimento foi negada pelo financiador; não há um sistema de financiamento adequado aos empreendimentos associativos populares. Com base nestas aprendizagens e na necessidade de consolidação dos empreendimentos formados no Calabar a partir do Projeto Grãos, a equipe da Avante concorreu novamente ao edital do Instituto Walmart com vistas a apoiar os grupos já existentes. A segunda etapa do Projeto Grãos, que até o término desta pesquisa ainda estava em curso, visou apoiar os empreendimentos na formação técnica, no apoio psicológico aos grupos formados e no financiamento de insumos para as produções iniciais. Para tanto, além da qualificação técnica e dos insumos, uma psicóloga, juntamente comigo, acompanhava o desenvolvimento sócio-afetivo de cada grupo. Nesta etapa foram feitas parcerias com a Incubadora Tecnológica de Cooperativas (ITCP) da Universidade Católica do Salvador (Ucsal) – no que diz respeito à continuação dos estudos de viabilidade econômica dos empreendimentos. Entretanto, a ITCP/Ucsal conseguiu dar apoio apenas ao grupo de costura por estar mais amadurecido e preparado para as questões econômicas consequentes do estudo. O grupo de cozinha por diversas razões não acolheu o apoio dado pela ITCP/Ucsal desistindo das orientações sobre o estudo de viabilidade econômica da COOPS. Além da parceria da ITCP/Ucsal os grupos foram incentivados a procurar a Centro Público Estadual de Economia Solidária (Cesol) – órgão do Governo do Estado que se propõe a apoiar os grupos produtivos no Estado da Bahia. Contudo,


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ao ser requisitado pelos grupos do Calabar, a Cesol apenas avaliou os grupos como muito amadurecidos para as atividades produtivas e ofereceu um apoio jurídico nas questões que aparecessem nesta área. Atualmente a Coopercid tem seis integrantes fixas no seu quadro de trabalhadoras, todas oriundas da primeira etapa do Projeto. Este grupo é o mais amadurecido, apesar das diferenças no que se refere à qualificação técnica. Tem entendimento da vivência associativa e busca estratégias para se manter mesmo depois do término do apoio do Instituto Walmart. Já se inseriram nos encontros do Fórum Baiano de Economia Solidária e em uma Rede de Cooperativas de Costura de Salvador. A Coops conta com quatro integrantes, sendo 3 novas e apenas uma integrante oriunda da antiga formação. Por ser um grupo “novo” tem dificuldades ainda de criar vínculos umas com as outras; apresentam dificuldade para entender o estudo de viabilidade do empreendimento, apesar de terem uma receita muito maior que o grupo de costura por ser uma atividade alimentícia com fácil saída no próprio mercado da comunidade. Por isso, muitas vezes não conseguem pensar o empreendimento como negócio, dividindo o lucro sem deixar recursos para os insumos, a depreciação de equipamentos e outros gastos inerentes à atividade desenvolvida. É sabido que o Projeto Grãos tem um espaço fecundo de possibilidades de análises e estudos. Todavia, apresentado um breve relato sobre o desenvolvimento do Projeto, esta pesquisa se deterá em analisar a inserção social das mulheres do Projeto Grãos na perspectiva dos financiamentos privados de projetos sociais sem o apoio do Estado com relação à continuidade das ações realizadas.

2.2 O CALABAR De acordo com Conceição (1986), a origem do nome desta comunidade remete a região do sul da Nigéria, também denominada Calabar - de onde alguns escravos desta área foram trazidos para a Bahia. Aqui chegando, conseguiram fugir e se refugiaram justamente na faixa de terra onde hoje situa-se a comunidade do


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Calabar. Nesta zona, os ex-escravos formaram um quilombo, local de resistência dos negros contra os escravocratas. O local era conhecido como o Quilombo dos Kalabari, esta a denominação dos nascidos no Calabar nigeriano. Ainda de acordo com Conceição (1986), a comunidade do Calabar começou a ser formada no final da década de 40, não se sabendo ao certo quando iniciou essa ocupação de fato e quem deu começo ao desbravamento do pântano e do matagal da região. Ao final dos anos 60 houve um crescimento populacional no Calabar proveniente da expulsão dos moradores de comunidades dizimadas pelas ações do governo municipal que tinha à época, Antônio Carlos Magalhães como prefeito. Nesta época, [...] diversas “invasões” próximas ao Calabar cederam lugar às ambições políticas administrativas do prefeito, que no lugar dos barracos passou o trator para abrir estradas ou construir imponentes hotéis cinco estrelas, como fizeram com a invasão “Bico de Ferro”, na Ondina. A partir daí passou a ser freqüente o medo do pessoal do Calabar de perder também a comunidade que eles mesmos construíram com as próprias mãos, vencendo o matagal virgem e as adversidades climáticas. Uma outra comunidade de gente proletária que circunvizinhava o Calabar – o bairro do Mirante – também nessa época cedeu às investidas de algumas imobiliárias, que ali – sob financiamento do BNH – construíram enormes conjuntos habitacionais para a classe média ou venderam lotes de terra para construções nobres – e, de Mirante, o local passou a se chamar Jardim Apipema. (CONCEIÇÃO, 1986, p. 22, grifo do autor)

Ao acabar com o Mirante, a prefeitura e as imobiliárias também desmobilizaram um centro comunitário e recreativo, onde se faziam “[...] grandes bailes dançantes e ensaiavam uma escola de samba para desfilar no carnaval – que era a alegria de muita gente do bairro [...].” (CONCEIÇÃO, 1986, p. 23). Para o autor, uma das desvantagens do Calabar era a sua localização: “[...] um vale em depressão, encravado entre o Jardim Apipema, Graça, Campo Santo e Alto das Pombas”. Por conta dessa localização e do fato de não ter saneamento básico, quando chovia muito juntava-se ao grande córrego que se formava no meio do Calabar, velas, flores plásticas e pedaços de esqueletos que vinham das covas do Cemitério do Campo Santo. Com a falta de infra-estrutura básica, a saúde era uma grande preocupação e vitimava a todos em função da vala de esgoto aberta no centro da via principal de


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acesso à comunidade. Muitas crianças, idosos e adultos caíam nas valas abertas e se contaminavam pelas doenças provenientes do esgoto a céu aberto. Para atravessar de um lado para o outro os moradores colocavam pedaços de madeira que serviam de pontes. Era comum as crianças caírem nas valas por onde escorriam fezes e outras sujeiras e daqui que alguém as retirasse de lá, engraçadamente emporcalhadas, muita água fétida e lama negra era ingerida por elas. Assim alguns pais olhavam o filho inchado e de barriga grande e pensavam: “Como meu filhinho está gordinho!”. (CONCEIÇÃO, 1986, p.17, grifo do autor)

A essa época, conforme Conceição (1986), a comunidade vivia como uma irmandade. Todos se conheciam, se ajudavam, eram mais que simples vizinhos: amparavam uns aos outros como irmãos, amigos, vindos de uma mesma família. Este clima de entrosamento e o “esquecimento” por parte das autoridades governamentais permitiu a mobilização política da comunidade. Nas assembléias de bairro as pessoas (mesmo com baixa ou nenhuma escolaridade) se manifestavam dando ideias, sugerindo táticas de luta, discutindo com maior clareza qualquer assunto trazido à baila, fosse como consertar uma ponte de madeira numa rua, ou fosse sobre os conceitos que regem as leis no país (CONCEIÇÃO, 1986). Foi essa mobilização comunitária que possibilitou aos moradores do Calabar serem ouvidos pelas autoridades. Antes disso, tiveram que fazer protestos nas ruas, chamando a atenção dos meios de comunicação e assim possibilitando o diálogo entre a comunidade e o Município, liderado à época pelo Prefeito Mário Kertész. Ainda nesta época, por volta de 1982, os líderes da comunidade buscavam também a legalização dos terrenos do bairro. Vale ressaltar que ainda hoje se tramita pela Prefeitura de Salvador essa legalização. As propostas da então Prefeitura de Salvador não atendiam às necessidades do local e por isso, cada vez mais a luta comunitária foi crescente e mais incisiva na cobrança do Estado. Muitos líderes foram presos. Saiu prefeito e entraram outros. Entretanto, apesar do confronto direto com o Poder Público, ainda amargaram muito tempo para terem de fato alguns dos seus direitos básicos (água, luz e esgoto) garantidos.


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O barraco de madeira onde se instalava a Associação de Moradores do Calabar deu espaço para uma enorme construção de dois andares onde seria a sede, teria espaço para as reuniões que eram feitas com os moradores sob sol e chuva, espaço para a padaria comunitária e outros projetos de desenvolvimento local. É oportuno dizer que essa construção foi financiada com recursos privados da Fundação José Silveira. Há quem diga que de lá para cá, pouca coisa mudou. Há luz elétrica, água e esgoto encanado – prioridades alcançadas pela luta dos moradores nos anos de 1970 e 1980. Foi construído um Posto de Saúde e uma creche. A Escola Comunitária continua aberta, apesar da precariedade. Com o apoio de recursos privados está em funcionamento a Coops, a Coopercid e a Biblioteca Comunitária. O Calabar continua resistindo às pressões imobiliárias cada vez mais fortes. A área do antigo “Mirante” hoje se consolidou no bairro do Jardim Apipema, que cresce com seus prédios de luxo. O Posto Policial foi desativado. A coleta do lixo ainda é insuficiente. A violência aumentou significativamente. O tráfico de drogas atualmente divide a comunidade em duas: a “Bomba” e o “Camarão”. As famílias não vivem mais sossegadas com seus filhos na rua. As pessoas ainda sofrem o preconceito de morarem no Calabar: bairro violento e marginalizado. Muita coisa mudou.

2.3 A AVANTE A Avante ONG nasceu em 1991, como um grupo de profissionais das áreas de Educação, Psicologia, Ciências Sociais e Administração que se propôs a desenvolver estudos e executar ações nas áreas de educação, comportamento humano

e

processos

grupais,

estabelecendo

parcerias

com

instituições

governamentais, empresas, associações e sindicatos. Em Maio de 1996, como resultado do desenvolvimento e ampliação do seu trabalho e do exercício de diversas parcerias, estruturou-se como uma organização social sem fins lucrativos. A Avante tem como missão o fomento à participação cidadã, mediante ações educativas e desenvolvimento de tecnologias e processos de intervenção


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social, visando à garantia de direitos sociais básicos e ao fortalecimento da sociedade civil. De acordo com a visão da organização, esta é uma Instituição reconhecida pela qualidade do seu trabalho em educação e mobilização social, pela adoção do princípio e da prática do saber construído coletivamente e por sua capacidade de reunir competências, articular parcerias e atuar em rede (AVANTE..., 2010). Ainda de acordo com o Perfil Institucional da Avante, os valores desta Instituição estão pautados na crença de que o saber é instrumento fundamental para o desenvolvimento do indivíduo como ser autônomo e competente e para o desenvolvimento do grupo como espaço de transformação e crescimento. Também acredita que a construção do saber se dá coletivamente na confrontação e integração dos opostos e das contradições da realidade, tendo como resultados aprendizagens, mudanças e o exercício da cidadania ativa e que uma nação se constrói através de uma educação com qualidade para todos – crianças, jovens e adultos. Busca permanentemente a qualidade do trabalho, realizado com competência, consciência crítica, autonomia, espírito de inovação e efetividade e defende a responsabilidade social como um dever de todos, pessoas e instituições, traduzida em ações que contribuam para a integração, o acesso aos bens sociais e culturais, a qualificação pessoal e profissional, o exercício e a defesa dos direitos e a construção da cidadania. A Avante se estrutura atualmente em dois núcleos: o de Projetos e o de Desenvolvimento Institucional. Ligado ao Núcleo de Projetos estão quatro Linhas Programáticas: Linha Programática Melhoria da qualidade da Educação, Linha Programática Expansão Cultural, Linha Programática Trabalho, Emprego e Renda e Linha Programática Fortalecimento da Família e Participação Cidadã. O Núcleo de Desenvolvimento Institucional coordena por sua vez, quatro setores: Setor de aprendizagem Organizacional, Setor de Comunicação e Memória, Setor de Captação de Recursos e Setor de Articulação e Mobilização comunitária. Há ainda a Presidência, a Vice-Presidência, o Conselho Consultivo e o Conselho Fiscal. Para contribuir com a integração das ações desses núcleos conta com um Conselho Técnico formado pelas coordenações dos núcleos, pelos responsáveis pelos setores e pelas linhas programáticas (AVANTE..., 2010). É oportuno dizer que


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ao terminar esta pesquisa a Avante encontra-se discutindo e reordenando sua estrutura organizacional, em assembléias com todos os seus membros integrantes. Dentre os projetos que a consolidam como uma organização atuante e respeitada no cenário nacional, destacam-se: a) o projeto “Adolescente por uma Escola Melhor”, que envolveu mais de 165 mil jovens de todo o país em ações educativas, com o objetivo de prepará-los para concorrerem ao Prêmio Fundação Odebrecht/Unicef, em 1995. Este foi um projeto, de âmbito nacional, na área de educação; b) o projeto de capacitação para o Controle Social da Aplicação de Recursos Públicos Federais, em parceria com a Controladoria Geral da União, que deu origem ao Programa “Olho Vivo no Dinheiro Público”. Este foi um projeto de mobilização social que envolveu mais de 5800 agentes públicos, conselheiros e lideranças municipais, durante os anos de 2004 a 2006. Foi apresentado no IX Congresso Internacional Del CLAD sobre Reforma do Estado e Administração Pública, que aconteceu em Madrid, na Espanha, entre os dias 2 e 5 de novembro de 2004; c) o Consorcio Social da Juventude, projeto em que a Avante atuou como entidade âncora , coordenando e acompanhando o trabalho de 18 outras organizações executoras, que promoveram oficinas de qualificação social e profissional para o Primeiro Emprego. Este projeto realizado em 4 edições (2004, 2005, 2006, 2007) foi implementado mediante a parceria com o Ministério do Trabalho e Emprego e beneficiou cerca de 6.500 jovens de Salvador e Região Metropolitana, com idade entre 16 e 24 anos. Minha história com a Avante começou em 1995 quando, então professora do Colégio 2 de Julho participei de encontros de formação pedagógica elaborados pela Avante. Foi por meio do estudo que me aproximei desta Instituição. As discussões sobre a autonomia do sujeito aprendiz, a psicogênese da língua, o papel do professor, a leitura dos implícitos através da linguística textual; o mundo libertador de Paulo Freire e outros tantos pensadores sobre educação estreitaram meus laços ainda mais com a Avante. Fui convidada a participar de trabalhos pontuais como professora, em distintos projetos realizados pela Avante. A partir desta experiência com públicos diferentes do que eu havia trabalhado até então fui resignificando meu olhar e ampliando a minha própria visão do mundo. Inserida no mundo da Gestão Social fui


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vivenciando suas necessidades e desafios. A experiência com os projetos foi assumindo um lugar expressivo na minha vida. Os desafios diários do Projeto Grãos levaram-me à busca pelo conhecimento acadêmico. Eram muitas as perguntas que brotavam no dia-a-dia do trabalho com o Projeto Grãos. Mesmo com todo o apoio da equipe da Avante, também para a Instituição era nova a experiência do Projeto Grãos. O mestrado em Desenvolvimento e Gestão Social foi mais um suporte que busquei para continuar a desenvolver o trabalho com o Grãos. O estudo acadêmico trouxe-me muitas indagações, análises críticas sobre o meu próprio trabalho, sobre o papel que desempenhava como Avante, sobre o meu fazer. Também me arrefeceu o espírito quando pude perceber que as trilhas e o caminho que estava percorrendo seguia por veredas coerentes e emancipatórias. A Avante tem aprendido junto comigo e eu junto com a Instituição.

2.4 O INSTITUTO WALMART O Instituto Walmart é uma Instituição nova, tanto na Bahia quanto no cenário nacional. Está vinculada à cadeia de supermercados Walmart que hoje representa dentre outras, todas as lojas da Rede Bompreço e Hiper Bompreço no país. O Instituto Walmart foi criado em 2005 e, de acordo com o Relatório de Sustentabilidade 2010 - Walmart Brasil, “[...] com o objetivo de desenvolver comunidades locais através de investimento social em projetos de geração de renda, profissionalização de jovens, desenvolvimento local e valorização cultural [...]” (INSTITUTO WALMART, 2010). Sua missão é “promover o autodesenvolvimento para as pessoas viverem melhor”

e

seus

valores

se

fundamentam

na

prática

da

promoção

do

“desenvolvimento social, econômico e cultural, por meio de programas que valorizam a cultura e a história das comunidades com o objetivo de preservar e reforçar a identidade cultural do país” (INSTITUTO WALMART, 2010). Para o Instituto Walmart sua prioridade é “investir em ações de fortalecimento e impulso social, não em ajudas pontuais ou de caráter


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assistencialista, uma vez que acreditam na capacidade dos indivíduos e das comunidades de ser protagonistas de suas próprias mudanças” (INSTITUTO WALMART, 2010). No final de 2007, tornaram-se uma organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP) e ampliaram a atuação. Já foram financiados pelo Instituto Walmart 63 projetos sociais, com cerca de 15 mil pessoas diretamente beneficiadas.


3 DIALOGANDO COM OS AUTORES

O século XX foi marcado por conflitos étnicos, religiosos, guerras, doenças que

se

alastram

velozmente,

violência

urbana,

drogas

e

principalmente

desigualdade social. Muita riqueza foi gerada, mas concentrada nas mãos de poucos. É evidente, hoje, a falta de equilíbrio entre transformação produtiva e equidade social, competitividade e coesão social, eficiência e solidariedade, crescimento e distribuição de resultados (SCHOMMER, 2000). O mundo globalizado nos leva a consumir cada vez mais, a pensar individualmente, a competir sem critérios e ética, a menosprezar os problemas sociais, a renegar a luta por uma sociedade mais justa, igualitária e democrática. Neste sentido, Dupas (2003) elucida que: o exercício da democracia é a luta permanente dos sujeitos contra a lógica dominante dos sistemas. No entanto, o espaço da liberdade está se reduzindo progressivamente a um ato de consumo. A internacionalização das mídias e o progressivo rompimento do delicado equilíbrio de fronteiras entre Estado, sociedade civil e indivíduo fazem a prática dessa liberdade dissociar-se cada vez mais da ideia de compromisso com sua sociedade e seu meio cultural. A democracia passa, assim, a ser ameaçada em duas frentes principais: o individualismo extremo, que abandona a vida social aos aparelhos de gestão e aos mecanismos de mercado; e a desagregação das sociedades políticas e civil. Ainda de acordo com o autor, o conceito de sociedade se transforma numa figura híbrida em que os interesses privados adquirem uma importância pública, mostrando ser um fenômeno da modernidade que aparece junto à constituição do Estado-nação e à emergência do capitalismo. O autor esclarece que as funções do Estado se expandiram no domínio privado e na vida cotidiana com o desgaste do


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limite entre Sociedade Civil e Estado assim como entre os espaços públicos e privados. Nessa direção, vale lembrar que essa mudança ocorreu durante a transição do capitalismo liberal burguês para o capitalismo de Estado, oportunizando o aparecimento de ideais políticos privatizantes. O cidadão foi empurrado para a posição de espectador e consumidor passivo, e a esfera pública passou a ser dominada pela manipulação midiática das elites (DUPAS, 2003). No âmbito internacional (sec. XIX), alguns fatores interrelacionados facilitaram a hegemonia do capital: a adoção do padrão ouro; o ajuste do sistema de crédito à economia capitalista global; a separação dos meios de consumo dos meios de produção e a divisão internacional do trabalho. Mesmo a economia americana tendo passado por várias crises financeiras, principalmente após a Guerra Civil, os Estados Unidos chegaram ao final do século XIX como a maior economia industrial do mundo, tornando-se poderoso competidor nos mercados de alimentos, matérias-primas e manufaturas; graças à posição de grande exportador de matérias primas e alimentos e também por contar com um centro financeiro e de negócios como Nova York (Wall Street), que garantia o investimento de alto risco em novos setores e a centralização rápida de capitais garantindo, assim, a expansão capitalista e o fortalecimento industrial do país (TAVARES; BELLUZZO, 2005) De acordo com Harvey (1989), a recessão de 1973 exacerbada pelo choque do petróleo, retirou o mundo capitalista da estagnação na produção de bens e da alta inflação de preços, pondo em prática um conjunto de ações que abalaram o compromisso fordista com o bem-estar social. Essas ações partiram de toda a ordem: social, econômica e política – criando a flexibilidade no processo de trabalho, nos mercados, nos padrões de consumo, na inovação comercial, tecnológica, organizacional e principalmente financeira. É sabido que a alteração nos padrões de produção, nos sistemas de gestão e na utilização da mão-de-obra no mundo contemporâneo fornece a base para a


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hegemonia das grandes nações e a concentração de riqueza nas mãos de grandes corporações. Ao utilizar a grande oferta de mão-de-obra barata concentrada nos países periféricos, as empresas transnacionais não necessitam deslocar os trabalhadores e, consequentemente, deixam também em seus países de origem seus problemas sociais, desobrigando-os de arcar com as infinitas necessidades de bem-estar social. Além do mais, conseguem obter vultosos lucros incorporando o baixo valor da mão-de-obra no custo do produto final. Essas experiências acarretaram múltiplas desigualdades, tanto entre setores, como entre regiões no âmbito mundial (desemprego, pobreza, surgimento de novos bolsões de miséria, subcontratações na relação do trabalho...). A globalização e a volatilidade do capital criaram elites que controlam o capital financeiro e as informações. Dessa forma, o mercado internacional vem se fortalecendo cada vez mais e o Estado se enfraquecendo diante dos problemas agravados pelo neoliberalismo. O mercado criou a ilusão de que o cidadão livre do Estado estava garantindo a sua liberdade individual. O espaço público hoje é apropriado pelas grandes empresas e transformado em espaços publicitários onde os cidadãos transitam de um lado para o outro como consumidores e não mais como sujeitos críticos. Esses espaços são substituídos por espaços da informação e do espetáculo (DUPAS, 2003). Com

o

Estado

enfraquecido

e

esvaziado,

as

grandes

empresas

pressionadas pela sociedade e por meio da intermediação e ajuda do terceiro setor procuram combater as desigualdades sociais geradas pela própria economia neoliberal. O temor da reação negativa da sociedade frente à presença das grandes empresas levou-as a criarem o setor de Responsabilidade Social (investimentos em áreas sociais). Contudo, as ações são quase sempre inócuas e pontuais, tendo em vista a grande escala dos problemas sociais. De acordo com Fernandes (1994), na América Latina, a significação de terceiro setor traz consigo uma negação: não-governamental; não lucrativo, que se faz importante destacar uma vez que há semelhanças entre o governo e o terceiro setor na medida em que ambos devem cumprir uma função eminentemente coletiva.


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É como sugerir que não apenas o governo, mas o terceiro setor também tem uma função pública. Por outro lado, ao se intitularem “não lucrativas” entendem que também são independentes e autogeridas, assim como as empresas no mercado. A sobrevivência do Terceiro Setor, segundo Fernandes (1994), acontece porque em algum momento a busca do lucro dá lugar a uma doação. Sua existência envolve uma troca triangular pela qual alguns dão para que outros possam receber. Poder ajudar pessoas com recursos próprios para financiar ações executadas pelo Terceiro Setor faz com que a dinâmica das Instituições seja alimentada. Neste sentido, importar-se com o outro (vizinhos, crianças desnutridas, população marginalizada...) faz parte da consciência individual. Portanto, mexer com os sentimentos de comiseração, atenção ao próximo, cuidado com o semelhante traz dividendos para o Setor. As instituições resultantes desse gênero de atividade incorporam a necessidade da auto-reprodução e passam a funcionar com os cacoetes característicos das corporações. Formam um mercado de trabalho específico. Influenciam a legislação em seus mais variados domínios e condicionam os orçamentos dos governos, das empresas e dos indivíduos. Absorvem em suma, as problemáticas do interesse e do poder. E, no entanto, constituem uma esfera institucional distinta, cujas características próprias lhes são dadas justamente pela negação do lucro ou do poder de Estado (FERNADES, 1994, p. 24).

As noções de “terceira via” ou de “público não-estatal” trazem em si a clara ansiedade em diferenciar tais classificações do neoliberalismo. Para Paoli (2002, p. 383, grifo do autor), Bresser Pereira pode sentir-se livre para adaptar os princípios políticos da postura européia ao desmanche brasileiro e construir a versão doméstica da passagem de uma sociedade organizada por referência aos direitos fundamentados na solidariedade coletiva, para uma sociedade organizada pela ação solidária privada, transformada em responsável pela ”execução de serviços sociais”, ao lado da implantação de critérios seletivos das políticas previdenciárias. Para tanto, o direito à educação, à saúde, cuidado à infância e à velhice – para não falar no próprio direito ao emprego – são transformados em “capital humano” e colocados em terreno puramente dependente de uma boa e confiável gestão, a do setor agora denominado ”público não-estatal” [...]. Também aposta-se nos consumidores individuais, os quais, presumivelmente bem de vida e portanto livres para escolher qual a qualidade da escola ou dos serviços de saúde que desejam, são chamados à responsabilidade social.


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Para Gohn (2008), o termo “terceira via” foi usado desde muito tempo como forma alternativa, um caminho intermediário. Nos anos 90, a terceira via reaparece com grande força na Inglaterra e na Alemanha para depois se difundir pelo mundo ocidental como uma nova alternativa ao capitalismo neoliberal da era da globalização. Ainda na década de 90, a terceira via é uma discussão nos marcos do sistema capitalista, situando-se como alternativa a duas forças: o livre mercado e a atuação estatal dentro deste mesmo mercado (GOHN, 2008). A partir do Consenso de Washington, as políticas neoliberais foram deliberadas para atuarem nos países tidos como emergentes: privatizações de empresas

estatais,

liberalização

dos

mercados

de

bens

de

capital,

desregulamentação acentuada da economia e forte redução do papel do Estado (GOHN, 2008). Nas últimas décadas do sec. XX, o discurso neoliberal sobre o Estado varreu as economias mundiais. A incapacidade de gestão dos Estados nacionais após a crise pós-Keynesiana2 deram espaço para os fervorosos defensores do Estado mínimo (DUPAS, 2003). A solução para os problemas do Estado era a diminuição deste a fim de sanar as dívidas crescentes. Para tanto, era preciso flexibilizar o mercado de trabalho e diminuir algumas garantias sociais dos trabalhadores com a desculpa de minimizar o desemprego. Segundo Dupas (2003, p. 70 ), “[...] mercados podem ser internacionais, mas a riqueza ou pobreza, e prosperidade ou precarização, serão sempre fenômenos nacionais e locais [...]”. As consequências desse processo foram uma sucessão de crises que afetaram, principalmente, os grandes países da periferia e o aumento significativo da exclusão social em grande parte do mundo (DUPAS, 2003).

2

Crise do Estado de Bem-Estar Social. A Política Keynesiana se caracterizou como a política do Bem-Estar Social, com a presença forte do Estado na economia, inclusive na produção.


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O rápido desenvolvimento tecnológico e a revolução da informação ajudaram a elevar o padrão de consumo no mundo. Com a globalização as fronteiras nacionais passaram a ser rapidamente transpostas, deixando livre a ação do mercado. Por outro lado, as fronteiras rompidas pela expansão econômica e espacial do capitalismo recriam determinados territórios e fazem emergir alguns outros como o Calabar, por exemplo: um enclave social cercado por zonas de classe alta e envolvido em tensões desumanas, evidenciando a ausência de uma rede de proteção social. Há desigualdades que tendem a ser ampliadas com processos de crise e fazem compreender que economias e espaços conformam um mundo só, contraditoriamente desigual, pleno de ambiências de depressão e de ilhas de emergência, e, ainda, de barbáries e de utopias. (RIBEIRO; HISSA, 2010, p. 34, tradução do autor)

As transnacionais com o poder de transportar indústrias inteiras para diferentes lugares e/ou subcontratar toda a estrutura necessária de uma empresa ganham facilmente na barganha de impostos, incentivos fiscais, liberação de leis ambientais e regimes de trabalho, tanto com os governos sede como com os governos que sediam. É sabido que a livre movimentação de capitais internacionais voláteis e especulativos tem causado danos principalmente aos países da periferia do capitalismo, interferindo duramente no emprego e no nível de produção. Nessa direção, a crescente concentração de renda e a galopante desigualdade social têm gerado tensões nos países periféricos como o Brasil, por exemplo, que vivencia uma crescente onda de violência urbana, exclusão social e marginalidade. Dado

esse

contexto

contemporâneo

de

diminuição

do

Estado

e

esvaziamento do espaço público, fica propícia a entrada de iniciativas da sociedade civil com o intuito de suprir as lacunas deixadas pelo governo. Segundo Dupas (2003, p.73 ), “[...] a classe política e seus partidos foram erodindo sua credibilidade e inviabilizando-se como mediadores das demandas sociais e aspirações coletivas [...]”. Por isso, a sociedade civil tão híbrida e heterogênea, formada por associações de bairros, cooperativas, fundações, associações comunitárias, culturais, religiosas,


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instituições filantrópicas, ONGs, cooperativas, dentre outras organizações, passa a exigir o caráter público de seus interesses. A sociedade civil deixa de discutir politicamente e lutar pela garantia dos direitos para defender “[...] um novo padrão de ação coletiva ligado a critérios territoriais e temáticos [...]” (DUPAS, 2003, p. 30). Perde-se a noção do todo e passa-se a lutar pelas partes cada vez mais individuais. Com a ajuda da mídia esses movimentos vão ganhando espaço no momento em que sensibilizam a opinião pública, que começa a dar apoio e respaldo social. Assim, tem cabido ao Brasil e a outros tantos países da periferia capitalista equilibrar o orçamento público, a balança externa, o desafio do crescimento econômico e a reversão dos problemas sociais. Em todo o mundo, as consequências da globalização se resumem à diminuta distribuição de renda, ao aumento do trabalho precário e à fragilização dos Estados nacionais. Os conflitos da globalização se revelam no instante em que há o crescimento econômico, porém, aliado a ele, há também o aumento da precarização do trabalho, da exclusão social, a diminuição de ofertas de vagas para o mercado formal e crescente captura dos Estados nacionais pelos interesses hegemônicos. Para Dupas (2003), o fracasso do Estado em mediar as crescentes tensões sociais advindas do capitalismo globalizado levou as grandes corporações a descobrirem um espaço que rende dividendos de imagem pública e social: o desejo dos governos de empurrar para o âmbito privado as responsabilidades e o destino das desigualdades. As Instituições civis, voltadas para a solidariedade social, multiplicam-se, uma vez que há também um empobrecimento dos espaços de discussão pela cidadania e justiça social, o que, por sua vez, criou terreno fecundo para o fortalecimento do terceiro setor; modificando, inclusive, o sentido das relações entre o setor público e o setor privado: privativou-se a esfera pública e publicizaram os interesses privados (DUPAS, 2003).


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As empresas, através da chamada Responsabilidade Social Empresarial3, passaram a ocupar o espaço de ação social aberto pelo encolhimento das garantias e dos direitos sociais. Os direitos sociais incluem o direito à educação, à saúde, ao trabalho, ao salário justo e garantem a participação na riqueza coletiva. Para tanto, a garantia de sua vigência depende da existência de uma eficiente máquina administrativa do Estado. Os direitos sociais permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos (CARVALHO, 2008). As empresas costumam nomear seus investimentos sociais de diferentes maneiras:

Filantropia,

Cidadania

Empresarial,

Responsabilidade

Social,

“Steakeholders”, Ética nos Negócios e mais. Contudo, é necessário perceber que esses investimentos levam as empresas a lucrarem em torno do marketing produzido pelas suas ações, além de agregar valor às suas marcas e imagem pública. Atualmente, o consumidor se interessa em consumir/utilizar produtos vindos de empresas que têm ações voltadas para o social. Ser uma empresa “verde” (que agride menos o ambiente) ou ter ações sociais eleva o potencial dessa empresa nas vendas dos seus produtos, não importando quão verdadeiras ou consistentes são essas ações (DUPAS, 2003). A Aliança Grupo Capoava, formada pelo Instituto Ethos, pelo Grupo de Instituições Fundações e Empresas (Gife), pela Ashoka – Brasil e pela Fundação AVINA, lança em 2010 uma publicação sobre a Responsabilidade Social Empresarial e o Investimento Social Privado intitulado Responsabilidade Social Empresarial: Por que o guarda-chuva ficou pequeno? De acordo com a publicação, o guarda-chuva mencionado é composto por vários stakeholders, a saber: Acionistas, Governo, Fornecedores, Prestadores de Serviço, Funcionários, Meio Ambiente, Consumidores e Comunidades. Com base nesse guarda-chuva, é definida a ideia de RSE e ISP, entretanto, ainda de acordo com a publicação, o 3

Para este estudo, parto da premissa conceitual que a Responsabilidade Social Empresarial (RSE) é a relação ética e transparente da empresa com todas as suas partes interessadas (trabalhadores, fornecedores, consumidores, clientes, comunidades, sindicatos, acionistas, ONGs, governos, etc), visando alcançar um desenvolvimento mais sustentável.


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conceito de Responsabilidade Social Empresarial e de Investimento Social Privado vem sofrendo transformações ao longo do tempo e, até o momento, não há um conceito definitivo pela abrangência e complexidade dos temas, indicando que, diante da premência da sustentabilidade, a metáfora do guarda-chuva não mais consegue expressar a imagem de uma empresa voltada para a sustentabilidade e responsabilidade social; tendo em vista o grande avanço entre as relações dos três setores da sociedade e de velozes mudanças na RSE. Como ideia de sustentabilidade empresarial, o documento entende que “[...] consiste em assegurar o sucesso do negócio em longo prazo e, ao mesmo tempo, contribuir para o desenvolvimento econômico e social da comunidade, um meio ambiente saudável e uma sociedade estável.” (ALIANÇA GRUPO CAPOAVA, 2010). O termo “sustentável” deve estar ligado ao produto que tem em toda a sua cadeia produtiva (incluindo a empresa que o produz) práticas transparentes, éticas e justas e que seja também economicamente viável. O documento traz ainda a discussão sobre a dicotomia existente na razão de ser das empresas: [...] o lucro pode ser a finalidade de uma empresa ou deve ser apenas uma consequência de sua verdadeira razão de existir, que seria a geração de valor para a sociedade? Na nova função social da empresa no paradigma da sustentabilidade, num mundo globalizado, a geração de lucro deve ser somente meio ou pode estar entre os seus fins? (ALIANÇA GRUPO CAPOAVA, 2010).

Para os autores do documento, essa nova visão da RSE tende a mudar a atitude dos empresários e, consequentemente, a visão organizacional das empresas afetando o estilo de liderança e os processos internos. A RSE propõe que a razão de ser das empresas extrapole a geração de lucros, o pagamento de impostos e a entrega de produtos: que combine a geração de valor para todos os seus “stakeholders”; que adotem valores que possam ser explicitados e defensáveis publicamente, estabelecendo compromissos claros com a sociedade. É oportuno refletir que a própria natureza das empresas visa o lucro e a expansão do capital, tornando assim contraditória a ideia de sustentabilidade empresarial. Ademais, toda empresa necessita ser viável economicamente, o que indica a incongruência do “econômico” se subordinar à ética.


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Segundo Werneck (2005), uma teoria para a Responsabilidade Social Empresarial ainda está por ser construída. O que temos é uma nebulosa de conceitos que se somam, se completam, se sobrepõem aqui e ali. Suas diferenças estão mais na ênfase do que no conteúdo e, de uma maneira geral, não definem o que é uma empresa socialmente responsável, mas descrevem estratégias e ações de organizações que têm se diferenciado neste campo (WERNECK, 2005, p. 89).

Ainda de acordo com Werneck (2005), ser uma empresa socialmente responsável é inserir-se na história do mundo, assumindo os desafios do nosso tempo, do país e da comunidade em que atua e isso significa compartilhar o presente e o projeto de futuro que se deseja construir. Ainda que se possa considerar um novo arranjo institucional em que o setor empresarial, junto com a sociedade civil participem de projetos sociais de longo prazo, seja para a nação ou uma região, a grande questão é a construção de um novo desenho institucional, com uma coordenação efetiva que viabilize esse dialogo a favor da inclusão social. Seria impensável a solução desses problemas apenas através do mercado. Conforme o documento da Aliança Grupo Capoava (2010), há uma mudança no modo de pensar e agir da classe empresarial no país, que está relacionada a uma concepção democrática da sociedade, onde a responsabilidade pelo desenvolvimento deixou de ser função exclusiva do Estado e passou a ser compartilhada com empresas e organizações da sociedade civil, como fruto do processo de democratização do país. Dessa concepção emerge outra visão: a ideia de privatização do público e não de compartilhamento de ações voltadas para a garantia dos direitos e para o combate da desigualdade social. De acordo com Dupas (2003), embora a nova tendência de responsabilidade social das empresas tenha a pretensão de aparecer como solução para as questões de exclusão social, ainda assim é inócua diante da escala do problema, além de ser despolitizadora da questão social, na medida em que desqualifica o poder público minimizando a força do conflito interno na luta por políticas públicas comprometidas com a cidadania.


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No Brasil, há quem defenda a mudança de mentalidade dos empresários, uma vez que as ações voltadas para o social estão crescendo e com isso revela-se também que o empresariado brasileiro tem demonstrado preocupação no que se refere às querelas sociais. Com o intuito de profissionalizar as diversas ações empresariais o Instituto Ethos e o Gife construíram o conceito de Investimento Social Privado como forma de melhorar a qualidade das ações filantrópicas antes oferecidas às comunidades. Para essas organizações Investimento Social Privado significa “[...] o repasse de recursos privados para fins públicos por meio de projetos sociais, culturais e ambientais, de forma planejada, monitorada e sistemática [...]” (ALIANÇA GRUPO CAPOAVA, 2010). Já a Responsabilidade Social Empresarial é vista como um conceito mais amplo, uma diretriz de gestão e condução dos investimentos privados como forma de diminuir as desigualdades sociais. À saber, Responsabilidade Social Empresarial é a forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais que impulsionem o desenvolvimento sustentável da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais (ALIANÇA GRUPO CAPOAVA, 2010). Outro ponto importante sobre a RSE é a questão da transparência. Atualmente, nem todas as empresas divulgam seus dados e as que o fazem não há como comprovar se todos são tornados públicos. Assim, fica-se ainda com a sensação de pouca limpidez. Em consonância com o documento da Aliança Capoava, normatizar e criar critérios éticos e transparentes para as ações de investimento privado colabora com a evolução da qualidade da assistência oferecida. Além disso, a organização e fortalecimento das empresas que investem em RSE criaram um ambiente favorável à adesão de parceiros como o Estado, outras empresas e diversas organizações da sociedade civil. Essa rede de parceiros objetiva abordar as questões sociais “buscando soluções efetivas, escala e sustentabilidade” (ALIANÇA GRUPO CAPOAVA, 2010).


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Para algumas Instituições Empresariais a visão da função social de uma empresa deve ser vista sob outro ângulo, não mais através da função básica de toda a empresa: geração de empregos para a população e lucro para os acionistas, mas alargando essa ideia e obtendo uma percepção mais clara das transformações da sociedade e da necessidade de suscitar valor para todos os seus stakeholders. Ainda de acordo com o documento da Aliança Capoava, com essa visão atual e ampliada, as empresas devem passar de potenciais patrocinadoras de ações a gestoras de iniciativas sociais e serem capazes, juntamente com outras Instituições, de influenciar políticas públicas que ampliariam o impacto das suas ações. Dessa forma, devem passar a ser questionadas na sua missão empresarial, em seus processos produtivos, nos impactos que geram em sua cadeia produtiva etc. Esse novo paradigma da visão da Responsabilidade Social Empresarial tem desdobramentos diretos no Investimento Social Privado, pois espera-se mais qualificação,

profissionalismo,

planejamento

e

criação

de

indicadores

de

monitoramento mais claros, orientados pela sustentabilidade, não apenas por uma lógica filantrópica. Essa consciência leva a investimentos em projetos mais inovadores e alinhados com os objetivos de sustentabilidade das empresas, como afirma o documento. Enquanto a filantropia à moda antiga contribuía para completar o contrato social, minimizando os seus efeitos colaterais, o novo investimento social privado contribui para criar as condições para um novo contrato social que torne possível o desenvolvimento com justiça e equidade (WERNECK, 2005). A amplitude do termo Responsabilidade Social Empresarial é um dos fatores de dificuldade em delimitar a definição e conceitos que o envolvem. De acordo com o documento, os termos Sustentabilidade e Responsabilidade Social Empresarial estão sofrendo uma certa banalização. A pesquisa “Sustentabilidade das ONGs no Brasil: acesso a recursos privados”

realizada

pela

Associação

Brasileira

das

Organizações

não

Governamentais (ABONG) – revela que na relação entre as empresas e as ONGs, ao contrário das suposições acerca dessa relação, é ausente a referência a qualquer


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tipo de ingerência na ação desenvolvida e que as condicionalidades apresentadas pelas empresas não diferem em quase nada das exigidas por outros tipos de financiamento (sendo, para algumas organizações entrevistadas, mais simples do que aquelas feitas pelos fundos públicos). A pesquisa mostra ainda que a visibilidade da marca da empresa nas ações, sejam elas impressas ou não, não é a maior preocupação dos institutos, fundações ou empresas. Além disso, as organizações indicam que há aprendizado organizacional referente aos modos de prestação de contas e relatórios financeiros. Todavia, as ONGs, quando questionadas sobre as ações de Responsabilidade Social, fazem críticas contundentes, considerando as ações ineficazes e superficiais, quase um “jogo de cena”, demonstrando que não fazem distinção entre o significado de Responsabilidade Social Empresarial e Investimento Social Privado (ABONG, 2010). Para o Gife, RSE é investimento privado para fins privados e ISP é recursos privados para fins públicos (INSTITUTO ETHOS, 2010). No Brasil, sequer vivenciamos o Estado de Bem-estar Social. Tampouco participamos de experiências em que os direitos sociais fossem a base da diminuição da desigualdade social. Nos desafios do presente de nosso país, vivemos o afrouxamento do controle democrático público sobre a vida econômica. Nos países onde há uma estrutura de bem-estar social, estão tentando acolher os filhos do desemprego, os que não conseguem inserção no mercado formal. Contudo, há uma grande lacuna já formada entre as necessidades e prioridades das pessoas exclusas do mercado formal e o potencial dos Estados nações de atender essas demandas convencionalmente. Enquanto o capitalismo global prospera o Estado-nação tem o seu poder minado por esses interesses (DUPAS, 2003). É sabido que a alteração nos padrões de produção, nos sistemas de gestão e na utilização da mão-de-obra no mundo contemporâneo fornece a base para a hegemonia das grandes nações e a concentração de riqueza nas mãos de grandes corporações. Dagnino (2004) chama o encontro do projeto de democratizar a democracia e o projeto neoliberal de “confluência perversa” e entende que nesta perversidade se


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encontra a raiz de vários dos dilemas que a construção democrática enfrenta hoje. Para a autora, os dois projetos se encontram uma única vez: no momento em que requerem uma sociedade civil ativa e propositiva. E o risco dessa confluência se dá no momento em que a similaridade de significados como cidadania, sociedade civil, participação, democracia, que são comuns aos dois projetos, instala o que se pode chamar de “crise discursiva”, obscurece diferenças, dilui nuances e reduz antagonismo, criando os canais por onde avançam as concepções neoliberais (DAGNINO, 2004). O uso de termos como cidadania e sociedade civil foi uma apropriação neoliberal (DAGNINO, 2004) que torna aparentemente homogêneo seus significados e suas referências. Em 1980, o termo “Sociedade Civil” tinha o sentido de “arena” e “alvo da política”, significando a ampliação da política. Hoje, o sinônimo mais frequente para sociedade civil é a ideia de terceiro setor, oriundo do projeto neoliberal (DAGNINO, 2004). De acordo com Gohn (2008), só depois da crise nas bolsas de valores, quando grandes fortunas desapareceram da noite para o dia, que os investidores financeiros começaram a se preocupar com o tema do desenvolvimento com justiça social, como questão a ser enfrentada pelos Governos tanto dos países desenvolvidos como em desenvolvimento, e não mais ficarem focados apenas nos índices de crescimento econômico. Como não há emprego para todos, o fantasma das revoluções sociais anda rondando nas previsões como resultado da crise econômica, uma vez que o mercado de trabalho eliminou, encolheu ou substituiu pela máquina milhares de postos de serviço (GOHN, 2008). O terceiro setor é uma expressão com significados múltiplos devido a sentidos históricos diferenciados, em termos de realidades sociais. Atualmente não se trata mais do terciário que se contrapunha às atividades da agricultura e da indústria, mas de uma nova ordem social, que se coloca ao lado do Estado – o primeiro setor -, e do mercado – tido como o segundo setor. (GOHN, 2008, p. 73)


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Diante de um contexto cada vez mais desigual socialmente, onde não se tem a intervenção do Estado, haveria de se criar uma forma para atender às políticas neoliberais que se alastram no mundo: “[...] a nova forma supõe novas regras de contrato social que envolvam parcerias entre o público estatal com o chamado público não-estatal, ou seja com o terceiro setor [...]” (GOHN, 2008, p. 73). Nessa direção, há de se questionar sobre o surgimento dessas novas organizações e as transformações sociais propiciadas pela ação destas. De que forma as ações sociais realizadas pelas organizações do terceiro setor podem favorecer ou contribuir para a conquista e ampliação dos direitos fundamentais pelo cidadão? Conseguem atingir em escala a população excluída? Nos Estados Unidos, como cultura nacional, muitas ações filantrópicas se concentraram como associações voluntárias, ganhando adesão das pequenas e médias empresas na doação de recursos. Entretanto, os recursos doados serviam como forma de diminuir o pagamento de taxas e impostos (GOHN, 2008). Na Inglaterra, o terceiro setor vem da tradição da caridade ou à filantropia conceito mais moderno que procuraria se desvincular do conteúdo meramente assistencialista da caridade, introduzindo elementos humanistas e abrindo espaço para a articulação com a posição norte-americana, no que se refere ao mercado, dando origem também à filantropia empresarial (GOHN, 2008). Após a Segunda Guerra Mundial, outra referência alia-se ao campo do terceiro setor: as ONGs. De acordo com Gohn (2008), a nomenclatura ONG, inicialmente, esteve associada à ONU e se referia a um universo de entidades que não representavam governos, mas tinham presença significativa em várias partes do mundo como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), Cruz Vermelha, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) dentre outras. Desde então, surgem ONGs com trabalhos sem perfil caritativo ou filantrópico: propondo projetos de desenvolvimento auto-sustentado, dentro de uma economia capitalista onde as regras do mercado teriam que ser redefinidas. Há ainda as que investem em áreas como o meio-ambiente, direitos humanos, educação etc.


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Na América Latina, as ONGs tiveram outros processos de desenvolvimento e campo de atuação. Filiais de agências de promoção do desenvolvimento aqui se instalaram desde os anos 50 objetivando atuar nas campanhas pela promoção do “mundo subdesenvolvido”, conforme os termos da época (GOHN, 2008, p. 75).

Ainda de acordo com Gohn (2008), no Brasil nos anos de 1970 e 1980, surgem ONGs voltadas para a luta contra o regime político, por conta dos presos políticos, das torturas... Também surgem ONGs que atuavam no campo dos direitos e condições mínimas de sobrevivência cotidiana, no que diz respeito a necessidades básicas. Por esses motivos, Gohn (2008) chama essas organizações de ONGs cidadãs e militantes. Entretanto, nos anos 1990, o cenário das ONGs cidadãs se altera, tendo em vista a mudança do olhar das agências financiadoras: naquele momento, voltado para o Leste Europeu devido aos processos de redemocratização daquele território. Assim, os movimentos e as ONGs latinas passaram a viver a mais grave crise econômico-financeira desde que foram criadas (GOHN, 2008). Essa escassez de recursos levou as ONGs a transformarem seus procedimentos ao sentirem necessidade de gerar recursos próprios e de lutar pelo acesso aos fundos públicos. Apesar de se apresentarem como organizações “não-governamentais”, as ONGs expressam características do serviço público no que diz respeito aos seus fins, pois estão imbuídas em atender a demandas socioculturais existentes e a pensar em políticas públicas para os projetos que gerem, por mais localizados que estes sejam (FERNADES, 1994). Entretanto, essas organizações assimilam parte da lógica pragmática do mercado, tendo que prestar contas e alcançar as metas previstas para os projetos a partir de indicadores empresariais, como forma de garantir sua sustentabilidade, inclusive financeira. A palavra de ordem passou a ser eficiência e produtividade na gestão de projetos sociais, para gerir recursos que garantam a sobrevivência das próprias entidades. Ter pessoal qualificado com competência para elaborar projetos com gabarito passou a ser a diretriz central, e não mais a militância ou o engajamento anterior à causa em ação. (GOHN, 2008, p. 78)


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Outras ONGs foram surgindo nos anos 1990, junto à crise das ONGs cidadãs e articuladas a políticas sociais neoliberais, dentro do espírito da filantropia empresarial. Agiam direto em problemas centrais do país, como a educação, crianças em situação de vulnerabilidade, trabalho infantil etc. Como eram entidades que não vinham da experiência da militância e movimentos populares, dificilmente se colocavam contra o Estado; ao contrário: queriam e buscavam a parceria com o Estado (GOHN, 2008). O terceiro setor busca construir uma imagem positiva através de ações afirmativas e propositivas. De acordo com Gohn (2008), as novas entidades estruturam-se como empresas, autodenominadas cidadãs por se apresentarem sem fins lucrativos e atuarem em áreas de problemas sociais, criam e desenvolvem frentes de trabalho em espaços públicos não-estatais. Vale ressaltar que a explosão de ONGs, no início do século XXI, vem ocorrendo em todo o mundo e o terceiro setor já tem sido caracterizado como um novo setor da economia: o da “economia social” (GOHN, 2008). As ONGs estão mudando de nome para simplesmente terceiro setor. Para uns trata-se apenas de mais uma forma de exploração da força de trabalho, uma resposta das elites à organização e mobilização sindical e popular dos anos 80, bem assim como parte das estratégias neoliberais para desobrigar o Estado de atuar na área social. Para outros, o terceiro setor é algo realmente novo, pois o Estado não consegue mais penetrar nas microesferas da sociedade. Ele só saberia atuar no nível macro, e as políticas públicas necessitam de mediadores para serem efetivadas. (GOHN, 2008, p. 82)

Ao analisarmos a opinião de que o Estado não mais consegue penetrar nas microesferas da sociedade, veremos que por trás disso existe uma lógica de esvaziamento do aparato do Estado, abrindo espaço à multiplicação de ações sociais realizadas pelas empresas nos ambientes públicos não-estatais e encolhendo as garantias e os direitos sociais. Para Dagnino (2004), cada vez mais o termo sociedade civil se aproxima de ONGs e, certamente, essa correlação de significados não é o que estava sendo gerado no início do projeto de democratização e participação.


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Além da resignificação da ideia de sociedade civil, participação, cidadania, há também os direitos trabalhistas que estão sendo substituídos pela livre negociação e pela flexibilização do trabalho (DAGNINO, 2004). É nessa concepção contemporânea das relações que há a legitimação da ideia de mercado como instância alternativa da cidadania, quando se tem um sonho de inclusão no Primeiro Mundo (DAGNINO, 2004). Esse “novo” significado de cidadania é que embasa as contraditórias ações empresarias: de um lado a maximização dos lucros e de outro a responsabilidade social que se faz chegar rapidamente aos cidadãos-consumidores. A reflexão feita por Dagnino (2004) é a de que se faz necessário um debate maior sobre as causas da pobreza e da desigualdade social, além de estarmos atentos aos discursos em que o cidadão não esteja atrelado aos direitos universais. A autora ainda aponta que a consequência dessa alienação é o deslocamento dessas questões, pois “[...] a pobreza e a desigualdade estão sendo retiradas da arena pública e do seu domínio próprio que é o da justiça, da igualdade e da cidadania, e se transformando numa questão que é técnica ou filantrópica [...]” (DAGNINO, 2004, p. 10). De acordo com Paoli (2002), o centro da questão da filantropia empresarial é a disputa por uma forma de regulação social que aceite ou recuse legitimar-se por via da deliberação sobre a interdependência dos bens públicos e privados. Nesse aspecto há dois pontos a considerar de acordo com Paoli: o primeiro é que a RS legitima-se no âmbito do terceiro setor, que reivindica um modelo de regulação social mais eficaz que o realizado pelo Estado, portanto a ser realizado em outro lugar: a sociedade civil, composta por uma grande diversidade de ações, atores e organizações, que se unificam pela recusa em pertencer ao Estado e ao Mercado. O segundo ponto trazido pela autora é o fato de que na expansão do terceiro setor, propõe-se outro modelo para a resolução da questão social – centrado na generalização de competências civis descentralizadas, exercidas pelo ativismo civil voluntário em localidades específicas – e, portanto, uma outra relação com a capacidade política de concretizá-lo.


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Para a autora, a inserção de uma parcela do empresariado brasileiro no campo social, contexto no qual desenvolvem seus negócios, assemelha-se à velha filantropia (do período conhecido como Primeira República – 1899-1930) quando os empresários construíam creches, escolas, postos de saúde, consultórios dentários e vilas de moradias operárias. Paoli (2002) ressalta que entre a velha e a atual filantropia houve o fordismo e, por este ângulo, o sentido da nova filantropia remonta ao conservadorismo arcaico na contemporaneidade. Aliada à ideia da nova filantropia, acrescentou-se a palavra “solidária” como abertura voluntária das empresas frente às enormes carências dos pobres brasileiros, ligada à prevenção do futuro e respondendo às demandas da reinserção social através do privilégio dado aos temas da infância, da família e da educação, como áreas de responsabilidade social empresarial diante da crescente deterioração da vida coletiva (PAOLI, 2002). Paoli ainda salienta que atualmente, no contexto brasileiro, essa parcela do empresariado sustenta a ideia de criar uma “consciência de cidadania” entre o empresariado, embora a grande maioria deste silencie, sobre as fontes de produção da miséria e não intervenha no debate sobre a atual política econômica. Ainda assim, a autora traz à reflexão o fato de que essa filantropia empresarial organizada se adapta facilmente às formas do lucro, ecoando o discurso neoliberal que preconiza a iniciativa privada contra a ineficiência burocrática do Estado e a politização dos conflitos sociais. É dessa forma que o empresariado brasileiro, junto com outras organizações não-governamentais, afirma a disposição em contribuir com questões sobre o modo de operar as políticas públicas que se dirigem à integração social e profissional de parcelas da população. Paoli (2002, p. 387) É neste contexto de simultaneidade entre a redução de políticas públicas voltadas para a promoção das garantias dos direitos sociais, de um lado, e da abertura do espaço às ações sociais privadas, de outro, que se entende o alcance e os limites da filantropia empresarial. (PAOLI, 2002, p. 387)

Paoli (2002) chama atenção para a ideia de “participação de novos atores na questão social” e enfatiza que esta concepção nada mais é que a estratégia de


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legitimar o “desmanche” das garantias público-estatais, abrindo espaço para as ações sociais privadas ou não-estatal. Como consequência, os direitos sociais e do trabalho vão sendo negligenciados com vistas à sua reforma, uma vez que o Governo e os empresários empenham-se em descobrir modos legítimos de desconstruir as garantias sociais universais sob a alegação dos altos custos. A Constituição de 1988 formaliza a busca pela redemocratização do país, fazendo com que a cidadania fosse além do dever cívico do voto, ampliando os direitos e confirmando suas garantias. De acordo com Dagnino (2004), ainda nesse período histórico, houve uma redefinição da ideia de cidadania, marcada fortemente pela ideia de incorporar as características das sociedades contemporâneas, tais como o papel que se dá à subjetividade, o surgimento de novos sujeitos sociais (sujeitos de um novo tipo, mulheres, negros, homossexuais, dentre outros), a emergência de novos temas (e de novos direitos trazidos pelos movimentos sociais) e a ampliação do espaço da política.

A nova cidadania seria então um projeto para uma nova sociabilidade, um formato mais igualitário das relações sociais, inclusive novas regras para viver em sociedade, para a negociação de conflitos. Um novo sentido de ordem pública e de responsabilidade pública. [...] um formato mais igualitário de relações sociais em todos os níveis. (DAGNINO, 2004, p. 3)

A nova cidadania a que se refere Dagnino seria o rumo para um formato mais igualitário das relações sociais. Um novo sentido de ordem pública e de responsabilidade pública. Entretanto, quando o ideal de cidadania se depara com os ajustes neoliberais exigidos por instituições financeiras internacionais há uma resignificação dos discursos. Por exemplo, o termo sociedade civil foi concebido significando inicialmente arena e alvo da discussão política. Um espaço de debate político, ligação entre o Estado e o cidadão de direito. Esse termo foi transformado pela perspectiva neoliberal e resignificado como sendo terceiro setor: um lugar onde não há discussão política, deixando apenas para o âmbito do Estado as discussões e debates pertinentes à esfera política; contradizendo e contrapondo o ganho de que política também se faz fora do Estado.


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Assim também se deu com o termo cidadania, hoje amplamente difundido e utilizado desde anúncios de bancos privados ao Banco Mundial. Essa redefinição neoliberal também reduz o significado coletivo da sua concepção. [...] Hoje nós temos, de novo, um entendimento estritamente individualista da noção de cidadania. [...] cidadão passa a significar a integração individual ao mercado, como consumidor e como produtor. Este me parece um princípio que subjaz a uma enorme quantidade de programas para ajudar as pessoas a “adquirir cidadania”: aprender como iniciar uma micro empresa, se tornar qualificado para os poucos empregos ainda disponíveis, etc. Em um contexto onde o Estado se isenta progressivamente do seu papel de garantidor de direitos, o mercado é oferecido como uma instância substitutiva da cidadania (DAGNINO, 2004, p. 9, grifo do autor).

A construção da cidadania implica a relação direta entre as pessoas, o indivíduo e o Estado, a nação. É preciso garantir direitos básicos como a Educação, por exemplo, a fim de gerar ambientes educativos que favoreçam e oportunizem o entendimento da importância da participação cidadã, uma vez que a redução do poder do Estado afeta a natureza dos direitos políticos e sociais. Se os direitos políticos significam participação no governo, uma diminuição no poder do governo reduz também a relevância do direito de participar (CARVALHO, 2008). No Brasil, o processo de construção da cidadania como afirmação e reconhecimento de direitos se depara com práticas pouco desenvolvidas tanto pelo Estado, como pela sociedade Civil. A desigualdade social que cresce galopante em nosso país nos mostra que ainda há muito a ser feito, apesar das conquistas civis da nossa Constituição Cidadã. O Calabar, aqui representado como caso estudado, pode simbolizar a maioria da população que hoje vive à margem do mercado e à margem das garantias dos direitos sociais. As mulheres do Grãos têm escolaridade mínima ou são analfabetas funcionais, moram em locais onde o saneamento básico é precário, onde não existem postos de saúde e hospitais suficientes ao atendimento da população e que nunca conseguiram a experiência, mesmo que por pouco tempo, de um emprego formal, chegando o mais perto deste como empregadas domésticas da classe alta, mas que não tiveram a carteira de trabalho assinada, sendo alegado o alto custo dos impostos.


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É no bojo dessas e de outras questões que pretendo refletir em que medida os investimentos privados no Calabar podem gerar transformações na inserção social das mulheres do Projeto Grãos, assim como os limites entre as parcerias público e privadas sem o envolvimento direto do poder público na continuidade dessas ações.


4 ORGANIZANDO O CAMINHO DA PESQUISA

O que foi compreendido não existe mais, O pássaro confundiu-se com o vento; O céu com sua verdade; O homem, com sua realidade. Paul Eluard4

Pelo caráter reflexivo da minha dissertação, fui compondo minhas estratégias de investigação buscadas a partir da fundamentação teórica, por meio de autores centrais como Gilberto Dupas, Maria da Glória Gohn e Maria Célia Paoli que discutem conceitos como ONGs, as tensões contemporâneas entre o espaço público e o privado e a emancipação social, tendo como cenário o Projeto Grãos na comunidade do Calabar. Os atores envolvidos diretamente com o Projeto Grãos são as 12 mulheres dos grupos produtivos de costura (Coopercid) e alimentação (Coops), 3 consultores da Avante Educação e Mobilização Social, ONG - da qual faço parte como consultora associada e coordenadora do Projeto Grãos -, o Instituto Walmart, financiador do Projeto Grãos e a Associação de Moradores do Calabar, na pessoa do líder comunitário, importante parceiro para compor todos os passos do Projeto Grãos no Calabar. O universo de entrevistados, delimitado na pesquisa, é fonte direta e importante para a compreensão da inserção social das mulheres do Projeto Grãos e sobre como as ações pensadas pela Avante e o Instituto Walmart, assim como suas relações, limites e desafios propiciaram esta inserção.

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ver Barbié (2007).


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Escolhi fazer entrevistas semi-estruturadas com os atores do universo pesquisado e tomei por base as entrevistas com as mulheres do Projeto Grãos, alguns associados da Avante que estavam diretamente ou indiretamente ligados a este Projeto e a coordenação de Projetos do Instituto Walmart responsável pelo acompanhamento do Projeto Grãos. Faz-se necessário esclarecer, neste momento, como o Instituto Walmart negou-se a responder o questionário proposto. Inicialmente, o setor de marketing solicitou as questões da entrevista para ter conhecimento do que se tratava. A coordenadora de Projetos do Instituto, pessoa da relação direta com o acompanhamento do Projeto Grãos, se justificou dizendo que era norma, entre eles, que os funcionários não poderiam responder a nenhuma entrevista ou emitir opinião sobre o Instituto e suas ações, sem antes passar pelo crivo do departamento de comunicação e marketing. Apesar de “reconhecerem a parceria com a Avante e comigo como ótima”, segundo a resposta dada pela coordenadora de Projetos, o Instituto Walmart não responderia diretamente às questões propostas por mim para a pesquisa do mestrado. Contudo, em nome da “ótima” parceria, foi encaminhado a mim o Relatório Institucional do Walmart de 2010, referente aos anos de 2008 e 2009. Desta forma, estarão presentes nessa análise as ideias, conceitos e entendimentos do Instituto Walmart que se fazem presentes nesse Relatório Institucional. Contudo, as ações do Instituto que estão relacionadas ao objeto de pesquisa, e não constam no Relatório Walmart, não deixaram de ser analisadas à luz dos fundamentos teóricos deste estudo; tampouco foram descartadas as análises críticas baseadas nos temas relacionados à investigação, como Responsabilidade Social Empresarial, o papel do Estado e das ONGs no espaço do Calabar. Fazer parte do universo investigado me implica muito mais do que qualquer outra análise de um objeto totalmente novo para o pesquisador. Todavia, assumo consciente os limites e os desafios desta pesquisa, reconhecendo que as análises aqui concebidas servirão como reflexão sobre a ação; não só no próprio andamento do Projeto Grãos, como na futura interface com diferentes atores de uma nova intervenção.


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Os entrevistados foram ouvidos com respeito e seriedade. Todo o tempo busquei analisar os explícitos e implícitos da visão dos sujeitos entrevistados e o contexto ao qual se inseriam. Entretanto, a análise das falas e da conjuntura aparecem ao longo do texto dialogando com os conceitos–chave da fundamentação teórica, sem perder o rumo da reflexão proposta. Segundo Minayo, Deslandes e Gomes (2007), o objeto das Ciências Sociais é histórico, quer dizer, cada sociedade se constrói e se organiza num determinado espaço, de forma particular e diferente de outras; possui consciência histórica – o homem é capaz de dar sentido e significado às suas ações e construções sendo capaz de explicitar suas intenções; possui uma identidade entre sujeito e objeto, tornando-os comprometidos e imbricados um com o outro. A intenção da análise do Grãos não foi avaliar o projeto em si, mas buscar compreender qual a contribuição do Projeto Grãos para a inserção social das mulheres que formaram dois grupos produtivos no Calabar a partir do apoio do Instituto Walmart e da Avante ONG. É oportuno dizer, ainda, que o Projeto Grãos foi e é repleto de possíveis olhares e análises diferentes. Há temas pertinentes ao Projeto Grãos que são importantes para entender a caminhada do Projeto, como a economia dos setores populares, por exemplo, entretanto, não fizeram parte do escopo da pesquisa por serem vastos e necessitarem de outros espaços de discussão, além do prazo da pesquisa que me direcionou a fazer alguns recortes. O Projeto Grãos serviu de pano de fundo para trazer à tona reflexões sobre a Responsabilidade Social Empresarial, o papel do Estado e das ONGs. Por ter as mulheres do Calabar me confidenciado particularidades pessoais, optei por não identificá-las nominalmente na pesquisa. Entretanto, há que se fazer a distinção dos três segmentos entrevistados: o líder comunitário (A), os três consultores da Avante (M, N, O) e as mulheres dos grupos produtivos (B, C, D, E, F, G, H, I, J, L). Dos consultores da Avante selecionados para a pesquisa, dois têm ligação direta com o Grãos pela participação na elaboração do Projeto e o terceiro consultor sênior da organização, respeitado por sua experiência e competência. Nesta


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perspectiva, busquei trazer suas diferentes vozes como reflexão na análise do objeto, e com o desejo de fazer ecoar intrainstitucionalmente as conclusões e reflexões deste estudo.


5 DIALOGANDO COM OS ATORES

Antes de iniciar o diálogo com os atores, faz-se necessário um esclarecimento: também fazia parte do escopo dos entrevistados o representante do Instituto Walmart que tratou diretamente com o Projeto Grãos – a coordenadora responsável pelo acompanhamento dos projetos financiados pelo IWM. Contudo, o Instituto Walmart decidiu “se pronunciar” apenas através do Relatório Institucional de 2010, referente ao exercício de 2008/2009, como já foi explicado. De qualquer forma, para as perguntas que ficaram sem respostas, institucionais que sejam, serão analisadas de acordo com o contexto e as ações diretas e indiretas do Instituto Walmart, no caminho construído com o Projeto Grãos, a Avante e a comunidade do Calabar. Ao analisar as entrevistas, fui tecendo um texto, dialogando com todos os atores e com as perspectivas trazidas por mim na conceituação teórica, uma espécie de trama narrativa que une os mesmos pontos de vista de atores diferentes, formando um contexto coeso e coerente da problemática analisada. Trabalho com/pelo/para o Calabar há anos, o que me faz ser conhecida e conhecer múltiplas histórias e diferentes pessoas. Algumas dessas histórias fizeram parte da teia da pesquisa e serão apresentadas nesse documento, outras tantas histórias, quem sabe um dia serão publicadas por mim e pelos próprios moradores; um antigo desejo meu e de alguns alunos, jovens “calabenses”. Nos momentos das entrevistas fui percebendo o rico material que colhia. Não tive dificuldades com ninguém da comunidade. Ao contrário, todos me receberam muito bem e de braços abertos. Algumas entrevistas levaram horas,


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disseram muito sobre o tema da minha pesquisa e outras que duraram cerca de 40 minutos foram também tão ricas e inquietantes. Frente a frente com os entrevistados, tinha o cuidado de querer ouvi-los em cada palavra dita - também aquelas não proferidas, mas que estavam latentes, de algum modo esperando apenas a oportunidade para serem faladas – com o intuito de fazer a voz dos pesquisados ser representada na pesquisa de forma real, concreta e verdadeira. A comunidade tem uma cisma quando se trata de pesquisas acadêmicas. Sempre percebi desde que comecei a trabalhar no Calabar, as reticências que os líderes comunitários e os moradores tinham com relação à pesquisa acadêmica na comunidade. Justificavam dizendo que os pesquisadores iam na comunidade, colhiam os dados e depois nunca mais voltavam. Era sempre assim. Eram em sua grande maioria pesquisadores desconhecidos que nunca tinham vivenciado o cotidiano da comunidade; diferente da minha posição e do meu trabalho. Conheço a comunidade há mais de 5 anos e tive a oportunidade de vivenciar momentos de grande angústia e de alegria também. Enfim, fui construindo a minha história no Calabar que a trago com orgulho nas lembranças e no coração. Descobri recentemente que tenho uma identificação, repassada entre os “olheiros” e “vigias” do tráfico toda vez que entro na comunidade. Ninguém nunca explicitou verbalmente para mim, mas imagino que corresponda a uma senha de permissão para a entrada e saída em determinado recinto. Conheço muita gente, já fui professora de muitos jovens, pais e avós. Conheci famílias, compartilhei e compartilho dos seus sofrimentos, dos seus momentos de alegria, do lazer, do almoço no pé da amendoeira e da tristeza das mães em ver seus filhos no tráfico de drogas ou de tê-los perdido para a violência exacerbada. Acompanhei o pedido de socorro de uma mãe para livrar seu filho de “más influências” na comunidade. Apesar de todos os esforços empreendidos por todos os envolvidos no problema e por ele mesmo, que tentou como pode sair “dessa vida”, infelizmente as lanças da exclusão já tinham sido proferidas para esse jovem: negro, analfabeto funcional, vítima da violência e armado de uma couraça imaginariamente protetora, proveniente das atitudes ilegais praticadas desde a infância. Sempre que o encontro, vejo brilho em seus olhos, pois sempre me faz parar para conversar com ele e rememorar o tempo que foi meu aluno; muitas vezes lembrando as traquinagens de


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sala de aula e gargalhando com os resultados. Demonstra um respeito e carinho por mim sempre que nos encontramos. Aproveito esse momento para conversar animadamente ou apenas ouvi-lo, mas no fundo carrego uma tristeza por vê-lo na situação em que se encontra. Da última vez que nos falamos, me chamou para ver as armas novas que estava portando. Como se expressasse orgulho por um “diploma” merecidamente conseguido. Quase morro de susto. E ele, como sempre, sorrindo dos meus temores e me avisando para não me preocupar: “Estava tudo sob controle”. Controle de quem? O que se controlava? Na verdade, nem à sua própria vida lhe foi dada a oportunidade de conduzir. Tenho um acesso “privilegiado” na comunidade, mas somente quando a polícia não invade a “área”, ou quando não há brigas entre as facções rivais. Porque nesses momentos, o que fala mais alto é mesmo a exclusão social dessas pessoas. É a vergonha de não poder ter uma moradia digna porque não tem dinheiro. E não tem dinheiro porque não tem emprego. É a revolta por ver seus parentes adultos e crianças morrerem por não ter um atendimento digno no sistema de saúde. É a frustração por não ter as garantias dos direitos fundamentais para o homem; mesmo que a maioria das pessoas não saiba o que isso significa. De qualquer forma, todos quiseram e puderam falar comigo e responder as minhas indagações. Após a entrevista com um dos líderes da comunidade, este me diz que havia gostado muito das perguntas porque não foram focadas na violência da comunidade. Assunto tão desgastado quanto martirizante para ele. Por todo o meu trabalho acadêmico deixei sempre a marca da seriedade e do respeito para com os entrevistados. Não com o objetivo de cativá-los para o apoio ao meu discurso, à minha pesquisa, mas com a certeza de que aquelas pessoas eram merecedoras de toda minha reverência e consideração. Certeza reforçada depois de aprofundar o dialogo, saber o que pensavam e tudo o que viveram até hoje. Para além das questões relacionadas ao objeto de investigação, ficarão as histórias de vida que ouvi e que foram compartilhadas comigo, tratadas quase como sigilo “confessional”. Neste contexto, ao perguntar aos entrevistados, moradores da comunidade, sobre os problemas que, na opinião deles, eram mais graves no Calabar, a violência e a falta de ocupação para as crianças e jovens liderou as respostas.


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Como já anunciei no capítulo dos caminhos metodológicos desta pesquisa, as histórias ouvidas por mim trazem confissões e particularidades importantes para a pesquisa, resolvi identificar os entrevistados por letras alfabéticas para não expor excessivamente suas histórias pessoais. O relato do entrevistado A sobre a falta de ocupação das crianças e dos jovens revela sua história de vida na adolescência, traduzindo o que ocorre com a maioria das crianças e jovens precocemente aliciadas pelo tráfico: Eu tirei o segundo grau depois de adulto. Eu tinha parado na sexta série. Por ser morador de favela, com pais que também não tinham instrução, meu pai tinha 5ª série, minha mãe, 2ª série... E lá em casa ou você trabalha para não virar marginal, que a história do bairro era essa, ou a gente tinha que viver numa oficina mecânica ou numa borracharia... Eu trabalhei minha vida toda em oficina mecânica. Estudar para quê? Era o que me diziam. Em se tratando de favela... Eu já achei aqui uma época (na juventude), quem me desse uma escopeta e 300 gramas de maconha, eu tinha 14 anos, só porque eu sabia dirigir. Aí roubaram um carro, deixaram em uma oficina, a chave estava em minha mão, e a arma com tudo, para assaltar uma loja que tinha na Barra [ele dá o nome da loja, mas preferi não revelar por não ter relevância para a pesquisa] aí eu tive que sair correndo porque eu não aceitei. Eles foram, mas não voltaram. A polícia matou todo mundo (Entrevistado A).

Ele faz essa revelação na entrevista e diz que o fato de ter negado participar do assalto mudou a vida dele, apesar de ter tido que fugir da comunidade durante dois anos após o ocorrido. Os entrevistados L e I, respectivamente, também ressaltam a falta de ocupação dos jovens como uma necessidade básica da comunidade: “As crianças estão crescendo e não há nada para elas se ocuparem. Só querem ficar no meio dos adolescentes que são mais velhos e nem sempre é a melhor opção. Falta perspectiva para os jovens” (Entrevistado L). “Uma das necessidades básicas é lazer. Precisa de projetos para ocupar as crianças” (Entrevistado I). Ainda sobre as necessidades básicas o entrevistado H relata: “Oficinas para ocupar mais as crianças e jovens – música, dança, teatro – oficinas de arte que eles mais gostam. Coisas do interesse deles para saírem desse meio” (Entrevistado H).


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O meio a que se refere o entrevistado H é a convivência das crianças e adolescentes com os traficantes que aliciam e cooptam os mais novos como entregadores de drogas. Outros entrevistados dizem que: “Os colegas do meu filho que brincaram de bola com ele, já estão no caminho das drogas” (Entrevistado G). “[É preciso] Projetos que trabalhem com os jovens na área de educação, de música, de dança. Porque quando eles são crianças ficam mais perto da mãe. Quando ficam adolescentes se afastam mais” (Entrevistado E). “Escola para as crianças de 0 a 6 [anos]” (Entrevistado D). Precisa de Creche. De projetos para ocupar as crianças e adolescentes e livrar das drogas e da violência. E que tenha algum recurso financeiro [se refere a uma bolsa auxílio]. Cursos profissionais. Os jovens não tomam curso porque não têm dinheiro para pagar e às vezes também não têm dinheiro para o transporte (Entrevistado C).

Os entrevistados são todos pais e mães de família e unanimemente colocaram que a necessidade básica da comunidade é pensar nas crianças e jovens, revelando a preocupação com seu futuro, a tristeza de saberem que o caminho do tráfico é para os jovens do Calabar - negros, com baixa escolaridade, marginalizados, excluídos do mercado – a saída que vislumbram para arrefecer as necessidades financeiras. Refletir sobre as crianças me faz lembrar que, em minhas andanças pela comunidade, encontrei, há mais ou menos dois anos, uma professora, outrora líder comunitária, que fez um desabafo triste e desesperançoso sobre o recente encontro dela com um ex-aluno. Ao subir o morro se deparara com ele carregando uma escopeta. Ao questioná-lo sobre por que não voltava ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI)5 ele respondera que, naquele momento ganhava, em uma semana, mais do que a mãe recebia por ele durante um mês no PET. A maior

5

Um dos principais programas da rede de proteção social implantados no Brasil na década de 90, envolvendo uma parceria entre governo Federal, Estados e Municípios, dando prioridade a áreas que utilizam o trabalho infantil em larga escala.


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tristeza dela era que ele tinha apenas 12 anos de idade e temia que sua expectativa de vida não passasse dos 18 anos. Programas como o PETI, de proteção das redes sociais, que chegavam às microesferas da população e atingiam um significante número de crianças e adolescentes foi desarticulado no Calabar, sem aviso prévio nem explicação. Apesar das inúmeras questões sobre a qualificação dos professores do PETI, a falta de remuneração dos docentes, a inconstância do repasse de recursos para a merenda das crianças e adolescentes do programa, dentre outros motivos, a ação envolvia um público de 7 a 15 anos. Exatamente a faixa etária vulnerável aos apelos do tráfico de drogas. De acordo com Carvalho (2004), políticas públicas como esta envolvem uma concepção entre o desenvolvimento econômico e o social, considerando o segundo como um subproduto do primeiro, além de despolitizar a questão social, dissociando-a da injustiça e da desigualdade e subordinando o desenvolvimento e as políticas sociais aos ditames absolutos da economia. Com uma disponibilidade reduzida de recursos e sujeita a pressões crescentes pela sua contenção, a chamada “área social” do Estado brasileiro vem buscando uma racionalização dos gastos e uma adequação das suas ações [...] por meio da focalização (direcionando-as para os segmentos considerados mais vulneráveis, como crianças, adolescentes e produtores rurais de baixa renda), da descentralização e da busca de novas parcerias com o mercado e a sociedade. Reproduzindo uma concepção da vida social fragmentada, os “problemas sociais” passaram a ser enfrentados pela multiplicação de políticas e programas sociais, emergenciais e isolados, sem um projeto que os articule e lhes imprima um sentido político (COHN, 1999). Além disso, esses programas são implantados à margem do institucionalismo vigente, têm um caráter flexível e não se constituem em direitos, como assinala Ivo (2001), estando sujeitos a uma grande instabilidade ou a uma fácil extinção. (CARVALHO, 2004, p. 52)

O Calabar carece de políticas públicas voltadas para a melhoria das condições de vida. Os poucos jovens que alcançam a Educação Básica são mal formados e não conseguem uma inserção no mercado formal, quando muito, após anos de tentativas e expectativas frustradas, as pessoas do sexo feminino conseguem trabalhar como empregadas domésticas, enquanto as do sexo masculino encontram mais dificuldade para se inserir profissionalmente. Esse é o


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perfil do público do Projeto Grãos, que está à margem do mercado, da economia, da educação, da sociedade. Referindo-se ainda às necessidades básicas do Calabar, os entrevistados E G, respectivamente, afirmam: “[Falta] Emprego para o jovem, porque é muito difícil quando o jovem chega na faixa [etária] de 14, 15, 16 anos arrumar um emprego. Cursos profissionalizantes para os jovens também é importante” (Entrevistado E). “Teve o Consórcio [CSJ] e o PETI que trabalharam com os jovens e as crianças. Infelizmente não tem mais” (Entrevistado G). Assim como o PETI, outro Programa Federal, ao qual os entrevistados se referiram, foi o Programa Primeiro Emprego, ligado ao Ministério do Trabalho, que por 4 anos consecutivos lançou o Projeto Consórcio Social da Juventude (CSJ) nas principais capitais do país. Aqui em Salvador, a Avante foi a entidade âncora do Consórcio Social da Juventude atendendo mais de 4 mil jovens durante os anos do Programa. O Calabar foi uma das comunidades beneficiadas pelo CSJ em Salvador e qualificou profissionalmente cerca de 300 jovens do Calabar e entorno. O Consórcio, executado na comunidade do Calabar, ofereceu aos jovens de 16 a 24 anos, além das aulas de qualificação técnica (telemarketing, auxiliar de administração, auxiliar de educação infantil), oficinas de equidade, apoio ao desempenho escolar, inclusão digital e mundo do trabalho. O Consórcio também mantinha um centro de juventude onde os jovens podiam ampliar sua visão de mundo assistindo a filmes, participando de debates, palestras, exposições culturais e recebendo atendimento psicossocial. Findado no ano de 2006, e sem perspectiva de retorno, até hoje as pessoas do Calabar, pais, mães, amigos e até a nova geração perguntam pelo Consórcio. Muitos jovens conseguiram o seu primeiro emprego através do Programa. Alguns foram galgando novos espaços nas empresas em que iniciaram e convidados para trabalhar em outros estados, numa perspectiva financeira maior do que lhes era oferecido na Bahia. Outros jovens puderam constituir suas famílias, assumir os filhos e ajudar nas despesas da casa dos pais, significando produtividade e inserção social e profissional.


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Apesar de pontuais, programas como o Consórcio, marcaram a comunidade do Calabar, que clama por oportunidades, que lhe permita viver uma vida digna, decente. Essas pessoas vêm pagando o alto preço de políticas econômicas perversas que as excluem das possibilidades de se incorporar, de maneira produtiva e cidadã, à sociedade. As políticas neoliberais tangenciadas pelo consenso de Washington, principalmente nos países emergentes, apoiaram a privatização de empresas estatais, a liberalização do mercado de bens de capital, a desregulamentação da economia e a diminuição do papel do Estado. De acordo com Sem e Kliksberg (2010), ter um trabalho decente, o grande direito que deveria ser garantido a todo ser humano, como defende a OIT, transformou-se para muitos, principalmente para a parcela dos excluídos, algo inatingível. Na pesquisa, a educação também é trazida à reflexão como necessidade básica: Se ele [o prefeito] implantasse escolas e creches públicas boas e que funcionassem até às 17 horas... Aqui a creche solta as crianças às 15 horas. As mães não podem sair do trabalho nesse horário. E ninguém trabalha somente até 15 horas. Deve parar as greves, a prefeitura deve aumentar o salário dos professores para eles não entrarem em greve (Entrevistado D).

“Falta uma escola boa” (Entrevistado G). “[...] a escola pública que tínhamos no bairro foi desativada. Os alunos tiveram que estudar em outro local” (Entrevistada I). Sobre esse aspecto, cabe relatar o fato de os jovens do Calabar, principalmente os homens, não poderem estudar em escolas da vizinhança, como as unidades de ensino médio situadas no Garcia - a escola Hildete Lomanto e a escola Edgar Santos - pois essas escolas foram identificadas pela facção rival como não sendo território do Calabar. Por conta disso, muitos jovens abandonam os estudos por não terem condição de pagar o deslocamento para outras escolas mais afastadas. Especificamente este ano, houve uma “proibição” aos jovens do Calabar de frequentar estas escolas pela facção criminosa do Garcia, o que acarretou a evasão escolar de jovens homens e mulheres também, por estarem envolvidos por meio de familiares traficantes, ou simplesmente por serem jovens moradores do


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Calabar. “Precisamos aqui de uma escola pública. Nós temos uma Escola aqui, mas é comunitária. Funciona precariamente porque tem pouca ajuda” (Entrevistado E). Há um reconhecimento da importância da Educação como forma de inserção cidadã na sociedade: Fui voltar a estudar, para tirar meu segundo grau, porque eu vi que tinha uma necessidade, como hoje há uma necessidade maior para eu procurar uma faculdade, já estou me preparando para isso, porque eu vi que era o caminho. A educação é o caminho. Eu voltei a estudar com 27 anos de idade. Eu saia andando de Ondina até o Pelourinho porque não tinha transporte. [...] eu me vejo capaz ainda de ser um psicólogo, algo para frente... na área em que eu estou trabalhando. Um assistente social, talvez (Entrevistado A).

A segurança é sem dúvida a necessidade básica mais latente apontada pela pesquisa. Com relação a este tema, os entrevistados têm consciência de que o Estado deveria intervir para minimizar os problemas decorrentes da violência. Mas, enxergam as ações do Estado com descrédito e incompetência. Em se tratando de segurança, temem a ação da polícia quando esta “aporta” na comunidade, pois vivenciam as terríveis trocas de tiros e suas consequências mortais. A descrença no aparato do Estado faz com que os moradores justifiquem a má fama do bairro como sendo uma decorrência do tráfico de drogas, “desobrigando” o Estado a garantir os direitos constitucionais e, muitas vezes, legitimando a ação dos traficantes na “proteção” da comunidade e seus moradores. [Sonho com um] Bairro sem violência. Onde as pessoas pudessem transitar livremente. As crianças pudessem brincar sossegadas. Aqui, quando vc menos imagina é um corre-corre, a polícia chega... É ruim [a ação da policia] porque quando chega uma visita em casa, tem que ir buscar no ponto. As pessoas ficam com medo da fama do Calabar. Mas, quando há tiroteio e morre alguém, não é um pai de família ou uma criança. Quando vai ver é envolvido [no tráfico de drogas]. Eu moro aqui há 14 anos. Nunca fui assaltada. Minha casa nunca foi arrombada. Meus filhos nunca foram assaltados. Meu irmão abriu um negócio aqui e ninguém mexe. Os traficantes não permitem que os usuários [de drogas] façam nada [de errado contra a própria comunidade]. Se alguém [os usuários] mexer com os moradores os traficantes interferem, porque não querem a polícia envolvida [circulando na comunidade, investigando...] (Entrevistado G).

O entrevistado A tem uma outra visão sobre a segurança do bairro:


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Eu já pensei e penso em entregar isso aqui [se refere ao prédio da Associação de Moradores] à Secretaria de Segurança Pública para ser transformado em uma UPP [Unidade de Polícia Pacificadora]. Entregar e dizer: olha, tá lá. O Estado assuma isso aqui. É isso que falta, na verdade. Não precisa o Estado nem se mobilizar muito. Era só ele investir no prédio, como existem os Centros Sociais Urbanos. Pela quantidade de moradores que temos entre as duas comunidades do Calabar e Alto das Pombas e adjacências, aqui já deveria ter um Centro Social Urbano. A gente [a Associação de moradores] não consegue administrar esse prédio sem dinheiro. Ninguém consegue. Não há mágica. O Estado gerencia o prédio e pode oferecer atividades para os idosos, para as crianças... [...] tem que tirar os traficantes do bairro. Porque é um poder paralelo que limita e tira o poder da associação. Muitas vezes são os traficantes que alimentam essas pessoas. Compram o gás... As armas, por exemplo, são guardadas nas casas dessas famílias que recebem os benefícios dos traficantes. As famílias protegem os traficantes. Eu espero que com a UPP acabe com isso aqui. Aí volta tudo ao normal (Entrevistado A).

Dupas (2003) elucida que, no contexto de falta de alternativas que envolvam uma ação pública eficaz, o ativismo político pela cidadania e pela justiça social foi se transformando em ativismo civil voltado para a solidariedade social. Deslocando, assim, a demanda pelas questões sociais do Estado para o terceiro setor. De fato, como nos revela o entrevistado A, apesar de vir à tona a necessidade da Educação e a consciência de que o Estado deveria intervir para garantir escolas e creches a todos, alguns veem a Educação como ação empresarial e não a consideram uma garantia de direitos. A bandeira da Educação é facilmente compreendida e aceitável que venha através das ações realizadas pelo terceiro setor e por empresas privadas, que na maioria das vezes realizam ações focais voltadas para atividades extracurriculares como teatro, dança, música, acompanhamento pedagógico, dentre outras;

não

oportunizando a conscientização para os direitos universalizados, como exemplifica a seguinte declaração dada pelo entrevistado L: “[...] as empresas privadas junto com as ONGs dão conta da Educação. Com relação à segurança tem que ser os órgãos públicos” (Entrevistado L). Os entrevistados da pesquisa têm conhecimento de que necessitam de Educação de qualidade, mas não tem noção de que tanto Educação, como Saúde,


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Trabalho e Segurança são direitos fundamentais e, portanto, “garantidos” a todos universalmente. Para quem vive em uma situação de extrema pobreza e crescente exclusão, pensar dessa maneira significa que há a identificação das lacunas e ausências das políticas públicas, mas há também uma desconfiança generalizada nos poderes públicos. Se o Estado não faz, alguém tem que fazer. E pode ser as empresas privadas, as ONGs, instituições religiosas... o importante é que diminuam o buraco da desigualdade, mesmo que momentaneamente. É uma forma de pensar fruto da exclusão. O entrevistado L ainda complementa: “[A Avante] Trouxe a esperança de emprego [...]”. Nessa afirmação o entrevistado se refere tanto ao Programa do Primeiro Emprego, quanto ao Projeto Grãos que também qualificou 180 pessoas e oportunizou, este último, a criação de empreendimentos solidários, gerando um contexto favorável a diferentes pessoas, a maioria fora das exigências do mercado formal – escolaridade mínima, faixa etária elevada, sem comprovação de experiência – a terem uma remuneração, fruto do próprio trabalho. Perguntado a todos sobre as ações da Avante na comunidade, a resposta indica uma legitimidade desta Instituição no Calabar por parte dos entrevistados. A Avante trouxe esperança para o bairro (Entrevistado L). Acho um trabalho sério, responsável. Que não se encontra em muitas ONGs por aí... Se não fosse a Avante aqui no Calabar acho que muita coisa não tinha saído do papel. Acho que ia ficar só em sonho (Entrevistado I).

“Acho que os projetos da Avante dão oportunidade a muita gente” (Entrevistado H). Trabalho muito bom. Vem ajudar as pessoas. Ajudar as cooperativas a criar autonomia. Ajudar jovens a sair da marginalidade, encontrar o primeiro emprego... Espero que tenham mais projetos para dar oportunidade a mais pessoas. É uma ajuda boa esse apoio da Avante (Entrevistado B).

“Essa busca de parcerias [para as cooperativas] com a ajuda da Avante foi muito bom.” (Entrevistado C).


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[...] eu conversava muito com o finado Tonico [líder comunitário que morreu no início desse ano] e eu sempre dizia a ele que a gente tinha que ter mais pessoas como a Avante aqui na comunidade. Porque temos aqui várias experiências de projetos que entraram e não deram certo. Eu via a esperança dos jovens quando participaram do projeto da Avante para o Primeiro Emprego. A Avante se deu bem com a comunidade. Não adianta vir aqui e não se dar bem com a comunidade. São as próprias pessoas do bairro, o próprio conceito da comunidade que diz se você vai ficar ou não (Entrevistado E).

De acordo com os relatos, o trabalho da Avante demonstra segurança e credibilidade. Os moradores do Calabar reconhecem a seriedade do trabalho da Avante e muitas vezes, por não se reconhecerem como cidadãos de direito, entendem que projetos como o Grãos seja a única saída para os problemas que infligem a comunidade. Como não há uma confiança no Estado, então se apegam a ações afirmativas que durante algum tempo os ajudam a viver com mais dignidade. Não têm a consciência política de seus direitos, muitos já “garantidos” na carta constitucional. Ao legitimarem a Avante, acentuam que esta só permanece no Calabar por ter conseguido a aprovação dos moradores, ao tempo em que justificam esta ideia comparando seus resultados com os de outras ONGs que também entraram na comunidade, mas não deram certo. A própria comunidade sabe limitar a atuação de uma ONG ou outra instituição que para eles aparente ser indesejável. Há também, por parte do entrevistado A, a clara ideia do papel das instituições do terceiro setor, como afirma o entrevistado A: [...] as ONGs descobriram na falha do poder público, por falta de políticas públicas para as comunidades, que as comunidades eram como se fosse um favo – de estar ali trabalhando e dando retorno para a comunidade. Mas isso não desagrada a ninguém. O terceiro setor é bem vindo nas comunidades. (Entrevistado A).

As lacunas deixadas pela ausência de políticas públicas sociais, como bem disse o entrevistado A, de fato favoreceu à multiplicação das ONGs, além das políticas neoliberais de diminuição do Estado no processo de globalização. Para a comunidade, a presença de organizações dando-lhes assistência é uma forma de incluí-los na sociedade. Não percebem que essa presença “bem vinda” não é contínua, não está assegurada por lei e não apresenta recursos assegurados para as atividades planejadas.


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Apesar da crítica contundente e transparente do entrevistado sobre os projetos privados na área social, ao final de sua fala deixa aberta a porta da sua comunidade para o terceiro setor, afirmando que as ações são sempre bem vindas. Ora, não há como entender essa atitude como forma de proveito ou benefício por parte dele, a não ser o legítimo interesse de ver resolvidos, seja lá por quem, os problemas sociais crescentes do Calabar. É a consequência da ausência das políticas públicas de proteção do Estado. É o desamparo vivido pelos excluídos, nas tensões geradas pela crescente concentração de renda e de exclusão social das massas populacionais urbanas, convivendo com mídias globais que valorizam o comportamento anti-social e estimulam padrões de consumo que poucos podem ter (DUPAS, 2003). Embora se possa pensar que as ações de algumas ONGs ligadas à Responsabilidade Social Empresarial se proponha a resolver o universo de problemas sociais do mundo contemporâneo, não passa de uma intenção em jogar o problema para “debaixo do tapete”, visto que as ações são inócuas diante da escala do problema e, [...] basicamente despolitizadora da questão social, pois pressupõe a desqualificação do poder público e, portanto, desconhece a possibilidade aberta pelo conflito interno no terreno das próprias políticas públicas para criar compromisso e qualidade diante dos cidadãos. (DUPAS, 2003, p.18)

É oportuno dizer que a crescente lacuna entre o poder de intervenção do Estado e o aumento das mazelas sociais perpetuadas por uma política econômica neoliberal amplia progressivamente as ações da sociedade civil e das empresas focadas em amenizar o disparate da desigualdade social. O entrevistado M, associado da Avante, entende que o limite das ações das ONGs está em não quererem, nem poderem substituir o Estado, embora sejam parceiras diretas no processo de transformação da sociedade. As instituições sociais, pela sua missão precisam atuar como parceiras do Estado propondo e executando ações que tenham impacto nas comunidades, promovendo a sua emancipação (Entrevistado M).


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O entrevistado N, também associado da Avante, reflete sobre as ONGs e seus limites ao dizer que, [...] pelo menos entre nós, no Brasil, tem havido uma proliferação exagerada de ONGs, levando ao que Dupas chamou o “reinado dos particularismos”. Em palavras bem simples e usando uma terminologia do futebol, isso ocorreria porque cada um quer ganhar o jogo sozinho. (Entrevistado N).

Sobre o relacionamento das ONGs com o Estado, o entrevistado N entende ainda que: O fato de o crescimento e a atuação das ONGs serem algo relativamente recentes, pelo menos no Brasil, também contribui para as dificuldades existentes no seu relacionamento com o Estado. A instituição das OSCIPs parece ter sido uma tentativa de fazer face ao problema, não totalmente bem-sucedida, porém. O fato é que até hoje não se encontrou uma forma, inquestionável, de estabelecer esse relacionamento – contratos, convênios, concursos de projetos e outros instrumentos de articulação e relacionamento. Sempre surgem questionamentos (Entrevistado N).

De fato, no Brasil, houve um crescimento significativo de ONGs a partir da década de 1990, quando as políticas neoliberais tomaram conta dos países emergentes e foram estabelecidas como receita em prol do desenvolvimento econômico. Filiais dos organismos internacionais se instalaram aqui pela “promoção do mundo subdesenvolvido”. Vale ressaltar que o crescimento das ONGs também aconteceu em escala mundial e o terceiro setor já tem sido caracterizado como um novo setor da economia, o da “economia social” (GOHN, 2008). Ainda de acordo com Gohn (2008, p. 82), para alguns autores [...] o terceiro setor é algo realmente novo, pois o Estado não consegue mais penetrar nas microesferas da sociedade. Ele só saberia atuar no nível macro, e as políticas públicas necessitam de mediadores para serem efetivas.

O entrevistado O, também associado da Avante, reflete sobre o papel do Estado e os limites das ONGs na transformação da sociedade: O papel do estado é o de oferecer os serviços necessários à vida em sociedade de modo a que todos os cidadãos tenham condições de se inserirem de maneira produtiva e participativa na sociedade, regulando as iniquidades, garantindo os direitos e promovendo o


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desenvolvimento. Para uma governança mais efetiva, o estado deve ser rigoroso na aplicação dos recursos, viabilizando a infra estrutura necessária ao desenvolvimento das pessoas e dos negócios, oferecendo serviços de qualidade, garantindo o arcabouço legal que organiza as atividades sociais, econômicas e política, assegura os direitos. [...]. As ONGs [...] não tem o poder que tem o estado, elas são atores importantes na denúncia e na proposição de soluções e caminhos de superação (Entrevistado O).

Dupas

(2003)

faz

críticas

ao

papel

das

ONGs,

afirmando

que

independentemente das influências que possam ter para as definições das pautas públicas, de fato, não podem, em seu conjunto, pleitear o monopólio da sociedade civil, tampouco a substituição da ação pública, uma vez que essas organizações têm objetivos e demandas específicas e necessitam da arbitragem de uma instância superior que possa definir prioridades amplamente aceitas. Em muitas entrevistas com os moradores do Calabar – público atendido pelo Projeto Grãos, as pessoas relataram sua total desconfiança do Estado, no que se refere à garantia dos direitos sociais. Até mesmo quando as ações do aparato do Estado funcionam democraticamente, há uma fé depositada apenas nos gestores e não no sistema de garantias. Funciona tão bem que eu não consigo associar o SIGA/6 como sendo um órgão da prefeitura. Eu não consigo associar. Na verdade, é questão de gestor. Porque sempre existiu esse órgão. Antigamente tinha as ARs que era por área regionais que se trabalhava. Mas, na verdade tinha uma outra intenção quando colocaram essas ARs, virou uma busca de votos. Não se trabalhava para a comunidade. Quando mudou o gestor e o nome também, acho que para mudar a cara, aí sim deu uma melhorada, realmente funciona (Entrevistado A). Se depender da prefeitura e do governo, a educação e o emprego... está zerado. É bom saber que empresas privadas trabalham para ajudar a comunidade. Isso é um sentimento horrível [se referindo à ineficácia das políticas públicas de proteção]. Se eu pudesse parar de pagar imposto... Qualquer coisa que você compra está pagando imposto. Se eu pudesse parar de dar dinheiro a eles... É chato eu ver que eles [os políticos] só pensam neles, roubam o dinheiro, não fazem nada pra gente... parece que a gente é esquecido, humilhado, sofrido.. É chato saber que a gente tem o dinheiro, mas eles não usam como deveriam usar (Entrevistado D).


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O poder público apresenta-se ineficaz, sem condição de executar, não consegue chegar à comunidade com oportunidade de emprego, trabalho decente, qualidade na Educação... Por isso as pessoas abraçam os projetos apoiados por empresas privadas. Se não se reconhecem como sujeitos de direito e não acreditam nos poderes públicos, os projetos, executados por ONGs e financiados por empresas privadas, por mais pontuais e focais que sejam, chegam às camadas mais excluídas da sociedade e servem de apoio em algum momento da vida dessas pessoas ou de refresco em determinado momento. Não resolvem os problemas crônicos, tampouco garantem os direitos, mas em algum momento essas pessoas se sentem acolhidas, se sentem ouvidas nos seus problemas individuais, que sejam. Aparece também na pesquisa um conformismo com o estado da infra estrutura alcançado no Calabar: há água encanada, luz elétrica, rua principal asfaltada, o saneamento básico é precário, mas há uma rede de esgoto na maioria das casas, além das famílias muito pobres serem atendidas pelos programas compensatórios do Governo Federal. Esta aquiescência aparece no entendimento dos seguintes entrevistados: Aqui já foi muito ruim. Era pior. Antes era muito difícil, quando chovia alagava tudo. Teve uma época que eu tinha que ficar na “cumeeira” da casa por causa do alagamento. Hoje está bem melhor (Entrevistado C). É difícil vc juntar pessoas aqui. Eles acham que já conseguiram tudo. Porque tem um Posto de Saúde, porque tem asfalto onde o carro possa entrar... Ainda vem o Governo Federal e dá uma bolsa Família de 120, 180 reais. O que eles querem mais? Vão reclamar de quê?Ah, se eu reclamar podem descontar do meu bolsa família. É assim que as pessoas pensam. A gente não consegue mais. É como se esse poder público tivesse tirado o nosso poder [da associação de moradores] (Entrevistado A).

É interessante observar a sinalização feita pelo entrevistado A sobre o Programa Bolsa Família do Governo Federal. Muitas pessoas no Calabar entendem que por estarem recebendo recursos do governo, não podem e não devem se posicionar criticamente frente ao próprio Estado, indicando, desta forma, o lugar que se colocam como “cidadãos”, consentindo que a vontade do “senhor coronel” – aquele que provê - seja feita em detrimento do “recebimento” da ajuda para se manterem.


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A resposta dada revela também o desconhecimento quanto aos seus próprios direitos e as responsabilidades do Estado, esvaziando e enfraquecendo, assim, a consciência política e a força da Associação de Moradores na busca pela garantia dos direitos. A ausência do Estado favorece a entrada das grandes corporações no que diz respeito aos temas da desigualdade social, sendo empurrada para o âmbito privado

a

responsabilidade

de

tratar

as

desigualdades

que

excluem

assustadoramente grande parte da população. Todavia, o privado atende de acordo com seus interesses numa determinada sociedade, não se sente responsável em atender as necessidades destas populações. Na verdade, as empresas, mesmo com o avanço da legislação em relação às suas responsabilidades sociais, ainda desconhecem ou ignoram essas atribuições. Para Dupas (2003), não há dúvidas de que o envolvimento de grandes empresas nas questões sociais traz eventuais benefícios para as comunidades assistidas, entretanto é também um grande recurso de marketing. As empresas descobriram o consumidor consciente: aquele que valoriza produtos de empresas que apoiam uma causa social ou que revelam ser sustentáveis suas ações. Há um número crescente de “consumidores verdes”, alavancando um consumo consciente e cobrando resultados dos investimentos sociais das empresas. Os consumidores estão inquietos e muito sensíveis às questões sociais e ambientais, exigindo dos produtos que consomem mais do que promoções ou novos sabores e criando maior lealdade a marcas que anunciam ser responsáveis por ações sociais, não importa quão verdadeiras ou conscientes essas ações sejam. (DUPAS, 2003, p.79)

O Instituto Walmart, em seu Relatório de Sustentabilidade 2010, explicita que para defini-lo, a Walmart Brasil [...] se orientou por três elementos principais: análise das tendências da comunicação da sustentabilidade do setor de varejo no Brasil e de empresas concorrentes em diversos países e consulta aos funcionários, público de relacionamento fundamental para a incorporação da sustentabilidade à estratégia da companhia. (INSTITUTO WALMART, 2010, p. 3).


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As orientações de uma grande empresa, como inerentes à sua natureza, partem da concorrência e da melhor estratégia de comunicação entre os seus funcionários e público final com o intuito de melhorar internamente, capacitando os funcionários e, consequentemente, aumentando sua margem de lucro. As empresas transnacionais incentivadas pelas políticas neoliberais concentram grandes recursos no mundo. Utilizam mão de obra barata em países diferentes da sua matriz, geralmente países da periferia econômica, consomem os recursos naturais desses locais, poluem o meio ambiente e não precisam arcar com as infinitas demandas de welfare (DUPAS, 2003). O Instituto Walmart, na condição de empresa transnacional, também mostra querer se adequar às exigências do mercado e aos consumidores mais exigentes que consolidam o consumo de produtos oriundos de uma cadeia sustentável. Não é à toa que no seu documento, o Instituto Walmart assume que toda a rede Walmart tem se voltado para propostas de sustentabilidade, priorizando a redução do impacto ambiental de produtos e embalagens, a erradicação do trabalho escravo e os sistemas produtivos relacionados à Floresta Amazônica (INSTITUTO WALMART, 2010). De acordo com o presidente da Rede Walmart Brasil, Héctor Nuñez, no que se refere aos clientes e aos fornecedores, o principal desafio é consolidar a percepção da sustentabilidade como um diferencial a ser buscado (INSTITUTO WALMART, 2010) e complementa afirmando que o sucesso da empreitada dependerá de um processo educativo e de uma mudança de atitude – e querem estimular essa evolução (INSTITUTO WALMART, 2010). Como o mercado consumidor aponta para o consumo de produtos sustentáveis, investir na cadeia produtiva com produtos ecológicos, fornecedores social e ambientalmente responsáveis, é procurar se diferenciar no mercado de atuação e atrair os crescentes consumidores como forma de garantir a liderança na corrida contra a concorrência. De acordo com a pesquisa Práticas e Perspectivas da Responsabilidade Social Empresarial no Brasil 2008, realizada pelo Instituto Ethos, Instituto Akatu e Ibope Inteligência (2009), há um maior envolvimento das empresas brasileiras nos


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últimos anos no que se refere ao tema da RSE. Entretanto, como sinaliza as conclusões da pesquisa, ainda há um longo caminho a ser construído. Muitas práticas ainda não são adotadas pela maioria das empresas, enquanto as práticas mais adotadas tendem a estar relacionadas a temas que impactam mais diretamente na sobrevivência das empresas e/ou também relacionadas às imposições de regulamentações do setor que atuam. Isso fica evidenciado pelo fato de que as práticas que têm maior adesão, bem como os temas (agrupamentos de práticas) que apresentam maiores médias percentuais são aqueles relacionados à proteção das relações de consumo e relações de trabalho – geralmente temas submetidos a pressões do mercado e sociedade e também regulados por leis e normas. (INSTITUTO ETHOS. INSTITUTO AKATU. IBOPE INTELIGÊNCIA, 2009, p. 7)

A pesquisa Práticas e Perspectivas da Responsabilidade Social Empresarial no Brasil (2009) também revela que os temas mais desafiadores são aqueles que necessitam dialogar com um maior número de “stakeholders” e são voltados para além dos interesses empresariais imediatos, como meio ambiente, ética e transparência, governança corporativa, dentre outros. Todavia, estes temas favorecem um aprofundamento maior sobre RSE dentro das empresas, muitas vezes demandando maiores recursos e até mesmo mudanças significativas na cultura da empresa, exigindo dela um envolvimento mais efetivo. Dupas (2003) cita David Herderson, economista da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), pois este faz um contraponto com a ideia de efetividade da Responsabilidade Social, ao afirmar que esse novo compromisso com a responsabilidade social é um mero expediente para encobrir o legítimo e crescente interesse pelo lucro. David Herderson acusa os [...] partidários da responsabilidade social, que agem de boa fé, de não entenderem como o capitalismo funciona. Lembra que a boa cidadania empresarial não é gratuita, e que seu custo adicional acaba sendo pago por toda a sociedade via aumento de preços (HERDERSON apud DUPAS, 2003, p. 79).

Entretanto, ideias de sustentabilidade, de cuidado com o meio ambiente, de democratização do acesso a produtos de qualidade não são iniciativas que devam ser descartadas, ao contrário, em países periféricos, onde existe faixa de miséria e pobreza extrema, ações de natureza sustentável são importantes. Contudo, essas


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ações, mais cedo ou mais tarde despertarão um legítimo interesse social exigindo padrões internacionais trabalhistas e ambientais para seus concorrentes de países pobres, limitando com isso ainda mais sua concorrência e piorando o desempenho da economia global (DUPAS, 2003). Fiscalizar, atuar, assumir metas sociais, ambientais e econômicas e construir políticas públicas que assegurem o trabalho decente, o meio ambiente e o interesse coletivo deve ser função do Estado e não de empresas privadas conflitando, o interesse destas com o do cidadão. O Instituto Walmart, na virada de 2007/2008, em plena crise econômica americana, solicitou aos parceiros que revissem suas planilhas financeiras porque, no ano de 2008, haveria um corte em torno de 50% dos recursos destinados ao investimento social privado. O Projeto Grãos, então confirmado para ser apoiado na sua segunda etapa precisou sofrer cortes na planilha e diminuir o tempo de ação, antes previsto para dois anos. É importante dizer que, como parceiro de trabalho, o Instituto Walmart foi, durante todo o tempo do Projeto Grãos, flexível e aberto a mudanças, permitindo uma autonomia de ações e modificações necessárias ao desenvolvimento do Projeto Grãos. Sobre a avaliação da parceria com o Instituto Walmart, o entrevistado M relata: Foi muito positiva [a parceria com o Instituto Walmart] porque permitiu a flexibilidade que o Projeto Grãos precisava. Isso ajudou principalmente a estabelecer novos caminhos, a redirecionar ações, permitindo avaliações permanentes e a construção de novas possibilidades e de reforço à sustentabilidade dos grupos produtivos através do atendimento de suas principais demandas (Entrevistado M).

A Avante e o IWM sempre tiveram uma parceria pautada na confiança, no diálogo e na transparência das ações e da prestação de contas. Tudo era conversado e acompanhado pela responsável pelas ações do Instituto. Para a Avante, o Projeto Grãos é um “espaço de aprendizagens permanentes” (Entrevistado O). Em diversos momentos no percurso do apoio aos grupos produtivos, precisei ajustar metas, ações e recursos do Projeto Grãos em função dos


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acontecimentos e do andamento diferenciado de cada grupo. Vale salientar que sempre fui ouvida com seriedade e respeito pelo que eu relatava, tanto nos encontros presenciais com o IWM, quanto nos relatórios técnicos apresentados por mim e toda a equipe do PG. Contudo, a flexibilidade demonstrada pelo agente financiador estava dentro dos parâmetros definidos por ele. Não se mostraram muito preocupados com o rumo do projeto, ou com a mudança de objetivos e metas. A preocupação maior era com a prestação de contas, além de verificar se o recurso investido fazia jus ao ser dividido pelos beneficiários atuantes, indicando uma preocupação apenas quantitativa dos indicadores e nenhum envolvimento com mudanças de outra natureza. Durante os três primeiros anos de parceria com o IWM houve uma mudança de responsáveis pelo supervisionamento dos projetos sociais em que o IWM investia. Eram sempre momentos de muita tensão para mim e para todos os outros envolvidos, por não sabermos se continuaria a mesma linha de parceria e conceitos sobre as ações implementadas. Todavia, as duas técnicas que passaram e a terceira que permanece até o momento foram pessoas importantes para a construção da teia do Projeto Grãos no Calabar. Tinham uma visão de respeito e admiração pela parceria da Avante e agiam como interlocutores sensíveis às questões que eu trazia, possibilitando mudar os rumos das ações quando aconteciam fatos importantes e delicados e que necessitavam de ações diretas e não previstas, a fim de não afetar o andamento dos grupos produtivos e objetivando também a sustentabilidade do projeto. Fui ouvida pelas pessoas responsáveis por esse diálogo com as organizações da sociedade civil que faziam parceria com o Instituto, o que não traduzia verdadeiramente o pensamento real da empresa, uma vez que o IWM não se pronunciou frente às perguntas levantadas pelo questionário da dissertação. Numa análise mais crítica, esse silêncio evidencia a fragilidade dos ISP, pois o interesse das empresas não está em investir nas questões sociais atreladas às necessidades reais da comunidade. Os investimentos acabam sendo focais e provocam pouca transformação social, como no caso do PG, que, sem a parceria com o poder público terá a sua continuidade comprometida na comunidade do Calabar.


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Há que se refletir ainda, que no caso do Projeto Grãos, as ações executadas pela Avante, apesar de validada pela comunidade, não terão continuidade por parte do Instituto Walmart, após março de 2011, e, principalmente, não há indícios de políticas públicas nas esferas municipais ou estaduais que deem continuidade a esses programas e fortaleçam as ações de geração de emprego e renda em áreas críticas como o Calabar. Como já foi constatado antes, o investimento nesta comunidade foi importante para devolver a muitas mulheres o orgulho de serem produtivas socialmente por meio do trabalho decente durante os três anos e meio de apoio. Infelizmente, não há como prever ao certo, o futuro da continuidade destes grupos produtivos. O grupo de costura (Coopercid) está mais consolidado em suas relações pessoais e está inserido em redes que possam, de alguma forma apoiá-lo na sua produção. O grupo de alimentação (Coops) ainda apresenta fragilidades nas relações interpessoais de seus membros e pouco amadurecimento para buscar a sustentabilidade do grupo. Não havendo um apoio efetivo de políticas públicas no âmbito do município ou estado que fortaleçam o empreendedorismo e a economia solidária. Muito provavelmente há restritas chances deste grupo conseguir manter-se, sem nenhum apoio, equilibradamente, devolvendo para a comunidade do Calabar a inserção social necessária à essa população. A pesquisa também revela que as ações do Projeto Grãos permitiram grandes aprendizagens na vida das mulheres do Calabar. Durante as entrevistas, foram citadas a importância das ações com as famílias, da reunião com a psicóloga, das qualificações técnicas oferecidas pelo Projeto e da geração de renda empreendida pelo trabalho de cada uma e de todas juntas nos grupos produtivos, validando muito as ações implementadas no Calabar. Dentre os depoimentos, destaco os seguintes: O PG representa conhecimento, poder conhecer pessoas de outras classes sociais e poder aprender com essas pessoas. Representa crescimento pessoal. Poder ser reconhecida e elogiada pela minha família, com as coisas que eu faço. Os passeios e os lugares que nós já fomos me marcaram muito: o sítio Mundo Verde e a Biblioteca Central, por exemplo, eu nunca tinha ido. Através da cooperativa conseguimos um contrato de fornecimento de lanche para um outro projeto. Eu nunca tinha recebido tanto dinheiro na minha vida. Eu nunca tinha pegado em uma nota de 100 reais vindo do meu próprio trabalho. [Outro ponto positivo do PG foram] as reuniões dos


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encontros de família. Eu estava com dificuldade com minha filha. Eu não sabia que eu tinha o direito de acionar a escola por [esta] não acompanhar o aluno dentro da escola. Ela estava dentro da escola, mas não assistia às aulas. Uma adolescente dentro da escola que não assistia as aulas e os pais não eram chamados? Quando eu fui saber disso a minha filha já tinha perdido o ano. Na palestra do Grãos fui vendo que eu tinha direitos. Fui mudando meu comportamento com ela. Vi na palestra que eu podia pedir ajuda no CRAS ou CREAS. Levei minha filha para o psicólogo. Vi que não podia ficar protegendo ela o tempo todo. Quando ela fazia as coisa eu ficava com vergonha e não deixava ela assumir as responsabilidades. Ela já melhorou 90% (Entrevistado C). Aqui eu tenho uma ocupação, uma atividade. Ficar em casa sem fazer nada vai baixando a estima da pessoa. Quando eu recebia o dinheiro da cooperativa eu sentia que tava fazendo alguma coisa, era o resultado do meu trabalho. Me sentia como se tivesse realizada. Antes do Grãos não tinha uma visão de rumo. Depois do Grãos eu tinha uma qualificação. Vi que era uma profissão boa, que tava ganhando dinheiro. Estou com uma cabeça mais aberta, mais responsável. Minha família me vê como uma pessoa mais interessada, que corre atrás dos objetivos. Conheci outras pessoas. Nunca tinha vivido em grupo e aprendi a me relacionar com as pessoas. Com o apoio da psicóloga eu consegui me expressar melhor, me colocar mais no grupo (Entrevistado I). Realizei meu sonho de costurar. O Grãos ajudou as mulheres a trabalharem (Entrevistado F). O fato de ter um trabalho é marcante. De ter uma renda do meu trabalho. De sustentar minha família. Agora eu tenho netos em casa, posso comprar coisas para eles. Eu precisava germinar antes do Projeto Grãos, agora eu virei uma árvore. Eu hoje me sinto uma profissional. O fato de ter feito o curso no SENAI foi marcante também. Eu, fazer um curso numa empresa de porte? Imagine! Os encontros de família também marcaram muito. Hoje eu vejo que os encontros com a psicóloga são importantes porque falamos de nós, das coisas que estão nos afligindo, dos sentimentos, como tratar o outro, aprender a lidar com o outro... As pessoas que estão e as que passaram pelo projeto nos incentivam muito. Antes eu chamava todo mundo de dona. Agora eu já falo o nome (Entrevistado E). Eu sei que se um dia eu sair daqui e não tiver trabalho, eu sei que eu tenho um porto seguro, porque o que eu aprendi aqui posso fazer na minha casa, posso fazer festas [se refere à produção e venda dos doces e salgados]. Aprendemos a trabalhar em grupo que é difícil. Aprendemos a nos organizar. O retorno financeiro é muito importante porque eu compro muita coisa com esse dinheiro daqui. Não fico dependente de marido. Isso é bom. Antes de entrar aqui eu era uma menina sedentária. Ficava só em casa cuidando de mãe e de filho. Não saia, não trabalhava, não fazia nada. Depois do Grãos eu tenho


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um trabalho. Cuido da casa primeiro e depois vou ao trabalho, já tem alguma coisa para fazer. Para mim já foi importante porque parei o sedentarismo, saí de casa, aprendi coisas novas. Trabalho, ganho meu dinheiro certinho. Antes do Grãos eu era triste, agora eu sou outra pessoa: melhor, mais segura do que quer da vida (Entrevistado D).

De acordo com os dados desta pesquisa, os relatos acima comprovam que as ações do Projeto Grãos oportunizaram uma grande mudança na vida dessas mulheres, de suas famílias. Algumas mulheres confessaram a mim, em várias de nossas conversas, que o fato de estarem gerando renda as deixaram mais fortalecidas no casamento: “Antes eu tinha medo de quebrar um copo dentro de casa. Agora eu sei que se eu quebrar tenho dinheiro para colocar outro no lugar. Não tenho mais medo do meu marido brigar comigo” (Entrevistado C). Realizar sonhos, sustentar filhos e netos, gerar renda, aprendizagens, oportunizar trabalho, ampliar a visão de mundo, ampliar conhecimento... São capacidades e habilidades que talvez essas mulheres, se não tivessem oportunidade, não soubessem nunca que eram capazes, que havia um mundo além da comunidade do Calabar. O Projeto Grãos trouxe também dignidade e vontade de transformar seus horizontes, sejam eles pessoais ou profissionais. Há, hoje, na comunidade do Calabar, dois espaços de geração de renda completamente adequados ao uso de cada grupo. Uma cozinha ajustada dentro das normas da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e uma outra sede com máquinas de costura para o trabalho com malha – escolha produtiva feita pelo grupo de costura. Há também um reflexo, ainda que discreto e iniciante, com vistas à atuação na comunidade, como exemplifica o entrevistado B, ao ser questionado sobre se o Projeto Grãos ajudou a diminuir os problemas existentes no Calabar: “Ajudou porque através do Grãos as pessoas da comunidade ficaram mais juntas”. O entrevistado E também traz em seu discurso os benefícios do Projeto Grãos na Comunidade do Calabar: As pessoas sabem que têm as cooperativas no Calabar e que esse projeto é importante para a comunidade. Se a gente não tem acesso às coisas... quando a gente tem acesso é muito rico. A comunidade


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aprende. Com uma profissão podemos gerar emprego para outras pessoas da comunidade. As cooperativas ajudam a dar nome ao Calabar. Podemos sair daqui e falar que a comunidade tem isso [os grupos produtivos] de importante (Entrevistado E).

Essas mulheres demonstram orgulho do que fazem, do que são, do que se transformaram. Tem em mãos um trabalho decente que realizam com dignidade e prazer. O Projeto Grãos foi muito além do seu propósito inicial, de geração de renda, proporcionou aos participantes a possibilidade de identificar e desenvolver novas oportunidades

de

sobrevivência,

de

novas

habilidades

profissionais

e,

principalmente, de elevar a estima dessas pessoas, fazendo com que elas acreditassem em si mesmas reconhecendo suas aptidões e talentos, descobrindo novas capacidades. Para o entrevistado M, do grupo da Avante, o Projeto Grãos representa [...] uma oportunidade rica em aprendizado e realização da sua

missão, contribuindo para a educação e a mobilização social em busca da melhoria da qualidade de vida das pessoas através da geração de renda. Em suas duas edições o Grãos teve uma dinâmica própria, transformando-se em um laboratório permanente de experiências ricas em aprendizado, alimentado pela açãoreflexão-ação. Os desafios do cotidiano e a metodologia desenhada e testada no Projeto foram ingredientes fundamentais para o estudo e criação de uma tecnologia própria que pode ser replicada em outras comunidades. As aprendizagens foram múltiplas, permitindo reflexões constantes sobre a ação (Entrevistado M).

Durante a pesquisa, o entrevistado A relata sua correria para satisfazer o pedido de uma grande retransmissora de uma rede televisiva da Bahia, que queria filmar a comunidade do Calabar. A produção do programa dessa retransmissora solicitou que ele identificasse três “figuras” da comunidade para uma entrevista. Como seria um programa onde não ligaria o Calabar à violência nem ao tráfico de drogas, o entrevistado entendeu que seria importante associar a comunidade a esse programa de TV. Encontrou o vendedor de cafezinho apelidado de “Bel” [uma referência ao cantor da Banda Chiclete com Banana – Bel Marques] por usar uma bandana na cabeça e o cabelo comprido, igual ao cantor. Entretanto, o entrevistado A não conseguiu as outras duas “figuras”, pois o vendedor de temperos não se sentia morador do Calabar, apesar de morar dentro das fronteiras da comunidade. Alegou que morava na Federação e não fazia parte desta comunidade.


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“Fiquei

chateado, rodei essa comunidade toda, mas só achei uma „figura‟,

porque eles [o programa de televisão] não queriam mostrar capoeira, dança... queriam uma „figura‟ diferente‟” (Entrevistado A). A mídia televisiva, inclusive, imersa no desespero de gerar audiência para vender as publicidades do horário, apela para programas sensacionalistas que recorrem ao bizarro do indivíduo como fonte de distração para o coletivo. De acordo com Dupas (2003), o dinamismo da vida pública do século XVIII foi substituído, no século XX, pela emergência da sociedade do espetáculo e do consumo. É oportuno dizer que os indivíduos se tornaram passivos, saindo do debate no espaço público para observar, ao invés de participar. Essa situação se agrava quando interesses privados começam a assumir funções políticas nas mídias e no Estado, fragilizando ainda mais a tênue linha entre o público e o privado. Mais uma vez, o cidadão foi empurrado para a posição de espectador e consumidor passivo e a esfera pública passou a ser dominada pela manipulação midiática das elites (DUPAS, 2003). As

entrevistas

revelaram

ainda

que

algumas

mulheres

do

PG,

principalmente aquelas que tiveram uma participação comunitária mais atuante nas décadas de 1970 e 1980, começam a sentir falta da mobilização da comunidade para as questões que a cercam; principalmente da mobilização dos jovens, como revela o entrevistado L, que participou ativamente, na adolescência, da construção do prédio onde sediou a Juventude Unida do Calabar (JUC), atual centro da Coopercid: Antes os jovens lutavam e hoje não há manifestação. Por exemplo: o Posto de Saúde ficou três anos parado e não houve nenhuma manifestação coletiva da comunidade para reativar o posto. Todos deveriam estar juntos. Não adianta fazer uma ação e a comunidade não aderir. Hoje os jovens estão muito acomodados (Entrevistado L).

De fato, como lembra Fernando Conceição (1986), no Calabar nas décadas de 1970 e 1980 a movimentação das pessoas era muito maior, havia muita gente mobilizando a comunidade, havia também um grupo de jovens que movimentava a comunidade com festas, encontros, programas culturais. O entrevistado B relembra esse tempo e traz a mobilização da associação do bairro como uma necessidade: Eu sinto saudade do tempo da minha juventude. Apesar de que antigamente não tinha muita coisa como acesso à internet, TV.


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Aquele tempo era mais precário [se refere ao saneamento básico], mas a gente tinha liberdade de ir e vir, de brincar. Hoje está mais evoluído, mas eu sinto saudade daquele tempo. O entrosamento era mais forte. A Associação de Moradores era mais forte. Eles divertiam mais. Havia mais eventos, as reuniões na comunidade eram mensais. Havia grupos de samba, vinham grupos de outros bairros para se apresentar aqui. Hoje em dia não vemos mais nada disso (Entrevistado B).

O entrevistado A faz uma análise sobre a participação dos moradores da comunidade do Calabar, ao ser questionado sobre as necessidades básicas, uma vez que, para ele, não há mais necessidade de intervenções básicas como saneamento, luz, rede encanada de água, dentre outras. O que falta, na visão dele é Conquistar o morador. Porque esses moradores chegaram a um patamar onde eles acham que não precisam mais dos órgãos públicos, não precisam mais da Associação de Moradores, não precisam mais dos vereadores, não precisam mais de nada... Quer dizer, saíram de um estado de miserabilidade total, onde não tinham nada: poste, saneamento, luz. E houve muita luta da Associação de Moradores para garantir essas coisas. Hoje a comunidade tem uma escola comunitária, tem uma creche. Então, quando nós vamos fazer uma assembléia aqui ninguém aparece. É difícil você juntar pessoas aqui. A nossa função é de lutar, de reclamar. O meu sonho é queimar a Avenida Centenário toda, para reivindicar uma praça aqui na comunidade. Desde 2005 que reivindicamos essa praça. Já temos um croqui pronto da praça que está orçada em 5 mil reais. E aí aparece um senhor chamado Gedel, junto com João Henrique, com Wagner, junto com todo mundo e faz uma praça na nossa frente, na nossa cara, orçada em 28 milhões de reais e feita em 4 meses. Então, vou estar satisfeito com a praça da Avenida Centenário? Não foi feita uma pesquisa aqui na comunidade se a gente aceitava cobrir o rio. Por sinal, para o Posto Médico funcionar eu tive que falar isso para o Secretário de Saúde. Eu disse que se ele não fosse no outro dia pela manhã, eu iria tocar fogo na Avenida Centenário. No dia seguinte ele estava aqui. O Posto de Saúde só funcionou por causa disso. Para 2011 e daqui pra frente a gente tem que resgatar a consciência do morador para que o bairro não deixe de ser resistência. Ninguém quer vir para cá [Associação de Moradores] para lutar. Não há chapa. Pode ter 100 [pessoas] lá fora criticando, mas não tem um para dizer: vamos lá (Entrevistado A).

A ideia de políticas públicas clientelistas é confirmada por atitudes como a do governo municipal de Salvador, que, só após ameaça de má publicidade em torno do Posto de Saúde, que ainda se encontrava fechado, resolve entregar à população o que lhe é de direito, em função da proximidade das eleições, visto que naquele momento seria prejudicial à reeleição do gestor público municipal.


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O entrevistado A também tem consciência do valor gasto na praça da Avenida Centenário e do que poderia ser feito no Calabar com bem menos recurso do que foi gasto. Este mesmo entrevistado conta um fato acontecido no ano de 2010 que, segundo ele, ilustra como e com o que se mobiliza atualmente uma comunidade: Ivete Sangalo fez um Caruru no “ferry” e sobrou caruru. A assessora dela ligou para mim - acho que achou no catálogo telefônico e tava lá: pobre - e me ofereceu esse resto de caruru. As panelas não tinham sido mexidas nem nada, veio uma nutricionista para dar garantia que aquela comida estava boa. Com 15 minutos que eu disse a 3 pessoas apenas que ia distribuir esse caruru, tinha fila até na entrada do Calabar. E gestante aqui na frente cobrando prioridade, com a panela na mão. Quase sai gente no tapa. Assim mobiliza a comunidade: oferecer dinheiro, oferecer alguma coisa. Mas, se você chamar a comunidade para lutar, ninguém mais faz isso. Tanto que alguns líderes comunitários por aí estão morrendo (Entrevistado A).

As pessoas têm participado pouco da vida cidadã, comportamento comum, hoje em dia em diversos países. Aqui em Salvador, as iniciativas de participação cidadã nos orçamentos públicos, por exemplo, ainda são primitivas e pouco difundidas pelos governos. Essa consciência pela busca da ação cidadã precisa ser ensinada, fomentada, desde as primeiras idades. Quando fui realizar minha residência social6 em São Brás de Alportel, região algarviana de Portugal, tive a oportunidade de presenciar discussões entre as crianças do município, representantes da Província e professores da ONG que as acompanhavam, sobre o futuro do orçamento para a infância e juventude. Havia um recurso de infra-estrutura a ser acordado com os jovens sobre o que seria feito. No ano anterior, haviam decidido montar pistas de skate em locais indicados pelos próprios jovens e, naquele momento, estavam discutindo os novos rumos do próximo orçamento participativo.

6

Atividade curricular do mestrado em Desenvolvimento e Gestão Social da UFBA, quando os mestrandos encontram atividades internacionais semelhantes ao seu tema de pesquisa e observam as ações durante um período de tempo.


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Apesar da sofrível ação cidadã em busca da abertura do Posto de Saúde, espaços como o Calabar carecem de sujeitos autônomos do protagonismo político e civil e do exercício conjunto e conflitivo do debate, reflexão e deliberação sobre um mundo comum (PAOLI, 2002), a fim de conseguirem ir além das garantias de direitos do homem, mas também serem capazes de deliberar sobre as demandas existentes e transformá-las em direitos novamente, como um ciclo de verdadeira autonomia. O entrevistado G tem uma visão mais crítica sobre a resolução dos problemas da comunidade e a participação cidadã. Apresenta uma consciência do panorama político, das eleições e também tem consciência do poder de voto de uma comunidade inteira. Se a comunidade, a Associação [de Moradores], o Grupo de Mulheres do Calabar, a Coopercid, a Coops, a Biblioteca [comunitária], a Escola Aberta... se esse grupo se reunisse e em discussão tentasse achar uma possibilidade... iríamos atrás do prefeito, do governador, dos vereadores que só vêm aqui em tempo de política [eleição] e falam que vão fazer, vão fazer e não fazem... e se a gente começasse a pressionar juntos para fazer projetos para que venha [para a comunidade] a gente conseguiria. Mas, se o grupo ficar separado, só olhando para o nosso umbigo, não acontece. Não tinha o grupo que se juntava [se refere ao grupo de jovens e de moradores do Calabar que, na década de 1970/1980 se juntavam para pedir providências básicas para a comunidade, como saneamento, água encanada, luz] e procurava melhoria para o Calabar? Se esses grupos Coopercid, Coops, Associação de Moradores... se juntassem acho que a gente conseguiria. Não mudaríamos tudo, mas mudaríamos um pouco a realidade do Calabar. [é preciso] Pressionar os governadores... o poder, quem tem o poder. Se ficar um grupo sozinho não vai conseguir. Mas, se juntar todos os grupos e pensar em estratégias para ver como podemos chegar lá [nos governos], acho que a gente consegue mudar a realidade. Tem que juntar o grupo todo para os políticos se sentirem pressionados e dizer „eles‟ [os grupos do Calabar já citados] estão querendo alguma coisa. E no tempo de eleição sabem que a gente vai ter força na comunidade. Se fomos pedir apoio a eles e eles não derem não vamos votar mais neles porque eles não fazem nada. Aí eles [os políticos] vão ver. Porque já teve político que se elegeu aqui no Calabar (Entrevistado G).

Todavia, essa consciência política não representa a maioria dos entrevistados. Como se pensar em um projeto de futuro mais amplo, não diria respeito a essa comunidade, a essa gente que demonstra não ter consciência dos seus direitos fundamentais. Veem o Estado com descrédito e desconfiança total. Por


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esse motivo, talvez apostem em ações privadas para melhorar o seu entorno. Ações que na maioria das vezes são focadas e não têm acompanhamento posterior, impossibilitando sua efetiva e duradoura continuidade. O buraco aberto pela desigualdade social se alastra no decorrer do tempo e dos acontecimentos globais e gera as mais difíceis chagas da pobreza: a violência e a exclusão social. Embora haja práticas sérias de investimento social privado, é preciso que se fomente a autonomia do cidadão, a conscientização dos direitos para que as pessoas possam exigir do Estado o seu papel de intervenção necessária para garantir o equilíbrio da igualdade social. Por mais que as empresas usem tecnicamente suas habilidades, competências e recursos com o objetivo de desenvolver seja lá que comunidade, é imperioso se ter uma população formada por pessoas que pensam e refletem sobre o projeto de futuro que querem ter. De acordo com Paoli (2002), apenas pela participação no sentido e escopo dos direitos é que podem se configurar novas formas de resistência e de sociabilidade que, em si mesmas, são opostas às vazias ideias de futuro, sem crítica e sem projetos, das variantes mercantis do neoliberalismo. Nada dessa excelência técnica garante que seu modo de funcionamento nas empresas impeça progressivamente de produzir o apagamento do sujeito cidadão autonomizado e diferenciado pela consciência e práticas cidadãs de ter direitos. Estas últimas são as únicas bases até agora conhecidas sobre as quais a produção de uma esfera pública se faz concretamente em qualquer espaço e tempo em que possa ser exercida, pela única razão de que a noção de direitos cria comunidades políticas falantes e reflexionantes sobre si mesmas e não submissas à aleatoriedade das necessidades e conveniências que lhe vem de fora, por mais compensadoras e admiráveis que sejam (PAOLI, 2002, p. 413).


6 CONCLUSÕES

O Projeto Grãos com todos os seus desafios, limitações, incoerências e acertos trouxe, não só para mim, mas para a equipe da Avante, que com ele dialogou diretamente, muitas aprendizagens. Sempre no intuito de acertar, sofremos e nos alegramos com os diferentes rumos da caminhada do Grãos. A equipe direta do Projeto mergulhou junto comigo em cada atividade, ação, correria, reflexão. Foi uma experiência singular na minha vida. E, se assim posso dizer, na trajetória da Avante também, sendo uma experiência embrionária na Instituição, de fomento e acompanhamento a grupos produtivos. A vontade de acertar e entender os fenômenos diários desta jornada, com seus vários atores, foi tão grande que resultou na escrita desta dissertação. Concluo esta pesquisa faltando pouco tempo para também terminar o Projeto Grãos. Por isso, talvez, as sensações decorrentes de ambos os fechamentos estejam latentes e transparentes nessas linhas. São inegáveis as muitas transformações pessoais dos participantes do Projeto Grãos, principalmente das mulheres que sustentam até hoje a Coops e a Coopercid. Como elas disseram, O PG fortaleceu os laços de família, encorajou-as a se posicionarem dentro de casa, com seus maridos e filhos, oportunizou a geração de renda extra, para ajudar nas despesas da casa, apoiou a conquista de sonhos como aprender a costurar, a ter um certificado de um curso reconhecidamente sério, a poder gerar seus próprios recursos financeiros e a ser respeitada pela comunidade.


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As ações mais relevantes do Projeto Grãos que influenciaram positivamente a vida dessas mulheres, foram identificadas como sendo os encontros de Família e os momentos de grupo com a psicóloga, quando podiam refletir a cerca de si mesmas, da sua família e do relacionamento com as outras mulheres do grupo. Sem dúvida, as mulheres da Coops e da Coopercid não são mais as mesmas de quando entraram no Projeto, até mesmo aquelas, que, beneficiadas pela qualificação técnica, alçaram outros voos e se inseriram no mercado formal de trabalho ou as que abriram seu próprio negócio na comunidade. O que sinaliza a natureza pontual e limitada do projeto. Hoje, por pequena que seja a ação, começam a entender a necessidade de se unir a outras iniciativas locais para fortalecer a si mesmas e à comunidade, no sentido de, juntas, cobrar do poder público a garantia de seus direitos. Para mim, a semente do Grãos foi plantada, mas sei como é complexa a florada. A pesquisa também revela a fragilidade na continuidade das ações do Projeto Grãos, findado o apoio do Instituto Walmart. Tanto a Coops quanto a Coopercid são formadas por mulheres com baixo nível de escolaridade, pouca qualificação técnica e escassos recursos, tanto para capital de giro, como insumos. Essas mulheres e a comunidade vêm pagando o alto preço de políticas econômicas perversas que as excluem das possibilidades de se incorporar, de maneira produtiva e cidadã, à sociedade. As políticas neoliberais tangenciadas pelo consenso de Washington, principalmente nos países emergentes, apoiaram entre várias ações, a privatização de empresas estatais, a liberalização do mercado de bens de capital, a desregulamentação da economia e a diminuição do papel do Estado. Cenário, cada dia mais crítico, revelando o crescente aumento da desigualdade social e suas mazelas. As empresas, sob a “boa prática” da Responsabilidade Social Empresarial, viram, nas lacunas deixadas pela intervenção mínima do Estado, campo fecundo para promover a si mesmas como “salvadoras” dessas mazelas sociais. Paoli (2002) chama atenção para a ideia de “participação de novos atores na questão social” e enfatiza que esta concepção nada mais é que a estratégia de


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legitimar o “desmanche” das garantias público-estatais, abrindo espaço para as ações sociais privadas ou não-estatal. Como consequência, os direitos sociais e do trabalho vão sendo negligenciados com vistas à sua reforma, uma vez que o Governo e os empresários empenham-se em descobrir modos legítimos de desconstruir as garantias sociais universais sob a alegação dos altos custos. Às empresas, não se exige que substituam as políticas públicas, mas que sejam aliadas do poder público constantemente. Ainda que se possa considerar um novo arranjo institucional em que o setor empresarial, junto com a sociedade civil participem de projetos sociais de longo prazo, seja para a nação ou uma região, a grande questão é a construção de um novo desenho institucional, com uma coordenação efetiva do poder público que viabilize esse dialogo a favor da inclusão social. Respondendo ao questionamento inicial sobre se os investimentos advindos de projetos privados amenizam as desigualdades sociais sem interferir em questões estruturantes como os direitos fundamentais do cidadão, a pesquisa chegou à conclusão que, sem o apoio do poder público, no sentido de dar continuidade às ações implementadas, tendo em vista a garantia dos direitos, torna-se tarefa intransponível, se deixada às custas unicamente da população excluída. Com exceção do líder comunitário, o público dessa pesquisa, demonstrou não ter consciência dos seus direitos fundamentais. E enxerga o poder público com descrédito e desconfiança total. Motivo que mobiliza a comunidade a acolher as ações da iniciativa privada como resolução para os seus problemas; sem refletir sobre o fato de serem, na maioria das vezes, focadas e não terem seguimento, impossibilitando sua efetiva e duradoura continuidade. O buraco aberto pela desigualdade social se alastra no decorrer do tempo e dos acontecimentos globais e gera as mais difíceis chagas da pobreza: a violência e a exclusão social. Embora haja práticas sérias de investimento social privado, é preciso que se fomente a autonomia do cidadão, a conscientização dos direitos para que as pessoas possam exigir do Estado o seu papel de intervenção, necessária para garantir o equilíbrio da igualdade social.


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Por mais que as ONGs e as Instituições sérias busquem desenvolver um determinado território, usando suas habilidades e competências, é imperioso que se tenha uma população formada por pessoas que pensem e reflitam criticamente sobre o projeto de futuro que querem ter, e que possam contar com a ordenação e coordenação dessas ações pelo Estado, por meio de políticas públicas que possibilitem a continuidade, gerando efetiva transformação social. O Projeto Grãos, tal como foi pensado e implantado, por si só, se mostrou frágil e dificilmente conseguirá fincar raízes no Calabar sem o apoio do poder público no que se refere à continuidade de suas ações, tais como, qualificação técnica, insumos e revisão dos estudos de viabilidade dos produtos comercializados. Ações básicas para se manter ativo qualquer empreendimento, ainda mais considerando que o trabalho associativo, além de um contexto adverso (ausência de infraestrutura social básica, segurança e financiamento adequado), pressupõe um aprendizado e relações mais estruturadas do que aquelas requeridas pela atividade por conta própria. Para mim, por mais sofrido que tenha sido chegar a essas conclusões, ainda move-me a esperança de uma sociedade mais justa, baseada em uma democracia onde a participação política não esteja ligada apenas ao poder do voto, mas à conquista dos direitos efetivos de cidadania, através de uma sociedade que supere as desigualdades de todas as naturezas.


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REFERÊNCIAS

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APÊNDICE A – Roteiro para entrevista com os profissionais da Avante 1. Nome: ________________________________________________ 2. Função na AVANTE: ______________________________ 3. Quais as “bandeiras” da AVANTE? 4. Para você, quais as necessidades básicas do Calabar hoje? 5. Quem você acha que melhor pode ajudar a superar essas necessidades básicas? 6. Para você, o PG ajudou a superar alguma dessas necessidades? 7. O que representa o PG para a AVANTE? 8. Para você, quais os pontos positivos do PG? 9. E os negativos? 10. Como você avalia a parceria com o IWM? 10.1. O que ficou de bom dessa parceria que pode ser multiplicado? 11. Qual a sua opinião sobre o uso de recursos de grandes empresas em projetos “sociais”? 12. Que modelo vc sugere ou acredita ser mais eficiente para a continuidade das atividades junto às comunidades. Queremos dizer: como criar mecanismos que permitam a continuidade dos projetos e a real transformação das vidas dessas pessoas, grupos? 13. O que significa Responsabilidade Social para vc? Como percebe o grau de compromisso da empresa financiadora? 14. Você acredita que a sociedade pode resolver seus problemas estruturais a partir de ações individualizadas? 15. Como fica o papel do Estado nessa situação? Qual o papel do Estado nessas ações sociais e que desenho de governança você imagina para uma participação mais efetiva? 16. Quais os limites das ONGs nesses processos de transformação da sociedade?


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APÊNDICE B – Roteiro para entrevista com o coordenador dos Investimentos Sociais Privados do Instituto Walmart 1. Nome: ________________________________________________ 2. Relação com o Projeto Grãos: ______________________________ 3. Quais as outras ações do Instituto? 4. Que outros projetos o IWM financia? Quais as áreas desses projetos? 5. Como o Instituto Walmart vê o apoio ao PG? 6. Para o IWM, quais as necessidades básicas da comunidade do Calabar hoje? 7. Quem o IWM acha que melhor pode ajudar a superar essas necessidades básicas? 8. Para o IWM, o PG ajudou a superar alguma dessas necessidades? 9. O que representa o PG para o IWM? 10. O que mais foi marcante durante o percurso do PG? 11. Qual a atividade do PG que o IWM julga mais importante? Por quê? 12. Para o IWM, quais os pontos positivos do PG? 13. E os negativos? 14. O que o IWM aprendeu com o Projeto Grãos? 15. Como o IWM considera os resultados do trabalho desenvolvido pelo Projeto Grãos? 16. Como o IWM avalia a parceria com a Avante? 16.1. O que ficou de bom dessa parceria que pode ser multiplicado? 17. Como o IWM vê o trabalho da Avante na comunidade do Calabar? 18. O IWM pretende continuar as ações na Comunidade do Calabar? Por quê? 19. O IWM prevê algum mecanismo para a sustentabilidade das Cooperativas de Mulheres do Calabar após o término do PG? 20. Há interesse do IWM em pensar ações que desacelerem paulatinamente o investimento realizado na comunidade do Calabar? 21. O que significa Responsabilidade Social Empresarial para o IWM? 22. Para o IWM, qual o papel do Estado nessas ações sociais? 23. Como o IWM avalia a ISO 26000? Há interesse do Instituto em colocá-la em prática?


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APÊNDICE C – Roteiro para entrevista com as mulheres que formam as cooperativas de alimento e costura do Projeto Grãos

1. Nome: ________________________________________________ 2. Idade:_______________ 3. Escolaridade:_________________________________ 4. Estado Civil:____________________________________________ 5. Endereço:______________________________________________ 6. Relação com o Projeto Grãos: ______________________________ 7. Há quanto tempo mora no Calabar: __________________________ 8. Filhos:_________________________________________________ 9. Conte um pouco da sua história de vida: (sua infância, seus anos escolares, seus filhos, casamento, fatos marcantes... - Breve histórico de antes e depois do Grãos) 10. Para você, quais as necessidades básicas da comunidade do Calabar hoje? / Quais os problemas do Calabar hoje? 10.1. Quem você acha que melhor pode ajudar a superar essas necessidades básicas? 10.2. Como essa comunidade pode ser transformada? 10.3. Em sua opinião, o PG ajudou a superar alguma dessas necessidades? 11. Como você tomou conhecimento do PG? 12. O que levou você a se inscrever no PG? 13. Na época da inscrição, quais as suas expectativas para o PG? 13.1. Suas expectativas foram alcançadas? Explique. 14. O que representa o PG para você? 15. O que mais marcou você durante o PG? 16. Qual a atividade do PG que mais ajudou você? Por quê? 17. Quais os pontos positivos do PG na sua vida? 18. E os negativos? 19. O que você aprendeu no Projeto Grãos?


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20. Em sua opinião, o PG ajudou a você a criar novas competências e habilidades para a sua vida que você não tinha antes? Caso afirmativo, quais? 21. Como você vê o trabalho da Avante? 22. Como você vê o trabalho da Avante na comunidade do Calabar? 23. Você acredita que ações apoiadas por empresas privadas ajudam a diminuir as necessidades básicas da comunidade? Por quê? 24. Quais os limites dessa ajuda? 25. Você acha que ações como o PG devem ser apoiadas pelas empresas privadas ou pelo Estado? 26. Que estratégias vocês usarão para manter a continuidade do trabalho iniciado

pelo

PG,

como

por

exemplo,

a

qualificação

técnica,

o

acompanhamento psicológico, apoio com os insumos... 27. Quando acabar o apoio financeiro do Walmart, quem você acha que pode continuar o apoio dado pelo PG? 28. É possível continuar a cooperativa sem apoio? Explique. 29. Como você se sente neste momento? 30. Pensando em você antes de participar do PG, o que você aprendeu com essa experiência? 31. Como você acha que a sua família via você antes de entrar no PG? 31.1. E como ela vê você agora? 31.2. Como você se vê agora?


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APÊNDICE D – Roteiro para entrevista com o líder comunitário do Calabar e atual vice-presidente da Associação de Moradores do Bairro Nome: ________________________________________________ 1. Atuação na comunidade: ______________________________ 2. Idade:_______________ 3. Escolaridade:_________________________________ 4. Estado Civil:____________________________________________ 5. Endereço:______________________________________________ 6. Há quanto tempo mora no Calabar: __________________________ 7. Filhos:_________________________________________________ 8. Quais as ações desenvolvidas na Associação de Moradores do Calabar, atualmente? 9. Quais as ações futuras? 10. Quem apóia a Associação? 11. Para você, quais são as necessidades básicas do Calabar hoje? 12. Quem você acha que melhor pode ajudar a superar essas necessidades básicas? 13. Como essa comunidade pode ser transformada? 14. Em sua opinião, o PG ajudou a superar alguma dessas necessidades? 15. Houve algum impacto do PG na comunidade do Calabar? Caso afirmativo, qual? 16. Em sua opinião, quais os pontos positivos do PG? 17. E os negativos? 18. Como você vê o trabalho da Avante? 19. Como você vê o trabalho da Avante na comunidade do Calabar? 20. Você acredita que ações apoiadas por empresas privadas ajudam a diminuir as necessidades básicas da comunidade? Por quê? 21. Quais os limites dessa ajuda? 22. Você acha que ações como o PG devem ser apoiadas pelas empresas privadas ou pelo Estado? 23. Que estratégias vocês usarão para apoiar as cooperativas na continuidade do trabalho iniciado pelo PG?


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