Ensinar para a compreensão e os múltiplos caminhos para a aprendizagem 1
Maria Thereza Marcilio Mônica Samia2 As decisões sobre como ensinar que o professor toma ao enfrentar a complexidade do universo de uma sala de aula refletem suas concepções, seus preconceitos, sua visão de mundo. Elas respondem a questões como: para que serve a escola? Qual a relevância daquilo que ensino? Como o sujeito aprende? Todos podem aprender? Como lidar com tantas diferenças? Como posso ensinar aos alunos para que realmente aprendam? Este artigo propõe analisar como os processos de ensino são uma conseqüência – consciente ou não – das crenças sobre o processo de aprendizagem, a partir de uma concepção sobre inteligência, e como isso tem um impacto na prática pedagógica. As concepções sobre inteligência sofreram, ao longo do tempo, muitas transformações. Na atualidade, ela continua sendo objeto de estudos e pesquisas. Faremos uma opção pela teoria das inteligências múltiplas desenvolvida pelo professor Howard Gardner. Ele propõe uma teoria que assume uma visão pluralista da mente, ou seja, a estrutura da mente humana é comum a todos os indivíduos, mas o seu funcionamento é único. Privilegia, ainda, um enfoque cultural: passa-se de uma visão individualista da inteligência para uma visão contextualizada. Segundo Gardner (2001), na medida em que uma capacidade é valorizada em uma cultura, ela pode contar como uma inteligência, mas, na ausência desse endosso cultural ou de campo, a capacidade não seria considerada uma inteligência, e a inteligência, ou inteligências, são sempre uma interação entre as inclinações biológicas e as oportunidades de aprendizagem que existem numa cultura. Uma outra contribuição desta pesquisa é a visão expandida da inteligência, o que significa que a inteligência existe também fora do corpo físico do indivíduo. Os seres humanos não trabalham sozinhos, usam vários elementos do seu entorno essenciais às suas atividades. Assim, faz sentido pensar neles como parte do equipamento intelectual do indivíduo. Diante deste cenário, no contexto institucional, há que se fazer uma escolha: ignorar estas descobertas ou reconhecê-las e buscar um novo modelo de escola. Deparamo-nos, então, com um enorme problema no funcionamento das instituições educativas: se elas são instituições coletivas, como organizar o ensino – as rotinas, os grupos, os currículos e programas – considerando as diferentes formas de aprender? O primeiro passo é assumir que este é um desafio urgente, pois de outra forma o modelo de ensino permanecerá alicerçado em um pressuposto falso em relação à aprendizagem. Dentro de uma visão sistêmica, consideramos estar aí um dos motivos do fracasso da escola: insistir em ensinar a todos de uma só maneira e no mesmo ritmo. Como organizar a prática pedagógica, considerando as múltiplas inteligências? 1 2
Texto publicado na Revista Pátio n. 38/Maio a Julho 2006. As autoras são membros da Avante – Educação e Mobilização Social/ONG
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Foi fazendo perguntas similares a esta que a equipe do Projeto Zero, liderada pelo profesor Gardner, iniciou uma investigação que buscava estreitar a distância entre as teorias sobre aprendizagem e os processos de ensino. Assim, pesquisando o que faziam os professores bem-sucedidos nas suas aulas, nasceu o marco didático ensinar para compreensão. O critério de êxito é o desempenho dos alunos, e este é definido a partir de uma concepção de aprendizagem que, na linguagem dos pesquisadores, significa compreender, ou seja, pensar, agir e sentir flexivelmente. Este é um dos grandes desafios da escola contemporânea: assumir que diferenças nos estilos de aprendizagem não são problemas, mas forças e possibilidades. É neste ponto que a teoria das inteligências múltiplas pode ajudar na proposição de um ensino mais eficaz. Ensinar para compreensão é fruto de uma investigação que procura a coerência entre esta concepção de inteligência e a prática pedagógica. Alguns princípios servem para nortear a prática: 1. Torne os estudantes conscientes de suas forças e habilidades. Utilize as inteligências múltiplas para apoiar seus estudantes e não para classificá-los. Eles devem conhecer as diferentes inteligências, identificando-as nas suas preferências e habilidades e nas formas como resolvem problemas. Se os estudantes tiverem esta consciência, também poderão apoiar os professores na escolha das estratégias que melhor atendam ao grupo e sejam geradoras de aprendizagem. Isso implica uma nova relação de poder na sala de aula: o professor assume o papel de guia e orientador, mantendo uma interlocução permanente com os estudantes. 2. Estimule a cooperação e autonomia dos estudantes. É necessário que se construa um ambiente cooperativo que estimule o desenvolvimento da autonomia. Mais uma vez, retoma-se a idéia de protagonismo: o professor apóia o estudante, criando condições para que este tenha ferramentas que lhe permitam alcançar determinadas metas de aprendizagem, que se sinta comprometido com seu próprio processo, além de compreender que pode aprender com a diferença, muitas vezes personificada em seus colegas, que têm formas de aprender diferentes das suas. 3. Compartilhe as metas de aprendizagem. Uma das tarefas importantes do professor é selecionar o que é central na abordagem de um conteúdo e direcionar o ensino para estes aspectos. Na sociedade contemporânea, o essencial não é a quantidade de informações, mas saber encontrá-las e utilizá-las, o que significa perguntar, duvidar, analisar, experimentar, errar, imaginar; em resumo, aprender a aprender. Traçar metas orienta o caminho, tanto no que se refere ao alcance quanto à profundidade e direção da investigação. Além disso, compartilhar essas metas com os estudantes ajuda-os a se comprometer com seu próprio processo de aprendizagem, além de tornar possível sua auto-regulação. 4. Elabore atividades (desempenhos) que vão além da informação, sejam diversificadas e com níveis progressivos de profundidade. Colocar o conhecimento em prática, em diferentes situações e maneiras diversas, constitui o pilar da aprendizagem para a compreensão. A prática pedagógica deve privilegiar tarefas intelectualmente estimulantes, envolvendo os estudantes para que possam expandir, reconfigurar e aplicar seus conhecimentos, tais como explicar, demonstrar, dar exemplos, fazer analogias, estabelecer relações. Devem fazê-lo de forma reflexiva, recebendo retroalimentação que lhes permita progredir. Esta pode ser oferecida pelo professor, pelos colegas, por materiais ou fichas de auto-avaliação. As atividades devem variar
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desde aquelas que colocam em jogo as concepções iniciais dos estudantes até as que exigem sínteses e elaborações mais profundas. 5. Utilize diferentes estratégias e recursos de ensino. Realizar uma prática que envolva múltiplas estratégias de ensino conduz a melhores resultados na aprendizagem A complexidade do ato de aprender exige tempo, múltiplas experiências e apoio constante. Além disso, considerando que compreender é usar o conhecimento flexivelmente, a variedade de situações permite que se estabeleçam diferentes conexões. Trazendo novamente a visão expandida da inteligência, podemos inferir que a possibilidade de compreender bem algo está intimamente relacionada aos recursos disponíveis. 6. Utilize diferentes “pontos de entrada” para a aprendizagem. Um dos grandes desafios do professor, segundo Meirieu (1998), é gerar (no aluno) a necessidade de aprender, fazer com que nasça o desejo de aprender. Uma forma de conquistar isso é elaborar diferentes formas de ensino para um mesmo conceito. Decidir qual é a melhor forma de apresentar um conteúdo é muito importante. Um professor competente, além de dominar o conteúdo, sabe as melhores formas de alcançá-lo. Assim, está sempre atento para buscar recursos que ajudem o estudante a acessar os conteúdos de múltiplas maneiras. Se os estudantes vêem um tópico através de uma única perspectiva, é praticamente certo que este conceito terá uma dimensão rígida e o seu uso será limitado. Gardner (2000) identificou pelo menos seis “pontos de entrada” ao conhecimento, que ajudam os estudantes na aprendizagem de determinados conteúdos. São eles: - narrativo: o conteúdo é acessado pelos elementos narrativos do tema. Vídeos, filmes, histórias, entrevistas são algumas possibilidades; - lógico-quantitativo: enfoca-se o conceito recorrendo a considerações de ordem numérica ou de processos dedutivos; - experiencial: este enfoque envolve habilidades ou experiências físicas, como usar o corpo, manusear os materiais que incorporam ou transmitem o conceito; - estético: a ênfase recai nas características sensoriais – cores, linhas, formas, expressão e composição; - fundacional ou existencial: este ponto de entrada aborda a face filosófica dos conceitos; - social cooperativo ou interpessoal: o acesso ao conteúdo dá-se por experiências sociais: debater, argumentar, apresentar alternativas distintas, desempenhar diversos papéis. Fica evidente que, assim como as diferentes inteligências se relacionam, isso também acontece com os “pontos de entrada”; é possível identificar aspectos predominantes de um ou outro, mas sempre há uma relação entre os elementos. 7.Comprometa-se com uma avaliação diversificada. Qualquer prática comprometida com os processos de aprendizagem deve centrar-se na busca de evidências de que os estudantes estão aprendendo. A avaliação é um componente do processo de aprendizagem, sua função é oferecer subsídios para que os estudantes monitorem e aprofundem suas compreensões. Para isso, é necessário que ela seja contínua, que ofereça momentos de retroalimentação, que esteja estreitamente articulada com as metas de aprendizagem, tenha critérios claros e compartilhados e que seja composta de instrumentos diversificados, com ênfase nas forças dos estudantes e não
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suas fraquezas. A padronização dos instrumentos é incoerente com a concepção das múltiplas inteligências. Na verdade, o que esta abordagem didática pretende é uma transformação da escola, não apenas no campo didático, como mais uma “novidade” para que tudo permaneça igual. Ela pressupõe uma mudança na cultura institucional: valores, crenças, linguagem, papéis representados pelos diferentes atores sociais e nas relações de poder. É preciso que a escola se coloque como agência responsável pelo desenvolvimento de homens e mulheres capazes de entender o mundo em que vivem, de enxergar os problemas que afligem a humanidade e de encontrar soluções que permitam a continuidade da história e a convivência solidária e cooperativa. É preciso que ela se comprometa com a formação de sujeitos sensíveis às limitações da condição humana e que possam construir sistemas sociais mais justos. Sem alterar a dimensão profunda da cultura institucional, os processos educativos e a organização da escola permanecerão inalterados ou mudarão apenas na forma. Em síntese, um dos caminhos para uma escola de qualidade é encurtar as distâncias entre teoria e prática, entre professor e estudante, entre ensino e aprendizagem, entre informação e compreensão, entre a escola e a vida. Aceitar esse desafio significa comprometer-se com uma tarefa que é descrita por Meirieu (1998) como gerir a escola para que todos os alunos aprendam, mantendo a riqueza das suas diferenças. Referências GARDNER, H. Inteligências Múltiplas – a teoria na prática. Porto Alegre. Artmed. 2000. GARDNER, H. Inteligência, um conceito reformulado. Rio de Janeiro. Objetiva. 2001. BLYTHE, T. La enseñanza para la comprensión – guia para el docente. Buenos Aires. Paidós.1999. WISKE, M.S. La enseñanza para la comprensión: vinculación entre la investigación y la práctica. Buenos Aires. Paidós. 1999. POGRÉ, P.; LOMBARDI. G. Escuelas que enseñan a pensar: enseñanza para la comprensión, um marco teórico para la acción. Buenos Aires. Papers. 2004. POGRÉ, P. Ensinar para compreensão. In: Pátio – Revista Pedagógica no 35. Porto Alegre. Artmed. 2005. MEIRIEU, P. Aprender...sim, mas como? Porto Alegre. Artmed. 1998. Maria Thereza Marcilio é mestre em Educação pela Harvard Graduate School of Education e coordenadora do Núcleo de Educação da Avante – Educação e Mobilização Social. E-mail: mariathereza@avante.org.br www.avante.org.br Mônica Samia é pedagoga, psicomotricista e responsável pelo Grupo de Formação de Educadores do Núcleo de Educação da Avante – Educação e Mobilização Social. E-mail: monicasamia@avante.org.br Saiba Mais GARDNER, H. Estruturas da mente: a Teoria das Inteligências Múltiplas. Porto Alegre: Artmed, 1994.
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GARDNER, H. e COLS. Utilizando as competências das crianças. Porto Alegre: Artmed, 2001. (Projeto Spectrum, v. 1) GARDNER, H. e COLS. Atividades iniciais de aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2001. (Projeto Spectrum, v. 2) GARDNER, H. e COLS. Avaliação em educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2001. (Projeto Spectrum, v. 3)
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