Formar para transformar O caso do municĂpio de IrecĂŞ
Formar para transformar O caso do município de Irecê
(conteúdo finalizado em 2003)
Concepção e Realização Avante – Educação e Mobilização Social Conselho Técnico Gestão Institucional Maria Thereza Marcilio Linha de Formação de Educadores e Tecnologias Educacionais Mônica M. Samia Linha de Formação para Mobilização e Controle Social Sonia Bandeira Cerqueira Linha de Formação para o Trabalho Fabiane Brazileiro Linha de Formação de Agentes Culturais Rita Margarete Santos Comunicação Institucional Andréa Fernandes Administrativo Financeiro Maria Célia Falcão Esta publicação foi produzida a partir do Projeto Todos pela Educação no Município de Irecê, realizado no período de 1997 a 2000, com o apoio da Prefeitura Municipal de Irecê e do UNICEF/Ba. Equipe do Projeto Coordenação do Projeto Maria Thereza Marcílio Equipe de Formação Marília Dourado Ana Luiza Buratto Salete Silva Solange Leite Mônica Samia Rita Margarete Publicação Organização e Revisão Maria Thereza Marcílio José Carlos Meirelles Projeto Gráfico e Diagramação KDA Design
Jovenice Ferreira Santos – Bibliotecária CRB-5/1280
Este livro é dedicado ao nosso querido Professor Meirelles, José Carlos Dantas Meirelles, associado da Avante desde a sua fundação. Sua perseverança e crença na força desse trabalho foram fundamentais para a realização desse livro. Sua partida súbita não permitiu que ele tivesse a alegria de vê-lo pronto . Ao Professor, nossa eterna admiração e amizade.
Apresentação Maria Thereza Marcílio Membro da Avante - Educação e Mobilização Social, onde é coordenadora do Núcleo de Desenvolvimento Institucional
Esta publicação reúne quatro textos que descrevem e analisam momentos e ações muito importantes na história da Avante – Educação e Mobilização Social. Quero reafirmar aqui o que já tive oportunidade de dizer antes. Este trabalho traduz um desejo longamente acalentado: o de narrar o cotidiano do professor. Não o professor isolado, porque, assim como a andorinha, ele sozinho não faz verão, mas o professor como coletivo, parte de um grande e diverso conjunto e, nessa circunstância, como sujeito, aprendiz, autor e autônomo, agente principal da qualidade da educação. É para esse profissional, tão necessário quanto pouco valorizado, que nossos pensamentos, nosso olhar, nossa atenção estão dirigidos. Para que ele possa reconhecer-se, entusiasmar-se, sentir-se participante desta caminhada e estimulado a tornar suas práticas cada vez mais reflexivas e produtivas. O primeiro texto – Formando e Transformando em Irecê – escrito por Maria Helena Souza da Silva, com a colaboração de José Carlos Dantas Meirelles, conta a memorável experiência vivida pela Avante naquela cidade baiana, no período compreendido entre 1996 a 2000, com o projeto “Todos pela Educação no Município” – Um Programa de Formação Continuada de Professores e de Assessoramento à Gestão da Educação que, aliás, mereceu o Prêmio Itaú/UNICEF 1999, Menção Honrosa na categoria “Formação de Professores”. O texto narra como, após realizado um diagnóstico da realidade educacional do município, foram definidos objetivos e diretrizes voltadas para: 1)melhoria da qualidade do ensino, com opção pela linha da pedagogia socioconstrutivista e adoção da pedagogia de projetos; 2)valorização do profissional de educação, a partir do redirecionamento do seu papel e do valor social do professor; 3)democratização do ensino, incluindo o estabelecimento de mecanismos de envolvimento de toda a comunidade escolar; 4)valorização da cultura do município, mediante a inclusão das raízes e traços socioeconômicos e culturais na práxis pedagógica. O texto é rico em informações, testemunhos – de professores, coordenadores, gestores, alunos, funcionários, consultores – e de dados, dentre os quais, por exemplo, os que demonstram que, em Irecê, a matrícula aumentou de 6 345 alunos, em 1996, para 10.360, em 1999 e a evasão de 19,9% caiu para 6,9%, sendo que a distorção idade-série que chegava a 67%, entre os alunos das quatro séries iniciais do ensino fundamental, em um ano, passou para 13%; o índice de repetência, igualmente, passou de 15% para 3,2%. Formar para (Trans)formar: O Modelo de Formação Continuada da Avante, de autoria de Monica Martins Samia, focaliza demandas do profissional de educação; faz reflexões em torno da necessidade de formação do professor; e, finalmente, discorre sobre um modelo específico de formação – a proposta de Formação Continuada da Avante como uma estratégia para a melhoria da competência do professor e, em consequência, da qualidade da educação. Afirmando, modestamente, que sua intenção foi muito mais a de descrever o
“caminho percorrido”, para salientar que “há muito a percorrer”, e que “não é fácil um olhar de fora, estando dentro”, a autora, na verdade, realiza uma análise percuciente da experiência para ressaltar a importância da reflexão na ação e sobre a ação. E conclui advertindo, ainda, para a necessidade de os modelos de formação continuada não deixarem de considerar a história pessoal e profissional do professor, respeitando-o como um profissional que, muitas vezes, está sendo convidado, e até pressionado, a refletir e resignificar, num curto espaço de tempo, uma prática que foi validada pela instituição deensino e pela sociedade durante muito tempo. Por sinal, uma bela história pessoal e profissional de professor(a), plena de valiosas reflexões, está contada e analisada no terceiro texto – Como Venho me Tornando Professora -- de Rita Margarete Moreira Santos. Nele, a autora relata, dentre outros episódios muito interessantes, o seu primeiro contato com a Avante, quando esta foi convidada a oferecer consultoria pedagógica à escola onde ela trabalhava. A instituição de ensino dizia sentir a necessidade imperiosa de rever suas praticas pedagógicas. Segundo a autora, no processo da consultoria, à medida que o grupo de professores era desafiado a refletir, explicar e teorizar sobre sua prática tendia a eclodir um certo movimento de reação e resistência aos esforços de reconstrução da identidade profissional. Analisa como, ao contrário de boa parte de seus colegas, ela foi sendo tomada por uma sensação de deslumbramento com o novo, mas, ao mesmo tempo, por uma grande perplexidade e angústia. Parte interessante também da “história de professora” é aquela em a autora compara sua formação inicial e sua formação continuada, o significado de cada uma delas no seu desenvolvimento pessoal e profissional, e a importância desta última ao propiciar a oportunidade de “tematização de situações práticas e pensamento prático-reflexivo”. Finalmente, o quarto texto – Consolidando e Institucionalizando a Transformação da Escola Municipal – contém informações e observações sobre o Currículo Unificado da Rede Municipal de Ensino de Irecê – Educação Infantil e 1º e 2º Ciclos de Ensino Fundamental. Como se poderá observar, o Currículo é trabalho de construção coletiva e parceria efetivas. De sua elaboração, sob a coordenação e sistematização da Avante, participaram a equipe da Secretaria Municipal de Educação, coordenadores pedagógicos, diretores e vice-diretores de escolas, representantes de professores e da sociedade organizada. Ao apresentá-lo, após a redação do seu texto final, adverte-se para sua condição de texto norteador, que tem como característica “ser aberto, flexível e passível de ajustes às diversidades sub-regionais, culturais e religiosas existentes no município”.
Sumário 2
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Formar para (Trans)formar
Formando e Transformando em Irecê
O Modelo de Formação Continuada da Avante
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3 Como Venho me Tornando Professora 141
4 Consolidando e Institucionalizando a Transformação da Escola Municipal 153
A nova proposta curricular de Irecê
1 Formando e Transformando em Irecê Maria Helena Souza Silva COLABORAÇÃO
Maria Thereza Marcilio e José Carlos Dantas Meirelles
FORMAR PARA TRANSFORMAR O caso do município de Irecê
FORMANDO E TRANSFORMANDO EM IRECÊ
INTRODUÇÃO “Posso assegurar que o maior prêmio é o resultado lá na ponta...” 1
Esta parte aborda o modelo de formação de professores e gestores educacionais em execução no contexto da educação pública no município de Irecê. Representa um testemunho de um trabalho realizado por - professores, alunos, comunidade, gestores municipais, parceiros que mergulharam fundo na transformação da educação no município, dando um novo sentido às suas próprias vidas e à história da sua cidade. A cidade – Irecê - está situada no noroeste baiano, a 500 km de Salvador, é município pólo da região, maior produtor de feijão e outros grãos no Estado, com cerca de 56.000 pessoas, sobrevivendo basicamente da agricultura “sequeira”, enfrentando, de forma regular, longos períodos de estiagem, acostumadas desde cedo à lida com as incertezas e à luta por tempos e espaços melhores. Portanto, um povo inventivo por natureza. O tempo em que se concentra este trabalho está restrito a um período de quatro anos – 1997-2000 – que, rigorosamente se inicia muito antes e poderá não ter fim, e isto certamente será a sua conclusão, leitor, ao longo das páginas que seguem. O ano I representa também o início de uma nova fase na administração do município, em que a população de Irecê com intensa participação dos movimentos sociais da cidade, dentre eles o movimento dos educadores, faz uma opção política de mudança, elegendo uma proposta substancialmente distinta daquela que há mais de trinta anos, vinha conduzindo os destinos do município e dos cidadãos ireceenses. Sem dúvida, a vontade política dos administradores municipais e a credibilidade que agregam, cumprem papel relevante na transformação dos índices de qualidade de vida e de desenvolvimento humano das populações que governam. No caso de Irecê, este é um componente relevante para que tenham início e prosseguimento as ações que transformam o velho quadro da educação pública. Tendo como foco o processo de formação continuada, desenvolvido ao longo de quatro anos, as principais fontes utilizadas são os relatos dos participantes do trabalho, efetivos autores da mudança do quadro educacional, múltiplos e únicos no propósito de difundir, refletir e partilhar as experiências construídas em comum, a partir de muitos desejos que podem ser resumidos num só: “transformar o velho quadro do fracasso escolar”, o que parece ter como um dos segredos primários conjugar participação e solidariedade. Em todos os níveis e relações, compartilhando os sonhos – que todos temos – reconstruindo, sofrendo – sem dúvida – tirando da vida vivida a sabedoria que ela pode oferecer e devolvendo-lhe, num eterno processo interativo, em espiral.
1 Aloísi Carlos de Oliveira – Diretor da Escola Municipal Luiz Viana Filho – em entrevista, jul./2001
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A AVANTE – Qualidade, Educação e Vida – que conta esta história, é parte dela. Parceira ativa da educação do município, desde o início de 1997, ano I desta experiência, que em 1999 concorreu e recebeu a Menção Honrosa do Prêmio ITAU/UNICEF, destinado a iniciativas educacionais, na categoria “Formação de Professores”, com o projeto “Todos pela Educação no Município – Um Programa de Formação Continuada de Professores e de Assessoramento à Gestão da Educação em Irecê”. Um prêmio pleiteado por 732 projetos educacionais de todo o país, ficando o trabalho de Irecê entre os 14 primeiros colocados. O prêmio viabilizou esta publicação, cuja intenção é sistematizar a experiência, enfocando e discutindo os principais pontos inovadores, sem tecnicismos - buscando reconstruí-la na sua singularidade e ser fiel às suas dores e cores - através do testemunho e das reflexões dos envolvidos no projeto, e da análise cuidadosa dos registros, estabelecendo aproximações e conexões que possam ser úteis para quem lida com a vida escolar, em especial professores, coordenadores, diretores, gestores municipais e todos os que fazem o cotidiano das escolas, interagem com o seu rico contexto e gostam de “transformar em sabedoria” as suas práticas. O sucesso dos alunos nas escolas municipais de Irecê tornou-se uma realidade. A matrícula aumentou de 6.345 alunos em 1996 para 10.360 em 1999; a evasão caiu de 19,9% para 6,9%; a defasagem que chegava a 67% entre os alunos das quatro séries iniciais do ensino fundamental, em um ano caiu para 13%, manteve a tendência de queda e hoje está em 8%. O índice de repetência caiu de 15% para 3,2% É importante lembrar que falamos de uma região em que as possibilidades de uma vida escolar regular, sem interrupções, ainda são uma utopia para boa parte das famílias que dependem da oferta de ensino gratuito. Os períodos de colheita do feijão e mamona, são também os mais férteis em presença dos alunos nas escolas de Irecê2. Na seca, as famílias migram em busca de trabalho que lhes garanta a sobrevivência. O êxodo rural, um fenômeno desestruturante na história de vida e na escolaridade de milhões de brasileiros, tema de profundo significado, portanto, na trajetória e no “destino” pessoal e familiar dos alunos, torna-se tema estruturador para a realização de descobertas autênticas que lhes possibilitam a construção de novos conhecimentos. Isto, provocado pela escola, desde a atividade de sala de aula e a partir da apropriação processual da “pedagogia por projetos”, numa rotina de trocas coletivas, envolvendo todos os professores e gestores, onde se tem em perspectiva um trabalho em rede. Neste contexto, são muitos as iniciativas e projetos que surgem, se expandem e se consolidam, processo que vai se fortalecendo na medida em que se supera o medo de errar e em que se instaura e dissemina o desejo e a liberdade de experimentar. Alguns desses projetos estão descritos por seus protagonistas, professores, coordenadores, diretores.
2 Em julho de 2002, quando realizamos as entrevistas em Irecê, havia uma expectativa da chegada da bolsa-escola no mês seguinte. O município já se habilitara para recebê-la. É possível que, de alguma forma, a adoção da bolsa-escola possa melhorar este quadro. Trata-se de uma política compensatória que, sem dúvida, por si só, não resolverá o problema.
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FORMAR PARA TRANSFORMAR O caso do município de Irecê
Referindo-se às causas da crise da educação brasileira e do ensino público do seu município, e criticando o modelo legalista e tecnicista que marcou as medidas educacionais nos governos autoritários, Guiomar Namo de Mello3 afirma (em 1986): “Essas medidas4 não foram boas ou ruins em si mesmas. Adotadas num contexto de autoritarismo, esvaziaram a educação daquilo que a faz um processo vivo e dinâmico: o envolvimento e compromisso da sociedade em geral e em especial do educador... O que aconteceu no ensino municipal é um exemplo claro de que nenhuma medida legal ou técnica pode substituir o compromisso do educador com a clientela da escola”. Criticando os índices “assustadores” de reprovação escolar nas primeiras séries do ensino público do seu município e as explicações centradas na pobreza, desnutrição e outras causas complexas e insolúveis no ambiente escolar, Guiomar instiga a uma “revisão radical da prática escolar”, explica o porquê e sugere questões para orientar esta revisão: “... para termos segurança de não estarmos fugindo da nossa responsabilidade profissional, que é encontrar formas alternativas de trabalhar com esses alunos que aí estão...” “...Onde mesmo queremos chegar com o aluno do 1º grau? Vamos ficar repetindo as proclamações bonitas da ”formação integral da personalidade” ou vamos ter clareza do que lhe é indispensável e concentrar esforços nisso? Já paramos para discutir o que vem a ser indispensável? A experiência que se inicia em 1997 na educação municipal de Irecê, é profundamente marcada por estas convicções expressas por Guiomar. Desde o início verifica-se, quase como um imperativo, o vínculo entre o êxito da escola e o envolvimento da sociedade e da comunidade local, destacadamente dos educadores. Desde os “Antecedentes” este vínculo é visível nos depoimentos que dão conta das iniciativas que movimentam o ambiente educacional de Irecê, e que resultam na opção pelo modelo proposto de formação continuada de professores das séries iniciais e de gestores educacionais. A descrição deste modelo, cuja concepção e sistematização são temas dos capítulos IV e V, é profundamente enriquecida pelos depoimentos dos envolvidos. O último capítulo (VI) apresenta o volume I da Proposta Curricular de Irecê – Aspecto Gerais, que evidencia uma nova cultura educacional, fruto de muitas e múltiplas reflexões e debates, sintetizando aquele “indispensável” (reclamado por Guiomar) que a educação de Irecê - na visão de seus educadores, gestores e cidadãos - quer dos seus alunos e das suas escolas, consolidando princípios, valores, atitudes e procedimentos capazes de iluminar e orientar, de forma duradoura, as transformações concretizadas, projetando o futuro. Por isso, como dizem vários professores entrevistados, “o currículo é a cara de Irecê, é alicerce, é norte”.
3 MELLO, Guiomar Namo de – “Educação Escolar : Paixão, Pensamento e Prática”, cap. “Política Educacional, - Um Início de Conversa”, documento sobre as diretrizes para uma política educacional, submetido à discussão dos educadores do ensino público municipal de São Paulo, em julho de 1986 - Editoras CORTEZ e Autores Associados, 2a ed., págs. 89 a 101, São Paulo, 1987.
4 As medidas referidas por Guiomar no texto são: implantação da escola única de oito anos, transformação do 2º grau em curso profissionalizante, instituição de funções técnicas e habilitações profissionais (pág. 92)
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FORMANDO E TRANSFORMANDO EM IRECÊ
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ANTECEDENTES
1.1 O Velho e Conhecido Contexto “A gente sabia da situação, mas quando viu, escola por escola ... era triste. Ambiente desprezado, instalações elétricas e hidráulicas quebradas... Este lugar aqui, onde nós estamos, era uma creche e era pintada de preto,até mais da metade da parede, para os meninos não sujarem... e assim eram várias escolas ... Tentávamos achar um documento, a vida escolar do aluno, não achávamos ... Não existia alma de escola, não havia memória”
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“Não encontramos nenhuma proposta pedagógica, nada escrito ...Na Secretaria só havia o Secretário e uma coordenadora para fazer todos os serviços. Encontramos a maior escola de Irecê fechada, desde o mês de julho ... o ano letivo foi interrompido em outubro – quando houve eleição municipal - e não foi concluído ... pra você ter uma idéia, numa escola com 130 crianças matriculadas na 1a série, 119 tinham perdido o ano ...”
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“Recebemos a escola de Angical com 292 alunos, da alfabetização à 8a série, em março de 97, numa comunidade com mais de 2000 pessoas. Fizemos um levantamento e tinham mais de 500 jovens em idade escolar ... havia capacidade física e havia público mas os alunos não 7
estavam lá”.
“Na minha sala tinha castigo e palmada. Se não conseguisse soletrar ou não tivesse a tabuada todinha na cabeça levava palmada na mão. Eu não cheguei a levar palmada, mas cheguei a ficar com os olhos vendados e os braços abertos no recreio todinho ... todo mundo passava e me olhava ...”
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“...Entrei na escola há 3 anos e não sabia nada de ler e de escrever. Eu aprendo muito porque as professoras são muito dedicadas. Acho que o professor tem que ser uma pessoa muito paciente com os seus alunos porque senão eles não ficam na escola. Eu gosto muito de ler várias coisas: livros, cartazes, gibis, gosto de escrever e de participar da biblioteca. Meu dia na escola não tem nada de ruim, só a tentação de alguns colegas ...”
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“...Antes na escola eu só apanhava. 'Às vezes chegava em casa com as mãos inchadas de tanto apanhar. E não era só eu. Desde que eu fui ficar com professora Jane comecei a aprender a ler e escrever e logo desenvolvi. Gosto de escrever cartas de participar de peças. Participei da Branca de Neve e foi muito legal. Quero ser professora, ensinar numa escola e passar tudo que já aprendi pras outras pessoas. O professor que não respeita os seus alunos não devia ser professor. Todo mundo deve ser respeitado. Mudei muito e quero mudar mais ainda....“
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Emanuela Dourado, Coordenadora de Convênios (97-98)
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Soraia Pinto Dourado – Coordenadora Pedagógica (97-98)
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Edvanilson Alecrim Machado – Diretor do Colégio Municipal de Angical
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Ednaldo Moraes Ferreira – em entrevista de julho de 2001, referindo-se a fato acontecido quando era aluno a repetente da 3 série da Escola Municipal Marcionílio Rosa
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Érica, aluna do 2o Ciclo
a 10 Jaqueline, 16 anos – aluna da 7 série
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FORMAR PARA TRANSFORMAR O caso do município de Irecê
Altos índices de abandono e repetência. A defasagem escolar se aproximava de 70% do total de matrículas do ensino fundamental (1a à 4a séries), falta de vagas e ao mesmo tempo escolas superlotadas (havia salas com mais de cem alunos). Tendo o ano letivo se encerrado no início de outubro de 1996, o último salário dos professores tinha sido pago no mês de junho; havia muitas irregularidades no quadro funcional; merendas vencidas por falta de condições de armazenamento; faltavam equipamentos e material didático. Nessa situação, era mesmo de não se esperar que a escola municipal em Irecê fosse legitimada ou reconhecida pela comunidade e pelos profissionais. A tendência, nesses casos, é a perda da motivação, o que dificulta a realização de novas aprendizagens. A aprendizagem, quando acontece, é resultante do empenho desse ou daquele professor, da história e persistência de um ou outro aluno. Predomina a exclusão, não só dos alunos (a começar pelas exigências que eram feitas para ingresso e permanência, como uniforme completo, material escolar, registro de escolaridade anterior, etc), mas dos educadores, que se vêem como estranhos no seu próprio território, vão perdendo a noção de pertencimento ao grupo escolar que integram, trabalham isolados e, em geral sobrecarregados, vão se distanciando da natureza social e política da sua função, da sua identidade e vocação, da sua liberdade, sua cidadania. O individualismo prevalece e as relações tendem a se congelar e restringir nos particularismos. O empenho das pessoas que participam da escola parece irrelevante no seu funcionamento. Sobre isso, Fullan e Hargreaves11, analisando o problema da limitação do papel do professor e da sua liderança, afirmam: “... passar-se muitos anos dentro de uma sala de aula, sem uma substancial estimulação externa, reduz o comprometimento, a motivação e a eficiência. As boas idéias e as inovações desenvolvidas por certos professores costumam estar inacessíveis a outros colegas de profissão. Ano após ano desempenhando o mesmo papel é inerentemente desestimulante; 20 anos de experiência de uma mesma atividade correspondem a tão-somente um ano de experiência multiplicado 20 vezes”.
Esse contexto da educação em Irecê é coerente com a realidade de um poder municipal concentrado há muitos anos nas mãos de um mesmo grupo político, cujos interesses particulares freqüentemente se sobrepõem ao interesse público. Uma cultura caracterizada por uma visão de mundo fragmentada, que costuma vivenciar a esfera pública como meio ou estratagema para a obtenção de proveitos para pessoas e/ou grupos, impregnada de práticas clientelistas, incapaz de dar conta da complexidade dos problemas que afligem a população e do enfrentamento das desigualdades locais e regionais.
11 FULLAN, Michael e HARGREAVRES, Andy – “A Escola como Organização Aprendente”, Ed. ARTMED, Porto Alegre, 2000.
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1.2 Educadores em Cena -“Sonhos na Letra” “Fazer sentido é um fazer, um confeccionar” aquilo que não vem dado” 12 Nas eleições municipais de 1996, Irecê faz uma opção política de ruptura com aquela cultura e articulada com as aspirações dos movimentos sociais locais. Os educadores participam, têm apoio, ocupam a cena política e assumem o seu papel de liderança nas mudanças educacionais. Durante a campanha mobilizam amplamente a sociedade ireceense para esse debate e promovem um amplo seminário, apoiado pela Prefeitura e por empresas locais. Reúnem-se os sindicatos dos professores, educadores diversos, entidades, governantes, bispos, pastores, promotores, juízes e demais interessados na educação de Irecê. “Queríamos ouvir da comunidade o que esperava da educação no novo governo, que a partir de janeiro estaria assumindo a Prefeitura. As pessoas disseram tudo o que esperavam. E nós apresentamos o que a gente conhecia e sabia que estava dando certo na educação - Belo Horizonte, por exemplo... havia uma grande esperança, mas tinha também um certo pessimismo, especialmente de quem já trabalhava com educação... talvez não sonhassem com uma mudança tão grande, principalmente na prática do professor ... mas havia um sonho que a gente sabia que era de todo mundo ... então nós apresentamos experiências que estavam acontecendo, mostrando que era possível fazer uma escola de inclusão, onde os alunos da escola pública aprendiam de fato ... demonstrando que tinham a mesma capacidade dos outros ... precisavam de uma escola que acreditasse nisso... e as pessoas 13 acreditaram que ia ser diferente mesmo...” “...Sabíamos o que queríamos, e com as idéias que iam surgindo sobre a escola que se queria, a gente traçou um plano e escreveu um documento ... recuperando tudo o que foi dito pela comunidade ... ficou tudo no papel e no sonho ... Essa sintonia e esse sonho conjunto fizeram com que o plano contivesse uma projeção bem abrangente, prevendo muito do que já aconteceu e do que está ainda por acontecer na educação . A comunidade encontrou alternativas, por exemplo, uma ajuda financeira para que os pais fossem aliados para matricular e manter os meninos na escola, algo parecido com a bolsa escola, que surgiu 14 depois. ..”
Esse seminário deu fundamentos para nortear a educação em Irecê, sintetizados no Projeto “Escola e Criança de Mãos Dadas” . Foi realizado um diagnóstico da realidade educacional, incluindo um levantamento das necessidades de cada escola, cada comunidade – quantas crianças e adolescentes estavam fora? Foram definidos os objetivos e políticas prioritárias, assim expressos no Plano de Ação 15:
12 LENT, Carmen – “Mutações Psíquicas: do particular ao universal” in “Transformação”, vários autores, organização de Rosiska Darcy e Carmen Lent, Editora Diferença, Rio de Janeiro, RJ, 1993.
13 Emanuela Dourado e Soraia Pinto Dourado – 1997/1998 – relatos do documento que sistematiza o seminário, em entrevista – jul. 2001.
14 Emanuela Dourado e Soraia Pinto Dourado – Coordenadoras – 1997/1998, relatoras do documento que sistematiza o seminário, em entrevista – jul.2001
15 Documento “Escola e Criança de Mãos Dadas” – Relatório da Secretaria Municipal de Educação de Irecê - 1997
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Melhoria da Qualidade do Ensino, através da opção pela linha pedagógica sócioconstrutivista com a adoção da pedagogia de projetos; diminuição do índice de perdas (evasão e repetência) das escolas da rede municipal e do índice de defasagem escolar entre os alunos da 1a à 4a séries; programa de incentivo às famílias carentes cujos filhos apresentem freqüência igual ou superior a 90%; construção de uma proposta curricular coerente com a nova linha pedagógica; adequação do espaço físico das escolas às necessidades de aprendizagem dos alunos; modernização dos recursos escolares (equipamentos, insumos pedagógicos e outros); fortalecimento do Programa de Alimentação Escolar; ampliação e reestruturação da Biblioteca Pública Municipal; incentivo ao esporte e lazer como parte integrante do processo educacional; celebração de convênios com instituições nacionais e internacionais. Valorização do Profissional da Educação, a partir do redimensionamento do papel do professor no processo escolar como forma de conscientizá-lo sobre o seu valor social; concurso público; plano de carreira; elaboração de estatuto do magistério; desenvolvimento de programas de qualificação e atualização profissionais; criação de espaço para estudo e pesquisa dos profissionais para o aperfeiçoamento contínuo e incentivo à participação em congressos, jornadas, oficinas, de forma a estimular a comunicação de resultados de trabalhos, a troca de experiências, a exposição do material produzido e a divulgação do trabalho do professor e da escola; estímulo à maior integração professor-aluno. Democratização do Ensino, promovendo o acesso de todas as crianças e adolescentes à escola fundamental; o funcionamento das escolas em condições adequadas durante todo o ano letivo; implantação do Ciclo Básico; estabelecimento de mecanismos de envolvimento da comunidade escolar como um todo para uma ação preventiva de cuidado com a escola como parte do ecossistema da cidade; criação dos colegiados escolares; estabelecimento de processo democrático de escolha dos diretores; criação do Conselho Municipal de Educação; implantação de mecanismos de autonomia administrativa, pedagógica e financeira das escolas. Valorização da Cultura do Município, através de: inclusão das raízes e traços sócioeconômicos e culturais na práxis pedagógica, como forma de resgate dos nossos valores históricos; programas para o desenvolvimento de vivências com os alunos, baseado em calendário com datas significativas da história do povo da região; desenvolvimento de parceria com grupos culturais e artísticos da cidade para realização de trabalhos com os alunos , estimulando a compreensão da escola como espaço para o prazer; criação de um espaço para oficinas permanentes de artes. A importância deste seminário – que certamente o torna referência duradoura - está na mobilização das forças sociais locais em torno do debate e da busca coletiva dos caminhos e de um plano para a educação, com a participação dos educadores e gestores. Qual a importância da educação na sociedade em que vivemos? Que tipo de cidadão quer formar Irecê? Que escola se precisa para formar esse cidadão? Por onde começar? Aonde se quer chegar? Qual o papel de cada um? O que fazer? Como fazer? São formulações colocadas em vários planos na nossa história. As prioridades definidas no seminário, por si sós, estavam postas há mais de uma década, foram afirmadas internacionalmente, desde a Conferência de Jomtiem (1990) e passaram a constar dos
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planos governamentais brasileiros nos diversos âmbitos: federal, estadual e municipal: investir na qualidade do ensino, valorizando os educadores e o processo de ensino e aprendizagem, democratizando o acesso e a gestão, combatendo a defasagem para assegurar a permanência e o sucesso dos alunos. O que faz a diferença, no caso de Irecê, é a participação, a discussão e reflexão in loco com os atores, os agentes, possíveis parceiros, os sujeitos envolvidos, enfim. O confronto de aspirações e opiniões abre espaços que fazem sentido, permitindo afinar propósitos, dar corpo e identidade às idéias e apontar linhas e direções comuns para o trabalho na educação. Também a disposição e o empenho da gestão que se iniciava, apoio indispensável nas realizações, especialmente na busca e efetivação de parcerias para a educação do Município. Em qualquer trabalho, mas em particular, nas escolas, reconhecerse como parte integrante e ativa de um projeto maior de sua comunidade faz uma grande diferença na motivação das pessoas, na sintonia das ações cotidianas e no funcionamento do conjunto. A escola, pública principalmente, tem sido peça, palco e cenário privilegiado para um velho enredo – o desfile infindável de empreendimentos bem intencionados que se frustram porque ignoram o seu próprio corpo de atores, personagens que materializam o empreendimento como seus apresentadores, intérpretes e representantes, responsáveis por recriá-lo cotidianamente. A insistência na repetição da mesma cena tem dado o desfecho que já conhecemos. Os projetos educacionais que pretendem transformar o quadro de fracasso da escola, mas não se propõem a mudar radicalmente a relação tradicional com a esfera pública, e valorizar o empenho e a participação autêntica das pessoas - não só como um meio mas como um fim – em todas as etapas de seu desenvolvimento, costumam fracassar, inviabilizando a realização do seu principal objetivo e da sua continuidade. Por outro lado, nos planos de educação que têm obtido êxito, a participação é relevante como princípio e ação estratégica para conhecer, pensar e operar. Dessa forma, em um sistema ou em uma rede, ela propicia o rompimento com a tendência à fragmentação das ações entre escolas e entre estas e o órgão central. Contribui para “costurar” a diversidade, enfatizando as identidades e abrindo campo para operar a unidade indispensável às múltiplas frentes e tarefas a cumprir em cada instância.
1.3 Aproximando Intenções e Gestos, Descobrindo Identidades e Alimentando a Utopia O 1o Encontro dos Dirigentes Escolares do Município de Irecê Referindo-se ao movimento de mulheres - que se estruturou a partir de pequenos grupos de reflexão sobre o cotidiano feminino, e em pouco tempo ganhou mundos, revelando e instigando a superação de tabus milenares – e reportando-se à “efervescência existencial e
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intelectual por ele gerada”, a escritora Rosiska Darcy16 traz à lembrança um mito indiano, que reproduzimos com o intuito de estreitar a nossa aproximação à energia que movimentava o planejamento, a organização e a realização do 1o Encontro de Dirigentes Escolares da Rede Municipal de Irecê, naquele mês de março de 1997: “...um faquir, depois de preparar cuidadosamente um laço na ponta de uma corda, joga-a para o alto e, seguro de que o laço se prendera em algum lugar além nuvens, tranqüilamente sobe por ela. E, diante do pasmo dos incréus, desaparece nas alturas, seguro na corda que se prendera, quem sabe em sua esperança...” “...Porque a esperança é assim. Parece ilusória, mas essa ilusão vai impregnando a realidade e constituindo-a, força atuante que é dentro dela...”. “ O movimento de mulheres foi – é – para mim, para minha geração, essa corda em que subimos para provar que, ao alcance da mão, se oferece a nós um mundo mais tenro, mais suave. Se assim não for, o fato de termos podido imaginá-lo já nos terá aproximado, talvez, de um objetivo mais modesto, mas quão precioso, o de inaugurar relações humanas em que a aceitação da diferença sem desigualdade reconcilie homens e mulheres e ponha fim ao desencontro das mulheres consigo mesmas...”.
Se tivéssemos que escolher um símbolo para representar o clima que deu o tom ao 1o encontro de dirigentes das escolas de Irecê, escolheríamos a corda desse faquir ou uma âncora, símbolo da esperança. Ambas, ao alcance das mãos, podem nos permitir ir desfazendo os nós, ou enfrentando o mau tempo, cujas ondas nos empurram para a deriva e dificultam a realização da utopia de uma humanidade melhor e mais harmônica. O som de Chico Buarque e Milton Nascimento fez texto e contexto na sensibilização e integração dos participantes, na 1a manhã do Encontro, aberto solenemente na Escola Nossa Senhora Aparecida, com presença do prefeito e secretários. ... “Tirar do trigo o milagre do pão E se fartar de pão ... Decepar a cana, Recolher a garapa da cana, Provar da cana a doçura do mel Se lambuzar de mel”
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Reunem-se durante cinco dias todos os diretores, vice-diretores e a coordenação da Secretaria (não havia uma equipe pedagógica): Em pauta: “Teorias do Conhecimento – fundamentos filosóficos; Tendências Pedagógicas na Prática Escolar; Apresentação do Plano Educacional do Município; Pedagogia de Projetos; Os Desafios de Um Novo Modelo de Gestão Escolar - com apresentação e discussões sobre Educação – no Brasil, na Bahia e em Irecê; Sistemas de Educação e Papel da
16 OLIVEIRA, Rosiska Darcy de – “Elogio da Diferença – O Feminino Emergente”, pág.17, Ed. Brasiliense, a
3 ed., São Paulo, SP, 1993.
17 NASCIMENTO, Milton e BUARQUE, Chico – “Cio da Terra”
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Escola; As Diversas Dimensões da Gestão Escolar; Os Protagonistas da Gestão Escolar; Relações de Poder na Escola, Relações Escola-Comunidade; Projeto de Escola – concepção, como elaborar; Papel do Educador, do Diretor, Escola como Unidade Executora, Gestão 18
Democrática, Conselho Escolar”.
O que na verdade parece orientar este Encontro, além da capacitação técnica propriamente, é a consciência da necessidade de construir uma positiva interação das equipes escolares, e da importância do papel dos diretores junto aos professores, funcionários, alunos, famílias e comunidade. O debate tinha como pano de fundo perguntas substantivas para quem lida com educação, com foco no aluno: Afinal, pra que serve a Escola? Quem e o que somos nós dentro (e fora) dela?” Confrontam-se idéias sobre modelos de escola, autonomia e função social da escola, práticas pedagógicas comuns aos educadores, orientações didáticas. Aponta-se a necessidade de um marco curricular comum “para orientar os olhares e as atitudes”. Falam as leituras dos participantes, feitas em Avaliação, no final do Encontro; “...Foi o marco inicial para que a educação municipal de Irecê alcance patamares condizentes com as expectativas da comunidade: uma educação que eduque e que contribua para o desenvolvimento do ser humano como pessoa, constituída de direitos, deveres e senso crítico, capaz de intervir e transformar sua realidade ... eu, pessoalmente, não medirei esforços para contribuir com essa transformação... o primeiro passo foi dado. Agora, mãos à obra...”
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“....Com tudo que aprendemos, desde o momento inicial de integração e nos debates, fica uma corrente positiva... Enfim chegou o momento da criança ter sua liberdade de pensar, criar ... parabéns pelo 1º Encontro .“
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“...Os trabalhos desenvolvidos nesse encontro serão como um marco curricular para que todos nós, participantes, possamos sair do senso comum e ser realmente um elo daquela corrente que será a educação de Irecê. Que Deus nos ilumine para que possamos, com sabedoria maior ... levar avante todas as dificuldades que, com certeza, encontraremos ...”
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Esse encontro começa a construir uma nova cultura na rede, marcada pela consciência da dimensão social da função do dirigente escolar, em contraposição à cultura anterior, influenciada pelas concepções “menoristas”22 , que orientaram o olhar e a pedagogia no trato com crianças e jovens, especialmente das classes populares, entre nós.
18 O UNICEF – que já tinha sido procurado pela gestão municipal, contribuiu na concepção e realização deste seminário, especialmente no desenvolvimento das temáticas sobre Sistema, Gestão, Planejamento e Projeto de Escola, através da participação de uma consultora da AVANTE. Também foi apresentada e discutida a proposta “Pedagogia do Sucesso” do Instituto AYRTON SENNA, com o qual o Município iniciava um convênio, voltado para os alunos em defasagem.
19 Agnaldo Freitas, diretor da escola Marcionílio Rosa. 20 Participante que não registrou o nome na Ficha de Avaliação 21 Maria Cristina Cordeiro Senna - diretora 22 Expressão alusiva ao antigo Código de Menores (1926), revogado pelo ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), que regulamentou a Constituição (1988). O ECA representa uma mudança de paradigma na concepção e atenção à criança e ao jovem, com a adoção da doutrina de Proteção Integral e Especial para combater toda forma de discriminação, negligência, omissão, crueldade, opressão com crianças e jovens, Prevê um sistema de garantias a funcionar em co- responsabilidade entre o estado, a sociedade civil e a família. No antigo Código, o princípio orientador era o da Situação Irregular – só cuidava dos menores em situação de delinqüência ou do “menor trabalhador”. Prevaleciam práticas do tipo “tirar do convívio”, tratamentos “corretivos” e assistencialistas, a “palmatória e pão”. A responsabilidade sobre crianças e adolescentes recaía mesmo na família.
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Ainda vigoram na sociedade e conseqüentemente nas escolas, reforçadas inclusive por certos setores da mídia, ações inspiradas nessas concepções. O castigo e a repressão ainda são práticas internalizadas em distintas instituições públicas e privadas. As desigualdades sociais, a inconsistência da implementação das políticas públicas em geral, e em especial quanto às oportunidades de acesso ao conhecimento, contribuem para reforçar uma compreensão restrita e restritiva das capacidades mais autênticas da criança e do jovem e, em conseqüência, do desenvolvimento das suas potenciais habilidades. Agrava esta situação a precariedade dos sistemas de proteção à segurança pública, que não proporcionam acesso indiscriminado de toda e qualquer pessoa às garantias legais, fundamentos do exercício da cidadania. Dessa forma, desconfiança, medo, intolerância e ambigüidade – entre a compaixão assistencialista e a correção pelo castigo, como ato exemplar - ainda são freqüentes no interior dessas instituições, dentre elas, a escola (como vimos no depoimento do jovem Ednaldo, no início deste capítulo). Transposta para as salas de aula, a intolerância com o outro, o diferente, - que em geral se apresenta como “disperso, inquieto, filósofo, fazedor de artes” – instala um estado de espírito poderoso para debilitar os vínculos, e inibir a criatividade e a aprendizagem. A escola tem função relevante na mudança dessa mentalidade. É possível que a incapacidade ou inabilidade para acolher e interagir com a diferença seja o ponto crítico a merecer maior atenção para superar o fracasso da escola e acelerar a sua transformação. Não estamos nos referindo apenas à atitude de respeito ou tolerância com o diferente, mas da capacidade de exercitar a valorização da diversidade como requisito para a adaptação ativa e criativa dos sujeitos ao ambiente, condição sine qua non da disposição pessoal para conhecer (re-conhecer) e para que se realize a unidade didática necessária em qualquer grupo de ensino e aprendizagem. Também por parte das lideranças que costumam estar à frente dos planos de educação é comum uma atitude de sub ou superestimação das diferenças. Em geral, abre-se a discussão a um grupo mais amplo no início do processo, mas é freqüente que a divergência e a contradição sejam interpretadas apenas pelo seu lado de resistência às mudanças. Os subgrupos tendem a se sobrepor, instaura-se um clima de desconfiança e desavença, dispersam-se esforços em detrimento do encontro dos fins e dos meios que são comuns. Fica-se com a faca e com o queijo, mas sem as mãos porque se opera em busca da uniformidade, o diálogo se empobrece, atropelam-se identidades e instaura-se a descrença. O Plano com suas intenções se torna um real obstáculo à unidade das ações no dia-a-dia, ao prazer, à democracia e à poesia. O sucesso das mudanças na educação requer o desenvolvimento de uma atitude pessoal diante de si e do outro, que se situa no campo da ética, a ser cuidadosamente desenvolvida. O ideal é que essa atitude permeie transversalmente as relações estabelecidas nas distintas instâncias do sistema, desde cada liderança e cada ação de planejamento. Implica na descoberta de valores e na aprendizagem de capacidades e habilidades accessíveis a quem deseja desenvolvê-las. E, como toda aprendizagem dos valores do campo da ética, torna-se
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relevante nas escolhas que fazemos e na re–estruturação de nossas ações e comportamentos. Retornaremos a este assunto em capítulo que trata mais especificamente do Projeto de Formação Continuada de Professores e Gestores da Educação Municipal de Irecê. O 1o Encontro de Dirigentes Escolares da rede Municipal de Irecê sacudiu os ânimos: Mobilizando as pessoas “Foi uma coisa super revolucionária na rede. Era nossa intenção fazer um encontro muito forte e mobilizador. A situação das escolas era caótica, o ano letivo tinha sido encerrado em outubro com os professores em greve, as escolas completamente desaparelhadas. Era preciso despertar em todos a necessidade de muito comprometimento e empenho...”
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Revisitando símbolos e quebrando espelhos “...O que estava na escola era a condecoração, o destaque para alguns. Tinha uma vice na rede que encarnava “o modelo” de diretor. Era a que mais conseguia coisas... Na escola dela os meninos eram bem fardados, limpos e comportados, a cantina aparelhada, tinha uma banda ... e todos a admiravam e se esforçavam para serem iguais a ela ... mas ela era um general ... quando foi sendo traçado, passo a passo, o perfil e as atribuições do diretor teve gente que 24
ficou tão perdida que a sensação era: “eu não vou dar conta...” .
Provocando a auto-reflexão e instigando o pensamento sobre a realidade da educação e da escola “...Tenho 9 anos na educação . Aquele trabalho trouxe para a gente, a princípio, ansiedade porque eu e outros diretores – que vinham da gestão anterior – não tínhamos uma visão macro de educação. Tudo era feito assim, aleatoriamente. Minha administração era baseada em preceitos religiosos. Sou católico praticante e tentava colocar isso na escola para ver se as coisas funcionavam melhor. De 97 prá cá começamos um estudo ... ver como a escola devia funcionar, 25
o que precisava para isto, pensar em criar um padrão mínimo – que a gente já pedia ...”
Repensando a noção de autoridade e estimulando o desejo de auto- aperfeiçoamento e de aproximação com os outros “... Eu tinha a experiência de ser vice-diretor. Só que nós trabalhávamos numa época e com uma metodologia de ensino ainda muito tradicional, de cima para baixo, até arbitrária, às vezes. Não só no ensino, mas na questão de dirigir ... nasceu o desejo de fazer alguma coisa nova, que não tinha antes. Não que a gente não tivesse idéias. Tínhamos muitas, mas era 26
aquela coisa isolada ....”
23 Entrevista - Salete Silva – consultora da Avante (entrevista - abril/2001) 24 Entrevista – Emanuela Dourado, Coordenadora da Secretaria, interpretando o sentimento dos dirigentes participantes em entrevista (jul.2001)
25 Agnaldo Freitas– diretor da Escola Marcionilio Rosa. Entrevista (jul.2001) 26 Aloisi Carlos de Oliveira, diretor da Luiz Viana entre 1997 e 2000 (jul.2001)
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Surpreendendo, revisitando conceitos, estimulando sonhos e plantando desafios “...Aquele 1º encontro de diretores e vices me assustou. Mobilizou tudo aquilo que a gente tinha de conceito de educação para uma visão nova, e isso mexeu muito conosco, com a nossa visão sobre os princípios e os valores na educação ... nós vivíamos numa realidade que era a mais triste possível ... mas eu dizia: vai chegar o dia em que a gente vai mudar isso e mostrar que a escola tem que ser para a comunidade, viver em função dos alunos ... nesse encontro a gente teve esse incentivo, claro que com a necessidade de reformular os nossos próprios conceitos, mas com uma visão desafiadora. Como pessoa que gosta de desafios e gosta de sonhar ... achei o campo propício. Havia uma mobilização mesmo, um anseio de que Irecê desse a volta por cima ”
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Os depoimentos acima foram colhidos em entrevistas realizadas cinco anos depois de ocorridos os fatos a que se referem. Pretendemos que possibilitem aproximação ao significado daqueles momentos. A seqüência de ações desencadeadas na educação de Irecê, antes mesmo do início do ano letivo, já representava um acúmulo de experiências e descobertas valiosas para gerar as mudanças radicais nas práticas dos educadores e gestores educacionais, que analisaremos posteriormente. O que mais se evidencia nesses testemunhos, como característica da dinâmica dos processos até ali, e que ganha força nesse encontro, é um alargamento e um aprofundamento dos sentidos – das pessoas, das coisas e do pensamento sobre elas. Revelam também a presença de uma singular convergência e harmonia de pensamentos. Foram experiências duradouras como referenciais: os trechos acima expressam o pensamento de indivíduos de diferentes ângulos e níveis de participação naquele Encontro: consultora e coordenadora (também palestrantes) e público-alvo (três dirigentes escolares). É significativo que depois de tanto tempo ainda suscite lembranças tão vivas e carregadas de emoção (trouxeram lágrimas em muitos dos entrevistados e, por vezes, na própria entrevistadora, por certo, pessoa crente na existência de um vínculo estreito e compatível entre a sensibilidade e a objetividade). Não é à toa que mereceram ser mantidas quase intactas nas memórias. Para encerrar este capítulo escolhemos trechos de uma música que nos reporta a um passado, intensamente sofrido, e enfim superado por todos nós, brasileiros (os últimos anos da década de sessenta e seguintes), mas que paradoxalmente nos transporta a um movimento libertário, que significou um marco na história da criação no Brasil – a Tropicália - que mexeu fundo nas estruturas conceituais predominantes nos processos criativos, na arte e na cultura nacionais, introduzindo nova linguagem estética, novas relações entre formas e conteúdos e fundindo múltiplos elementos numa mesma peça artística: literários, harmônicos, rítmicos, sonoros, gráficos, etc Os versos são da música “Miserere nobis” 28 e, a nosso ver, ilustram um estado subjetivo existente no contexto que pretendemos recriar neste capítulo.
27 Entrevista – Edvanilson Machado, diretor (jul.2001) 28 GIL, Gilberto e CAPINAN, J. Carlos, in “Panis et Circensis, 1968
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“... Já não somos como na chegada”, Calados e magros, esperando o jantar Na borda do prato se limita a janta As espinhas do peixe de volta pro mar... ... Tomara que um dia de um dia seja Para todos e sempre a mesma cerveja Tomara que um dia de um dia não Para todos e sempre metade do pão... Tomara que um dia de um dia seja Que seja de linho a toalha da mesa Já não somos como na chegada O sol já é claro ...”
A nosso ver, esses versos evidenciam também desejos de universalidade com qualidade, o que reforça sua pertinência para o momento da educação em Irecê.
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PARTILHANDO CRENÇAS, UNINDO PARCEIROS
“... Caminante son tus huellas, el camino, nada más caminante, no hay camino se hace camino al andar y al volver la vista atrás se va la senda que nunca se há de volver a pisar caminante, no hay camino, sino estelas en la mar ..”
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Os sonhos são poderosas fontes produtoras de realidades. Compartilhados, ajudam a tornar inteligíveis os medos e as incertezas que costumam povoar os novos caminhos, e nos projetar novos horizontes.
29 MACHADO, Antônio, poeta espanhol
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Antes mesmo da reabertura das aulas podemos afirmar que a educação em Irecê já não é mais a mesma: a descrença na transformação do quadro do ensino municipal começava a fazer parte do passado. A “linha do desejo”30 na educação estava traçada: construíra-se com a comunidade a direção a tomar, já se tinha um diagnóstico com as necessidades de cada escola; um plano como referência para os principais rumos; alguns pontos de chegada estabelecidos e lideranças motivadas pela aventura de alcançá-los, conscientes da dimensão social do seu papel. Muitas dúvidas e algumas firmes crenças fundamentavam e impulsionavam a caminhada: ”...A gente estava, todo mundo, arregaçando as mangas, com muito entusiasmo, muitos obstáculos e dificuldades, entraves políticos, mas a garra era maior... O Plano de Metas era nossa referência para tudo. Nossas primeiras preocupações eram com o professor e com o foco no aluno, no ensino e na aprendizagem e não só no ensino, por si só. Fizemos uma proposta de realizar concurso público e foi realizado, depois do encontro dos dirigentes escolares. Entre o encontro e o concurso, sentamos para ver a que íamos dar prioridade na rede... A gente queria mexer com a sala de aula. Sabíamos que queríamos alunos competentes, críticos, autônomos , politizados, que pudessem mudar a sua própria comunidade e que essa transformação tivesse reflexos diretos na sociedade... Queríamos desenvolver a pedagogia de projetos... A gente não sabia direito como fazer tudo isto”
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O início do ano letivo em 1997 foi retardado para abril. Foi dada ampla publicidade à matrícula: “ESCOLHA A ESCOLA E VÁ SE MATRICULAR, SE NÃO TIVER ESPAÇO, A GENTE VAI PROVIDENCIAR” e, como esperado, houve um grande aumento do número de alunos matriculados, já nesse primeiro ano. Os novos chegavam numa situação mais complexa, em termos de dificuldades e defasagem, do que aqueles que já estavam na escola. Duas grandes prioridades no combate ao fracasso definiram os convênios realizados com a Avante e com o Instituto Ayrton Senna. Com a Avante, voltado para a formação continuada dos professores, coordenadores e gestores para que se fortalecessem como lideranças, mediante o desenvolvimento e apropriação de instrumental teórico e técnico capaz de lhes permitir impedir a produção de novas séries de repetentes e evadidos, e com o Instituto destinado a desenvolver projeto específico para corrigir o fluxo escolar. Além destas parcerias foram sendo realizadas várias outras, na área de educação, para o desenvolvimento de diversos projetos, inclusive parcerias de iniciativa das escolas, de salas de aula, que serão reveladas na medida em que sejam analisados os projetos a que deram origem. Embora o foco proposto neste livro seja o projeto Formação Continuada de Educadores e Gestores da Educação em Irecê que, como outros, tem seu universo singular, e resulta de uma parceria específica, qualquer projeto educacional, desenvolvido no período de 1997 para cá, pode ser objeto de referência e análise. Interagindo no mesmo contexto eles se
30 Expressão comumente utilizada por pessoas que trabalham com planejamento urbano, especialmente na área de transporte e trânsito, para identificar pontos onde devem instalar determinados equipamentos e serviços de uso público. Pesquisam-se os movimentos de pedestres e veículos, para conhecer e localizar as linhas do desejo e escolher onde investir os esforços e os recursos.
31 Soraia Pinto - entrevista em julho de 2001
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vinculam – alguns são suscitados pelas ações desenvolvidas por outros projetos e parcerias – e se complementam, constituindo a complexidade da trama educacional. Como, frequentemente, foram concebidos a partir de processos de reflexão coletiva, por vezes, a própria autoria se confunde, e não é possível separar com exatidão o que deu origem a quê. São frutos de relações de trocas e descobertas autênticas, geradas em situações singulares de necessidades das escolas, dos alunos, das direções, que amadurecem em novas idéias e propostas e “ganham pernas” com lideranças que exercitam sua criatividade e suas competências para adaptar e criar projetos adequados às realidades de suas escolas. Dessa forma, resgatar esses projetos é buscar recuperar, o mais concretamente possível, os processos que lhes deram origem – as razões, os problemas e os pensamentos que moviam as decisões de realizá-los, em cada caso. Assim como a produção do fracasso escolar não resulta de uma ação isolada, mas de um conjunto de ações que fazem um sentido e têm uma lógica, a sua desconstrução supõe também uma lógica que se lhe contraponha, a orientar múltiplas frentes de atuação articuladas e direcionadas. Dessa forma, se não cometemos exagero ao afirmar que hoje podemos traçar uma linha de atuação padrão para a superação do fracasso – ela já é visível nas leis que organizam o ensino no país – cometeríamos um engano, ao pretender nivelar os programas e projetos que se alimentam nesta fonte, como se ela fosse mágica, e estivesse acima da complexidade de cada contexto humano concreto. Podemos identificar, em cada realidade, investimentos mais (ou menos) estruturantes e, como tais, capazes de gerar processos transformadores mais duradouros. Em Irecê é fácil localizá-los porque são verbalizados por seus protagonistas (quando se referem ao que aprenderam, o que foi importante, os resultados obtidos, enfim, eles são uma constante nos depoimentos dos participantes dos diferentes segmentos). Em geral, os projetos com longa duração, destinados à formação de pessoas têm essa capacidade, mas isso não basta, como veremos.
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VIABILIZANDO O SUCESSO
“De nada adianta pedir aos professores que digam a seus alunos vocês podem! Se nós, da Universidade, dizemos a eles: vocês nada entendem de aprendizagem” 32
Desde o início de 1997 o combate ao fracasso escolar é alvo, sentido e cenário dos esforços dos gestores e educadores de Irecê – nos seminários que antecedem o ano letivo (de 1997), no plano de ação, nas parcerias buscadas.
32 DE LA TAILLE, Yves - in Prefácio ao livro de MANTOVANINI, Maria Cristina – “Professores e Alunos Problema: Um Círculo Vicioso”, Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda, SP, 2001.
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A mudança do quadro de insucesso da escola é, assim, realidade que vai se operando no decorrer da evolução das ações desenvolvidas em Irecê, e é também representação imaginária de futuro, desejo e utopia presentes nos processos, nas decisões dos sujeitos. Dessa forma, reaparece constantemente nesta narrativa.
3.1 Fracasso Escolar – alguns aspectos relevantes do debate sobre suas causas Como produção escolar, o fracasso para ser superado exige mais do que o investimento nos alunos que já estão defasados. É preciso agir nas suas fontes geradoras, intervindo na sua produção. Há, sem dúvida, uma multiplicidade de condições que interagem, constituindo o “habitat” para que o atraso escolar se reproduza, geração após geração, em contextos e ambientes tão diversos quanto o nosso território brasileiro, a nossa cultura, as origens do nosso povo. Essas condições, e sua diversidade, têm oferecido campo para muitas explicações: a desigualdade social, a fome, a violência doméstica, as migrações constantes, o desemprego, aliadas a um contexto de crescimento desordenado da população escolar; isto é, a realidade em que vivemos, serviu e serve para oferecer muitas e ricas explicações para o fracasso da escolaridade das nossas crianças. Freqüentemente, essas explicações – que se limitam a fatores externos à escola - estão associadas a concepções que centram nas próprias crianças a responsabilidade pelo fracasso: a sua origem familiar e as precárias condições das vidas que levam interfeririam decisiva e negativamente sobre o seu potencial orgânico e emocional, comprometendo o desenvolvimento da sua capacidade cognitiva, a ponto de impossibilitar-lhes uma adaptação ativa e criativa diante das exigências da escolaridade. Concentrar a compreensão e explicação para o fracasso escolar em tais condições, que não são superáveis em curto prazo, contribuiu, de certa forma, para distanciar o olhar sobre o próprio ambiente escolar e sobre as condições em que se produz a aprendizagem. A máxima “para mudar a realidade da escola é preciso mudar antes o sistema econômico e social, as prioridades do Estado, etc.” atuou sobre a nossa mentalidade. Serviu também como uma espécie de justificativa e como um grande “guarda-chuva”, a proporcionar um certo conforto, necessário para a adaptação (humanos que somos), diante do sofrimento em lidar com situações complexas e frustrantes nas tentativas autênticas de obter o sucesso dos alunos. O raciocínio é o seguinte: estando as razões do fracasso fora da escola, a solução depende de mudanças de fora do contexto escolar, sendo talvez inalcançável, enquanto não transformarmos a sociedade, superarmos a seca, a fome e outras mazelas sociais (que não nos faltam no país inteiro, interferem em todos os contextos, inclusive na escola, e cuja superação, de fato, exige o empenho de cada um e de cada instituição - pública ou privadaem diferentes níveis). A geração de educadores que atuou nas escolas e órgãos centrais de educação nos anos 70 e 80 vivenciou muito fortemente a influência desta compreensão no dia-a-dia da educação
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pública, participando de acirradas discussões e muitas resistências para a implementação de mudanças, mínimas que fossem, no ambiente escolar. Além de não haver um aparato que pudesse dar alguma sustentação jurídica a iniciativas desse tipo, elas esbarravam também nessa mentalidade - presente e muitas vezes dominante - entre nossos movimentos sociais da área da educação na época. A conquista de uma nova ordem jurídica – democrática - no país, a partir do fim dos anos 80, seguramente foi decisiva para um aprofundamento da pesquisa e do debate sobre o fracasso, dando maior relevância ao contexto escolar, às salas de aula e aos processos de aprendizagem e de ensino. Dez anos depois, as diretrizes e bases da educação fundamental brasileira, bem como a legislação educacional que as regulamenta, trariam mudanças substantivas fundamentadas nesse enfoque. Sem desconsiderar a relevância das mudanças sociais e políticas sobre a qualidade das escolas, em especial sobre as medidas para a organização do ensino no país, pretendemos destacar um aspecto: a fixação excessiva nas causas extra-escolares, como explicação para o fracasso, contribuiu para fortalecer o descrédito dos professores e gestores da educação, em geral, na sua capacidade. Possivelmente essa compreensão agiu mais no sentido de acomodar do que de despertar a escola para a sua parcela singular de contribuição na superação do insucesso. Interessa-nos aqui essa discussão sob um ângulo específico: o da sua transformação, que em Irecê foi ganhando corpo a partir de 1997. 3.2
Irecê: Foco na sala de aula, fé no professor Já vimos como o Plano de Ação, elaborado antes do início do ano letivo, sob a liderança dos educadores e com ampla participação da comunidade, traçou diretrizes gerais para a educação em Irecê, enfatizando algumas prioridades, que foram reforçadas no encontro de diretores e vice-diretores: localizar o foco das ações na transformação das salas de aula e das escolas, sustentadas pela ênfase em ações de valorização do professor, a partir do redimensionamento do seu trabalho, como forma de conscientizá-lo do seu papel social. 33 3.2.1
Igualdade é Prioridade
Entre o encontro de diretores e vice-diretores e o concurso para professores foram revisitadas e rediscutidas as prioridades definidas no Plano34. Tratava-se de hierarquizá-las, principalmente porque, como está cada vez mais visível, não há – nunca haverá - recursos infinitos, em especial para a realização de qualquer política pública. Dessa forma, a definição cuidadosa de prioridades coerentes com os objetivos e metas, e a sua adequada implementação – compatibilizada com a elaboração e execução orçamentárias, são condições essenciais num plano que se proponha a ir além do imediatismo, e estabeleça projeções de quadros futuros com efetivas transformações. O compromisso constitucional
33 Plano de Ação – op cit 34 Ver nota 18 neste capítulo em Aproximando intenções e gestos, descobrindo identidades e alimentando a utopia.
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com a promoção da igualdade de oportunidades para todos impõe, ao gestor público, o exercício do princípio da eqüidade na distribuição de benefícios e recursos. Construir iguais oportunidades passa por admitir o investimento de volumes desiguais dos recursos orçamentários entre os diversos segmentos do universo com o qual se trabalha, com o objetivo de corrigir deformações que geram exclusões. Que ações – das muitas listadas como necessárias - teriam maior relevância para romper o ciclo reprodutor da defasagem? Onde estava a sua principal fonte alimentadora? O que devia vir primeiro, segundo, terceiro? Com o projeto Acelera Brasil35 se enfrentava a defasagem existente mas, como parar a sua produção? Como atuar sobre as causas do problema? Isto é muito importante num plano, pois, quando não se explicita claramente o que é primário e secundário, as ações se pulverizam, fragmentam-se os esforços comuns, os recursos se esvaem, os propósitos igualmente e os resultados tendem a ser frustrantes.
3.2.2
Investir na aprendizagem da leitura e da escrita – Classes Iniciais
É nos primeiros anos de escolaridade que está situada a origem do fracasso atual e do futuro (em Irecê, como na Bahia36, o maior número de repetentes estava aí); concentrar esforços na transformação das práticas de sala de aula, conforme desejo coletivo expresso no plano de metas, foi a opção feita pelo poder municipal em Irecê.
3.2.3
Escolha da Consultoria
“Nós tínhamos que dar conta também dos que não estavam defasados – mesmo sendo minoria – para não produzir mais e daí a nossa aflição porque tínhamos uma diretriz para lidar com os defasados. E os não defasados? O UNICEF já tinha sinalizado que ia ter um projeto 37
com Irecê mas o Município tinha que definir ... Faríamos um projeto-piloto com algumas salas, mas não sabíamos como conduzir ... e decidimos ter uma assessoria ou consultoria para tratar das séries iniciais. Esses alunos precisavam de um tratamento diferenciado. Se os recursos fossem poucos, a prioridade seria da alfabetização – classes iniciais ... eu já tinha participado de alguns eventos com a Avante. Não me lembro bem, foi uma sintonia, não sei se Salete disse primeiro ou se fomos nós que chamamos ... Queríamos principalmente saber como fazer acontecer para transformar a sala de aula. Os caminhos administrativos, mesmo leigas, a gente estava caminhando, com ajuda ... Se não mudar a sala de aula, não muda a realidade. E isso a gente sabia que a Avante podia ajudar. As coisas se encaixavam. Parece que a gente já se conhecia há muito tempo. Hoje, no discurso do professor, na fala do aluno, em suas atitudes, não tem nenhuma escola que não tenha a influência desse trabalho ...”
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35 Projeto realizado com o Instituto Ayrton Senna 36 A situação tradicional de concentração do fracasso nas séries iniciais tem se modificado nas duas últimas décadas. Estados e municípios brasileiros que nesse período implementaram políticas abrangentes de combate ao fracasso, concentrando esforços e recursos nas séries iniciais e conseguindo sustentá-las, independentemente de mudanças dos Executivos municipais ou estaduais, hoje já não apresentam quadro de repetência concentrada nestas mesmas séries. Não é o caso baiano, nem na capital – Salvador - onde esse processo foi iniciado em meados dos anos 80 mas foi interrompido na década seguinte. Menos ainda no interior do estado e zonas rurais. Irecê, em 2001, como veremos, já não apresenta o mesmo quadro de 1996 e o volume de recursos municipais já pode ser distribuído envolvendo parcela maior para o 2º ciclo do ensino fundamental e para a educação infantil.
37 Segundo Salete Silva, op cit. 38 Emanuela Dourado, Coordenadora, – entrevista 28.jul.2001
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A leitura da realidade pelos protagonistas da educação em Irecê em nenhum momento – desde o planejamento - deixa dúvidas sobre a convicção de estabelecer prioridade nas salas de aula. Associemos esta convicção ao primeiro compromisso (expresso no Plano de Ação) para realizar a diretriz “melhoria da qualidade do ensino”: “opção pela linha pedagógica sócio-construtivista com adoção da pedagogia de projetos”39 A assessoria ou consultoria buscada pautou-se nestas necessidades. Para compreendermos esta escolha fazemos uma reflexão que nos conduzirá a algumas características importantes para nos situarmos na cultura dessa organização – AVANTE, Qualidade, Educação e Vida – ONG – . Nesse sentido retomamos a crença no devir humano, expressa na poesia de Antônio Machado e na impossibilidade de sermos completos e capazes de nos situarmos acima da história, fazendo previsões impecáveis e exatas do futuro e, portanto, tendo, de antemão “receitas”, independentemente dos contextos. Retomamos também o distanciamento entre o mundo acadêmico e a realidade do professor, ou um descompasso entre esses dois mundos. Isso nos reporta à velha dicotomia entre pensar e fazer: é como se concebêssemos que quem executa não pensa, pensa menos, ou é menos eficiente no pensar, e quem pensa, sabe mais, não executa. Uma dissociação muito comum no nosso mundo – não só na área educacional. Esta cisão (quem faz e quem sabe) está na origem de muitos dos conflitos que nos dificultam realizar a integração entre teoria e prática, pensamento e ação, sejamos nós profissionais dedicados 40 horas à Academia e à pesquisa ou às atividades docentes no ensino fundamental. Expressando e fortalecendo essa dicotomia, instaura-se a descrença de quem pesquisa sobre aquele que executa e um distanciamento recíproco entre os dois segmentos, conforme Yves de La Taille, na abertura deste capitulo. Esses dois conteúdos destacados – compreensão dos fenômenos como fatos situados, datados e atuantes dentro de um contexto que é histórico e dinâmico; relação de conexão estreita e indivisível entre teoria e prática, pesquisa e ação – simbolizam a “cultura” da organização de que falamos, eixos organizadores da sua existência, instrumentos referenciais de todas as suas práticas, linha, tecido, costura e modelo dos seus diversos processos, produtos e projetos a exemplo do “Formação Continuada de Educadores e Gestores da Educação em Irecê”. A cultura organizacional da Avante encontra identidade e campo fértil na sociedade ireceense naquele início do ano de 1997, em especial entre os gestores e educadores municipais. A “Avante – Qualidade, Educação e Vida” é uma ONG criada em 1991 por um grupo interdisciplinar que se propõe a desenvolver estudos e ações nas áreas de educação, comportamento humano e processos grupais, estabelecendo parcerias com instituições governamentais, empresas públicas e privadas, associações e sindicatos. Sua missão é contribuir para a qualidade da educação. Através da sua atuação busca cooperar com grupos para a transformação, visando à construção de relações mais justas e solidárias. 39 Ver pág.15
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Elabora e executa projetos de natureza educacional e social, voltados à mobilização da comunidade escolar e/ou da sociedade civil em torno de questões fundamentais. Realiza capacitação em serviço de professores, coordenadores pedagógicos e diretores; assessora dirigentes de instituições públicas e privadas nas áreas de desenvolvimento de equipes, de implementação de processos de mudança e de renovação, de avaliação de processos e resultados de ações implementadas. Desde outubro de 1996 é parceira do Unicef na área de educação para os estados da Bahia e Sergipe. Para realizar suas finalidades, constrói parcerias diversas, a exemplo de Prefeituras Municipais (Irecê, Amargosa, Ilhéus, Lauro de Freitas, Riacho de Santana, Paulo Afonso), Governos Estaduais (Bahia, Ceará, Maranhão), MEC, UNICEF, UNESCO, CECIP, SEBRAE, Fundações – Cidade Mãe e Odebrecht, Instituto C&A, dentre outras.
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PROJETO “TODOS PELA EDUCAÇÃO NO MUNICÍPIO, UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES E GESTORES DE EDUCAÇÃO”
“A experiência que não se transforma em sabedoria, não serve para quase nada” (Neidson Rodrigues, Educador) E “tudo parece fazer sentido, na medida em que deixa o sentido se fazer. O casual aberto ao intencional aberto ao casual, como círculos concêntricos se expandindo a partir da pedra, atirada com mira sobre a água ... Água cristalina, não porque reflete, mas porque corre” (Arnaldo Antunes)
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“Não deve haver duas Histórias, uma da ação moral e política e outra da teoria política e moral, porque não houve dois passados, um povoado apenas por ações e outro só habitado por teorias. Toda ação é portadora e expressão de convicções e conceitos mais ou menos carregados de teorias; toda construção teórica e toda expressão de convicção é uma ação moral e política”
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Neste capítulo pretendemos proporcionar o conhecimento do projeto, tal como ele foi pensado inicialmente – com todos os seus componentes. Em seguida, centraremos o nosso foco no formato adotado em Irecê, abordando suas duas linhas de ação – formação continuada de professores e formação continuada de gestores de educação, visando possibilitar a compreensão de suas principais dimensões e abrangência, seus fundamentos teórico-metodológicos e seu desenvolvimento. Pretendemos recuperar, tanto quanto possível, os desafios que movimentaram a sua implantação e realização.
40 In “Gilberto Gil – todas as letras” - “O Receptivo”, pág.13, org. Carlos Rennó, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. 41 MacINTYRE, Alasdair - After Virtue, pág. 61, “Governança, o Banco Mundial e a Teoria Liberal”, in WILLIAMS, David e YOUNG, Tom - Political Studies, 1994
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Para isto são reproduzidos trechos das entrevistas realizadas com professores e diretores e de relatórios regularmente encaminhados pelos coordenadores à Avante, buscando, a um só tempo, sistematização e reconstrução do contexto do trabalho e do que foi significativo para a transformação da escola de Irecê, ficando explícito que essa transformação supõe processos de mudanças significativas na vida dos participantes, pessoas e grupos envolvidos nessa aventura, que nos parece sem volta. Finalmente, são analisados alguns dos projetos que foram ou estão sendo postos em prática e que, a nosso ver, têm vínculos históricos com o aprendizado de valores, atitudes e procedimentos, suscitados pela experiência de “formação continuada de professores e gestores de educação” – um valor em si – que, se, provavelmente. já existia em Irecê, tornouse tônica, multiplicou-se e agora pertence a grande parte dos educadores e gestores da educação pública daquele município. Por aí se pode entender por que hoje se vive uma “disputa” – certamente salutar - por esses educadores, entre a rede particular e a rede pública da cidade. Isto está revelado em vários depoimentos colhidos em 2001 entre educadores que participaram do trabalho desde o início, como o da então coordenadora pedagógica da Secretaria e o de uma professora, ex-docente da rede pública, atualmente lecionando numa instituição de ensino particular de tempo integral, e que em 1999 apresentou para outros educadores, em Salvador, a sua experiência na rede pública de Irecê42 e produziu texto, gravou vídeo - “junto com duas colegas e a diretora da escola” – relatando a experiência: “Hoje os profissionais da rede são disputados pelas escolas particulares. A gente tem que ficar brigando para a escola particular não ficar levando os nossos professores. Eles têm a consciência da dimensão social do que estão fazendo. Hoje, no discurso do professor, na fala do aluno, em sua produção, não tem nenhuma escola que não tenha a influência desse trabalho de formação continuada.”
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“É uma rotina totalmente diferente. Não deixo de aplicar o que aprendi na capacitação, não dá para voltar atrás. Trabalho com a pedagogia de projetos. Eu gosto mas ... sinto falta, principalmente dos cursos. Acho importante a gente estar discutindo em grupo, debatendo, ouvindo, trocando idéias, os professores com seus relatórios, dando sugestões sobre o que está acontecendo na sala... a gente tem uma idéia assim, vaga, e chega alguém, faz um 44
questionamento que aquela idéia cresce ...”
42 “Trocando em Miúdos” – momentos de trabalho, com a duração de 24 horas, em geral – com um formato fixo: de aprofundamento do conhecimento – mediante palestras temáticas, com profissionais escolhidos, seguido de “Relatos de Práticas Bem-Sucedidas”, regularmente realizados pela Avante, incluindo experiências desenvolvidas com consultoria da própria organização e de organizações parceiras, destinado a um público específico de professores, coordenadores e gestores da educação. Contempla a participação de profissionais da rede pública e da rede privada
43 Emanuela Dourado – Coordenadora 44 Maria Rita Oliveira Pereira – Professora
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4.1 A Proposta Inicial 45 O projeto inicial envolvia, além da formação continuada de professores e gestores educacionais, o assessoramento à UNDIME – União dos Dirigentes Municipais de Educação46. O objetivo era desenvolver uma ação de abrangência estadual. Tendo Irecê como município-piloto, o projeto estenderia suas ações diretas a mais 18 municípios47, Avante e Unicef alimentavam esta idéia e pretendiam desenvolver o projeto nesse formato, a partir de experiência de alguns membros da equipe da Avante com a educação municipal, iniciada desde a década de 80. No período (1986-1989), uma das profissionais que vieram a fundar esta Ong48 ocupou a Coordenação de Ensino do Município de Salvador, onde implantou um trabalho, fundamentado no sócio-interacionismo e construtivismo, àquela época ainda pouco estudado e praticado em municípios brasileiros. Enfrentou muitas resistências, pois propunha mudanças profundas na organização e funcionamento da escola fundamental e especialmente no exercício da prática docente. As transformações então experimentadas vieram a revelar-se precursoras das linhas de fundamentação, e de muitos dos dispositivos da legislação que organiza nacionalmente o ensino fundamental, assim como de programas nacionais, desenvolvidos para implementála. São exemplos: eliminação da seriação; mudança de foco das ações do órgão central, enfatizando os investimentos na escola e na sala de aula; valorização do profissional da educação, incluindo a criação de espaços permanentes de capacitação na escola, dentro da jornada de trabalho e valorização da participação e integração da comunidade. Em Salvador essas iniciativas integravam o Programa de Educação Pública Municipal – “Escola pra Todos, Todos pra Escola”. Ao deixar a Secretaria Municipal de Educação, continuou com o trabalho com educadores e gestores da rede privada, enriquecendo-o. Em 1997 , quando se iniciou o trabalho de formação continuada em Irecê, o contexto nacional era de fortalecimento dos municípios, como entes executores das políticas públicas, não mais exercendo um papel complementar ou subalterno ao estado, em especial na educação. A promulgação da LDB no ano anterior deu um novo ânimo, evidenciando a urgência de intervenções profundas para mudar o quadro da educação pública brasileira e superar suas deficiências e ineficiências sistêmicas e históricas. O contexto era o de realização de reformas democráticas, preocupação com eqüidade na distribuição dos recursos com definição de prioridade para o ensino fundamental, especificação das atribuições da educação entre os diversos âmbitos da administração pública, estímulo à criação de mecanismos de participação da comunidade na escola, definição de critérios para
45 “Todos pela Educação no Município” – “Histórico do Projeto” – in Relatório, 1997 46 UNDIME - BA - entidade que congrega dirigentes municipais de educação, dos municípios baianos, organizados em 19 pólos regionais, buscando sua estruturação e o incremento de sua capacidade de participação e intervenção nos processos vinculados à educação pública
47 América Dourada, Barra do Mendes, Barro Alto, Cafarnaun, Canarana, Central, Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Itaguaçu da Bahia, João Dourado, Jussara, Lapão, Mulungu do Morro, Presidente Dutra, São Gabriel, Uibaí, Xique-Xique
48 Maria Thereza Marcílio, Coordenadora do Núcleo de Educação da AVANTE
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a distribuição dos recursos públicos federais destinados ao ensino. Tudo isso associado ao compromisso dos estados e municípios com o cumprimento de determinados requisitos mínimos, relacionados à qualidade do funcionamento do ensino, como elaboração e implantação de plano de carreira, regimentos e conselhos escolares, dentre outros. O município de Irecê foi escolhido pelo UNICEF para a implantação do projeto por ter assumido compromisso com a educação como meta estratégica de governo, por estar se mobilizando para a realização de parcerias externas – tendo inclusive procurado o próprio UNICEF para isto – além da sua importância na economia regional e influência sobre o entorno, que lhe permitia ser um ponto multiplicador de iniciativas de implantação de políticas sociais inovadoras. A UNDIME foi indicada, por ser o fórum de dirigentes municipais de educação da Bahia que tem, dentre outras, a atribuição de desenvolver e acompanhar programas locais, voltados para a melhoria da qualidade do ensino e para a articulação dos âmbitos locais e regional com o nacional. É uma das entidades integrantes do Conselho Nacional de Educação e do Conselho de Acompanhamento e Fiscalização do Fundo de Valorização do Magistério. Naquela época já participava de iniciativas nacionais importantes, a exemplo do PRASEM 49 junto aos secretários municipais de educação, realizadas pelo MEC – Projeto Nordeste em parceria com o UNICEF e o Banco Mundial. Não foi possível, porém, a realização das ações diretas do projeto da maneira extensiva que se havia pensado, envolvendo 19 municípios. O UNICEF, que praticamente bancou o projeto durante todo o primeiro ano não teve, naquele momento, disponibilidade de recursos para realizá-lo integralmente como desejaria. A partir do segundo ano – 1998 - a Prefeitura de Irecê assumiu o financiamento. Dessa forma, o modelo foi mantido e desenvolvido em suas duas linhas principais apenas em Irecê. E o município, de fato, comprovou e fortaleceu a sua vocação de liderança regional nas políticas públicas educacionais, tanto que hoje é a sua Secretaria Municipal quem está coordenando a implantação nas 19 cidades da região, os projetos de âmbito nacional – oriundos do MEC - a exemplo do projeto de implantação dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) e do PROFA (Pró - Alfabetização).
49 O PRASEM – Programa de Assessoramento aos Secretários Municipais de Educação - desde 1997 realiza regularmente seminários intensivos com palestras e oficinas, contemplando secretários municipais de educação de todo o Brasil, com o objetivo de transmitir e discutir as novas bases da organização da educação nacional e capacitá-los para exercerem papel de liderança na implementação das transformações previstas na legislação, bem como em programas nacionais de melhoria da escola pública. Elabora e utiliza para os municípios um material didático de utilidade para gestores educacionais, em forma de manuais e guias de orientação, destrinchando temas como orçamento, elaboração de plano de carreira do magistério, criação de conselhos do FUNDEF, regimentos escolares, dentre outros.
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4.2 Formação Permanente de Professores das Séries Iniciais do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino de Irecê. Descrição do Projeto, seu modelo50 Partimos da crença de que todo projeto e toda ação trazem implícita uma concepção ou modelo. Ao se realizar contém também um potencial capaz de atuar sobre esse modelo, alterando-o, relativizando-o, confirmando e/ou negando, no todo ou em parte, os seus pressupostos. Assim, a cada vez que se implementa um projeto, abre-se a possibilidade de enriquecê-lo, atualizá-lo, completá-lo. Uma descoberta, que supõe a realização de uma re – flexão sobre o acontecido, uma retomada dos pressupostos anteriores ao fato e uma revisão, num constante ir e vir, ver, rever para ir além das aparências e compreender. A partir dessa concepção fazemos a descrição do projeto na forma como ele foi aprovado em 1997, considerando que, substancialmente, a experiência em Irecê o enriquece e confirma o modelo adotado. Dissemos que um dos segredos primários para superar o fracasso da escola parece ser conjugar princípios de participação e solidariedade, em todos os níveis e relações. A formação continuada em serviço desenvolvida em Irecê enfatiza a importância de persegui-los. Convidamos o leitor a uma leitura investigativa desse modelo e da sua execução em Irecê, desejando que, como propomos, possa ratificar essa afirmação, enriquecê-la e estabelecer conexões que façam sentido na sua prática. O desenvolvimento do projeto desde o início contemplou todos os alunos da alfabetização e 1a série, envolvendo diretamente todos os docentes atuantes nesses níveis. Inicialmente este universo atingia 80 professores, ampliando-se para 160 no ano seguinte e atingindo 227 a partir de 1999, com inclusão do 2º ciclo do ensino fundamental e do segmento da educação infantil. No primeiro ano não havia na Secretaria uma coordenação pedagógica estruturada. Havia uma diretora da área pedagógica e uma diretora de convênios. Na medida em que foi se formando a equipe de coordenação pedagógica da Secretaria, o universo foi sendo ampliado, incluindo coordenadores, inicialmente apenas cinco (1997) e no ano seguinte 18 (fim de 1998), número que se mantém até hoje (2002). A quantidade de professores foi ampliada para 250, sendo 144 deles concursados (foram realizados 3 concursos públicos) e 9 professores leigos51. A quantidade de alunos beneficiados passou de 6.345 para 10.452 entre 1997 e 2000. OBJETIVOS GERAIS
Capacitar a equipe técnico-pedagógica numa perspectiva construtivista; Instrumentalizar professores e coordenadores com vistas à transformação da prática pedagógica.
50 Conforme proposta apresentada e aprovada em 1997, constante do anexo I do relatório do mesmo ano 51 In Proposta Curricular da Rede Municipal de Ensino de Irecê, vol.I,dez. 2000
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OBJETIVOS ESPECÍFICOS
Criar espaços de análise e reflexão permanentes da prática pedagógica, como elemento alimentador do cotidiano da escola; Construir e sistematizar instrumentos de apoio ao exercício da função docente: rotina de trabalho, planejamento, diários e registros, observação e análise de atividades, grupos de estudo.
PRINCÍPIOS NORTEADORES
Concepção da Escola e do Aluno Instituição social que sistematiza o saber produzido historicamente e é responsável pela formação de crianças e jovens, compreendidos como seres cognoscentes e ativos que interferem e modificam o meio, ao tempo em que são modificados por ele. Desta forma, a escola é espaço privilegiado, em que as crianças e jovens, em interação com os adultos, com seus colegas e com o meio físico, vai construindo suas características e suas formas de ser, desenvolvendo habilidades, apropriando-se da história e da cultura do seu grupo social em que vivem e construindo seus próprios sistemas de significados.
Concepção da formação continuada, do papel do professor e do coordenador pedagógico O trabalho visa instrumentalizar teórica e tecnicamente os professores e coordenadores pedagógicos para exercerem suas respectivas funções, através da criação de oportunidades que lhes dêem elementos para pensar e repensar as suas práticas, fazendo e refazendo o seu trabalho e nesse processo, fortalecendo-se enquanto professor no seu triplo papel - de guia e orientador do processo de ensino e aprendizagem, organizador do espaço físico e dos materiais, planejando e organizando atividades; de formador responsável por uma interlocução rica, e de modelo de autoridade ou fonte de disciplina, responsável pela definição de limites e pela identificação e exploração das possibilidades de aprendizagem – e fortalecendo o coordenador pedagógico, no desempenho do seu papel – formador dos professores, que acompanha e apóia a prática do professor, realizando boas intervenções.
Associados a estas concepções, os princípios norteadores básicos do projeto são formulados A proposta de trabalho tem como princípio básico o caráter científico e a especificidade da prática docente. Com isso destaca-se e reconhece-se a necessidade de suporte teórico da didática, enquanto fenômeno educativo. Identificar o fenômeno educativo enquanto objeto de conhecimento significa reconhecer, analisar e produzir conhecimento sobre as interações que ocorrem no espaço escolar. Esta produção de conhecimento é fundamental para a atualização permanente da prática educativa através do questionamento, validação de objetivos, conteúdos, intervenções, comportamentos e materiais instrucionais.
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Trata-se, portanto, de alimentar o professor com informações e instrumentos que o apóiem na sua tarefa e, mais que isso, trata-se de capacitá-lo a atuar como sujeito ativo, consciente e crítico da sua prática profissional, fomentando um comportamento investigador, necessário para que ele seja um produtor de conhecimentos, desenvolvendo suas potencialidades e construindo novas interpretações da realidade. É importante notar, no entanto, que as atividades educativas realizadas no cenário escolar são subsidiadas por informações teóricas de diversas origens, como antropologia, filosofia, psicologia, dentre outras. Ademais, as áreas do conhecimento, cujos objetivos coincidem com os do trabalho escolar, estão sendo constantemente estudadas e pesquisadas, com repercussões na área pedagógica. Portanto, a par da ciência didática, é importante ressaltar quais os princípios que norteiam a prática pedagógica, a partir de diversas fontes que a alimentam. Assim, destacamos o princípio da Epistemologia Genética, que pressupõe uma interação constante, necessária e produtiva entre o sujeito e o objeto de conhecimento; os princípios da Psicologia Genética e dos novos aportes sócio-interacionistas que atribuem ao sujeito, a partir de um repertório mínimo de comportamentos herdados, na interação com o meio, desenvolver e construir estruturas mentais as mais complexas, modificando o ambiente e sendo modificado por ele. Quanto à discussão de áreas específicas, são consideradas as contribuições das ciências da linguagem, especificamente da psicolingüística e da sociolingüística, bem como a contribuição das demais áreas, como a matemática e as ciências físicas e biológicas.
Metodologia “O que move um professor a mudar é a reflexão da prática, embora ele custe a acreditar que isso funcione (...) A teoria apenas não é suficiente, só funciona se, de fato, estiver muito ligada à prática, servindo para iluminá-la e para voltar a ela através da própria prática” (Thereza Marcílio)
52
Assim está sintetizada a metodologia: Criação de diversos espaços de operacionalização e reflexão, com vistas à implantação de uma prática pedagógica mais eficiente, tais como: Seminários para aprofundamento teórico; Encontros com professores para estudo e análise da prática; Encontros com coordenadores para estudo e reflexão da prática; Observação em sala de aula; Análise e retorno aos professores dos registros do processo educativo; Produção de materiais didáticos.
52 In Mônica Martins – “Formar para (Trans)formar” – Monografia apresentada, como requisito para obtenção do título de Especialista, ao Curso - “A Formação do Professor Alfabetizador: Leitura e Linguagem”, orientação – Profa. Ângela Kleiman, (AVANTE/UNEB)
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Para efetivá-la são desenvolvidas seis atividades:
1. Seminário envolvendo todos os professores e coordenadores Objetivos – Conhecer, discutir e afinar conceitos considerados referenciais necessários para a realização do trabalho ao longo de um período. Metodologia – exposição participada, dinâmicas variadas com utilização de recursos audio-visuais e textos de apoio. A responsabilidade pela condução é dos consultores; Conteúdo programático – Teorias do Conhecimento; A Psicologia Genética e o Desenvol-vimento Humano; A questão da leitura e da escrita na escola;
2. Encontros para análise e reflexão da prática em grupos pequenos Objetivo – Possibilitar uma reflexão crítica da prática pedagógica, a partir da observação de situações didáticas, utilizando-se o referencial teórico construtivista Metodologia – Esta atividade consiste na observação e análise de vídeos e/ou registros e materiais didáticos da instituição e de outros locais;
3. Observação em sala de aula Objetivos – participar da rotina da sala de aula como observador, possibilitando, posterior-mente, a análise crítica da atividade desenvolvida; Metodologia – A observação é feita dentro do planejamento da sala. A atividade escolhida para ser observada faz parte da rotina diária da classe, não devendo haver nenhuma progra-mação extra para essa tarefa. O professor deve preparar um roteiro da atividade a ser obser-vada, que deverá ser entregue com uma semana de antecedência da data da observação;
4. Encontro para análise e reflexão da prática de coordenação pedagógica Objetivo – Análise, troca e sistematização da prática da coordenação pedagógica na escola Metodologia – O desenvolvimento da atividade consiste na discussão e análise da rotina do coordenador pedagógico e no estudo sistemático de temas necessários ao exercício de sua função. Cada encontro será precedido da entrega, por parte do coordenador, dos seguintes materiais: Rotina de atividades/planejamento Uma situação problema vivenciada e refletida pelo coordenador (ex. intervenção junto ao professor, escolha e execução, sistemática de avaliação: o que, como e quando da avaliação);
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5. Encontro para análise e reflexão da prática entre os diretores municipais Objetivo – análise, troca e sistematização da prática dos diretores municipais Metodologia – O desenvolvimento da atividade consiste na discussão e análise da rotina do diretor municipal e do estudo sistemático de temas necessários ao exercício da sua função. Cada encontro será precedido da entrega, por parte do diretor, dos seguintes materiais: Rotina de atividades/planejamento Uma situação problema vivenciada e refletida pelo diretor (ex: intervenção junto ao professor, escolha e execução, sistemática de avaliação: o que, como e quando da avaliação);
6. Seminário Final Objetivo - Avaliação do processo de capacitação
Esse é o formato do modelo aprovado em Irecê53.
Educação Infantil Em 1999 o trabalho se estende ao segmento da educação infantil, envolvendo todos os seus professores e diretores. Começou-se por debater a função da educação infantil, tendo como referência a nova Lei de Diretrizes e Bases, que especifica muito claramente a função complementar, do atendimento integral e a função eminentemente educativa, rompendo com a visão tradicional, assistencialista e determinando a responsabilidade dos municípios em prover esse nível de ensino. Foram realizados seminários em dois módulos, cujos objetivos principais - de debater e reconstruir com os educadores e gestores o seu conceito de “educação infantil” e apontar para a criação de uma coordenação pedagógica específica para o segmento na Secretaria Municipal de Educação - foram plenamente atingidos. Mais uma vez, as falas dos participantes são testemunhos mais efetivos desse processo, que embora tenha se fortalecido no ano III do projeto, com a realização dos seminários e a estruturação de uma coordenação, desde o ano I é influenciado pelo contexto geral de mudanças na educação pública de Irecê: “O grupo cresceu muito na visão do que é educação infantil. Antes, a idéia que se tinha, até 97, era de que a criança vai para o infantil pra se alimentar, limpar as unhas, porque os pais precisam trabalhar, uma visão muito assistencialista. Hoje, quando a gente vê crianças de 4 e 5 anos produzindo textos, gostando dos livros ... sabe que a criança não vai lá só pra comer, vai para aprender ...54
53 ANEXO I Relatório 1997 – op.cit. 54 Maria Madalena Damasceno Pereira – professora da rede desde 1997 e coordenadora da educação infantil desde julho de 1999.
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...”Lá em Irecê, como na grande maioria dos outros municípios, a educação infantil era entendida de forma restrita, como função de assistência. Era um atendimento muito pequeno, como é comum nos municípios e um atendimento basicamente feito pelo Estado, nas classes de pré-escola, de 4 a 6 anos, e também por associações de moradores e órgãos filantrópicos. Então a gente começou por estabelecer uma discussão a partir da análise da legislação atual, que determina a educação infantil como uma responsabilidade da escola, enfatizando o caráter educativo, e por se tratar de crianças pequenas tem que ser também um atendimento associado às questões da saúde e assistência, mas a função é essencialmente educativa. Na formação, além de trabalhar para construir o conceito, era nossa intenção provocar a criação da coordenação da área na Secretaria, de modo a dar continuidade, desenvolvendo uma capacitação continuada. Foi criada a coordenação e houve significativa expansão do número de alunos de educação infantil. Como sabemos, o FUNDEF não cobre a educação infantil e assim eles não tinham recursos para dar a devida prioridade a esse segmento. Mas os encontros realizados foram muito proveitosos, havia uma mobilização dos participantes, trabalhamos bastante os referenciais curriculares da educação infantil, tivemos uma visão geral sobre a área: primeiro, uma visão legal, uma visão da história, o que tinha acontecido e o que estava diferente agora, por que se chegou ao momento atual. Esses referenciais teóricos devem ser tomados pelos educadores como parâmetros mesmo, de estudo contínuo e sistemático. A criação da coordenação visava a continuidade desse processo... Tem um detalhe: há algo de especial naquele povo, naquelas mulheres, uma paixão pelo que fazem ... Encontrei em Irecê um terreno muito fértil, muito propício, é algo diferente de outros municípios, um compromisso e envolvimento que facilitam a superação das dificuldades. É uma cultura que desenvolveram, onde é muito forte a necessidade de capacitação e aperfeiçoamento constante... Então, tentamos fortalecer a coordenação para que assumisse esse papel que a consultoria assume de início –estabelecer uma rotina de estudos, num programa de formação continuada. Não tenho acompanhado A existência desse trabalho continuado de formação, nessa linha de implementação dos parâmetros com o funcionamento da coordenação é um dos indicadores para avaliar a nossa intervenção na educação infantil “...
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“Entrei na educação infantil este ano e estou adorando. O problema inicial era o ensino fundamental, o infantil era para as classes mais ricas. Hoje há de fato, na educação pública de Irecê um apoio, uma força para a educação infantil que não havia antes. As reformas mesmo na educação infantil foram dos seminários da Avante para cá e desde o ano passado começou a haver capacitação regular da educação infantil”. Este ano (julho de 2001) está acontecendo a capacitação regular dos professores da educação infantil. É regular, semanal, e se dá dentro da realização do PROFA e do trabalho com os PCNs. Fizemos uma manhã de estudos há quinze dias e elaboramos um projeto de leitura, escrita e criação que ainda está em rascunho. |Um projeto de empreendimento para trabalhar até o final do ano, muitos ficaram com livrinho, outros com reconto, outros com a parte de história infantil, outros com recriação da própria historinha de vida deles ... São coisas que quem está fora da educação infantil não imagina que as crianças de 4, 5, 6 anos são capazes de fazer. Cada dia a gente acredita mais que eles
55 Solange Leite – Formadora da Avante responsável pela coordenação do trabalho de formação dos educadores do segmento da educação infantil realizado em Irecê (1999-2000).
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são realmente capazes e podem começar a fazer e acontecer desde os primeiros anos...”...Como coordenadora hoje continuo aquele trabalho. Temos um curso para professores alfabetizadores, mas se não fosse aquele alicerce, aquele início que a gente teve em 97, não sei se o programa teria o sucesso que está tendo hoje. Hoje no PROFA a gente está consolidando porque foi feito um lastro” .
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4.3 Alguns aspectos importantes na realização das atividades regulares do modelo de capacitação em serviço adotado
Foco na sala de aula, cujo cotidiano torna-se objeto temático e sistemático da reflexão de todos os professores – A classe-laboratório Consultor-Parceiro e Aprendiz – Construção de Autonomia Vídeo, Observação em Sala e Registros - instrumentos de apoio fundamentais
Para assegurar o envolvimento com a discussão da prática – elemento central do modelo escolhe-se uma classe-laboratório, cujo professor responsável é acompanhado mais de perto pelo consultor, com o qual co-produz o conteúdo do encontro regular com todos os colegas. Sua aula é filmada e exibida para todos, e torna-se tema desse encontro. A sua imagem é exibida no filme, em plena realização de uma atividade com seus alunos. Esse filme é um recurso didático importante para a troca de experiências e produção de conhecimentos no encontro. O professor escolhe um problema que considera relevante para transformar em situação didática, sistematiza e apresenta a sistematização elaborada. Neste processo conta com apoio do consultor, que a partir de referenciais do construtivismo, observa suas aulas, registra e devolve regularmente suas observações, num constante diálogo. Em Irecê foram constituídas quatro classes - laboratório57, em diferentes escolas, escolhidas anualmente. É importante observar o nível de envolvimento e comprometimento, tanto do professor quanto do consultor num processo como este. Sobre isso, há um exemplo que costuma ser utilizado para enfatizar a diferença entre comprometimento e envolvimento das pessoas com os processos/produtos dos quais participam. Pede-se que o grupo pense num sanduíche misto, onde a vaca está apenas envolvida (contribui com o leite, que dá o queijo), mas o frango está comprometido, entra
56 Leila, Josenai da Silva Vasconcelos, foi professora de da classe- laboratório da Escola Duque de Caxias em 1997. Hoje é coordenadora.
57 No primeiro ano foram identificadas duas escolas-piloto para implementação do modelo de capacitação: as escolas Duque de Caxias (Diretora Lirian Dourado, sala da Profa. Jane) e Nossa Senhora de Aparecida (Diretora Luzinete Libório e Profa. Leila. Em 98, foi escolhida a escola Sinésia Caldeira (Diretora Odaléia Dourado, sala da Profa Valéria Lopes, em 99 – Escola Padre Cícero – Diretora Orlaneide Malaquias e Profa. Márcia e em 2000 – Escola Marcondes Batista Félix – Diretora Vilma e Profas Dilma Néris e. Marcicleide (1º e 2º ciclos)
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com a própria carne. Ressalvados os exageros, o exemplo é útil para compreendermos uma característica importante que está implícita nesse modelo: não se trata, nos encontros com o grupo, de expor um tema, escutar e discutir casos acontecidos em outras realidades, com os quais aquele corpo de professores em formação não tem envolvimento direto. Por conseqüência, a sua prática, se surgir como tema na discussão, aparece de forma secundária e fragmentada. Pode ocorrer também uma atividade desse tipo mas, fundamentalmente, nesses encontros trata-se das realidades dali, do cotidiano da sala de aula de Irecê, daquele corpo de professores presente na formação. O que se expõe e problematiza é a realidade vivida nas escolas locais – com a ajuda de referenciais teóricos compartilhados desde o Seminário, e de um trabalho sistemático de observação e registro (dos professores, dos coordenadores e do consultor); de acompanhamento e planejamento conjunto. Expõe-se a prática – em todos os momentos da sua construção, desde o planejamento, as hipóteses estabelecidas e sendo experimentadas por um dos integrantes do grupo, expõe-se o que foi observado pelo consultor, pensado em conjunto e transformado em situação didática, e por que foi escolhida aquela situação. Apresenta-se e discute-se o que foi aprendido nos processos de ensino e de aprendizagem (professor - alunos e professor – consultor). Dessa forma, no encontro geral – coordenado pelo consultor - ampliam-se as chances de evitar a fragmentação e facilita-se o conhecimento da seqüência do trabalho realizado, assegurando-se uma melhor compreensão da integridade dos processos, com seus problemas, soluções e indagações. O lugar do formador é de parceiro, co-construtor do trabalho, profissional que compartilha a responsabilidade pela sua execução e tem a missão de contribuir para a conquista da autonomia pelos integrantes da formação. “...O desafio do formador é planejar boas estratégias de tematização, a partir de um modelo de ensino que pressupõe uma problematização...” “...Este é, sem dúvida, o papel do formador, instaurar o conflito, organizar um ambiente favorável à aprendizagem e criar mecanismos para que a problematização, encarada como fonte de aprendizagem, se transforme em conhecimento novo, construído em interação e nas relações estabelecidas 58
entre teoria e prática....”
Para cumprir essa missão não basta ao consultor saber transferir conhecimentos e técnicas da sua especialidade. Ele deve ser capaz de favorecer a criação de ambientes onde se respire e transpire a confiança, se estimule a valorização da liberdade, solidariedade e responsabilidade; de estabelecer vínculos que proporcionem ao grupo e a cada pessoa a construção de determinadas atitudes de relação consigo mesmo e com o outro, que envolvem uma opção pessoal/profissional e uma escolha ética – marcada pela cooperação; baseada no respeito mútuo, na capacidade de escutar e de observar, como condições para intervir com pertinência, com adequação entre objetivos e situação concreta; de estar atento às diferenças e saber valorizá-las, descobrir o acerto no erro, os conceitos nos pré-conceitos
58 Solange Leite – Formadora da Avante responsável pela coordenação do trabalho de formação dos educadores do segmento da educação infantil realizado em Irecê (1999-2000).
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(e vice-versa), enfim o implícito nas aparências. São capacidades que se adquire exercitandoas e são construídas com a participação de todos. Tudo isto é importante para que o professor desempenhe a sua função social, atento à complexidade da sua tarefa, enquanto liderança, exemplo de autoridade que é para seus alunos, tenha ou não consciência disso. No modelo, o formador e todos os participantes da capacitação são convocados a esse exercício e o que finalmente interessa aos formadores (consultores) é construir a sua substituição por uma equipe de coordenadores pedagógicos formados numa prática sócioconstrutivista. Realizar este trabalho requer competências e habilidades que - além do conhecimento e experiência com o instrumental teórico - lhe permitam proporcionar aos participantes apropriar-se do seu “know how” de consultor e para isto problematizá-lo, dispor do seu talento. É o próprio modelo que se quer transferir. A postura do consultor é bem diferente da assumida pelo consultor especialista, que cumpre um papel também importante, mas de natureza diferente. Seu compromisso se realiza ao problematizar e trazer informações esclarecedoras de uma determinada área de conhecimento específico, sobre a qual detém um saber singular porque a estuda, pesquisa e experimenta. Na segunda parte deste livro, a formadora Mônica Samia descrevendo o modelo de formação da Avante, destaca a importância dos seminários no processo de capacitação: “embora o objetivo seja alinhar o grupo conceitualmente, a forma como os seminários são organizados está ancorada nos pressupostos teóricos da formação ... não se trata de uma exposição de conhecimentos, mas de situações que ajudem o professor a identificar quais as teorias que sustentam sua prática, além, é claro, de ampliar seus conhecimentos... ... A realização dos seminários incorpora a cultura do estudo na escola, estimula a formação dos grupos de estudo, que ocorrem independente dos encontros de formação. Assim, o princípio da formação para a autonomia se concretiza, na esperança de que cada vez mais o professor possa apropriar-se dos saberes necessários à sua profissão, percebendo-os como provisórios, e, portanto, necessitando de constante atualização...”. As observações em sala, os registros escritos e o vídeo são instrumentos estratégicos de apoio, fundamentais para realizar todo o trabalho e para o desempenho das funções dos formadores no projeto. Os professores são estimulados a fazer o registro do seu cotidiano, tentando problematizá-lo. As questões formuladas nesses registros são entregues ao consultor, antes da reunião de capacitação. Esses instrumentos são matéria-prima da produção de conhecimentos e do constante e criativo confronto dos referenciais teóricos com os problemas do dia-a-dia da sala de aula. O professor é instigado a pensar sobre os referenciais da sua própria prática e seu significado e a arriscar transformá-la, de forma intencional e direcionada, realizando conscientemente suas improvisações e adaptações e, nesse processo, vai recuperando a sua inventividade, errando e acertando, aprendendo. Operar com as atividades do projeto, cumprindo a sua seqüência – construção de conceitos compartilhados, experimentação da sua utilidade em processos reais de ensino e aprendizagem, com observação, registro e avaliação resultantes de trocas conjuntas e
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constantes entre formador e professor – é elemento fundamental no desenvolvimento do trabalho. Ao selecionar, construir e comunicar ao grupo situações didáticas, a partir de problemas vividos, instaura-se um processo de reflexão e de aprendizagem de múltiplas capacidades. Os porquês-para-quês-e-quandos das ações em sala são trazidos à superfície, como objetos acessíveis aos sujeitos participantes, como num jogo aberto com regras e metas compartilhadas e inteligíveis, mas com muitas combinações e resultados possíveis, a depender dos movimentos da equipe, de cada jogador e dos técnicos, da interação entre eles, da capacidade de operar com atenção ao uso dos tempos, espaços e recursos possíveis. A exposição constante de práticas (em que se está envolvido) como objetos de conhecimento, aliada às trocas com um formador (ou com um coordenador pedagógico) resulta no estabelecimento de uma certa distância mínima necessária entre sujeito/objeto para que se possa vê-lo e analisá-lo em diferentes ângulos, em geral difíceis de serem percebidos mais completamente, quando trabalhamos isoladamente, ou quando estamos muito distantes ou muito próximos (e solitariamente) desse objeto. A realização das atividades previstas promove a aproximação de todos com requisitos para pensar e agir de forma significativa, coerente aos objetivos e pertinente a cada contexto. Essas atividades terão tanto mais êxito, quanto mais consigam ser exemplares para o estabelecimento das relações necessárias à sustentação do projeto - que são as que se deseja também como sustentação do equilíbrio da escola, da sala de aula e que são especialmente valiosas para uma convivência produtiva e criativa entre coordenadores pedagógicos e professores e entre os próprios pares. Professores, consultores e coordenadores, juntos, lidam com situações e problemas presentes, com toda a sua complexidade e precisam conjugar esforços para saber acolhê-los, compreendê-los e relacionar-se para enfrentá-los, experimentando uma capacidade de polivalência, importante no ambiente escolar. Conseguindo ser um guia e orientador da construção desse caminho o formador começa a construir também a sua própria substituição no trabalho. Selecionamos trechos de falas e de registros feitos por formadoras responsáveis pela execução desse acompanhamento pedagógico sistemático, que ajudam a compreender melhor os processos instaurados, o papel da consultoria, o alcance do seminário pedagógico inicial, critérios e hipóteses vinculados aos procedimentos adotados, a escolha da classe-piloto, os vínculos necessários entre consultoria e integrantes da formação, dentre outros elementos que movimentam todo o trabalho: Sobre o Seminário Inicial e a escolha da Classe-Laboratório, falam as consultoras Valéria de Felice, Marília Dourado e Mônica Samia,: “O seminário pedagógico inicial – “A Prática Pedagógica e a Concepção Construtivista: como muda? é um mergulho de caráter teórico informativo, que apresenta os conteúdos do trabalho do semestre, tanto de natureza conceitual quanto procedimental e atitudinal. Na Escola Duque de Caxias encontramos uma diretora bastante inquieta – Lirian - desejosa por mudanças, que por isso mesmo foi extremamente receptiva à nossa chegada e entusiasmada
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com o fato de a escola sob sua direção estar sendo foco das nossas atenções. Os professores refletiam bem o espírito da diretora, embora a insegurança frente ao novo, tão comum, não tenha sido lá uma exceção. Todos se mostraram desestabilizados frente à nossa exposição sobre o que vinha a ser o trabalho de capacitação que, na verdade, tem o propósito de criar um espaço para estudo, discussão e análise da prática escolar, em intervalos periódicos de 15 dias, ao longo dos quais o consultor faz observações em sala, identifica o problema que 59
merecerá ser objeto de reflexão e análise, transformando-o numa situação didática....”
“O seminário inicial ajuda muito a instalar a discussão e mobilização no grupo. Os professores saíram muito mexidos – porque, de fato, é uma concepção de ensino e de aprendizagem muito diferente do que estava instaurado lá no município... A partir de um diagnóstico da rede, propusemos e iniciamos o modelo de capacitação, escolhendo a escola-piloto, cuja experiência seria multiplicada com todos os professores.. Inicialmente apenas 1º e 2º ciclos do ensino fundamental e depois incluindo o 3º e 4º. A idéia era: já que não podíamos estar perto de todos permanentemente, então estaríamos próximos de um grupo que implemente as ações de mudança com mais rapidez e faça reflexões constantes com contrato didático, construção de vínculos. Essa coisa da afetividade foi muito trabalhada para haver confiança e respeito mútuos para que o professor abrisse as portas da sua sala de aula e se sentisse à vontade para lidar com um 3º olho dentro de sua sala, o que inicialmente não é muito fácil e aí é que foi um trabalho de muitas conquistas...”
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“É difícil traduzir em palavras o que acontece com as pessoas com esse modelo, com a experiência da classe-laboratório... Quando cheguei o terreno já estava preparado. Cheguei com uma proposta de trabalho com professores de 1º e 2º ciclos na área de matemática e era um desafio enorme porque os professores já tinham desde 97 o trabalho na área de língua. Na escola Padre Cícero, a transformação foi muito grande com o trabalho de formação continuada. O modelo é muito visceral, muito invasivo, extremamente desestabilizador... Você entra na sala da professora e além de estar lá dentro, leva essa sala para mais 200 professores da rede assistir, então,se você pensar descontextualizadamente é muito invasivo, mas traz para as pessoas uma possibilidade de realmente refletir sobre a prática e sobre uma prática real, que é delas, não é de outra pessoa, de outra cidade ... porque a tematização da prática, ela já é um modelo de formação e a gente sabe que tem muitos. ... mas em geral não se discute tendo como centro a situação do cotidiano de uma sala de aula do grupo com toda complexidade dela. Discute-se muito situações externas, que não fazem parte da história dos professores dali, das escolas dali. Por isso a relação fica muito visceral porque todo mundo começa a torcer muito porque aquilo faz parte da história delas, não se trata de analisar a
história do outro, é analisar a sua história. É você se ver fazendo história... ”61
59 Valéria de Felice – Formadora da Avante – Registro da situação observada durante três dias em permanência em Irecê em abril de 1997, incluindo o Seminário Pedagógico inicial, visitas a escolas e entrevistas com diretoras.
60 Marília Dourado – consultora da Avante, responsável pela execução do projeto em Irecê. A coordenação era realizada com Thereza Marcilio, a partir do estabelecimento de uma interlocução constante, onde eram definidos e planejados os desdobramentos do trabalho. Thereza e Marília exerceram suas funções desde a implantação do projeto em 1997 até a sua conclusão em 2000.
61 Mônica Samia – também consultora da Avante. Integra a coordenação do trabalho em Irecê a partir de 1999, quando inicia o acompanhamento à classe-piloto de Márcia, na Escola Padre Cícero.
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Continua Marília - ... Na maioria das vezes a classe escolhida como piloto era a que mais desafiava, em que todos achavam que não era possível ter sucesso na educação por ter situações bem adversas. Por exemplo, a 1a classe é a de Jane, que tinha meninos de 6 a 14 anos, na mesma sala, que era chamada classe de alfabetização – eles ainda tinham a concepção de que precisava preparar os meninos para a entrada no ensino fundamental ... A classe tinha índices de repetência e evasão altíssimos e não ficava na escola, ficava num anexo, uma sala alugada no fundo de uma escolinha privada.... os alunos eram discriminados, as professoras também.... Eram meninos rotulados porque na classe a maioria estava fora da faixa. Então escolhemos essa turma pelo desafio, sabendo que era possível fazer educação de qualidade, que é possível fazer os alunos aprenderem... percebemos que eles podiam ser recolocados nos grupos, resgatando a auto-estima poderiam ir, não para uma 1a série mas para uma 2a ou 3a ... Jane, a professora da classe-piloto em 97, era concursada e estava iniciando a sua carreira profissional. Desde o início percebemos que ia funcionar bem no programa porque era muito curiosa e questionadora, uma pessoa com muita vontade de aprender. Ao mesmo tempo tinha uma história característica do povo da cidade, filha de feirantes, morou até os 16 anos na zona rural e estava na cidade há pouco tempo... Nós planejávamos todo o processo de ensino e aprendizagem em parceria. A professora é sempre apoiada pela equipe de consultoria, no sentido de estar experimentando práticas pedagógicas na perspectiva discutida com todos os professores.
Sobre a observação em sala de aula, registros dos professores, o encontro quinzenal com todo o grupo: A observação em sala era feita quinzenalmente. A professora previamente planejava uma situação que considerasse, dentro de tudo que já vínhamos discutindo, de relevância e eu ia para a sala de aula por duas horas, como um 3º olho. Em seguida sentávamos, por mais duas horas e discutíamos desde as questões mais simples e periféricas até as mais centrais do processo de ensino e aprendizagem: a postura dela, se era uma postura centralizadora, autoritária, parceira, solidária, a atitude dos meninos, se começavam a arriscar, se se sentiam encorajados para aprender ou se estavam temerosos e tímidos em relação ao objeto de conhecimento, e a gente percebia, a cada encontro, que muita coisa precisava ser feita e começávamos a idealizar e planejar os desdobramentos desse projeto. Em seguida tínhamos um encontro com todos os professores da rede (a cada 15 dias), onde essa experiência ia ser relatada e ia ser passado um vídeo com o planejamento da aula (que eu recebia em Salvador). Eu fazia uma análise crítica da atividade e planejava o encontro com todos os professores que estariam me esperando.... Nós começávamos o encontro com o filme, todos assistiam – inclusive os de outros grupos, desejosos em discutir as transformações na educação ... As professoras faziam registros escritos diários da prática delas, um registro reflexivo, não meramente descritivo, onde analisavam criticamente a própria ação e nós dávamos uma devolução por escrito para que cada vez elas se sentissem mais inseridas nesse contexto. ... Nós falávamos para todos que a reflexão escrita era importante, porém, efetivamente, cobrávamos apenas da sala laboratório e da escola-piloto, já que não tínhamos como ser interlocutoras de todos os professores da rede, mas espontaneamente os professores faziam e queriam que nós lêssemos e déssemos um retorno ao que eles estavam escrevendo e isto é muito interessante e
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demonstra que se acreditava que era possível e que dependia de um esforço pessoal para que a transformação ocorresse ... O objetivo dos registros era de que o professor, ao sair da sala de aula, fizesse o registro, analisasse criticamente tudo que aconteceu, tentando perceber se, de fato, ele estava criando boas situações de ensino e aprendizagem. Esse registro seria também para elaborar o que seria desenvolvido. Tanto que os professores colocavam a produção do aluno colada nos registros, analisando quando o aluno escreveu aquilo, que intervenção ele fez. E aquilo era distribuído com todos. A professora da classe-laboratório tinha um apoio diferenciado dos demais, mas a experiência dela era compartilhada com todos. Tanto a reflexão que ela fazia como a devolução que eu fazia....
Sobre o tipo de vínculos necessários, com vistas à construção da autonomia, algumas dificuldades e a necessidade da capacitação continuada: “O espaço de formação permanente do professor é necessário para que ele não se sinta sozinho,desapoiado, sem as possibilidades de mudanças” (Marilia Dourado).
Com referência às classes-laboratório, no início do projeto foram escolhidas duas, mas optou-se por uma a cada ano. Nas palavras da formadora Marilia Dourado – Não foi possível prosseguir com duas classes-laboratório. Foi melhor concentrar numa classe. Com o recurso da filmagem e dos encontros regulares dava para expandir para todos os professores. Esse modelo mexe muito com o diretor porque muda o ritmo e a rotina da escola, exige muito empenho das pessoas e freqüentemente é mesmo uma sobrecarga para o diretor, o professor... Especialmente no primeiro ano eram muitas as mudanças na escola e a direção era muito solicitada. Os tempos, as circunstâncias e os ritmos das pessoas são distintos. É previsível que haja resistência, e a resistência àquilo em que não confiamos ou não acreditamos é uma reação legítima e faz parte do processo de formação, como faz parte da vida. Nós temos que respeitar isso, contar com isso e estabelecer um diálogo franco ... Por outro lado, nesse modelo de formação não há como produzir mudanças sem a construção de vínculos de confiança, e confiança não é coisa que vem pronta, é processo, às vezes lento, é conquista. Nesse modelo de formação continuada trabalha-se para construir mudanças duradouras, e por isso nós, da Avante, dependemos muito, fundamentalmente, dos professores e diretores envolvidos e é difícil, ou até impossível, conseguir 100%, principalmente quando se direciona a ação de forma ampla a toda uma rede. Mudar modelos é mexer com valores, atitudes, procedimentos e este não pode ser só um desejo da consultoria. É fundamental estabelecer um clima de diálogo. As relações entre formador e professor envolvem acolhimento e cumplicidade. Deseja-se que o professor também saiba acolher e ser cúmplice de seus alunos. Continua Marilia - Um ponto muito importante a ser considerado é que chegamos escutando muito a realidade de lá. Queríamos provocar uma revolução na educação mas uma revolução feita pela conquista... as pessoas questionavam e acreditavam porque se preservava com muito carinho essa liberdade. Havia um respeito imenso pela realidade já existente, pelas pessoas, seus sentimentos. Não chegamos como um trator... Queremos que eles sejam capazes de fazer o mesmo nas relações com seus alunos na sala, com funcionários, com colegas, que assumam a liderança nas transformações da escola ... O trabalho inicialmente traz muitos temores, mexe com várias questões ao mesmo tempo – papel de cada um, do diretor, postura às vezes autoritária e controladora ... estar
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discutindo é denunciar os não saberes, expondo as dificuldades enquanto profissional, e isto é muito difícil. Tinha momentos dramáticos. No encontro com o grupo, Jane , nos momentos iniciais, sempre compartilhava seu sentimento de estar sendo professora de classe-laboratório e ela diz certa vez que era um sonho seu ser professora mas ela achava que não era capaz... em muitos depoimentos se expressa a dor de ser professor, os desafios que uma sala de aula provoca num profissional, a complexidade que é a tarefa de ensinar ...
A autonomia não se dá nem se transfere. Conquista-se em relações que a exercitam e estimulam constante e mutuamente, marcadas pelo respeito às identidades e pela valorização da liberdade. É ainda Marília que diz - ...”A equipe da Avante acredita muito na importância da autonomia do profissional e em todo o nosso trabalho nunca tivemos a idéia de ser eternos em lugar nenhum, apesar de ter a certeza de que a formação permanente e continuada deve permanecer porque se um professor não tiver espaço de reflexão e análise da prática, ele não consegue dar saltos qualitativos na sua prática didática. A ação didática é muito complexa. É importante o professor dispor de um espaço regular para discutir coletivamente, ter interlocutores que possam olhar aquela situação com outros olhos, sem estarem contaminados com os sentimentos que envolvem professor e aluno (naquela sala onde ele ensina), para que coisas que são necessárias sejam vistas, a intervenção planejada de forma intencional aconteça e a aprendizagem sistematizada se dê. Faz parte dos nossos planos contribuir com a criação de condições para que o município ande sozinho e independente da nossa atuação. Em 98 começamos a reflexão para que fosse montada uma equipe que assumisse o papel que a equipe de consultoria assumia.. Porque este papel nosso, nós entendemos que é papel do coordenador pedagógico: ser interlocutor da ação didática do professor, co-participante das discussões que ocorrem em sala de aula e principalmente ser guia e orientador do professor, no sentido de estar ajudando ele a construir a sua prática. Assim como o professor é guia e orientador das crianças, o coordenador pedagógico é guia e orientador dos professores. No início tinham só dois coordenadores na Secretaria. Criou-se uma coordenação pedagógica com 5 integrantes e ainda era pouco para dar conta de toda a rede. Era um trabalho desumano porque se queria que funcionasse nesse modelo de discussão regular da prática, observação em sala, planejamento e sistematização do trabalho didático. Finalmente a coordenação foi ampliada para 18 integrantes. A maioria foi escolhida entre pessoas que se destacaram na sala de aula e enquanto lideranças no grupo e na escola, tinham vivido esse movimento de mudanças e trabalhavam com entusiasmo”. É interessante ver que o trabalho tem um padrão, mas é como se esse padrão não se repetisse e estivesse sendo revisto, questionado, reconstruído pelas pessoas a cada vez que ele acontece. Isto porque o filme vai servir para disseminar e refletir uma prática dali. É diferente de chegar com modelos de outras realidades e expor. Isto também pode ser rico, mas é outra história, em termos da aproximação entre as pessoas e o objeto de conhecimento. Nas palavras de Mônica – É um modelo totalmente particularizado. Por isso dá essa impressão de não ter um padrão. Da outra forma não mexe tanto com as professoras. Eu penso que o modelo de formação tem uma coisa de “ame-o ou odeie-o”, justamente por isso ... porque quem não agüenta se ver, lidar com suas limitações, enfim, quem não reconstrói a sua
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concepção de erro não se sustenta nesse modelo (e isso não é fácil mesmo). A riqueza do modelo, que é “um padrão que não padroniza” vem justamente da possibilidade de particularizar os temas da formação porque cada município tem a sua realidade e é essa realidade que é analisada, então não tem como você dizer assim: Ah! mas isso não sou eu, eu não faço parte disso, não tenho nada a ver com isso... porque quando você vê um outro vídeo e aquilo não lhe agrada você desiste, mas nesse modelo fica mais difícil, mesmo que não seja você o assunto que tá sendo filmado, mas você faz parte. A gente trabalha para construir um sistema de rede e uma rede significa exatamente isso: o que uma faz repercute em todo o resto.
Continua Mônica, sobre o movimento de “tornar-se construtivista” ou mudar o foco “do como se ensina para o como o sujeito aprende” Foi um desafio enorme para mim, trabalhar com mais de duzentos professores ao mesmo tempo, buscando refletir e organizar com eles, situações de aprendizagem que sejam respaldadas nos princípios construtivistas, pois temos que ser coerentes com as idéias que defendemos. Se dizemos que o professor tem que levantar os conhecimentos prévios de seus alunos, iniciamos levantando conhecimentos prévios. Se a interação tem um papel essencial na aprendizagem, organizamos, o tempo todo, situações de interação, se a aprendizagem tem de ser significativa, trazemos conteúdos que sejam significativos, se é preciso monitorar a aprendizagem, fazer metacognição, planejamos situações de metacognição. As atitudes do formador são em si modelos para o professor e cada planejamento traz esse modelo. Colocarse no lugar de aprendiz é um dos grandes méritos do programa de formação. ...Eu me lembro de Márcia, da sala–laboratório no primeiro momento cheia de medos e ansiedade. Esses sentimentos eram muito naturais porque, por mais que explicássemos o modelo, é muito difícil expor seu trabalho para mais de duzentos professores, ainda que construindo uma postura coerente com a concepção de erro que defendíamos. Mas ao longo do tempo estes sentimentos foram se transformando em uma coragem e determinação impressionantes. Suas atitudes também se constituíram num modelo para os demais professores... É interessante também ver a aprendizagem delas com os meninos. Porque a formação inicial do professor o leva a centrar o foco no “o que dar” , “o que levar” para os meninos. E o distancia do conhecimento didático, da estrutura da matéria e do conhecimento do sujeito, que eu penso que é onde o professor é menos preparado porque, de alguma forma – equivocadamente ou não – a formação inicial ajudou o professor a focar o ensino. Então, mesmo que ele esteja equivocado, está preocupado com isso: “o que eu vou fazer?, como é que eu vou fazer com que a criança aprenda? A grande questão do construtivismo é que o professor descubra que esse foco no ensino não tem nenhum sentido se ele não usa este conhecimento na aprendizagem. E esse é um desafio do formador. Mas isso causa muito estranhamento nos professores... quando a gente diz assim: olha, nesses primeiros encontros não vamos falar de ensino, só vamos falar de aprendizagem – como é que o sujeito aprende ... o processo que eles passam até valorizarem esse conhecimento também não é um percurso muito fácil não, porque a pergunta dos professores, normalmente é COMO? Não é POR QUE?“.
Nas entrevistas os professores referiram-se muito aos “por quês e para quês” cobrados pela formadora Marília, e dizem que ficavam perdidos, inicialmente, mas reconhecem que era
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necessário que fosse assim. Na mesma linha, a formadora Mônica refere-se às solicitações insistentes sobre o “como fazer”: “...É uma marca do trabalho, equilibrar os conteúdos de aprendizagem E às vezes chega a ser irritante porque eles dizem assim:” mas a Avante não dá os ”comos” ... Dá, mas não tem um como – padrão, fechadinho, que sirva para toda situação. Não existe pronto e acabado, não há uma receita, eles têm que construir com nossa ajuda ... Então, esse movimento focado na aprendizagem, “como é que meu aluno aprende a língua, a matemática?, como é que ele aprende a ser investigador? E a partir daí, entender como ele aprende, pensar como é então que se vai ensinar, .isso leva um tempo para ser aprendido. No decorrer do processo eles aprendem a valorizar porque começam a perceber que muitas vezes estavam remando contra a maré, contra a correnteza, um barco que estava indo contra a natureza do conhecimento por parte do sujeito e que é por isso também que tem tanta repetência, tanto fracasso. Porque o menino tem uma estrutura cognitiva e muitas vezes o professor vai num movimento que é contrário a ela ... porque tem muito pouco tempo que a escola se pergunta como é que o sujeito aprende, não é?... Então esse movimento, de tornar-se construtivista, querer conhecer o sujeito em 1º lugar, supõe uma mudança de atitude, de mentalidade, e do próprio olhar de cada um para a criança.... e sentir que o erro dela está me dizendo”. alguma”. coisa que ele pensa, entender e valorizar o erro como um ato inteligente ... quando o professor descobre isso, quer seja nele, quer seja nos alunos, aí o caminho está aberto. O resto é conseqüência ...
Sobre essa percepção do erro é interessante observar um fenômeno que comumente ocorre. Na relação com crianças pequeninas, em geral se tem a atitude referida, de valorização do erro como um ato inteligente. É o que se observa quando uma criança começa a levantar ou a dar um passo e cai. O que se destaca nesse gesto é o avanço: “ela levantou”, “ela andou”. Valoriza-se o progresso da criança. Mas quando ela começa a ter mais autonomia, essa atitude se modifica. Também quando começam a falar, como observa Mônica: “Quando são bebês e começam a falar tudo “errado”, a gente só vê os acertos .. E o modelo de formação ajuda muito o professor a se ver no lugar de quando ele erra, ele aprende, quando ele erra, ele pensa, ele fez um esforço e, apesar de todo o esforço feito, errou ... Que bom que as pessoas reconhecem que isso é natural e quando transferem para a sua compreensão dos alunos ... Mas isso não é uma coisa muito simples. Teoricamente é muito bonito (e praticamente mais ainda) mas não é fácil e leva tempo para isso acontecer porque a matriz da gente é um negócio de louco ... porque não é uma matriz só profissional, é de natureza social e a sociedade não aceita o erro. Se fosse só profissional talvez fosse menos complexa ... Então, monitorar esse processo como formadora é mesmo um desafio enorme.
Participar como professora não parece ser um desafio menor. Nas entrevistas realizadas todas as professoras sintetizam os momentos iniciais usando expressões como “insegurança“, “incerteza” “desestruturação”, “perda do chão”, “desequilíbrio”, “acho que não vou dar conta”, “nada do que aprendi me serve mais”, “angústia” “ansiedade” e termos semelhantes, revelando a vivência de profundos questionamentos. Isto é generalizado nas falas. Em alguns casos, estendem à vida pessoal, às relações com filhos, companheiros, família. Todos
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nós já vivemos situações novas em que nos sentimos desafiados a transformar algo na vida profissional ou pessoal, diante das quais vivemos sentimentos semelhantes que nos deixaram mais inseguros, ansiosos, tensos, situações estas que superamos nos adaptando ou das quais fugimos. No processo de formação estes sentimentos são encarados como um movimento absolutamente previsível, assim como possíveis resistências decorrentes deles. É preciso que haja um clima de liberdade e de diálogo para que eles se expressem, possam ser debatidos e superados. É através das trocas com os próprios colegas, num processo voltado para a aprendizagem que se vai identificando aquilo que é socialmente construído e faz parte da história de todos, quebrando o isolamento e assim dissolvendo temores e ansiedades. Na capacitação em serviço, tal como se estrutura, de forma regular, constante, coletiva, que aposta na ação – reflexão da prática de sala de aula como tema objeto de investigação compartilhada, essa insegurança parece que se instaura precisamente porque se vivenciam situações que começam a fazer sentido para o profissional. É o que nos fazem crer os depoimentos dessas professoras, como veremos. O que faz sentido no novo começa a desarrumar a bagagem que trazemos durante toda a nossa trajetória de experiências, conhecimentos e dos modelos que todos carregamos, relativizando e/ou negando velhas certezas, revivendo antigas dúvidas, num processo marcado por interrogações e interjeições, avanços e retrocessos, onde tudo acontece de forma simultânea e singular. São esclarecedoras as palavras da Professora Formadora Rita Margarete62, a partir de projeto de investigação que realizou, pontuando algumas conclusões, que considera “transitórias”: ...”Penso que, da mesma forma que o professor precisa conhecer o processo de aprendizagem de seus alunos, entendendo que os seus aparentes retrocessos revelam elaborações mais complexas sobre o objeto do conhecimento, é imprescindível para o formador, guardadas as devidas proporções, conhecer como os professores aprendem e saber ajudá-los a lidar com os sentimentos advindos desse processo, que exige a desestruturação do “eu” para a estruturação de outro “eu” .... Acredito que está aí o maior desafio enfrentado pelos professores que, como adultos, são uma construção sólida, cimentada com fragmentos da sua própria história, não podendo ser demolidos e erguidos de novo, usando outra argamassa. A “substituição” dos fragmentos que os sustentam deve ser feita paulatinamente, por outros que também passem a fazer parte da sua história, através da formação continuada. Uma “substituição que considere a estrutura de cada professor e, assim, estrategicamente, começar ”trocando” aqueles fragmentos que apesar de deixá-los bambos, confusos e até desequilibrados garantam-lhes continuar de pé, descobrindo-se como professores – aprendizes.
62 MOREIRA SANTOS, Rita Margarete – in “Compartilhando Sentimentos do Professor em Formação”. Monografia apresentada ao curso de especialização “A Formação do Professor Alfabetizador: Leitura e Linguagem”, da AVANTE e UNEB, como requisito para obter o título de “Especialista” , Salvador, 2001.
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Professores Nas entrevistas, os professores unanimemente revelam esse sentimento de desequilíbrio no início do processo da formação continuada, mas também associam sempre este sentimento a descobertas e transformações relevantes nas suas vidas: “...Desde criança eu percebi que a minha vocação era ser professora. Estudei para isto com muita dificuldade. Estudei aqui mesmo, nasci e morei sempre no mesmo povoado e vinha pra escola a pé todo dia. Sou filha de lavrador, de agricultura sequeira, aquela que não é irrigada, depende da chuva, então isso já vinha dentro de mim. Só que aprendi, até me formar, receber meu diploma, que iss o é muito pouco e depois das capacitações, das discussões com os colegas, aí eu vi que a gente começou a crescer muito, a mudar a nossa prática. A gente achava que as crianças precisavam saber ler e escrever e viu que a nossa missão é muito maior e hoje eu acho que essa missão é maior ainda, cada vez que a gente vai aprendendo, vai aumentando a nossa expectativa... Em 97 foi muito difícil, mas eu diria que foi muito valioso porque aprendi muito...”. (Professora Jane Machado – Escola Duque de Caxias – Professora da sala laboratório, depois Coordenadora Pedagógica).
Sou professora desde 95, quando eu estagiei e continuei trabalhando. Hoje eu trabalho com o grupo de 10 anos mas comecei com o grupo de seis anos A proposta da gente já era construtivista, mas era aquele construtivismo que a gente não sabia bem o que fazer, aquela coisa misturada em que acabávamos fazendo muito do tradicional e errando muito, e a partir de 97 o município começou a mudar em termos de educação e nós fomos capacitadas regularmente e começamos a refletir a nossa prática e tentar mudar. Foi muito difícil porque em 97 a gente achou que tinha desaprendido tudo o que sabia, que não sabia mais nada, estava todo mundo baratinado, não sabia o que era certo, o que era errado, ficou aquela confusão na nossa cabeça mas, aos poucos fomos conseguindo adaptar. Entendemos que a gente estava aprendendo de novo a forma de trabalhar com as crianças ... (Professora Jussara Sena Bezerra – Escola Povoado de Meia Hora).
...”Comecei a ficar desequilibrada. (Pensava) o que eu estou fazendo não tá certo, mas como é que vou fazer o certo?. Comecei a pensar muito no que fazia. Meu Deus do Céu, TUDO tem um por que e um para que. Tive muita ansiedade. Depois fui colocando em ordem e participava com muita alegria. Hoje penso que se a gente não tivesse trilhado esse caminho junto na formação, as coisas não estariam como estão, com a autonomia que a gente tem. Estamos fazendo capacitação semanal com todos os professores do infantil e 2º ciclo, ligada ao PROFA e aos Parâmetros Curriculares, mas acho que isso só foi possível porque a gente trilhou esse caminho. O grupo cresceu muito. Antes, a idéia que se tinha da educação infantil era muito assistencialista: a criança da escola pública só ia pra escola pra se alimentar e coisas assim... Hoje a gente vê crianças de 4,5 anos produzindo texto, lendo, apontando com o dedinho. É muito legal e ainda temos muito que aprender mas aprendemos muito até aqui e acho que isso se iniciou com esse trabalhão....” (Madalena – Professora desde 1997, hoje Coordenadora Pedagógica da Secretaria Municipal de Educação – julho de 2001)
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“Para a gente foi um choque grande. Foi uma coisa muito nova porque estávamos acostumadas a trabalhar com o livro didático, em cima dele, só fazia o que o livro propunha. Surgiu a necessidade de trabalhar com a realidade do aluno que o livro não oferecia. Ninguém sabia fazer projeto. A Avante nos encorajou e fizemos projetos para trabalhar a realidade do aluno do nosso povoado, do município e sentimos como era mais fácil, a turma se envolvia.... Hoje, eu te diria que não sei trabalhar mais só com livro didático. Tá longe da nossa realidade. A gente vai engatilhando, sabendo que não é o livro didático que vai nos dizer por onde ir, e vai confiando nos alunos e na comunidade e vai perdendo o medo de errar. Hoje a gente passa o trabalho para os povoados vizinhos (4 ou 5 povoados próximos), toda semana a gente encontra um dia e planeja junto” (Sinelândia, professora da rede, desde 1997, da Escola José Francisco Nunes – povoado de Itapicuru – entrevista, julho de 2001)
“Comecei em 98 o trabalho na rede, logo que concluí o 2º grau. Estou na Marcondes Batista Félix desde 98. Esse projeto para mim marcou porque tudo de mais importante que eu sei de sala de aula começa nele. Foi o pontapé inicial na minha formação. No início era muito difícil, muito diferente do que eu tinha aprendido na minha cidade (João Dourado). Aqui comecei a questionar coisas que eu tinha dificuldade em sala de aula, a me expor, tirar minhas dúvidas sobre como tratar determinadas questões, o que fazer para melhorar. Marília nos deixava muito à vontade. Na questão do planejamento, por exemplo, antes, eu não planejava, fazia uma listagem do que eu queria passar, tal dia eu vou passar isso, isso e isso, eu listava os conteúdos e com a capacitação a gente aprendeu a estar pensando: se eu vou propor atividade, para que quero, por que eu vou fazer isso, qual a melhor maneira de trabalhar isso com meus alunos. Foi clareando, começamos a perceber a importância de planejar, e hoje eu chego na sala de aula segura do que quero, como intervir com meus alunos. Quando eu aceitei ser professora de classe laboratório, eu não imaginava que ia aprender tanto. Não consigo mais pegar um caderno e fazer uma listagem de conteúdos. Só serve se eu fizer: objetivo, conteúdo, procedimento, atitude, desenvolvimento, tudo e envolvendo todas as disciplinas Leva tempo mas é indispensável e facilita o trabalho. Eu me sinto muito segura ao chegar na sala sabendo o que quero com cada momento, cada atividade, cada disciplina, saber que intervenção fazer, antecipar a intervenção e acrescentar na hora o que houver necessidade. Acho que um professor deve estar sempre preocupado com as questões que surgem dos alunos e principalmente tratar todos de maneira igual, ter as mesmas atitudes com todos, e ter a atitude deles como prioridade também.... no planejamento, penso: qual vai ser a atitude de meus alunos diante de tal atividade que quero propor? E diante de determinados conflitos que surgem entre colegas? Qual deve ser a minha atitude com eles para não ser injusta? Eu me preocupo muito em estabelecer relações de forma justa com todos. Às vezes eu estou dando uma aula e surge alguma coisa que eu acho assim, uma injustiça. Eu paro e converso sobre atitudes e trabalho com eles sobre direitos e deveres, sempre. Eu fazia muita carta para Marília. A avaliação também: antes era prova e nota, hoje a gente sabe que o menino não pode ser avaliado pela nota que tira num dia de prova. Sabe que a avaliação é um processo contínuo, que toda atividade que eu dou para meu aluno, eu estou avaliando, diariamente. Comecei a fazer relatórios diários que eu enviava para a Secretaria, que mandava para a Avante. Contava
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tudo que tinha acontecido, tirava minhas dúvidas, pedia socorro quando necessário e Mônica, que me acompanhava na classe-laboratório era uma parceira, não uma supervisora, uma companheira. Desde o 1º dia era como se eu já a conhecesse há muito tempo ... Houve mudança enorme na turma. Meninos assim, que eu achava impossível... pensava: não vou conseguir colocar eles nem pra sentar e eles não vão aprender nem as letras, e todos terminaram o ano lendo, todos aprovados e uma coisa nova foi trabalhar com projetos. Eu não sabia e Mônica e Marília começaram a fazer projetos na escola e ir ensinando a gente a trabalhar com projetos. Fizemos alguns bons projetos durante o ano, alguns envolvendo a escola toda e a sociedade... (Professora Dilma – Escola Marcondes Batista Félix – profa da sala-laboratório 1º ciclo em 2000).
Iniciei com 18 anos, numa escolinha particular, em América Dourada, minha terra, dando banca, mas me sentia perdida porque não tinha ninguém pra discutir, pra orientar, não tinha material, faltava muita coisa pra ter sucesso. Vim para a rede e trabalhei no Acelera em 97 e 98. Em 2000 fui ser professora da sala laboratório.... No início eu ficava muito insegura ... Meu Deus, como é que eu vou fazer uma filmagem, se os meninos não participam? Só eu que vou falar? ... Mas foi um trabalho que me norteou muito ... Entrevistadora – O que é que você acha importante para que os meninos falem ? Acho que esta é uma situação vivida por milhões de professoras ... Professora – Primeiro é dar oportunidade para que eles falem o que querem, da forma deles, seja o que for, não julgar, e observar. Depois, a gente vai trabalhando a partir daquilo que eles trazem. Foi assim que consegui. Levantar o conhecimento prévio dos alunos é muito importante na sala de aula porque tem uns muito tímidos. No início só de olhar pra eles, eles desviavam o olhar. Depois começaram a falar mesmo, dar opinião. No fim brigavam para um falar primeiro que o outro e ainda reclamavam porque eu não deixava que falassem ao mesmo tempo. Foi uma alegria enorme. É muito emocionante esse trabalho, influenciou muito minha formação e um dos pontos principais foi o incentivo à leitura. Eu não tinha o prazer, que tenho hoje, de ler, pesquisar coisas novas pra levar pra sala. Isso mudou. Meu material da formação hoje está todo junto de minha cabeceira... (Marcicleide – professora da Rede desde 1997 e da sala-laboratório na Escola Marcondes Batista Félix no ano de2000)
“Eu, como professora tive uma experiência muito forte na minha vida, quando começou esse trabalho em Irecê e eu pude ver o que é realmente ensinar, o que é aprendizagem... Quando recordo de tudo que fiz como professora da sala laboratório (em 99), sinto saudade. Foi o processo em que mais aprendi. Meus alunos hoje têm vontade de aprender, são letrados, tem alguns que já estão na 4a série e outros, pelo avanço que apresentaram, foram para a 5a e eu vejo o quanto aprenderam. Na minha prática hoje eu vejo a diferença de quem quer mudar, e recorro aos projetos, aos textos, à biblioteca, trabalho com textos diversificados. Antes da capacitação a gente trabalhava com um texto só pra todo mundo porque a gente não tinha a rotina de leitura do professor e do aluno. Achávamos que o livro-didático era o suporte maior ... Em relação à matemática também, aquelas continhas decorebas ... não é nada disso. A gente
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aprendeu que tem que extrair da vivência do aluno, através de situações reais”. Aprendemos a aproveitar a situação que eles vivem para trabalhar a matemática. Eles manuseiam dinheiro, tem uns que vendem coisas ... Antes a gente planejava anualmente. Fazia aqueles objetivos anuais e entregava. Achava que o aluno ia aprender com a cartilha, silabando, daquele jeito. Achávamos que estava certo, mas não estava. Por exemplo, num projeto, a gente envolvia toda a escola e trabalhava o tema o mês todo como nas datas comemorativas, mas não levava em conta a aprendizagem, ou a competência das crianças, os conteúdos da aprendizagem, procedimentais, atitudinais. Não fazíamos a seleção. Achava que com aquilo ali, misturando tudo, a criança ia aprender de qualquer jeito ... Hoje como professora me sinto realizada. No início tive momentos de muita ansiedade e de choro, mas quando alguém estende a mão pra você e você toca e retribui, é sinal de uma aliança, muito forte, baseada na confiança. Foi o que faltava na minha vida profissional. Vou levar pra toda a vida” (Márcia Bartira Rodrigues – Professora da Escola Padre Cícero e da sala-laboratório em 1999)
“A minha trajetória foi cheia de transformações significativas nesse trabalho porque antes dele eu não tinha tanta autonomia assim, como tenho hoje no município de Irecê. Mudei bastante, profissionalmente. Não tinha conhecimento, como tenho hoje, de me importar com a aprendizagem dos alunos, em saber como eles pensam. Eu não valorizava tanto o que eles pensam e falam. Acho que pensava mais em mim. Não me importava com o planejamento como me importo hoje, desde 97, quando começou esse trabalho. Havia uma alegria, um espírito de mudança na nossa formadora, que eu abracei sinceramente. O ensino brasileiro mudando e, nós em Irecê, estávamos parados no tempo... Eu gosto de ensinar, ver a criança crescer, sair da fase da garatuja até chegar à alfabética. Quero ser professora eternamente ...”. (Gleivia Rodrigues, professora da rede desde 1997 da Escola Padre Cícero e hoje diretora da Escola “Nossa Infância”)
“...Nós aprendemos muito. Saí do município, mas sinto muito quando vejo um professor perdido. Precisam de uma assessoria mais constante. A gente cresceu foi assim: tendo idéia, sentando, discutindo, errando, acertando, reunião de planejamento com a coordenação fazendo aquele trabalho até exaustivo com o professor, seus relatórios, trocando idéias, dando e ouvindo sugestões sobre o que ta acontecendo na sala...”. (Maria Rita – foi professora da rede municipal. Hoje ensina em uma instituição privada de tempo integral)
Aluno Reproduzimos um trecho maior da entrevista com aquele aluno63 que, no primeiro capítulo, descreve um castigo que recebeu na escola. Ednaldo que, com 16 anos, em 1997, engraxava sapatos e era repetente contumaz, participou do projeto Acelera Brasil, estagiou na COELBA64,
63 Ednaldo Moraes Ferreira – entrou no Acelera em 1997, repetente da 3a série, com 16 anos em auto-avaliação, 1997 64 Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia
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num projeto com adolescentes, e em 2001 se encontrava trabalhando na Secretaria Municipal de Educação de Irecê e freqüentando a 7a. série, nos diz, numa auto-avaliação do seu processo, em entrevista realizada 4 anos depois (julho de 2001): Antes, parece que os professores davam aula mas não era do jeito que a gente precisava. A gente queria se inspirar na aula, só que não tinha a ajuda do professor. A gente queria desistir e o professor não tava nem aí. Muitos colegas meus que quiseram desistir no Acelera, a professora foi atrás, fez de tudo e eles continuaram estudando. Isso foi a parte mais legal que eu achei... também aprendi a gostar muito de ler. Leio poesias dos poetas daqui de Irecê, André Marques, Chico Leite, leio fábulas, são vários tipos de livro que eu gosto, principalmente de ciências... tenho mais de dez livros de ciências em casa porque eu quero ser médico, vou conseguir uma vaga pra fazer o telecurso Bradesco, vou estudar pra passar para o 3º ano e vou pra Salvador estudar medicina ... estou gostando muito da 7a série e acho que a possibilidade de passar para a 8a é de 100%, não tem menos por cento ... A gente teve um desafio grande e isso você vê em relação à sua vontade... na verdade, os alunos que não querem desenvolver é porque ficam com medo de falar, de errar ... mas eu já li muito livro que tem, dizendo que até o sábio erra, né? Falo com eles pra não desanimar, que a gente sabe mais do que pensa, mas o medo é que não deixa ...”
Perguntado sobre o que acha que um professor deve/não deve fazer, a sua resposta expressa um discernimento singular, dando idéia de uma trajetória de reflexão entre o sentido (vivido) e o pensado, sobre o conhecimento e as relações entre professor e alunos: ...É chegar dentro de uma sala de aula e dar um assunto como se ele fosse o único dono da verdade daquele assunto. Ele tem que saber o que é que esse assunto vai desenvolver no pensamento do aluno. Não deve entregar o assunto e falar que é pra prova, sem explicar... porque eu leio a apostila, mas preciso da explicação do professor, que está mais por dentro. Ele tem que ver o nosso lado e não só o dele, aí o professor passa a complicar o aluno porque dessa forma ele não vai aprender mesmo ... eu acho que isso deve ser bem cuidado na sala de aula. Primeiro tem que ver o assunto junto, desenvolver o pensamento pra depois pensar em fazer uma prova... Se o professor não vê o aluno, que ele tá ali naquele canto, só conversando com os colegas, se não dá uma força e só quer dar as ordens, o aluno não se interessa, fica no canto e não aprende ... Esse é um conhecimento simples que o professor pode ter para dar sua aula...”
Coordenadores Pedagógicos Nos relatórios encaminhados regularmente à consultora-formadora, os coordenadores pedagógicos registram seus desafios, suas dificuldades, e caminhos encontrados para superá-las. Lembramos que a coordenação pedagógica da Secretaria de Educação do Município foi se formando aos poucos, conseguindo-se ter uma equipe com 18 integrantes no fim do ano de 1998,, que se mantém. A formação desse grupo tem em mira a construção da saída das consultoras formadoras. É ele quem vai assumir o papel de consultoria, exercido pela Avante durante os 4 anos, até a conclusão do projeto: acompanhar e apoiar a prática do professor, realizando boas intervenções.
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São marcantes nesses relatos manuscritos (em formulário padronizado), a crença no trabalho que desenvolvem, a vontade e empenho em aprofundar os conhecimentos e aperfeiçoar-se no exercício da função de consultor. Como já vimos, as coordenadoras foram escolhidas entre participantes do processo de capacitação em serviço, que apresentavam experiência de sala de aula, destacado comprometimento com a filosofia adotada e com as ações para a conquista do sucesso dos alunos da escola pública de Irecê, além de um forte desejo de aprender, aprender sempre. Alguns trechos de relatórios das coordenadoras, que trazem problemas, soluções propostas, e deixam implícitos alguns conteúdos e indagações da rotina de trabalho com as professoras: “A cada dia que passa, sinto que o trabalho de um coordenador não é nada fácil. A caminhada tem sido árdua e a necessidade de encontrar soluções para as dificuldades é constante e angustiante “. Nos momentos de planejamento com os professores tenho percebido que alguns ainda resistem muito às mudanças, talvez por insegurança ou mesmo por não acreditarem que funcione, que vale a pena mudar e também pelo comodismo (sinto essa dificuldade mais com o 3º e 4º ciclos). Como chegar até eles é o meu dilema do momento porque sinto que não há mudança, se o professor não está disposto a colocá-la em prática... Uma dificuldade muito grande que estou tendo na (escola) Tenente Wilson é sobre como ajudar uma professora a motivar seus alunos de 4a. série, grupo 10, que tem alunos de até 17 anos, que já fizeram parte das classes de aceleração, mas ainda apresentam dificuldades na leitura e na escrita. Observando os alunos, percebo que primeiro é preciso fazer com que os mesmos se interessem pela escola, queiram ficar na sala de aula, para que sintam o desejo de sanar suas dificuldades e aceitem a ajuda da professora. Para conseguir isso, estamos pensando em trabalhar com teatro e a professora de arte do 3º e 4º ciclos vai trabalhar com esses alunos, frisando um ponto-chave que é a questão da auto-estima. Não sei se é a forma correta, mas acredito e desejo muito que possa funcionar. Gostaria de outras sugestões para que possa auxiliar melhor esta professora... No último planejamento com as professoras, trabalhamos sobre a avaliação, que deve ser constante no processo de ensino e aprendizagem. E elaborar uma avaliação escrita é motivo de muitas dúvidas, principalmente quanto ao enunciado das questões, o que pode e o que não pode ser utilizado. Um outro ponto é a correção das avaliações. Que leitura pode nos orientar melhor nesse sentido? Um forte abraço. (Eliete Gomes dos Santos – “Relatório da Coordenadora” – referente às Escolas Tenente Wilson e Luiz Mário – 11.04.00)
“...Enquanto não tivermos uma escola bem estruturada e de tempo integral, a ansiedade e o stress serão nossos companheiros. Sei que é preciso um certo nível de stress para produzirmos, mas quando ultrapassa certos limites, a produção deixa de ser saudável. ... É humanamente impossível coordenar 3 escolas em localidades diversas atendendo desde a educação infantil ao ensino fundamental – do 1º ao 4º ciclos... não faz Parte do meu imaginário. Sou uma professora muito preocupada e comprometida com a qualidade da escola pública e é por isso que, apesar do mísero salário, dedico-lhe a minha vida.. Como diz o poeta francês Jean Louis, o domínio do tempo, na verdade, é o domínio de nós mesmos em relação ao tempo. Quando falamos de tempo queremos dizer vida. Mas, o que fazer? Você sabe que não sou perfil de “fazer de conta que trabalha” ...
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...Como já relatei anteriormente, estava pensando em nuclear o planejamento com as professoras de Achado e Lagoa Nova.. Nucleei e foi um momento de muitas sínteses. Antes de começar o planejamento, apresentei algumas situações favoráveis para que o mesmo fosse significativo: avaliação diagnóstica dos alunos (língua escrita); ler, pelo menos os eixos organizadores da Língua Portuguesa e Matemática (trabalhamos só com essas duas áreas) nos 66 “Parâmetros” 65e no “Currículo do SESI” (tirei xerox para as duas escolas) e as orientações didáticas, registrando algumas atividades em cada eixo. Foi solicitado também que tentassem fazer, apoiando-se nos modelos apresentados, um projeto, e na medida do possível seriam feitos os ajustes necessários com minha ajuda ou até mesmo da equipe de coordenação. Lembrei que o projeto deveria partir de um problema real da turma. Apenas um professor fez o projeto e conseguiu fechar o plano semanal. Constatamos a importância da pedagogia por projeto para a organização do trabalho didático e encaminhamos a produção do projeto como condição indispensável para o próximo planejamento. Essa reunião teve a duração de 8 horas e foi positiva em dois momentos: o primeiro, reflexão teórica e apresentação do mesmo seminário apresentado em Itapicuru, sobre o qual já fiz o relato, anteriormente; o segundo momento, planejamento dos professores por grupos, onde cada grupo tinha um líder. O próximo planejamento será em Achado no dia 13.04. O anterior foi 30.03. Itapicuru (3º e 4º ciclos) é o meu grande desafio. Apesar de terem “acordado”, os professores precisam construir muitos esquemas referentes aos conteúdos da matéria que ensinam e dos pressupostos teórico-metodológicos adotados pela rede. O desafio é grande e é pór isso que quero, como já lhe disse, dedicar-me somente a esse segmento de ensino (3º e 4º ciclos)... Ao ler o livro de Fernando Hernandez – “A Organização do Currículo por Projeto” – fiquei maravilhada e cheia de dúvidas pois existem pontos que não consegui dar conta e acredito que é uma ótima forma (apesar de complexa) de organização do trabalho didático dos 3º e 4º ciclos. Oportunizei aos professores a xerox do capítulo VII - “Os Projetos e o processo de Tomada de Decisão: quatro exemplos de projeto, quatro exemplos de problemas”, pedi que lessem, refletissem e pensassem na possibilidade de realização de um, partindo de um problema real e atual, orientando-se pelos eixos organizadores da área de conhecimento que ensinam... Marquei um seminário do capítulo V – “Os projetos de trabalho: uma forma de organizar os conhecimentos escolares”. Neste capítulo o autor apresenta algumas reflexões acerca do ensino globalizado e dos aspectos a serem levados em conta no desenvolvimento de um projeto: a escolha do tema, a atividade do docente após a escolha do projeto, a atividade do aluno após a escolha do projeto, a busca das fontes de informações, o índice como uma estratégia de aprendizagem e a realização do dossiê de síntese. Sei que é muita ousadia essa metodologia para nossos professores, mas a minha maneira “Fernão Capello Gaivota” de ser é o meu combustível. A propósito, você conhece alguma escola em Salvador que trabalhe com o referencial metodológico de Hernández? Aguardo com ansiedade o retorno da Avante, pois acredito que esse ano será de muitas sínteses (esta palavra é a minha cara, você não acha?), apesar de ser um ano político, pois a equipe está mais madura e autônoma”. (Relatório da Coordenadora – 05.04.00 - Maryl)
65 Documento do MEC – Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental – 1ª a 4ª séries. 66 Proposta Curricular das escolas da rede SESI / BA elaborada em 1997 e revisada em 2002.
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“...O fato de estar atendendo a 3 escolas de educação infantil, o tempo para estar com as professoras tem sido cada vez mais curto. Apesar de ter alguns professores que têm maior autonomia, há outros que precisam de maior apoio ... o tempo que ficamos juntos tem sido muito proveitoso. Muitos avanços têm acontecido. .. Gostaria de receber orientações para distribuição das áreas de conhecimento na carga horária de educação infantil para elaboração da rotina do professor... (Madalena Damasceno Pereira – Escola de Educação Infantil – 12.04.00)
“...Nos reunimos na segunda-feira para a realização do 3º encontro de planejamento e o estudo de algumas páginas do PCN de Língua. Levei duas questões para serem analisadas pelo grupo e foi bastante proveitoso, pois os professores falaram de seus medos e dúvidas e tentei deixá-los mais tranqüilos, enfatizando o papel do coordenador como guia e orientador e que minha função é de contribuir para o crescimento, tentando esclarecer possíveis dúvidas ou, como você diz, instaurando outras... Temos na escola uma turma com grupos de 4 e 5 e gostaria que me mandasse orientação para que possa ajudar a professora, pois a mesma não tem experiência com esses grupos. Outra questão que também me preocupa é a seguinte: em visita de observação à sala do grupo 8, a professora me falou de uma aluna que está na fase présilábica, nível 2, digo que está nesta fase porque pedi para escrever seu nome e a mesma usou algumas letras, mas quando é solicitada a escrever no quadro ela não usa”. letras e sim (mmmmmmmmm ). O que mais me preocupa é que ela estuda por dois anos consecutivos .. O que posso fazer para ajudá-la? Espero ansiosa a sua resposta, por acreditar que essas questões não podem esperar. Abraços. (Márcia – Coordenadora - 15.03.00)
“...Hoje foi a vez de Débora, grupo 9. Ela preferiu matemática e, como ainda não sabia das hipóteses dos meninos a respeito dos números, planejamos avaliação diagnóstica com ditado de números. Ela achou pouco, então planejamos um jogo de baralho (leitura) e uma pesquisa dos números das casas deles e dos vizinhos... Apesar de Mônica dizer que algumas atividades podem ser feitas de forma descontextualizada, eu fico preocupada...Tenho tantas dúvidas, preciso urgentemente de orientações, quer seja via consultoria, quer seja PCN, Zabala, César Coll, Delia Lerner, etc. Ainda tenho tanta coisa para relatar, mas o cansaço apresenta sinais de força e por isso preciso parar para logo mais prosseguir na busca de conhecimentos que alimentem a mim, às professoras, às crianças e às demais pessoas que, direta ou indiretamente, fazem parte da escola, para lutarmos contra um gigante chamada desigualdade...”. ...Hoje fizemos o planejamento que marcamos na quinta-feira passada. Nele estavam presentes todas as professoras, exceto a do grupo 10 vespertino. Discutimos como seria a dinâmica e decidimos fazer o registro ... para avançarmos nas discussões e analisarmos a prática ... Para iniciar li um texto – Reflexão sobre Ser Pessoa. Fiz esta escolha por achar que o grupo anda com a auto-estima em baixa. Houve poucos comentários sobre o assunto Em seguida avaliamos a semana e percebemos que alguns objetivos não foram alcançados, porém a “culpa” ainda estava localizada no aluno. Como eu tinha levado para estudo um texto – “Por que fazer planejamento?” achei que a resposta para essa questão poderia vir durante a leitura e
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discussão do mesmo. Fiquei observando a reação delas durante a leitura. Por algum tempo, o silêncio tomou conta da sala, mas depois começaram a dar opiniões, cada uma queria falar sobre o assunto. Depois de darem e ouvirem opiniões mencionaram o desejo de sistematizar um planejamento. Eu voltei ao assunto da semana anterior e, felizmente elas deslocaram a “culpa” do aluno. Como o tempo era pouco, resolvemos fazer uma rotina de leitura e escrita que fosse significativa para o aluno. Discutimos também sobre a diversidade textual na sala e sobre os gêneros propostos para cada ciclo. ... Após saírem as outras professoras, fiquei com Dilma, que preferiu planejar a área de matemática. Disse que o seu objetivo era que os meninos aprendessem a ler e escrever números e resolver problemas, usando o cálculo mental. Ao selecionar os conteúdos percebi que ela ainda tem muita dúvida. Não consegue selecionar (ainda) quais os que estão na esfera do saber, do saber fazer e do ser. Às vezes fico pensando, será que isto já está resolvido para mim? Será que as explicações que eu estou dando estão claras? Num outro momento esta professora chamou-me para fazer um planejamento diário. Observei que a rotina que fizemos já estava presente no início do seu planejamento. Ela demonstrou preocupação com três tipos de conteúdos. A aula era escrever uma carta para os alunos de Queimadas do Floriano, pedindo uma receita de sabão para matar piolho, sendo esta uma das atividades do projeto sobre piolho e uma outra atividade era um jogo de boliche com o mesmo objetivo. Sugeri à professora que propusesse tal atividade aos meninos e meninas, mostrando para quê e como fazer, a fim de tornarem-se sujeitos de sua própria aprendizagem Discutimos e elaboramos as consignas, bem como o desenvolvimento das aulas e as formas de avaliar. Ao terminar ela estava quase convencida de que o planejamento é responsável pelo sucesso e pelo insucesso das aulas... A professora Marcicleide disse que gostaria de fazer um planejamento sobre questões ortográficas – r e rr. Usamos como subsídio uma apostila que mostra as etapas69 desse trabalho. Interrompemos várias vezes para tirar dúvidas. Ao aproximar do final da sistematização, a professora disse estar surpresa com a complexidade de um trabalho que antes parecia tão simples. Mais uma vez me questiono: será que estou respeitando as zonas de desenvolvimento das professoras? Será que o grau de aprofundamento dado às questões está adequado ao grau de capacidade de compreensão? Será que o meu conhecimento está adequado ás necessidades da escola? No final do dia, ao refletir sobre as ações, percebo que exercitei muito mais a fala do que a escuta. No dia seguinte peço para questionarem as minhas perguntas e explicações, explicitarem suas idéias, mas o resultado não é nada satisfatório e isso me angustia ainda mais. Ontem uma professora pediu para sair da escola e novamente eu me perguntei: qual foi o tamanho do desequilíbrio que eu causei nessa pessoa? Até que ponto eu fui guia e orientadora para ela? Será que não priorizei os conceitos e me esqueci das atitudes e procedimentos? Necessito de orientação semanalmente, apesar de contar com o apoio da equipe. Acreditando que o conhecimento se dá por aproximações sucessivas e que toda pessoa é passível de aprendizagem, espero conseguir alcançar as metas estabelecidas no início desta missão”. São Gabriel, 11 de abril de 2000. (Coordenadora Edileuza Silva Rocha - 28.03 e 11.04.00 respectivamente)
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4.4 Alguns aspectos importantes na realização das atividades regulares do modelo adotado para capacitação dos gestores “...O trabalho nas escolas da rede deve estar alicerçado nos princípios da vida cooperativa e da gestão participativa, constituindo-se em um espaço real, aberto a múltiplas e diversas relações com o exterior”
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Registre-se que os princípios norteadores são os mesmos em todo o trabalho de capacitação, seja de professores e coordenadores ou de gestores. Retomamos alguns aspectos já analisados, procurando destacar o que é mais expressivo para a gestão escolar. Houve um trabalho mais constante e sistemático da Avante com os dirigentes das unidades escolares e equipe pedagógica da Secretaria do que com a área administrativa da Secretaria. No 1º Encontro de Dirigentes Escolares de Irecê, analisado no 2º capítulo, o Plano Municipal de Educação e o Diagnóstico com as necessidades de cada escola foram referenciais importantes para realização da capacitação dos gestores. Reproduzimos o modelo adotado e depoimentos dos participantes, onde se percebe a ênfase na discussão da prática e o trabalho por projeto. Nesses depoimentos são destacados alguns projetos de iniciativa das escolas, surgidos no processo de capacitação dos gestores das unidades escolares. A principal tarefa comum estava definida – combate ao fracasso – assim como as grandes linhas que inspiravam e sustentavam a unidade das ações entre os diversos segmentos. Também com os diretores e vice-diretores os princípios do sócio-construtivismo foram disseminados, estudados, discutidos e exercitados. Os dirigentes escolares cumprem um papel primordial como promotores e facilitadores das relações para que tudo funcione na escola. Um dirigente indiferente, sem entusiasmo pela melhoria da escola, preso ao cumprimento de regras que não questiona, sem desejo de autonomia, que não contribui para estabelecer vínculos positivos e democráticos que estimulem o crescimento da sua equipe, seus alunos e da comunidade, pode ser um obstáculo ao sucesso dos alunos. A tradição – aliás, ainda forte nos sistemas educacionais – era de pouca interação dos dirigentes com os processos-fins da escola, o ensino e a aprendizagem. O “pedagógico” ficava a cargo dos “especialistas”, com os professores, cabendo ao diretor pouco mais do que cuidar dos aspectos formais, basicamente das exigências burocráticas da Secretaria. A palavra “sistema” era e é ainda freqüentemente usada para designar “Secretaria”: “fulana trabalha no sistema” significava que a pessoa estava lotada no órgão central, como se as unidades escolares, os professores, os alunos não integrassem o “sistema”. Compreende-se que diretores, professores, coordenadores, demais funcionários da escola e do órgão central são parte do sistema educacional e todos - muito particularmente os diretores, a
67 In Proposta Curricular da Rede Municipal de Irecê, pág. 21 – dezembro de 2000.
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quem cabe responder por tudo o que acontece na unidade escolar que dirige – são responsáveis pelo sucesso/fracasso das políticas educacionais, da escola e dos alunos. Tanto ou mais do que os profissionais que trabalham no órgão central. Foi rompida aquela tradição de jogar exclusivamente nas costas do docente a responsabilidade pelo insucesso dos alunos. Todos têm responsabilidade, exercitando papéis e funções distintas e complementares. Compreende-se também que o diretor é um educador e a experiência de sala de aula é importante para que possa exercer melhor o seu papel e sua liderança junto aos professores, como grande parceiro e incentivador das iniciativas pedagógicas, da interação constante e sinérgica com familiares e comunidade para a melhoria da qualidade do ensino, do acesso e da permanência dos alunos na escola, da integração com a população local, apoiando e realizando atividades e projetos que fortaleçam a cultura local e contribuam para que a escola seja reconhecida e seja demandada pela população como um centro produtor de conhecimentos úteis à realização de projetos de interesse da população e da comunidade em geral. Em Irecê, no início de 1997, a maioria dos diretores estreava na função. Eram recém nomeados e quase todos tinham formação de professor. O critério de escolha utilizado era a confiança. Os que saíram tinham sido escolhidos também por esse mesmo critério, confiança das autoridades municipais da gestão anterior. Já foi relatada a situação caótica em que se encontravam as escolas municipais e o total despreparo do Órgão Central da Educação, em termos de estrutura mínima para funcionar. Todos os diretores e vice-diretores participavam da capacitação regular, inclusive os dos povoados. O universo total contemplava 39 diretores e vice-diretores das escolas municipais, 9 responsáveis por escolas rurais de pequeno porte e 132 integrantes das equipes de apoio operacional e administrativo da Secretaria. No seminário inicial – de preparação para a abertura do ano letivo - trabalhou-se principalmente a função da escola, usando-se para fundamentação o “Raízes e Asas” 68 e uma publicação do CECIP 69– “Todos pela Educação no Município” – os dois volumes: “Um Desafio para os Dirigentes Escolares” e “Um desafio para os Cidadãos”, que se constituíam num programa para mobilização de secretários e da comunidade para a melhoria da qualidade da educação. A LDB – promulgada no ano anterior – foi fonte permanente durante todo o trabalho. Também os textos utilizados no PRASEM – na capacitação de secretários municipais – foram utilizados. Como se vê, o objetivo principal do primeiro seminário – que, na prática, dá início à capacitação continuada dos gestores – era mobilizá-los, reacender-lhes o desejo e o compromisso social com a educação, com o sucesso dos seus alunos e da sua equipe. Fez parte do projeto, desde o primeiro momento, o estímulo ao desenvolvimento de um conjunto de competências técnicas, relacionais e políticas que favorecem a construção, o exercício e o aperfeiçoamento da capacidade de liderança dos processos de mudanças na
68 Conjunto de fascículos produzidos pelo CENPEC – com o apoio do Itaú, do MEC e do UNICEF. 69 Centro de Cultura Popular ONG – com sede no Rio de Janeiro
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educação municipal, sendo princípios básicos a cooperação e a participação, como elementos centrais no exercício do modelo democrático de gestão. No modelo adotado para capacitação dos gestores, enfatiza-se, como sempre, a tematização regular da prática e o envolvimento de todo o universo de dirigentes escolares. Reproduzimos o desenho, sintetizando o que é considerado básico na dinâmica de capacitação adotada:
Seminário Inicial Sensibilização para apresentação e discussão do Plano de Educação e introdução a conceitos básicos para o exercício da gestão democrática da educação e das escolas do município.
Encontros mensais Análise e reflexão da prática entre os diretores municipais, a partir das próprias necessidades levantadas por eles, trabalhando formação gerencial, com momentos de estudo de textos e troca e discussão das experiências. Objetivo – análise, troca e sistematização da prática entre os diretores municipais Metodologia – O desenvolvimento consiste na discussão e análise da rotina do diretor municipal e no estudo sistemático de temas, necessários ao exercício da sua função. Cada encontro é precedido da entrega, por parte do diretor, dos seguintes materiais: Rotina de atividades/planejamento Uma situação-problema vivenciada e refletida pelo diretor
Seminário Final Avaliação do processo de capacitação.
Funcionamento Esse modelo funcionava de forma muito parecida com o da capacitação dos professores, como descreve a formadora Salete Silva, coordenadora do processo de formação dos gestores em Irecê: “Nós tínhamos uma escola-piloto da área de gestão. O diretor dessa escola fazia relatórios quinzenais para mim e eu fazia a devolução para ele. Eu observava regularmente essa escola, e reunia com o diretor, discutíamos e no encontro mensal o conteúdo dessas trocas era exposto como tema, objeto de conhecimento para análise e discussão por todos. Na exposição, o diretor destacava os desafios que enfrentou, os problemas, as orientações dadas
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pela consultora naquele período, as hipóteses elaboradas, as soluções encontradas, como foram encaminhadas, resultados esperados e eventualmente já obtidos, possíveis aprendizagens que realizou, e apresentava os projetos dele”.
Os critérios para a escolha da escola-piloto de gestão são também semelhantes: a primeira escola escolhida, a Luiz Viana Filho, não por acaso, fica localizada na região mais pobre de Irecê, num bairro chamado Malvinas. Seu diretor se destacava pela identidade com a filosofia proposta, era questionador, tinha bom relacionamento com os colegas e o desejo de abrir a escola para a comunidade de Irecê. Assumia as coisas com garra e de forma cooperativa. Tinha liderança. Aliás, dentre eles havia muita garra e muita criatividade. Carlinhos já estava na rede há muito tempo, tinha experiência de sala de aula e também como vice-diretor. Foi uma escolha acertada, mas outros poderiam ter sido escolhidos.. Os diretores, em geral, apostavam fundo na transformação da educação. A partir de 1999 unificamos as escolas-piloto, uma única escola passou a ser piloto da área pedagógica e de gestão. Enfrentamos dificuldades em alguns momentos. Em 1999, por exemplo, achamos que estávamos sendo repetitivos, que precisávamos dinamizar o trabalho. Dentre outras coisas, discutíamos Regimento Escolar, que não mobilizou muito os diretores, houve mudança de Secretário, foi um ano mais conturbado. No ano seguinte, retomamos um trabalho de integração entre as escolas, que tínhamos iniciado em 98. Eram grupos de escolas que estabeleciam parcerias, a partir de temas, violência nas escolas, por exemplo. Os que tinham problemas semelhantes, sentavam, faziam um projeto, pesquisavam as causas, as saídas e implementavam conjuntamente, cada escola adaptando às suas condições. Eles cresceram muito, fazendo as parcerias. Mas, outros problemas também interferiram. Em 2000 houve eleição e o envolvimento no interior é muito grande, principalmente entre os diretores de escola, que têm liderança na cidade. O clima eleitoral lá era de absoluta guerra. O prefeito foi reeleito. As mudanças na educação foram significativas na sua campanha”.
Destacamos a diversidade de iniciativas geradas no processo de capacitação dos dirigentes escolares. As entrevistas evidenciam que essas iniciativas eram tanto maiores quanto mais autonomia os diretores e educadores conquistavam e quanto mais se fortaleciam os vínculos entre escola e comunidade. Em Irecê, como veremos, é o interesse da escola no sucesso do aluno quem aproxima a escola das famílias e da comunidade. Uma nova cultura vai se conformando nessas relações, provocadas por necessidades da escola para realizar sua principal finalidade. A partir do segundo ano, principalmente surgem muitos projetos por iniciativa das escolas. A Proposta Curricular da Rede Municipal de Irecê, tema do próximo capítulo, no item Referências Teóricas, dá os elementos para compreender a definição da organização desses projetos das escolas, caracterizando-os de acordo com as finalidades a que se destinam como projetos de empreendimento e projetos de aprendizagem. Sugerem também outras atividades para a estruturação do trabalho: atividades permanentes e de rotina, e atividades isoladas contextualizadas e descontextualizadas que devem ser planejadas e organizadas, explicando-se em que tipo de situações elas são cabíveis e por que o são. Nos trechos que seguem, de entrevistas com participantes desse processo, estão relatados alguns projetos desenvolvidos nas escolas, suscitados pelo trabalho de capacitação de
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gestores. Além dos projetos, as falas nos dão a dimensão desse trabalho na vida das pessoas que se dedicaram a ele, da escola, das famílias e das comunidades de Irecê. Uma das entrevistadas, formadora da área de gestão educacional, num determinado trecho da entrevista expressa um traço marcante das relações entre os participantes da formação: “Sentimento! Acho que o que move Irecê é o coração, coisa de vontade, de determinação e, claro que juntou isto com as competências. Eles constroem competências com o coração “ Demos um foco muito grande na capacitação dos gestores das unidades, à gestão das escolas e fizemos um trabalho consistente de fortalecimento das escolas com valorização da sua autonomia, que gerou subprodutos importantes, de iniciativa dos diretores – os inúmeros projetos de parceria entre escolas, com envolvimento das famílias, da sociedade. ... O que acho que aconteceu de mais importante, aconteceu nas escolas, e muito a partir de iniciativas do diretor, não só da área pedagógica. O diretor em Irecê tem uma característica de quem sonha, quer mais, de quem não se contenta com “escola de pobre”, quer mais recursos, vai à luta, consegue parceiros. A questão da autonomia ficou como uma marca em tudo. Ele não se contenta em ser mero executor de programas e projetos que não discute, não elabora. Quer saber de tudo, tem uma inquietação criativa ...”
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Em entrevista realizada em julho de 2001, o Secretário Municipal da Educação evidencia o compromisso e a seriedade das pessoas envolvidas no trabalho educacional, em especial os professores e gestores; a precariedade de recursos; o comprometimento político com os alunos; o reconhecimento do êxito dos esforços desenvolvidos na educação de Irecê para além do município: ...”Nós conseguimos reunir aqui um mundo de pessoas superinteressadas. Eu sempre destaco o papel dos professores e diretores porque nem o salário é lá essas coisas. Os salários continuam baixos porque, afinal de contas são 363 reais per capita por ano. Pode uma coisa dessa? Você imagine que nos EUA para uma escola da periferia são 500dólares por aluno – ano e em outras áreas urbanas (lá eles fazem essa distinção) são 10 mil dólares. Então, com esses recursos, funcionando como funcionamos rigorosamente os 200 dias letivos e as 800 horas-aula, com qualidade, com resultados práticos na unidade escolar, na sala de aula, no aluno ... é preciso muita dedicação, compromisso e competência... porque temos que reconhecer que uma coisa é pegar aquele aluno que já vem de um ambiente onde recebe todo estímulo na própria casa, tem todas as motivações, outra coisa é o menino do interior, que passa dificuldades, cujos pais freqüentemente nunca estudaram, esse sim, precisa de mais atenção para descobrir seu caminho, desenvolver seu potencial... Estamos fazendo, estamos lutando e este ano assumimos um compromisso com o governo federal para aplicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais e isso de novo está exigindo muito da turma, em termos de estudo, de análise... Os próprios técnicos do MEC comentam que a coisa aqui funciona. Mas funciona porque teve uma base. Isso não é o secretário que está levantando, está na fala dos professores, dos diretores, dos técnicos do MEC... Nosso trabalho tem tido repercussão na Bahia e no Brasil. Recebemos a medalha Anísio Teixeira, menção honrosa do prêmio Itaú-Unicef junto com a Avante, a experiência de Irecê já
70 Ana Luiza Buratto – Formadora da Avante – Área Gestão. 71 Professor Celso Dourado, Secretário de Educação Municipal de Irecê – 1999/2000.
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tem sido analisada em outras localidades... e esta não é uma afirmação de vaidade – mas um reconhecimento de que passamos a ser referência para os municípios vizinhos. Tanto é que hoje nós somos a sede do pólo regional para os Parâmetros Curriculares Nacionais. Creio que o foco no aluno, na escola e o investimento na formação dos jovens educadores e diretores, como um comprometimento político, é importante para o acerto... “...A rede municipal é sempre a que está mais próxima e mais identificada com a periferia e com o aluno carente e os problemas sociais no país alcançam essas famílias, principalmente. Nós temos experiências exemplares nas escolas: sair à noite para tirar garotas de programas de prostituição infantil, garotas dentro de caminhão .. nós somos responsáveis por essas crianças. A escola Padre Cícero, na entrada da cidade tem enfrentado esse problema com muita sensibilidade e muito compromisso”... 72
O Prefeito do Município num trecho de entrevista sobre o modelo de formação continuada de professores e gestores (1999 ano III do desenvolvimento desse projeto), observa: “A experiência de Irecê quebra o paradigma de que os educadores do ensino público são incompetentes, que as escolas não ensinam, os diretores não funcionam, os alunos pobres não aprendem, ...”.
Reproduzimos trecho da entrevista com Aloísi Carlos (Carlinhos), diretor da Escola Luiz Viana Filho, entre 1997 e 2000, hoje dirigindo a Escola Paraíso. A nosso ver esse texto é muito significativo e emblemático, como síntese de algumas importantes transformações geradas a partir da capacitação e dos projetos de iniciativa das escolas. Na sua fala, esse diretor nos faz mergulhar no contexto e nos problemas que movimentaram a escola e nos dá um relato de três destes projetos: Projeto Democracia, Aluno Solidário e O Mundo Precisa de Paz, este último dentro do Projeto Escolas Parceiras “...Tenho treze anos como educador, durante sete fui regente de classe. Na gestão anterior fui vice-diretor... no começo do trabalho com a Avante a gente sentiu aquele impacto, mas depois as coisas foram se assentando e nós começamos a elaborar projetos frente ao que o professor fazia na sala de aula. Como gestor eu não podia ficar inerte e tinha que começar a provocar a comunidade a ser parceira da escola, até porque eu trabalhava numa periferia onde se viviam problemas sociais graves... Temos alunos na escola que estudam 3 vezes na mesma escola porque matricula, passa um mês e sai... começa a safra em Barreiras, corre pra lá, começa a safra em Goiás, corre pra lá, tem safra em Irecê, volta pra cá ... Em 98, tivemos a satisfação de ter a escola que eu dirigia, escolhida para ser piloto na área de gestão. Passamos a ter a orientação de Salete bem de perto. Aprendi demais. Não tinha pacote pronto. Ela sentava com a gente para discutir os problemas da escola, da comunidade, da associação comunitária, do que fazer, da Promotoria, de como criar parceiros para a escola. E começamos a ter a perspectiva de que era possível fazer isso. Lá na escola hoje tem muitos registros, relatórios, fotos. Toda quinzena eu fazia um relatório das atividades do período e ela me dava um retorno, um parecer técnico, trocava idéias. Inicialmente a gente fazia um trabalho interno: direção, pais dos alunos, professor e comunidade e, mensalmente eu fazia a exposição para todos os diretores, em 40 minutos, na reunião. Aí eles já discutiam, adaptavam
72 Adalberto Lélis – eleito em 1996 e reeleito em 2000.
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a sua escola, davam outras idéias ... a escola deslanchou, em todos os sentidos – evasão, repetência, na forma de lidar com a comunidade. A escola e a comunidade eram dois mundos, um lá e outro cá. O pai ou a mãe matriculava o filho e sumia. Ia meramente numa reunião de pais e mestres, e às vezes nem isso, para ouvir queixa do filho, quase sempre. Começou a mudar e se interessar, a partir de uma ação da escola, intencional para mobilizálos... Fizemos muitos projetos. Posso ressaltar 2 ou 3 mais importantes.” Projeto Democracia, com o seguinte objetivo: trabalhar com o aluno, não apenas o significado desse termo, mas o desenvolvimento de atitudes democráticas e a compreensão do todo.Para ele se tornar democrático nas suas relações na escola, em casa, saber partilhar, ouvir o outro, saber falar e defender suas opiniões. Envolvemos as questões políticas nacionais. Nossos alunos saíram para o campo, entrevistaram políticos, fizeram pesquisas, entrevistaram até candidato a presidente da república que esteve em Irecê, fazendo comício. Todos os deputados da região foram entrevistados por nossos alunos. E nós fechamos esse projeto em 60 dias com um fato inédito na história de Irecê: a Câmara de Vereadores saiu pela 1º vez de seu recinto e aconteceu uma sessão da Câmara dentro da escola municipal Luiz Viana Filho com a presença de todos os vereadores. Os alunos discutiram a realidade de Irecê, a situação do bairro, lançaram proposta de recuperação das casas precárias do bairro, de construção de quadra poliesportiva. Foi uma grande conclusão. Nas salas de aula todas as professoras se interessaram e trabalharam, a coordenação deu todo o suporte pedagógico para que a exploração do tema proporcionasse a aprendizagem dos alunos. O envolvimento foi desde o grupo 6 até a 8a.série ... Os alunos fizeram eleição simulada, teve diferentes candidatos com discursos e palanques, cada um fazia sua plataforma política, criavam argumentos para defendê-las, passavam nas salas, fizeram panfletos, tinham vários partidos. Faziam textos de propaganda própria, os colegas elaboravam textos para o candidato discursar. Toda sexta-feira faziam comícios abertos à comunidade... Projeto Aluno Solidário. A idéia nasceu da leitura de uma revista “Nova Escola”, se não me engano. Era realizado com alunos excepcionais. E eu vi o desenrolar do projeto e disse: dá de mão cheia para fazer na nossa escola. Levei a proposta e os professores acolheram de imediato. Fizemos levantamento de conhecimentos prévios, inclusive eu tenho a pasta dos alunos da escola com tudo o que eles inicialmente pensavam sobre solidariedade. Com as informações que os alunos nos deram, a gente começou a elaborar esse projeto, Tínhamos uma evasão muito grande. Fizemos um levantamento e constatamos que na nossa escola – 72% dos pais eram analfabetos. O comprovante disso era a assinatura no ato da matrícula com digitais. O pai que ajudava o filho, em geral era querendo pegar na mão dele para que fizesse a tarefa. Que fizemos? Propusemos aos grupos 9 e 10 serem ALUNOS SOLIDÁRIOS (intitulamos assim) e estes iam na casa de um aluno do grupo 6, 7 e 8, todos os dias por 30 minutos, ajudá-los nas tarefas de casa. Cada menino maior era padrinho de um menino menor. Mas ele não caía de paraquedas naquela casa. Primeiro, chamamos as famílias do grupo 6, 7 e 8 e conversamos para que elas entendessem o objetivo e recebessem essa criança. A professora da sala tinha acesso à tarefa que aquele outro professor passava e orientava o aluno solidário. Ele fazia um relatório todo dia, dizendo como foi aquele dia, na sua visão. São muito ricos esses relatórios e nos aproximam mais dos problemas vividos pelas nossas famílias. Alguns exemplos: Cheguei na casa de Leandro e a mãe não estava. Ele estava tomando conta do irmãozinho menor, de três anos. Leandro estava com fome não tinha nem o que comer.
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Não sei como ele conseguiu fazer a tarefa.” O aluno trazia um relatório – mesmo que às vezes inconsistente, mas reflexivo. Ele não trazia aquele relatório assim “eu mandei ele fazer o quesito tal da tarefa e ele fez”. Não, ele podia trazer isso também, mas trazia o contexto. Às vezes diziam: eu fui na casa do aluno tal e ele não estava. A mãe dele disse que ele tinha ido matar preá, se não amanhã não tem o que comer”. São relatos de situações que a gente sabe que existe mas a gente não sabe, na pele, o que é. Ficávamos, a um só tempo tristes e alegres com os progressos. Nos emocionávamos todos. Esse projeto despertou um sentimento de cidadania imenso nos alunos, além de estarem trabalhando a escrita, a leitura da realidade, a reflexão sobre ela. O professor, orientado pela coordenadora, reservava, no seu planejamento, um tempo para a leitura e discussão dos relatórios e cada aluno ia para a frente ler o seu. O projeto começou com o acompanhamento de 40 alunos e cresceu para 80, no ano seguinte envolvendo outro grupo. Na verdade eram mais porque alguns, espontaneamente, acompanhavam mais de um dos pequenos. Nossas crianças, no turno oposto ao da escola às vezes ficam perambulando pelas ruas, os pais saem, ou fazem trabalhos domésticos, varrem,lavam os pratos, cuidam dos irmãos menores, ou pedem esmolas, ou fazem biscate de carregador, na época do feijão para carregar os caminhões.Às vezes fazem um pouco de tudo isso. De repente, era importante que se ocupassem de uma coisa que fosse significativa para seu aprendizado. Durou um ano e meio. Muitos dos pequenos viam o maior como se fosse um professor deles...”
Nas palavras da consultora Salete Silva “..Na escola-piloto o trabalho foi riquíssimo. Eles fizeram projetos muito bons.. Tem um projeto – “Alunos Solidários” , que mobiliza alunos para o combate à evasão. Os recados para os pais não resultavam em nada. E o diretor foi pesquisar a ficha dos alunos e descobriu que a maior parte dos pais assinavam com as impressões digitais e pouco podiam ajudar os filhos na aprendizagem escolar. Tudo isso era descoberto e detectado em processos coletivos. O diretor participava das reuniões com os coordenadores. E resolveram criar o projeto na escola para enfrentar esses dois problemas: meninos com dificuldade de aprendizagem e evasão. Os maiores iam ajudar os menores e faziam relatórios das visitas. Aconteciam coisas do tipo: “não está indo porque está sem sapato e tem vergonha de ir descalço”; “porque perdeu a chave da casa, a mãe tem que sair para vender tempero na feira, não tem dinheiro pra comprar outra chave e a casa não pode ficar aberta”, dentre outros pequenos problemas do cotidiano que criam reais impedimentos para a freqüência à escola. Iam aos detalhes dos problemas e conseguiam trazer os meninos de volta. A escola, através do diretor, arrumava os três reais para fazer a chave, conseguia um sapato e assim outras providências simples, que solucionavam um grande problema. Esses mesmos meninos da 4a. série faziam banca com os da 1a série nas casas deles. Eram solidários para buscar os evadidos e para fazer dever com os pequenos. Cada aluno adotava outro. A escola se articulava com as famílias de ambos, as professoras dos maiores tomavam conhecimento dos trabalhos das professoras dos menores e orientavam seus alunos.Tudo isso proporcionava muita integração. Acredito que esse tipo de coisa se aprende para o resto da vida.... Segundo ainda o diretor: o projeto O Mundo Precisa de PAZ” - aconteceu dentro do Projeto Escolas Parceiras. Surgiu por causa da violência que vinha acontecendo na comunidade, como assassinatos nos fins de semana, prisões por brigas, envolvendo pais de alunos. O aluno chegava na segunda-feira cabisbaixo e relatava: bebida, brigas, facadas, essas coisas que, infelizmente as periferias do nosso país têm de sobra. Elaboramos o projeto
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com mais duas escolas, a Marcionílio Rosa e a Marcondes Félix. Junto com os diretores Agnaldo e Vilma fomos buscar uma solução. Acionamos vários segmentos da sociedade: Promotoria Pública, inclusive juízes e advogados, a OAB, Comissário de Menor, além dos professores e diretores das escolas. Fizemos um projeto para durar uns 50 dias, muito rico. Estudamos, levantamos com todos os alunos o que pensavam sobre PAZ e encontramos testemunhos fantásticos porque veja, os alunos começaram a ver na escola os assuntos relacionados à paz, quando viviam um grande contraste, que eram os conflitos em casa, violências, separações com brigas, muitos desentendimentos entre os pais, irmãos presos, uma série de conflitos que eles externavam. E a escola trabalhando outras relações, de solidariedade, amor, despertando o desejo por caminhos diferentes para que a gente se torne cidadão. Enfim, fomos explorando isso e os alunos trouxeram suas frustrações e nós fomos aprendendo a lidar melhor com elas. A ponto de acontecerem coisas tipo um aluno de 9 anos dizer ao pai: “Pai, eu tô trabalhando a paz na minha escola e aqui em casa o senhor bate na minha mãe?, já entendendo que pode levantar a voz (no sentido de altivez, de autoridade) e dizer ao pai que aquela atitude contra a mãe não é correta. Havia uma gama de pais que espancavamm as mães. É demais! Enfim, fizemos várias atividades com os alunos e com os pais: palestras, vídeos, filmes, vários filmes. Os alunos tinham aula e os pais tinham atividades sobre a paz. Concluímos esse projeto com uma grande caminhada com alunos, pais, alunos e professores das três escolas, na praça da Escola Marcionilio Rosa, que é uma praça grande, com falas do secretário, do prefeito sobre a paz e a cidadania. Na caminhada tivemos quase quatro mil pessoas. Perguntávamos: será que guerra é só quando há arma, bomba, canhão, tanque? Quando há um conflito dentro de casa, isso não é uma bomba na vida das pessoas, das famílias, das crianças? (Diretor Aloísi Carlos)
A Escola passa a oferecer Educação de Adultos Nosso trabalho, a partir de 97 é aquele que hoje a gente vê o MEC se esforçando para fazer, trabalhar com a realidade dos alunos ... São projetos de empreendimento pedagógico com uma conotação social muito forte. Muitos pais nos procuravam como conselheiros sobre os filhos, inclusive os que não estudavam na escola. Tentávamos fazer o possível para que eles se interessassem por estudar. E, com alguns, nós conseguimos. Criamos a 1a turma de jovens e adultos da Escola Luiz Viana Filho, que teve início num mês de maio ou junho, com o ano letivo já adiantado. Mas a nossa preocupação não era o calendário letivo, era trazer os alunos para a escola. E no ano seguinte começou, de fato, a turma integrada, com calendário e tudo. No ano passado tínhamos mais de 80 alunos matriculados. Alunos que chegaram semi-analfabetos já estão na 5a. série. Progrediu, a gente promove...
Outras Parcerias ...Na rede várias escolas fizeram parceria com o Ministério Público, principalmente no caso dos evadidos. Se os pais não atendiam nossos apelos, o Ministério Público entrava em ação e nos ajudava. O fato é que reduzimos a evasão de 69% para 8%, com a ajuda do Acelera e da Avante.
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A Avante e o Acelera Brasil Eram mundos diferentes, mas que se completavam... Ambos contribuíram para mudar um quadro triste, que era a educação de Irecê. Tínhamos um monte de alunos que eram meros receptores de informação, antes da capacitação e que hoje são construtores, leitores. Nossos alunos hoje lêem, os professores também. Ler um livro era um tédio. Hoje a gente lê um livro assim, como se estivesse lanchando. Lê com prazer, com gosto, todo mundo lê. Hoje quando a professora não tem um momento de leitura na sala, os alunos cobram. Gente, nós não tínhamos isso. Teve aluno que leu 18 livros num ano.
As novas professoras, recém concursadas – O Currículo como “norte” Hoje temos os PCN em Ação e o PROFA que vieram, pelo menos, alimentar a esperança de que a gente não ia perder o ritmo. São projetos bons. Mas os processos de que participamos com a capacitação em serviço que tivemos, prepararam um chão tão bem preparado que quando os PCN e o ALFA chegaram não nos causaram nenhum impacto. Nós, que vivemos as duas situações. Mas o novato que passou em concurso ou o contratado recente estão passando dificuldades, em muitos casos. Na escola Paraíso, os professores que já estão mais preparados, dão suporte aos que estão enfrentando dificuldades. Eu, como diretor, faço questão de dizer que estamos num jogo em que um joga para o outro – quanto mais um acerta, mais o outro acerta. Basta que o professor tenha a humildade de dizer “preciso de ajuda”. O grupo ajuda, subsidia... Hoje também eu digo que o Currículo é o nosso suporte. Se antes tínhamos uma consultoria onde a gente podia se apoiar, hoje temos o Currículo, que discutimos, participamos e foi elaborado democraticamente pela consultoria, com representantes de professores, coordenadores, pais, direção, organizações da comunidade, por isso tem a cara de Irecê. Passamos um longo tempo estudando, foi um processo até exaustivo, às vezes, porque a gente tinha as outras atividades. Mas havia prazer porque a gente tinha um resultado. Por isso ele é hoje a 73
nossa referência, o nosso norte e nos ajuda no trabalho com o pessoal novo.
Projeto Escolas Parceiras Quero destacar o projeto Escolas Parceiras, que considero que talvez seja o mais importante e que rendeu muitos outros projetos: a partir do 3º ano, uma única escola passou a ser piloto, tanto de gestão quanto da área pedagógica. Neste ano de 98, nós fizemos uma proposta que 74
vimos na revista “Gestão em Rede”, do CONSED , UNDIME, UNICEF e UNESCO, que é uma publicação que trata só de experiências de direção de escola. E saiu uma que chamava “Parceria de escolas no Paraná” que nos inspirou. Nós criamos duplas de escolas e, no intervalo entre as reuniões mensais , uma visitava a outra. Na reunião, a escola que visitava apresentava a outra. A que fora visitada escutava a leitura que a outra escola fazia dela. Na zona rural uma diretora foi com todos os alunos visitar a outra escola e eles promoveram
73 Adalberto Lélis – eleito em 1996 e reeleito em 2000. 74 Conselho de Secretários Estaduais de Educação
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campeonatos entre escolas, correspondência entre turmas e isso gerou um movimento de interação entre os diretores muito importante para a reflexão de cada um e do conjunto e para a construção de uma rede, como pretendíamos. Serviu para desenvolver a solidariedade, quebrando o isolamento das escolas, especialmente as da área rural. Era importante a escuta. Todos ficavam ali, olhando para o próprio umbigo, os que achavam que estavam na pior situação do mundo, descobriam que não estavam e que os problemas eram semelhantes e, em lugar da competição, desenvolviam a cooperação, criando projetos comuns entre duas, três, quatro escolas. Esse projeto, que chamamos de “Escolas Parceiras”, criou uma dinâmica muito boa entre os diretores e continuou depois que nós saímos de lá. Eles se procuravam, um ajudava o outro... (Consultora Salete Silva)
“...Cheguei em Irecê no 2º semestre de 1999 para trabalhar na capacitação de gestores. O que mais me impressionou foi a visão dos diretores sobre a função que exerciam, o compromisso social que revelavam, a ação articulada com a comunidade, sempre, como uma marca do trabalho. Tenho vivido outras experiências de capacitação de gestores escolares, andando por este Brasil inteiro, como consultora do PRASEM, mas acho que os diretores de Irecê se diferenciam nisso. Eles têm consciência do papel social da função que exercem. Não descuidam disso. Também, quando cheguei já estavam em capacitação há dois anos... Articulavam-se com os Conselhos Tutelares para enfrentar o problema da violência, com a Delegacia. Fizeram projetos articulando a comunidade para o combate às drogas. Na maioria das escolas tinha uma série de iniciativas que se articulavam, iam surgindo das discussões coletivas, dos problemas que enfrentavam. O grupo era particularmente curioso e questionador. Muitas vezes difícil de se trabalhar porque ficava aquela turbulência, mas eram muito criativos e autônomos... Os diretores tinham forte liderança e exerciam o papel de fomentadores das políticas educacionais do Município... O projeto Escolas Parceiras gerou subprodutos muito importantes: tem a coisa de um ir conhecer mais a realidade do outro e contribuir, dar a sua leitura dessa realidade, de integrar, revelar o que era comum e fortalecer a identidade da rede. O projeto ia em busca de aproximar as escolas, uma ajudar a outra, numa rede de solidariedade mas, na verdade era uma outra rede que se ia fortalecendo, que era a própria rede municipal de educação. Era a identidade desta rede que se construía. Eu adorava pensar em Irecê, estar com aquele grupo. A viagem era cansativa, mas eu pensava naquele povo que eu ia encontrar e me emocionava. A gente trabalhava muito, voltava cansada, mas gratificada. Eles sonham, querem mais, não se contentam com a escola de pobre, vão à luta, articulam-se para obter doações, recursos, são bem informados: “se aqui no município não tem, vamos ver quem tem. E buscam parceiros,fazem projetos para tudo, põem uma biblioteca para funcionar na escola com o apoio da Fundação Bradesco que buscavam. Não ficam esperando que caia do céu. São inquietos para resolver as coisas. São muitos, assim: Edvan, Agnaldo, Carlinhos, Neide, Joaquim ...” (Consultora Ana Maria Buratto )
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Agnaldo, diretor da Escola Marcionílio Rosa (1999 e 2000), nove anos na educação: “...de 97 para cá começamos um estudo. Começamos a sistematizar e organizar todo o nosso trabalho, como a escola deveria funcionar, o que precisava para isto. Criar padrão mínimo – que a gente já pedia – o básico para que a escola tivesse condição de cumprir o seu papel. Então foi um trabalho de 4 anos em que a gente viu como significativo, principalmente 97, 98 e 99 porque em 2000 já não foi tão bom, foi atropelado. No início a gente tinha que fazer tudo porque não tinha nada. E fizemos toda a mudança que a rede precisava: como administrar uma escola, como lidar com os pais, os projetos, os documentos, tudo. Eu acho que acompanhei todos os encontros de capacitação, não tive falta. E a gente viu o nosso crescimento... até 96 a gente tinha uma secretaria com um secretário e os diretores nas escolas. Tudo a gente tinha que se reportar a ele e a questão pedagógica, cada diretor fazia o que sabia. Eu, por exemplo, só administrava baseado em preceitos religiosos... Tinha diretores que liberavam na hora que queriam, a escola não tinha horário certo ... Tinha diretor que chegava embriagado na escola... Não tinham compromisso com a comunidade. Gosto de gente, de trabalhar com educação, mudar o que não está dando certo, trazer a família para dentro da escola, fazer gestão participativa... gosto de fazer avaliação constante, senão os problemas crescem. Na minha escola eu faço assim, se tenho um problema com professor não deixo para depois, vamos resolver logo até para que eu possa olhar no olho dele sem estar com ressalvas. Não está legal, pára e recomeça dos eixos.... Esse trabalho de capacitação foi feito com respeito à individualidade e tudo que é feito com respeito às individualidades do outro tem frutos. A gente vê os frutos quando pega as estatísticas de evasão, repetência, então isso é glória. Nós temos condições meteorológicas que propiciam a evasão. Quando você vê um professor que era resistente às mudanças e hoje está numa sala de aula em constante ebulição, é um fruto deste trabalho. Então, começou um trabalho, gerou polêmica, como tudo que é novo, e hoje a gente vê a importância ... Gestão tem que ser aperfeiçoada e gestor tem que ser capacitado sempre. Tem que estar o tempo todo revendo prática, avaliando, criticando, aceitando críticas e vendo que o que a gente faz, se não tiver um aproveitamento pelos alunos foi em vão.
Para Edvan, ser diretor do Colégio Municipal de Angical, escola onde estudou, foi a primeira experiência em educação: “... Entrei na rede municipal em março de 1997, no primeiro encontro de gestores. Era tudo novidade para mim porque eu não trabalhava na área de educação. A situação da escola era triste, não tinha nem os registros dos alunos, tinha uma porção de pastas molhadas, a escola não era nada ...”. ... Havia um voto de credibilidade que a comunidade estava nos dando, com o aumento repentino do número de matrículas, atendendo aos apelos que fizemos. Resultados foram conseguidos em curto espaço de tempo... porque foi a sedimentação de um trabalho plantado no sócio construtivismo. Imagine a proposta de “construção do saber”, numa situação em que os prédios eram tudo o que existia na rede. Tereza Marcílio, Salete Silva, Marília foram parceiras para tudo. O projeto de capacitação em serviço foi de uma importância impar para esse movimento de transformação na educação. Hoje somos o que somos graças a ele ... A gente encontrou forças que não sabia que tinha. A situação era muito desafiadora e foi difícil mas, eu, particularmente, não imaginava que pudesse ser tão gratificante a experiência e tão importante para a minha vida profissional ...
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Mudança da rotina do diretor Tínhamos encontros periódicos e nos aprimorávamos tecnicamente, a respeito das normas da educação, das novas leis que estavam nascendo com a nova LDB, os parâmetros nacionais em fase de discussão. Havia mesmo uma necessidade de nos estruturarmos melhor. No início nos afligia aquela impossibilidade de dar conta de tudo: acompanhamento mais sistemático da prática do professor, contato com as famílias, inclusão da escola na sociedade e da sociedade na escola... os encontros regulares foram muito importantes. Desenvolvemos o projeto de Escolas Parceiras, para acabar com o isolamento, criou-se a cultura da ajuda mútua, que foi fundamental para a mudança.... e a elaboração de padrões mínimos para o funcionamento da rede, que era um sonho. Padrão mínimo de estrutura física, padrão mínimo de relacionamento com a comunidade, de conhecimentos para serem passados. E então fomos re-elaborando a nossa rotina, desde o chegar na escola, o relacionar-se com os demais funcionários, desde o momento da abertura da aula, passamos a acompanhar detalhadamente isso, algo que não era feito antes. Era cada um no seu canto e acabou. Passamos a nos preocupar com a escola como um todo. Assim como tiramos 8 horas para dormir, nós passamos a tirar uma hora para acompanhar o dia-a-dia dos alunos, uma para acompanhar a situação da família, uma para visitar os alunos que não freqüentavam, uma para ir buscar os que não freqüentavam porque tinham dificuldades, uma hora para elaborar as idéias e planejar a semana seguinte e para resgatar essa memória escrita que a escola tinha perdido ao longo dos últimos anos e aí nós passamos a nos organizar melhor, claro, com todos os imprevistos inerentes a uma escola. Passamos a funcionar como gerenciadores do ensino da escola como um todo... recebi uma escola com 292 alunos e no 3º pulamos para 613... Onde achar respostas? Os grandes desafios feitos na capacitação, logo no início eram as preocupações pela presença e pelo aprendizado dos alunos. Eram estes os principais desafios feitos na capacitação nos encontros com Marília, que nos deixavam mais confusos do que quando tínhamos chegado e foi isso que nos fez avançar – as interrogações que trazíamos e aquelas com que saíamos. Chegávamos com duas e saíamos com 200. Não tínhamos respostas para nossas perguntas. Elas traziam outras perguntas. E foi assim que houve crescimento. Passava noites pensando no passo seguinte ... Algumas coisas ajudavam também, o fato de ter sido aluno da escola que fui dirigir, conhecer bem a realidade... Os pais – como se aproximam em Angical Desde garoto fui subversivo com a educação, participei das greves pela melhoria da educação. A escola tinha que romper os muros, que não são só físicos, os psicológicos, da família, que tinha medo porque só era chamada para receber bronca, ver o comportamento do filho ser massacrado. Começamos a fazer oficinas com os pais, pequenos momentos de leitura, palestras, e não tratávamos do comportamento dos filhos. Passamos a investir na família, atraí-la para estudar na escola e criamos a turma noturna de jovens e adultos: pais de noite e filhos de dia. Envolveram-se, através da escola, nos programas de saúde desenvolvidos pelo município. Fazíamos mutirões enormes na escola. Vinham muitas mães e começamos a sentir falta dos pais que tinham filhos na escola. Fizemos uma pesquisa, com um questionário entre todos os pais da comunidade que tinham filhos na escola para saber o que eles mais gostavam
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de fazer nos finais de semana, Todas as turmas saíram para pesquisar. E os resultados foram meio imprevisíveis: jogar e beber eram o grande barato. Não desistimos. Eu disse: “vou transformar essa escola num grande cassino. Só não entra bebida, mas todos os jogos. Organizamos uma série de jogos. Um torneio com medalhas para os vencedores em cada categoria. Fiz uma ficha para os pais se inscreverem nos jogos de sua preferência e colocamos futebol de salão, sinuca, baralhos, dominós. Trouxemos nesse dia 171 pais e lá ficamos das 6 da tarde até as 3 horas da manhã. O pai que foi campeão da sinuca, quando foi receber a medalha, a lágrima corria pelo lado do rosto ... Passamos a acreditar nesse sonho possível e temos colhido muitos frutos. Necessitávamos dar alguns saltos de qualidade a nível de rede. O Currículo - “fincar o pé no chão” Veio a construção de um currículo unificado para a rede e foi um momento muito importante, quando a gente precisava discutir o futuro da rede, registrar os nossos sonhos, discutir a nossa realidade, consolidar metas para os próximos anos e até as questões regimentais, os regimentos que não tínhamos e passamos a discutir em comum: professores, coordenadores, diretores e sociedade. Nossa escola foi referência e passamos a receber um acompanhamento maior... O Currículo já nos permite sonhar com uma coisa mais sólida, transformar sonhos em metas alcançáveis. O Currículo, os projetos pedagógicos que as escolas passaram a traçar e realizar, aquilo que desejavam já não era mais uma utopia. Passamos para um momento bem novo, conseguimos fincar o pé no chão a partir daí para que novos passos sejam conquistados. Levamos um ano para elaborar o currículo. Eram encontros mensais, nós tínhamos tarefas para casa, por área de conhecimento, visão sistematizada da idéia, da fundamentação teórica, tudo isso discutido. Tínhamos encontros mensais e seminários quinzenais sobre a prática educativa sobre o dia-a-dia, sobre a estrutura e isso com tarefas para que a gente fosse construindo junto. Discutindo a nossa prática é que tiramos o documento que está nos guiando desde aquele instante. A escola mudou. Passou a funcionar tendo como centro o aluno. E isso é algo que o tempo não vai apagar... Agora é a consolidação daquele trabalho que se iniciou com a capacitação. Como diretor aprendi muito. A convivência com as consultoras, as professoras, coordenadoras me ensinou muito, tanto na questão da gestão quanto nas questões técnico-pedagógicas, no dia-a-dia da escola, na forma de me relacionar com meus professores. Passamos a acompanhar os seminários de educação, perdendo aquele medo de mostrar o que somos e o que fazemos. Foi um grande trauma no início. As pessoas tinham medo. O prêmio Itaú-Unicef é um grande orgulho para qualquer pessoa que vivenciou esse período na rede, antes e depois da chegada da Avante. Eu me senti realizado quando Irecê foi escolhido porque ali estava um fruto das nossas noites não dormidas.. A escola de Angical passou a ter valorização. O professor passou a receber o mesmo tratamento em toda a rede. São tão educadores uns quanto os outros. Trabalhavam para a construção do saber e não para a mera transmissão, uns como outros. Por que parte ficava pelo caminho? Nós passamos a construir significados para a educação e o prêmio que recebemos vem consolidar tudo aquilo que a gente esperava ...
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Mudando a sala de aula A adoção da pedagogia por projetos teve campo fértil em Irecê. Diversos projetos foram desenvolvidos, por iniciativa de professores com seus alunos, com colegas, com participação de coordenadores e diretores, dando sustentação pedagógica e operacional. Como as trocas entre professores, coordenadores e entre escolas faziam parte da estrutura da formação, um projeto que era desenvolvido por uma professora, por uma escola ou por um grupo de escolas gerava adaptações e ganhava corpo em outras unidades que viviam problemas semelhantes. Havia encontros fora dos horários de capacitação, grupo de leitura, as parcerias se multiplicavam. Essa interação era também construída e alimentada regularmente por um instrumento regular de comunicação, o jornal mensal Correio Escola, desenvolvido pela consultoria para socializar, informar e integrar os participantes da capacitação, estimular o gosto pela literatura, provocar a reflexão sobre temas atuais e relevantes de educação, significativos para a formação do educador, divulgar iniciativas das escolas, dos professores, refletir sobre o momento da educação em Irecê, no Brasil e no mundo. Com circulação voltada para os educadores das séries iniciais, depois estendida ao 2º e 3º ciclos, trazia regularmente dicas de títulos e também comentários do que Vale a pena Ler, ver, experimentar, divulgar: livros, filmes, vídeos e outras fontes de conhecimento e entretenimento. Dicas de programas, projetos, relatos de experiências educacionais de Irecê ou de qualquer ponto do planeta, textos de autores locais e iniciativas culturais do município e da região, entrevistas, conversas com pais e mães, relatos de atividade, artigos, cartas dos alunos e dos próprios educadores e gestores, impressões, dúvidas, perguntas inteligentes, etc. Foram editados, desde junho de 1997, bimestralmente, ao longo do desenvolvimento 75 do projeto. Um exemplar do Correio Escola é um rico testemunho do que pulsava e impulsionava o processo vivido na capacitação. Havia também um jornal editado regularmente pela Secretaria de Educação, dirigido ao conjunto dos educadores do Município, com o nome do programa da educação municipal Escola e Criança de Mãos Dadas. Esses dois veículos de informação constituem importante memória da história da educação de Irecê, do nascimento e crescimento de um trabalho singular na Bahia com seus muitos obstáculos e muitos êxitos que, em pouco tempo, instaurou uma nova cultura no ensino municipal, a partir do investimento na formação continuada das pessoas que fazem o cotidiano das salas de aula e das escolas.
Projeto “Êxodo Rural” A professora Jussara, docente da escola municipal Ângelo Marques Santos do povoado de Meia Hora, onde nasceu e cresceu, desenvolveu este projeto com seus alunos do grupo 10, que apresentou no “Trocando em Miúdos” em 1999. O problema que mobiliza a realização deste projeto,como deixa claro a professora, não pode ser resolvido pela escola,
75 ver nota n. 42
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mas, sem dúvida, não é possível que a escola não o assuma como tema para a construção de conhecimentos. É indiscutível que este tema, por ser a realidade cotidiana dos alunos das escolas rurais, sempre esteve dentro da escola, determinando a sensibilidade e povoando o imaginário das crianças, dos adolescentes e adultos durante as aulas, provavelmente transportando-os para viagens e portos bem distantes da atividade que estava sendo proposta pelo professor. É um projeto que foi iniciado em 1999, em 2000 fizemos novamente e este ano (2001) estamos recomeçando a trabalhar. É um projeto que a gente não pára porque, infelizmente, o problema continua... Foi socializado com o grupo 9, com uma colega minha e teve a ajuda de Edileuza, a coordenadora. Por ser zona rural, o único meio de vida da população é a roça. São poucos os que trabalham na sede. Quando passa o período de colheita, e começa a estiagem, não dá para manter todas as pessoas. Acabou-se o feijão, o mamão, tem que colher, o que vai fazer? Trabalhar de que? O único meio é sair pra outros lugares e procurar sobreviver. Então é um fato que já virou rotina para a gente. Eu fui vendo aquilo... tem vezes que a gente está na sala de aula e tem que parar a aula porque o ônibus vai para Minas, onde está tendo colheita. Chegou o ônibus e vão sair pais, irmãos de alunos, às vezes o próprio aluno, vão partindo e têm que sair naquele momento e não sabem quando vão retornar... Comecei a pensar que isso daria um bom projeto, que era preciso estudar essas questões, tão fortes na vida do povoado, dos alunos.... Pensar que para os nossos pais isso é visto como natural, normal: “é Deus quem quer assim” e aí rezam pra São José para a chuva voltar, fazem novenas e mais novenas, aquela coisa da fé, que o sertanejo tem muito, não é? Mas eu, como professora, comecei a estudar, a entender melhor da coisa, quis ficar mais por dentro, vendo que isso acontecia mesmo mas não era normal, natural. Nunca! Junto com Edileuza, pensamos um projeto de deslocamento populacional que também tinha no PCN ... A gente começou pesquisando na sala de aula: de onde é que cada aluno vinha? Sabíamos que muitos vinham de outros povoados, estados e regiões até. Começamos a questionar com eles. Por que vieram para cá? E as respostas eram as mesmas: “pró, eu vim porque meu pai tava desempregado”, “vim fugindo da seca”. Começamos a pesquisar por que isso acontece? Da pesquisa na sala fomos para a pesquisa dentro do povoado. Eles fizeram um censo para saber quantas pessoas tinham na comunidade, quantas famílias e quantos vieram de fora, de onde, por que. E sempre batia no mesmo que tinha dado na sala: paraibanos, pernambucanos, todos vieram para Meia Hora fugindo da seca. Nesse mesmo período, por já ter passado a colheita, os meninos se disseram: “pró, tem gente daqui saindo pra outros lugares. Por quê? Porque acabou a colheita e na cidade não consegue emprego”, que se torna mais difícil porque muitos são analfabetos – outro grande problema da zona rural. Então, eram pais, irmãos, tios dos alunos, todos saindo pra tentar fugir da seca... Começamos a acompanhar essas famílias. Às vezes percebíamos um aluno triste, perguntávamos por que:“Porque meu pai saiu hoje”.Íamos entrevistar a família em casa: para onde ele foi, se tinha emprego, quanto ia ganhar, se já tinha emprego certo, como é que a família tinha ficado, se tinha uma forma de sustento ou se ia esperar vir alguma coisa de lá. Isso era sistemático porque estava acontecendo sempre. Eles pegavam o nome completo da
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pessoa. Uma vez paramos porque ia sair um ônibus e a gente tinha que se despedir, às vezes iam até parentes nossos, de professores. Nós somos do mesmo povoado. Questionamento: por que será que todo ano acontece? Por que temos que herdar isso? Já não temos uma vida fácil. Por que não se tomam providências? O grande objetivo do projeto não é resolver o problema. É que eles tenham consciência de que o êxodo rural não é da natureza, não é “Deus quem quer assim”, como os pais da gente acreditam e eles também acreditavam. Perceberam que não é obrigatório viver desse jeito, que essa situação pode melhorar. .. Queríamos que eles vissem isso com um outro olhar ... Se chegasse alguém a gente ia entrevistar. Pesquisamos também quem chegava no povoado. De onde vinha? Se não desse pra ir lá, trazia a pessoa para a escola e entrevistávamos na sala. Surgiam informações que a gente nem esperava. Descobriam coisas que nem imaginavam. Faziam muitas perguntas. Recorríamos ao mapa do Brasil para localizar a região, o caminho que foi feito. Fomos conhecer a vida nesse estado de onde vinha a pessoa; Foram até a Rodoviária, levaram ofício. Procuraram saber quantos dias a pessoa levava viajando até chegar onde ia; calculavam a distância, procuravam saber como era a viagem. Discutiram as conseqüências desse deslocamento para a zona rural e para as cidades; fizeram gráficos da escolaridade dessas pessoas, pesquisando para saber me parece que só um, que veio de Barreiras e foi entrevistado na escola tinha o 2º grau completo. Ele disse que saiu embriagado, não porque seja cachaceiro, mas porque “estava deixando minha esposa e meu filho e não sabia como ia ser o futuro”... É uma realidade dura, mas é a realidade. E dava pra trabalhar e desenvolver aprendizagem em todas as áreas. Trabalhamos também várias músicas: Asa Branca, Triste Partida, A Volta da Asa Branca, Cidadão... eram meninos de 9 a 13 anos; fizeram uma dramatização “Seca Malvada”, onde retratavam o que acontecia. Eles soltavam os sentimentos, pela distância, o sofrimento, e a gente envolvia a família, e no final eles não tinham aquilo como uma coisa da natureza, normal do destino, mas como uma questão social, que ia continuar mas tem solução e que depende de decisões de governos, de políticas, de distribuição de renda melhor para o nordestino ... Acho que esse é o papel da escola, o papel político do educador: mostrar que as coisas não acontecem porque “Deus quer, porque é o destino” Acho que conseguimos o principal objetivo e aprendemos muito e a comunidade participou e se integrou mais. A verdade é que a gente se depara com coisa que pensa que está fazendo muito bem e da melhor maneira e vai avaliar descobre que não é a melhor, apesar de tentar fazer ... Valorizar o aluno como um ser. Não aquele cheio de gavetinhas, em que a gente ia embutindo um assunto aqui e outro ali. Começamos a ver o aluno com um ser que esperava algo muito bom da gente, mais que bom. ... A gente também se avalia, não como alguém que está trazendo tudo para o aluno, mas como guia que vai ajudar no seu crescimento. Acho que a nossa escola saiu do anonimato. O que me deixa muito feliz é que, quando eu estudava em Meia Hora, eu tinha vergonha de dizer ... e hoje tenho orgulho e os meus alunos também têm orgulho de dizer que são de lá ... quando estão no ginásio, fazem questão de dizer que estudaram em Meia Hora, que foram alunos da professora Jussara, da Professora Margareth, não é? Houve grande mudança: da valorização do ser humano, da valorização do povoado, do aluno, da professora, da gente não se sentir inferior porque é de escola de povoado.... O professor tem um papel muito importante: um médico pode estragar uma vida e o professor pode estragar várias de uma vez só e aos pouquinhos. ... Estamos continuando a tentar melhorar sempre.
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Projeto de Biografia – Aprendendo a historiar “O objetivo era resgatar a história dos meninos. Nesse projeto a gente envolveu a escola toda, a família, a sociedade. Descobri com os meninos que uns tinham registro e outros não. E eles estavam questionando. Aí surgiu a idéia junto com Edileusa (Coordenadora): a gente pensou, chamou os pais e falou do nosso objetivo. Era um projeto que só podia ser feito com a participação deles. Deixamos isto claro e eles abraçaram a causa, chegavam todo dia na escola pra saber o que precisava, como ajudar. Conseguimos fazer o registro dos meninos. Foi um projeto extenso. A gente trabalhou a história deles com a ajuda dos pais, de onde eles vieram, qual a ascendência. Começamos desde o aluno, pais, avós, bisavós e a gente escreveu a biografia, recuperando a própria história, os antecedentes. Mobilizou muito a todos e às famílias. Na reunião explicamos tudo. Eles se esforçaram muito. Foram buscar os parentes mais velhos, quem ainda tinha avós foi procurar, que já sabia a história da bisavó, que falava da tataravó e assim descobrimos a história de cada um. A gente tem o material e pensa em publicar um livro. Tinha três sem registro, começamos a escrever carta para São Paulo: um, o pai era separado da mãe, a criança morava aqui com a mãe e contamos que a criança precisava do registro. A gente tirou a identidade de todos os alunos. Escrevemos carta para promotores... Tinha pais que não sabiam o nome dos avós nem o sobrenome dos pais e aí a gente fez um resgate geral. Eles iam na escola e contavam o que sabiam da história deles e aí, pesquisando com os meninos, a gente ia buscar o restante da história e assim a gente conseguiu muito. Os meninos botaram os pais pra caminhar ... alguns pais chegavam e diziam: como vocês conseguiram isso, coisas que eu nem sabia? ... Teve pais que foram em outras cidades, ligaram para outros estados em busca de informação para saber de onde descendiam. Muitos descobriram que vieram da África, outros, do estrangeiro ...Dentro deste projeto a gente trabalhou todas as matérias, geografia para menino de 6 e 7 anos, trabalhando com mapa, a gente localizou os estados de onde vinham as famílias deles. Descobriram muitas coisas: bisavós que moravam em São Paulo, Rio – e procuravam saber como deixou sua terra? Como vieram parar em Irecê? ... Tinha pais que não tinham documento também e a gente ajudou a tirarem carteira de identidade junto com os meninos, o fotógrafo foi tirar foto na escola. Eu não sabia como trabalhar um projeto de biografia. Primeiro eu tive que descobrir a minha origem e a da minha família. Descobri que sou bisneta de índio, que meu avô veio da África, que meu pai é de lá de Salvador. Eu disse: Mônica, mas como é que eu vou trabalhar uma coisa que eu não sei? E ela disse: primeiro você tem que conhecer a sua história. Comecei lendo (com eles) biografias de pessoas famosas para eles terem noção do que a gente queria. E a gente conseguiu, não 100% porque não fez o livro (os meninos me cobram até hoje). Foi um projeto que me marcou e há um desejo de publicar... Estou fazendo esse projeto de novo, eu e as três professoras do turno da manhã e estou fazendo na escola Duque de Caxias (estou substituindo pró Jane no grupo 6, no outro turno). São quatro escolas ao todo. Uma coisa já consegui: o apoio dos pais Este projeto foi apresentado no seminário “A Cultura do Pensamento na Sala de Aula”, da Avante. Dentro desse projeto eu aprendi a trabalhar com todas as áreas. Matemática? Fomos ver a questão das fotos, calcular o custo de todas as fotos, quantos dias a gente ia levar para tirar as identidades de todos, quantas iam ser feitas por dia,.. Fizemos pesquisa em mapas. Por exemplo, se hoje a gente vai estudar a história da família de determinado aluno, a gente ia ao mapa ver de onde ele veio, onde ele está. Usamos mapas do Brasil, da Bahia, da cidade... (Professora Dilma – Escola Marcondes Batista Félix – Grupo 6 e 7 e Duque de Caxias – Grupo 6).
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Projeto Bibliotecas A leitura é um valor intrínseco à proposta de trabalho, nos projetos idealizados pela Avante, um fim em si. Agir intencional e sistematicamente para provocar o desejo de ler, o prazer pela leitura e desenvolver ações que enfatizem a funcionalidade e a necessidade da leitura são desafios primários do formador com seus professores e destes com seus alunos. Serem, eles próprios, leitores, é condição fundamental para cumprir este desafio. O que se testemunha em Irecê, massivamente, em todos os segmentos envolvidos no projeto, e nas falas reproduzidas neste livro – sejam de professores, desde a educação infantil, sejam de coordenadores, diretores, alunos, é uma transformação evidente na relação de todos com o ato de ler. Despertado o desejo de ler, a ação para concretizá-lo se multiplicou e não se pode mais falar de um projeto de formação de biblioteca, mas de muitos, surgidos do trabalho de formação continuada, na primeira sala-laboratório com a turma de alfabetização da professora Jane, acompanhada pela formadora Marília, e disseminado, adaptado, reinventado em cada sala, cada escola, para atender às suas necessidades, por iniciativa de professores, coordenadores, dirigentes escolares. São inúmeros os exemplos: leitura, como atividade permanente e envolvente desde as turminhas da educação infantil: leitura de poesia, recitais, música, convite aos poetas e escritores da cidade para irem à escola, leitura de todo e qualquer objeto que seja de desejo, desde os rótulos, as propagandas, leitura dos livros de literatura, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes e tantos outros. Ao formador cabe liderar, junto aos professores a construção da necessidade de ler e promover oportunidades para realizá-lo sistematicamente. Ao professor, o mesmo, com seus alunos, principalmente cuidando para não frustrar o caráter prazeroso da leitura e sim contribuir para alimentá-lo e expandi-lo, inventando os meios para isto. Tradicionalmente a escola não cultiva o interesse pela leitura, como também pela pesquisa. A adoção do livro didático como fonte principal para novos conhecimentos na sala de aula, freqüentemente exclusiva, ou de um livro de literatura que obrigatoriamente deve ser lido por todos os alunos da classe, a ausência de bibliotecas nas escolas e da diversidade de autores e obras acessíveis, o uso do “texto como pretexto” 76 para a aprendizagem de regras da gramática são práticas arraigadas, consolidadas. Estão apropriadas como práticas legítimas e como tais ganham força dentro de cada sujeito, que através delas aprende, segue na sua vida escolar, sobrevive. Mudar tais práticas supõe desejo, trabalho, tempo, competência, paciência, solidariedade, como tudo que mexe com os modelos mentais dos sujeitos, as atitudes e conceitos socialmente construídos que, de tão costumeiros, ganham ares e força do que é natural. Entretanto, uma vez superadas estas práticas em processos genuínos de questionamento que impliquem em novas exigências do sujeito na relação consigo próprio e com o seu meio, o retorno à situação anterior é improvável. É uma ida sem volta. Assim, partiram das formadoras as estratégias para provocar, instaurar e disseminar, como cultura, o hábito de leitura na rede municipal de educação de Irecê, como valor e atitude
76 Expressão usada pela formadora Marilia, citado por professores e coordenadores nas entrevistas realizadas.
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presentes nos procedimentos educacionais, nas relações da escola com pais e comunidade. E muitas ações nessa direção foram sistematicamente organizadas e implantadas por iniciativa das formadoras com os professores, os coordenadores, os gestores em processo de formação. Estas iniciativas, sempre articuladas a uma metodologia participativa, ao acolhimento e respeito às práticas de cada integrante, e sem perder de vista a construção da autonomia das escolas, foram sendo valorizadas e praticadas cada vez mais, tornando-se comum entre os diversos segmentos participantes dos processos de formação. Aos esforços das formadoras somaram-se muitos outros. Puderam se desvencilhar da tarefa porque as práticas estavam incorporadas, as estratégias apropriadas, reinventadas, desenvolvidas e melhoradas pelos professores, coordenadores e dirigentes nos seus contextos. Coube às formadoras a iniciativa para que se criassem círculos de leitura, grupos de estudos, outros espaços específicos, inclusive dentro dos encontros, para a leitura de textos literários, além dos textos teóricos e técnicos, coluna de recomendações de livros e de apresentação e comentários de obras técnicas e literárias no Correio Escola, estímulo e apoio técnico e operacional na busca de parceiros para a aquisição de acervos para as bibliotecas, gibitecas nas salas, nas escolas, e para o envolvimento dos professores, da escola e dos alunos nesse processo. Respira-se e transpira-se a leitura como uma constante dentro do projeto. As formadoras contribuíram especialmente para que as professoras aprendessem a construir situações didáticas, a partir do projeto e explorassem em sala, proporcionando aprendizagens de novos conhecimentos e práticas. Nas falas das professoras e diretores sobre bibliotecas são freqüentes as referências emocionadas sobre a motivação e a alegria das crianças escrevendo cartas para outras escolas, para editoras, etc. e com as respostas que recebiam dos distintos parceiros doadores e/ou interlocutores recebendo as respostas às suas cartas e em muitos casos doações dos parceiros. Abaixo, trechos da fala da professora Marcicleide sobre o projeto de biblioteca desenvolvido na Marcondes Batista Félix: “O projeto de biblioteca foi o que mais me emocionou. Os alunos vibravam com cada carta, cada livro que a gente recebia. No início achavam que as suas cartas não seriam respondidas e que a gente não ia receber livros e logo quando iniciou eles mandaram uma carta para a Editora Atica, que nos enviou uns cinco livros. Foi uma festa. Depois disso então é que eles se motivaram mais. Escreveram para a Avante, para outras escolas e hoje, na biblioteca da escola, eu acho que temos cerca de 1000 livros. A biblioteca se chama Cecília Meireles, nome escolhido por eles em votação. A gente sente uma saudade imensa de Marília (formadora que apoiava a professora). Ela enviava carta, mandava gibis, entrou em contato com outras escolas de Salvador e sempre mandava material ...”
Em entrevista realizada em 2001, Neuza Dourado, coordenadora na Secretaria Municipal de Educação de Irecê, e hoje Secretária de Educação do município de João Dourado, referindose ao projeto de capacitação continuada destaca: “...Os professores dizem que a gente pode classificar a educação de Irecê em dois momentos: antes e depois do trabalho de capacitação. Eu acho que uma das coisas bonitas que esse trabalho trouxe para cá, foi tornar os meninos leitores, os professores leitores, levantou o entusiasmo dos professores, o gosto pelo estudo. Hoje em Irecê eu sinto que o povo vive atrás de conhecimento. Ainda não vejo isso em outros municípios. A tradição é dar mais
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importância a consertar prédios do que investir na qualidade da educação. E também a questão da democracia na escola ... Eu vejo, nas escolas em geral, o diálogo com as crianças, professores que não resolvem nada de cima para baixo, sempre dialogam, levam o grupo a refletir, escutar, resolver o problema junto com a classe, e até junto com a família.. Não havia isto aqui, antes. Sempre foi tudo muito de cima pra baixo ...” (Neuza Dourado – hoje Secretária de Educação do Município de João Dourado – entrevista em julho de 2001)
“Nós tínhamos uma biblioteca ambulante, a cada encontro os professores trocavam livros, e não eram só livros técnicos, eram também livros de literatura. E com os alunos também. A gente fez um projeto na rede que era o Sacolão de Leitura, ainda não tínhamos bibliotecas nas escolas: umas sacolas com uma quantidade de livros era levada para a sala de aula e se reservava um momento para leitura. Foi o primeiro momento em que os meninos começaram a ter contato regular com os livros, contato físico, ter essa visão. Isso já foi fruto da sala laboratório de Jane 77, foi o primeiro momento de formação de biblioteca. Então lá a gente viu a necessidade das outras também terem isso. Marília estimulou muito e ajudou muito, inclusive selecionando livros para as classes iniciais. Começou em 97, melhorou em 98. Hoje, na rede, as escolas têm bibliotecas. A rede já tem essa cultura, como tem a cultura de trabalhar por projetos, e trabalham com autonomia” (Soraya Pinto Dourado – coordenadora de ensino da Séc. Municipal de Educação de Irecê – 1997/1999).
“Antes nós tínhamos um monte de alunos que eram meros receptores de informação e hoje a gente tem alunos construtores e isso é rico. É uma coisa que “pegou” muito, essa questão da leitura. Nossos alunos hoje lêem, lêem porque gostam, os professores também, nós não líamos, não tínhamos motivação para isso. Ler um livro era um tédio. Hoje a gente lê livro assim, como se estivesse lanchando, comendo uma pizza. Lê com prazer, lê com gosto, todo mundo lê. Hoje, no dia em que a professora não tem um momento de leitura na sala dela, os alunos cobram. Gente, nós não tínhamos isso. Teve alunos que leram cerca de 180 livros num ano...” (Diretor Aloisi Carlos).
“A gente fica feliz mesmo é quando vê um aluno de 6 anos preocupado com literatura, querendo conhecer a vida de Cecília Meirelles... passamos a ter nas escolas espaços de leitura, bibliotecas e os alunos começaram a ler, não o ler forçado para dar a lição fragmentada como era. Dava-se a metade do texto hoje e amanhã se voltava para dar o restante ... Por exemplo, uma menina de 6 anos de idade fazer a leitura da bíblia nos cultos que a mãe vai, isso num período de 4 ou 5 meses, uma aluna que chegou na escola fazendo garatuja, desenhando rabiscos no papel. Isso na zona rural, onde, antes, os professores eram os últimos a receber porque eram da roça, né?...” (Diretor Edvanilson)
Muitos outros projetos que foram realizados mereceriam referência. O trabalho por projetos tornou-se parte da rotina na educação de Irecê. O Projeto Reflorestamento e Preservação da Natureza por exemplo, desenvolvido na escola Francisco Nunes, povoado de Itapicuru,
77 Professora da 1ª classe – laboratório
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FORMANDO E TRANSFORMANDO EM IRECÊ
pelos alunos do Grupo 10 com a professora Sinelândia conseguiu transformar a atitude, não só dos alunos como também da comunidade na relação com a reserva florestal de Itapicuru, desenvolvendo o senso de responsabilidade com o ambiente e promovendo a preservação do solo e da caatinga. A mata era maltratada, depredada e a situação não é mais a mesma. Começou-se por limpar a mata, pesquisar e descobrir sua importância, sua beleza e seus problemas, buscar e encaminhar apoios e soluções. Hoje a escola conta com apoio dos ambientalistas locais – Grupo GAPA e outra consciência quanto ao meio-ambiente e nossa relação com ele; o Projeto Lixo no Lixo 78, desenvolvido nos Grupos 8 e 9 da Escola Municipal Duque de Caxias, por iniciativa das professoras Vera Cavalcante e Vera Dourado. A idéia partiu da necessidade de transformar a atitude dos alunos com o lixo na própria sala e ampliou-se para os bairros mais próximos, onde os alunos foram observar a limpeza e pesquisar os problemas, fizeram fotografias, mapeamento do que ocorria nas visitas, fizeram entrevistas, confeccionaram cartazes, panfletos informativos para a população; Projeto de 79 Correspondência , desenvolvido pelos alunos do Grupo 9 da Escola Municipal Luiz Viana Filho com as professoras Vandeilda e Dulcinéia, que surgiu da necessidade e da curiosidade de conhecer e manter contato com crianças de outros lugares, possibilitando um intercâmbio de novas amizades, socializando entre eles novos conhecimentos e desenvolvendo o prazer de ler e escrever e proporcionando boas oportunidades de aprendizagens, bem como o resgate da tradição do uso da carta, a preocupação com a clareza da mensagem para o leitor, a funcionalidade da escrita e da leitura, possibilitando a construção do conhecimento da escrita convencional através da revisão da própria carta; Projeto História do Bairro, desenvolvido na escola Marcondes Batista Félix, através do qual alunos e suas famílias resgataram a história do Loteamento Félix desde os primeiros moradores, quando a área era uma fazenda até as últimas casas. Os alunos foram às ruas, às casas dos mais antigos moradores e faziam entrevistas, como relata a professora Marcicleide.
78 Avante – III Seminário – “A Cultura do Pensamento na sala de Aula – Relato de Experiências Bem-Sucedidas” – texto de apresentação do projeto.
79 Avante – III Seminário – “A Cultura do Pensamento na Sala de Aula – Relato de Experiencias Bem-Sucedidas” – texto de apresentação do projeto.
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2 Formar para (Trans)formar O Modelo de Formação Continuada da Avante Mônica Martins Samia
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FORMAR PARA (TRANS)FORMAR
“ Não temos caminho novo, temos um jeito novo de caminhar.” Tiago de Melo
ENTENDENDO ESTE MOMENTO DE TRANSIÇÃO UMA INTRODUÇÃO AO PROBLEMA
“Não há nada de novo no ato de pensar. Mas a reflexão profunda que conduz a novos enfoques e a novos aperfeiçoamentos na prática é mais rara.” Michael Fullan
No contexto educacional, estamos vencendo um desafio que mobilizou as políticas públicas e a sociedade nas últimas décadas : democratizar o ensino. A escola para todos ultrapassou os limites da lei e progressivamente, passa a fazer parte da realidade brasileira com o aumento significativo das oportunidades de escolarização. Segundo estatísticas do MEC, em 1999, 96% 1 das crianças em idade escolar freqüentaram a escola. Esta é uma vitória que vem sendo conquistada cotidianamente, no interior de cada escola e na mobilização da sociedade que cobra e exije do poder público um compromisso cada vez maior com a garantia do acesso à educação básica da criança brasileira. A democratização do ensino é um desafio permanente, e cada índice percentual que representa a não-totalidade de crianças na escola é um indicador de que ainda há muito por fazer e conquistar. Entretanto, diante deste cenário, um novo desafio se instaura e passa a fazer parte do desejo dos “atores sociais” que fazem a educação deste país: a conquista da escola de qualidade para todos. Os altos índices de evasão e repetência que ainda persistem, a baixa qualificação profissional, os recursos escassos que são oferecidos às instituições de educação, fazem parte de uma rede sistêmica que ainda dificulta a concretização desta meta de qualidade. Observa-se ainda uma baixa qualidade na educação, resultado da multi-causalidade de fatores de diferentes naturezas, expressos nos índices de aprendizagem que revelam um resultado abaixo do esperado, na falta de interesse dos alunos, no currículo que muitas vezes desconsidera as reais necessidades dos aprendizes, portanto, é fundamental estar promovendo ações que possam minimizar ou se possível, resolver estas questões.
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Fonte: MEC/ INEP/ SEEC
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Uma das causas da baixa qualidade da educação, que será melhor analisada neste capítulo, está na deficiência na formação dos professores. As pesquisas apontam um consenso no que diz respeito à precariedade da formação inicial do professor, bem como a necessidade de uma formação continuada como inerente à natureza da profissão. Vista como uma ciência, a educação tem se caracterizado cada vez mais socialmente como um objeto de investigação, onde os processos de ensino e aprendizagem são analisados permanentemente e o papel do professor deixa de ser o de aplicar métodos e passa a ser o de decidir, de forma cada vez mais autônoma e reflexiva, suas ações. Diante da provisoriedade da ciência e das mudanças na sociedade, o professor necessita que a escola se constitua em um espaço permanente de reflexão e aprendizagem. Portanto, o papel de professoraprendiz está caracterizado neste novo perfil profissional. Mas o fato é que a maioria das escolas não tem um programa de formação interno que ancore a prática do professor e lhe dê subsídios para uma atitude mais reflexiva, consciente e segura. Desta forma, a criação de instituições públicas, privadas ou do chamado 3o setor no sentido de organizar equipes de formadores de professores, tem se constituído em uma alternativa importante para o fortalecimento e a melhoria da qualificação profissional, principalmente no que se refere à modalidade formação continuada, que se caracteriza por ser realizada no exercício da profissão. O modelo que será apresentado difere das ações de formação, que têm como base a concepção de treinamento, pois tem como pressupostos os princípios da teoria construtivista da aprendizagem e foi sendo construído e ajustado ao longo dos anos, a partir das pesquisas que vêm sendo desenvolvidas em relação à formação de professores e da própria experiência e reflexão permanente da equipe de formadores. Portanto, neste capítulo pretende-se identificar as novas demandas do profissional de educação, refletir sobre a necessidade de formação do professor e apresentar um modelo específico de formação – a proposta de Formação Continuada da Avante - como uma estratégia fundamental na melhoria da competência do professor e, consequentemente, na qualidade da educação; tecendo algumas considerações sobre seus impactos, limites e possibilidades. Este trabalho está focado no Programa de Formação em Serviço desenvolvido em escolas particulares de Salvador e na rede Sesi (Bahia) entre os anos de 1997 e 2001. No caso das redes públicas, se mantém algumas ações e são incorporadas outras, como a implantação de escolas-pilotos e salas-laboratório, a fim de se atender de forma mais efetiva as demandas que emergem . No 1o capítulo há uma descrição detalhada destas ações e de seus impactos. Para escrevê-lo, além do estudo das pesquisas que investigam o processo de aprendizagem do professor e alternativas de formação, foi essencial ouvir as “vozes” daqueles que participam do Programa de Formação Continuada proposto pela Avante, usando depoimentos escritos e orais, cartas ou gravação em áudio. Além disso, os documentos elaborados a partir dos conteúdos de formação como os planejamentos, reflexões, Diários
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de Bordo, que são utilizados nos encontros também se constituíram em materiais para análise e fundamentação das idéias aqui representadas. Nota-se que esta não é uma tarefa fácil! Primeiro porque ao mesmo tempo se está dentro e fora do processo, pois quem escreve tem o olhar do formador que faz parte do programa e o do observador que faz um exercício de reflexão sobre sua prática. Além disso, por mais que a pretensão deste capítulo seja de lançar apenas um olhar sobre a questão, muitas nuances deixarão de ser consideradas, pois qualquer ato de aprendizagem é extremamente complexo e envolve aspectos que escapam das possibilidades do investigador. Ao mesmo tempo, esta foi uma tarefa cada vez mais apaixonante, pois à medida que o caminho foi sendo traçado, mais amplo se tornava, provocando uma reflexão constante de que quanto mais sabemos, menos parecemos saber. É importante ressaltar que neste capítulo não foram analisados dois aspectos igualmente relevantes quando se trata de formação de professores. O primeiro refere-se à dimensão pessoal do professor. Esta análise foi abordada no 2O capítulo , que relata a trajetória de uma formadora e aprofunda esta questão. A segunda está relacionada aos fatores que refletem nos resultados do processo de formação, pois trata-se de variáveis externas, como reconhecimento social, profissional, como os planos de cargos e salários, tempo, condições econômicas, recursos materiais para o ensino, acesso aos bens culturais, etc. Estes fatores são específicos de cada realidade e, portanto, não é possível fazer uma análise global, pois corre-se o risco de generalizações inadequadas. Basicamente, relatos como este são relevantes porque é urgente reconhecer que o professor necessita de apoios e acompanhamento sistemático do seu trabalho para que possa compreender e enfrentar com mais segurança o processo de mudança dos paradigmas educacionais, a fim de que tenha competência para fazer a “transposição didática”2 entre o conhecimento teórico e a prática. Como a formação anterior à prática na maioria das vezes é deficitária e como o conhecimento prático do professor é um elemento importante para sua aprendizagem, torna-se necessário realizar trabalhos de formação permanente em serviço, buscando dar a ele o suporte necessário para exercer simultaneamente estes dois papéis: de professor e aprendiz.
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Este conceito, usado por teóricos como Chevallard e Brousseau, refere-se à capacidade de transformar o conhecimento teórico em conhecimento didático, utilizando-o em situações específicas.
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RESGATANDO A HISTÓRIA DA AVANTE A ideia de desenvolver um Programa de Formação Continuada, surgiu no início dos anos 80, a partir da experiência e dos estudos da prof. Maria Thereza Marcílio3, quando participava da coordenação de um programa de Integração da Universidade com o 1o Grau desenvolvido pelo MEC, junto às instituições de ensino superior e às redes estaduais e municipais, com foco na capacitação de professores. Este projeto envolvia ações de diferentes formatos. Um deles, mais conhecido na época, era o que se chamava de treinamento, que tinha como base a necessidade de atualizar o professor em relação às concepções teóricas e metodologias vigentes. Neste modelo, assim como na escola, o professor, no papel de aprendiz, recebia uma série de orientações que deveriam ser reproduzidas na sala de aula. O modelo de formação era um reflexo do modelo de ensino da escola. Mas foi um outro formato que despertou o interesse da professora Thereza. Um formato que parecia muito mais próximo às redes, que envolvia maior contato com os professores, e criação de ambientes de reflexão coletiva. Nas visitas feitas a instituições que realizavam estes projetos, os resultados pareciam ser muito melhores, pois havia uma proximidade e periodicidade maior e uma aproximação entre teoria e prática, sendo muito mais funcionais para o professor. Era visível a diferença entre estes, e os projetos montados na perspectiva de treinamento, em que os professores tinham encontros pontuais com os formadores e uma atitude muito mais passiva. No primeiro caso, apesar do envolvimento nos encontros, ao chegar nas escolas os consultores percebiam que os professores não utilizavam os conhecimentos adquiridos para transformar e melhorar a prática. Já no segundo modelo, a mobilização se instaurava no próprio ambiente escolar, envolvendo toda sua complexidade e portanto tinha um impacto maior na prática do professor. Em 1986, ao retornar à Bahia e iniciar um trabalho na rede pública municipal como Coordenadora do Programa de Ensino da Secretaria Municipal de Educação de Salvador, a prof. Thereza, tinha o desejo de implantar um programa de formação, a partir do modelo de capacitação em serviço. Nesta época, as pesquisas sobre a Psicogênese da Língua Escrita já eram bastante difundidas e os contatos com pesquisadores brasileiros e de fora do país apontavam para a necessidade de transformar a prática do professor em objeto de reflexão, de fazer o professor pensar sobre o que fazia. Com o desafio de organizar a rede municipal de Salvador e melhorar a qualidade do ensino, paralelo a outras ações de diferentes naturezas, como o organização do ciclo básico de alfabetização e uma re-alimentação da proposta curricular, organizou um programa de formação em serviço pioneiro no país, com encontros quinzenais, que contava com uma equipe central que se distribuía por regiões. As reuniões já tinham um foco nas situações-problemas, com momentos de referência teórica e de reflexão sobre a prática.
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Maria Thereza Marcílio de Souza é Coordenadora do Núcleo de Educação da Avante – Qualidade, Educação e Vida.
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As coordenadoras que faziam parte da equipe central reuniam-se para avaliar os encontros e planejavam os próximos. Além disso, visitavam as escolas para observar algumas salas e, naturalmente encontravam muita resistência, pois os professores tinham uma visão de que o papel da coordenação era de fiscalização e não de apoio à sua prática. Este modelo provocou a necessidade de instaurar uma nova cultura nas escolas, voltada para a reflexão sobre a prática. A partir da necessidade sempre presente de respaldo teórico, eram organizados seminários que aconteciam ao longo do ano para “alimentar” o projeto. Esta proposta resultou numa mudança profunda na rede, com a profissionalização dos professores, a partir de uma atenção e cuidado maior no que acontecia em sala de aula. Após o período na SEME (Secretaria Municipal de Educação), um novo projeto surgiu a partir da demanda que emergia das escolas particulares, que também tinham o desejo de instaurar programas de formação em serviço. Nesta época, em contato com profissionais de áreas afins que compartilhavam o desejo de atuar em trabalhos ligados à qualificação profissional, a Avante foi fundada, com o objetivo de atender às necessidades das redes públicas e privadas e de projetos desenvolvidos por outras organizações como o Unicef e fundações ligadas à área de educação. A partir das pesquisas sobre formação de professores e da experiência nos projetos públicos, montou-se um modelo de formação continuada, mantendo como base os princípios de reflexão sobre a prática. A esta primeira proposta foram incorporados outros recursos que vêm sofrendo ajustes, a partir das necessidades específicas de cada projeto, com maior rigor no acompanhamento do processo, maior objetividade nos instrumentos e flexibilização das ações a partir das diferentes demandas.
EVIDENCIANDO A NECESSIDADE DA CAPACITAÇÃO PERMANENTE NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR “Para se ser, tem que se estar sendo.” Paulo Freire
Vivemos, atualmente, um momento de intensa “ebulição” dos paradigmas educacionais. Ao se analisar o percurso histórico da educação, fica evidente que sempre houve este movimento rumo à produção de conhecimento. Mas este movimento esteve, por muito tempo, restrito à comunidade científica. Por outro lado, os professores estiveram permanentemente embasados, embora muitas vezes sem consciência disto, na produção científica que os “teóricos” produziam. Neste sentido, o saber docente esteve sempre fadado à defasagem, pois sua natureza é
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secundária, pressupondo um saber teórico que o antecede. Como a tarefa do educador é fundamentalmente prática e marcada pelo contexto, seus conhecimentos, consequentemente, adquiriram este caráter mais prático, ou seja, um conhecimento de natureza empírica, fruto de suas experiências cotidianas. O fato é que sempre houve um distanciamento entre aqueles que “produziam conhecimentos” e aqueles que “executavam tarefas”, a saber, pesquisadores, teóricos, de um lado e professores, de outro. Nas últimas décadas, porém, a teoria construtivista contribuiu de forma significativa na reelaboração da concepção dos processos de ensino e aprendizagem, entendendo que “aprender nunca é fazer uma cópia passiva ou uma reprodução da realidade, ao contrário, aprender implica uma elaboração pessoal, uma representação única do objeto de conhecimento, implica um processo de elaboração e reelaboração dessa representação pessoal” , e considerando o ensino como “uma ajuda ao processo de aprendizagem (...) a delimitação do ajuste dessa ajuda ao processo construtivo realizado pelo aluno como traço 4 distintivo do ensino eficaz” Em decorrência desse novo paradigma e das próprias demandas sócio-culturais do mundo contemporâneo, o papel do aluno foi questionado, deslocando o sujeito do lugar de receptor para o de produtor de conhecimento, entendendo o caráter dinâmico da aprendizagem. Como decorrência desta reflexão, outra questão se colocou: Qual é, então o papel do professor para que seja coerente com esta concepção de aprendizagem? Brousseau defende que “o trabalho do professor consiste, então, em propor ao aluno uma situação de aprendizagem para que elabore seus conhecimentos como resposta pessoal a uma pergunta, e os faça funcionar ou os modifique como resposta às exigências do meio e 5 não a um desejo do professor” . Esta mudança de paradigma vem acarretar uma crise na comunidade de educadores, visto que, a matriz desses profissionais esteve sempre muito ligada a princípios referentes à centralização, diretividade, comando, no que tange às relações; e no que se refere à didática, a uma prática reprodutora, executora, nos moldes de uma experiência pessoal e de uma formação inicial deficitária. Assim, o cenário educacional configura-se de modo geral por um quadro de profissionais que procura se apropriar das teorias de aprendizagem, mas que na prática sente-se absolutamente inseguro, pois estas novas demandas apontam um profissional crítico, reflexivo e, principalmente, produtor de conhecimento. A profissão de professor passa a exigir uma atualização constante, seu papel assume um caráter mais complexo, pois precisa organizar situações de aprendizagem efetivas, adequadas ao perfil dos alunos, e para isso é preciso ter um conhecimento profundo sobre o seu processo de aprendizagem. Mas, como atender a estas novas demandas? 4
COLL, César et alii . O construtivismo na sala de aula . 3. ed . Trad. Cláudia Schilling. São Paulo: Ática,1997 . 221 p . Tradução de “El constructivismo en el aula”.
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BROUSSEAU, Guy. Os diferentes papéis do professor. In. PARRA, Cecília (org.) Didática da Matemática: reflexões psicopedagógicas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. 258 p.
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É interessante ressaltar que esta pergunta nos remete a um princípio da concepção construtivista que indica que a aprendizagem se dá a partir de um problema real. Portanto, ao se deparar com essa necessidade de repensar e ajustar sua prática, ao procurar referendála teoricamente, ao se deparar com as limitações dos tradicionais manuais de ensino, o professor efetivamente depara-se com a necessidade de aprender. Mas enfrentar uma situação problematizadora não é algo fácil para uma geração que vivenciou a “pedagogia da resposta” 6; consigo mesmo, na medida em que sua tarefa era executar passos pré-determinados; e com o outro, no caso o aluno, já que sua competência estava vinculada a transmitir uma série de saberes, na dose e medida certas. Diante desta situação, a questão que se coloca diz respeito às ajudas possíveis, para que estes profissionais se assumam como sujeitos aprendizes e passem a ter uma atitude coerente, ou seja, muito mais voltada à construção do conhecimento. “Tivemos um conhecimento limitado com relação à Língua, matemática, artes e ciências e hoje nos encontramos em uma situação difícil. Temos que transformar os conceitos que foram incutidos de forma empobrecida e distorcida e ensinar aos nossos alunos de maneira totalmente diferente da que foi a nossa formação como estudantes. Estamos literalmente no meio de uma crise. Talvez a próxima geração de educadores se depare com essa questão de forma mais tranqüila e seja mais feliz do que nós. É gratificante saber que mesmo nessa condição somos “peças” importantes nesse processo pois foi a partir das nossas dificuldades, da necessidade de mudar, que se deu início à essa revolução didática.” ( depoimento da prof. Lígia S. Gomes/ 2001)
É imprescindível a tomada de consciência de que a tarefa pedagógica é extremamente complexa, e é assim que temos que encará-la”. Desta forma, muitas são as competências necessárias à formação do profissional de educação. O depoimento acima revela o sentimento do professor que se vê em pleno processo de mudança, consciente da necessidade de ajustes, analisando as dificuldades que encontra, mas consciente de que é “peça” fundamental e que, portanto, precisa estar engajado, caminhando para a construção de um novo perfil profissional. Perrenoud 7 faz uma análise deste perfil do educador em seu livro “10 Competências para Ensinar”, descrevendo-as como: Organizar e dirigir situações de aprendizagem Administrar a progressão das aprendizagens Conhecer e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação
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Este termo é usado por Meirieu para denominar uma pedagogia que se contenta em dar explicações. (MEIRIEU, 1998, p. 170 – 171)
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O conceito de competência é definido por Perrenoud como “uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles.”
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Envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu trabalho Trabalhar em equipe Participar da administração da escola Informar e envolver os pais Utilizar novas tecnologias Enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão Administrar sua própria formação contínua
Portanto, a profissionalização dos professores está na “ordem do dia” e se constitui em um grande desafio pois há urgência em superar a situação atual que como diz Gauthier “é caracterizada pelo paradoxo da coexistência, por um lado de um exercício muitas vezes cego do ofício, fundado em concepções errôneas, que levam a crer que basta ter talento ou bom senso ou intuição ou experiência, etc..., para ensinar corretamente e, por outro lado, de conhecimentos relativos ao ofício cuja utilidade concreta não é percebida pelos professores, que conseqüentemente, não os utilizam.” Nesta era de profissionalização, o professor necessita de pontos de apoio para que possa compreender melhor este novo cenário, a complexidade que o caracteriza, no sentido de avançar no desenvolvimento das competências. “A competência do professor é, pois, dupla: investe na concepção e, portanto, na antecipação, no ajuste das situações-problema ao nível e às possibilidades dos alunos; manifesta-se também ao vivo, em tempo real, para criar uma improvisação didática e ações de regulação. A forma de liderança e as competências requeridas não se comparam àquelas que exigem a condução de uma lição planejada, até mesmo interativa.” (Perrenoud , 2000)
É neste contexto que estão inseridos os programas de formação continuada, justamente como pontos de apoio para esta construção, que se faz cotidianamente, na atitude atenta, refletida e compartilhada da equipe de professores que atuam em escolas engajadas em se constituir em espaços de aprendizagem. “O aprender contínuo é essencial em nossa profissão. Ele deve se concentrar em dois pilares: a própria pessoa do professor, como agente, e a escola, como lugar de crescimento profissional permanente. Sem perder de vista que estamos passando de uma lógica que separava os diferentes tempos de formação, privilegiando claramente a inicial, para outra que percebe este movimento como processo. Aliás, é assim que deve ser mesmo. A formação é um ciclo que abrange a experiência do docente como aluno ( educação de base),como aluno-mestre (graduação), como estagiário ( prática de supervisão), como iniciante ( nos primeiros anos da profissão) e como titular ( formação continuada). Esses momentos só serão formadores se forem objetos de um esforço de reflexão permanente.” ( Nóvoa,2001, p. 14 )
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REFERENDANDO O MODELO DE FORMAÇÃO: PRESSUPOSTOS QUE SUSTENTAM A PRÁTICA “Dê-me um ponto de apoio e eu erguerei o mundo.” Philippe Meirieu
“Aprender é construir.” Elaborada a partir da concepção construtivista, a afirmação defende que “aprendemos quando somos capazes de elaborar uma representação pessoal sobre um objeto da realidade ou conteúdo que pretendemos aprender “ 8. Um programa de formação de professores que tem como base esta concepção epistemológica deverá estar organizado de maneira que favoreça experiências de construção e reflexão, pois é fundamental que a sua própria organização interna seja um modelo coerente com a prática pedagógica que se deseja estabelecer na escola. Este fenômeno, designado homologia dos processos é um “modelo de formação que consiste em experienciar através de todo o processo de formação, as atitudes, modelos didáticos, capacidades e modos de organização que se pretende que venham a ser desempenhados nas práticas pedagógicas com as crianças.” (NIZA,1993, p.30) Portanto, a forma como o modelo de capacitação da Avante foi construído tem como pressuposto básico o fenômeno acima citado e a partir desta compreensão ancora-se em uma série de fundamentos que lhe possibilitam uma coerência entre o currículo de formação e o currículo que se deseja concretizar na sala de aula. Para início de conversa é preciso falar de construção de vínculos. O primeiro passo para se instaurar um programa de formação continuada que pretenda usar como principal “ferramenta” a própria experiência do professor é estabelecer uma relação de confiança mútua. Portanto, a primeira grande tarefa do formador é criar espaços em que sejam favorecidas estas construções. E essa nem sempre é uma tarefa fácil, pois muitas vezes a instauração de um processo de formação continuada não parte do desejo ou da necessidade do professor. Na maioria das vezes é a instituição e não os professores que se mobilizam inicialmente. Por isso, a construção de vínculo supõe um processo de “sedução”. Vincular-se ao outro significa sentir-se seguro, confiante, solidário, motivado, pois no processo vincular é preciso abrir-se e correr riscos, ir em direção ao outro, compartilhar expectativas, comunicar-se. O estabelecimento de vínculos no processo de formação se dá em pelo menos dois âmbitos: na relação formador – professores e entre os professores.
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Somos movidos por uma série de sentimentos contraditórios e é assim que muitas vezes se inicia o processo vincular entre formador e professores. O formador pode representar uma ameaça, uma esperança, um apoio, uma perspectiva... Isso emerge através de reações diferentes entre os integrantes do grupo. É importante saber “ler” estas atitudes, investigar possíveis motivos e lidar com eles de forma produtiva, ou seja, compreender que este é um processo natural e até certo ponto esperado, para acolher estes sentimentos e monitorar o processo individual de cada integrante do grupo. Reconhecer as diferenças e atuar a partir delas é um desafio também para o formador. Em relação aos professores, o convívio não significa necessariamente a construção de vínculos. Se constituir em um grupo que compartilha idéias e respeita as diferenças, aprende com elas e cria um ambiente de confiança a ponto do outro se “expor” não é algo simples. É preciso que o formador tenha consciência deste processo e saiba utilizar estratégias que favoreçam um “clima” que seja mobilizador e ao mesmo tempo “confortável” para aqueles que estão levando sua prática para ser compartilhada com o grupo. Também é preciso levar em conta a experiência do professor. Toda ação é fruto de uma concepção teórica, assim, mesmo que não tenha consciência disso, o professor está reproduzindo um modelo que já faz parte da sua história, pois foi transformado pela sua experiência e suas crenças pessoais. Segundo Nóvoa, “a produção de práticas educativas eficazes só surge de uma reflexão da experiência pessoal compartilhada entre os colegas (...) O resgate das experiências pessoais e coletivas é a única forma de evitar a tentação das modas pedagógicas.” Nesta perspectiva , estimular o professor a escrever sua própria história ajuda-o a monitorar seu processo como profissional e aprendiz, a descobrir suas crenças interiores e dispara um movimento inicial de pensar sobre “o que faz, por que faz e como faz”, fundamental para a transformação de uma prática reprodutora para uma prática reflexiva. Enfim, o resgate da história pessoal do professor ajuda-o a situar-se, conhecer-se melhor, descobrir suas convicções e incertezas e posicioná-lo nesta condição essencial de eterno aprendiz. Utilizar a experiência do professor como uma referência no processo de formação é considerar um princípio da teoria construtivista sobre a aprendizagem que se refere à importância dos conhecimentos prévios dos alunos, ou seja, saber que nenhum conhecimento se constrói a partir do zero. Coll afirma que “quando o aluno enfrenta um novo conteúdo a ser aprendido, sempre o faz armado com uma série de conceitos, concepções, representações e conhecimentos adquiridos no decorrer de suas experiências anteriores, que utiliza como instrumentos de leitura e interpretação e que determinam em boa parte as informações que selecionará, como as organizará e que tipo de relações estabelecerá entre elas” 9 . Este é um dado fundamental para os professores-formadores, pois mais que respeitar a experiência do professor é necessário torná-la objeto de estudo, avaliar as razões para
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reações que às vezes são aparentemente de intolerância ou pura resistência. Quantas vezes não são colocadas “em cheque” práticas que fazem parte de anos da história do professor? É natural e até mesmo esperado que essas reações apareçam. Neste modelo de formação, os sentimentos gerados por estes momentos de verdadeiros “terremotos” são cuidadosamente analisados e considerados quando se planejam as situações de aprendizagem. “A principal ferramenta de trabalho do professor é a sua pessoa, sua cultura, a relação que instaura com os alunos, individual ou coletivamente. Mesmo que a formação esteja centrada nos saberes, na didática, na avaliação, na gestão de classe e nas tecnologias, nunca deve esquecer a pessoa do professor.” ( PERRENOUD, 2002. p. 176)
Assim, o professor-formador deve ter um entendimento da individualidade de cada professor, fazendo não apenas uma leitura apenas grupal, mas individual, estando atento a cada ação/reação, a cada fala que carrega uma concepção mais ou menos explicitada, e procura problematizar, instigar, apoiar, complementar as idéias prévias para que novos conhecimentos possam ser construídos a partir da socialização e da troca. Esta é uma atitude que difere em muito dos programas de “treinamento”, que têm um perfil de transmissão de uma série de conhecimentos que deverão ser colocados em prática pelos professores, independente da sua experiência pessoal. O modelo de “educação bancária” descrito e criticado por Paulo Freire também foi extremamente difundido nos chamados programas de “reciclagem” em que algumas práticas eram substituídas por outras mais modernas, sem que fossem discutidos os “porquês” e com uma voz única, a do capacitador. Na concepção construtivista, aprender não é fazer uma cópia ou reproduzir o objeto de conhecimento tal como ele é. Aprender significa reelaborar este conhecimento, a partir das experiências prévias do sujeito, do seu conhecimento de mundo, da sua representação pessoal. Por isso, no processo de formação do professor, é fundamental que se possibilite esta atividade mental construtiva. Uma das concepções mais fortemente evidenciadas no processo de formação refere-se ao erro. Partilhando as muitas histórias relatadas pelos professores é possível identificar o quanto a forma como esta idéia foi construída internamente facilita ou dificulta significativamente o processo de formação. Esta geração de professores busca uma referência diferente daquela que viveu, onde o erro era algo que deveria ser evitado a qualquer custo. Todo o trabalho do professor consistia basicamente em evitar que os alunos errassem. E agora, quando se deparam com um modelo de formação que assume o erro como parte inerente – e inteligente – do processo de aprendizagem é esperado que isso seja um motivo de muito conflito interno, gerando sentimentos e sensações que em muitos casos o professor não está acostumado a sentir, como a insegurança e a provisoriedade. Mas é justamente se deparando com estas situações que os professores mais crescem, pois têm oportunidade de vivenciar o papel de aprendizes e perceber sua complexidade.
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“Estabelecer essa cultura, esse entendimento de como se aprende, de como é esse professoraprendiz é muito importante, porque determina na sala de aula como as coisas vão acontecer, e é importante que o professor pense nele como aprendiz e como são as situações em que é colocado como professor-sujeito-aprendiz, porque se percebendo assim, ele começa a mudar a relação aluno-aprendiz. A capacitação é importante porque ela transforma esse lugar do professor que sabe tudo, que não falha, que não erra, para esse sujeito que sabe pouco, que se pergunta muito e que precisa entender o erro como um processo, para ter um outro olhar na sala de aula, com o seu colega, estabelecendo uma outra cultura. Esse é o grande ganho da formação, é o professor se ver de outra forma, incorporar a idéia de ser aprendiz. ( depoimento de Maria Teresa C. Brasileiro – diretora / 2001 )
Nos momentos de observação da sala de aula ou nas análises de vídeo o professor faz um exercício constante de perceber que não se trata de estar certo ou errado, mas que há uma série de elementos que precisam ser considerados e analisados para que a prática seja cada vez mais eficiente, considerando a singularidade e a complexidade de cada ato educativo. “Dizem que é bom a pessoa sentir angústia, pois prova que está havendo um movimento. A inquietação conduz à busca da acomodação (no sentido piagetiano), mas é uma sensação extremamente desconfortante.” (fragmento do relatório diário da prof. Lícia – 23/03/98)
“Pela primeira vez passo pela experiência de ter a minha aula filmada. Gostaria de expressar que a situação de filmagem me deixou a vontade, pois tenho claro que esta é uma situação de aprendizagem e crescimento profissional e que poderei contar com minhas colegas de trabalho, no sentido de intervirem construtivamente em minhas ações pedagógicas.” (fragmento da análise reflexiva da situação filmada. Prof. Luciane –2001)
Portanto, para que o professor aprenda efetivamente é necessário que esteja disponível, isto significa abrir-se para o desconhecido e desvendar o que está “por trás” do que é conhecido, realizando um movimento contínuo de reflexão sobre a prática. Um dos desafios mais importantes para que o formador garanta a participação e o envolvimento do professor no processo é a seleção dos conteúdos da formação. Estes conteúdos devem ser significativos para o professor para que ele tenha uma atitude favorável. Uma das formas de concretizar este princípio da significatividade dos conteúdos é quando se cria um ambiente em que o professor tenha autonomia para decidir que situação deseja que seja selecionada para ser tema das reflexões dos encontros . Dentro desta questão, outra que é igualmente relevante diz respeito à forma como estes conteúdos são tratados. Neste sentido, utilizar as “problematizações” tem se constituído em um meio de potencializar as aprendizagens, disparando discussões, socializações, enfim, desencadeando as reflexões.
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Meirieu afirma que “a situação-problema simplesmente põe o sujeito em ação, coloca-o em uma interação ativa entre a realidade e seus projetos, interação que desestabiliza e reestabiliza, graças às variações introduzidas pelo educador, suas representações sucessivas; e é nessa interação que se constrói, muitas vezes irracionalmente, a racionalidade.”10 Assim, o papel do formador não é o de dar explicações, mas fomentar a necessidade da explicação, usando a problematização como um motor que gera a necessidade de superar obstáculos, de aprofundar os conhecimentos de buscar novas perspectivas e referências, enfim de aprender. Uma das tarefas mais difíceis para o formador é justamente saber ser “guia e orientador” dos processos de ensino e aprendizagem dos professores de forma que ajude-os a ressignificar sua atitude diante do conhecimento e das indagações que esta busca gera. Se o formador não estiver atento para este aspecto corre-se o risco do “clima” dos encontros ser de disputa e não de cooperação, de colocações do tipo “isto está certo/isto está errado” e não de uma elaboração mais aberta que viabiliza uma reflexão coletiva, relativizando as situações. Aprender a partir de problemas evita uma análise superficial de uma determinada situação ou fenômeno, pois promove uma reflexão da totalidade, envolvendo uma série de procedimentos complexos como levantar hipóteses, analisar dados, buscar recursos para a resolução, estabelecer relações; assumindo a complexidade da questão. Segundo os Referenciais para Formação de Professores, “essa perspectiva metodológica renuncia a um currículo concebido como uma seqüência de ensinamentos em favor da aprendizagem .” No exercício da reflexão, os professores vão vivenciando situações de construção coletiva, onde a cooperação é um facilitador da aprendizagem. Desta forma o professor aprende, cada vez mais, atuar em equipe, sentindo-se co-participante e co-responsável pelas práticas da instituição. Isso o fortalece e ao mesmo tempo o compromete a não pensar apenas no “universo” da própria sala de aula, mas amplia sua visão para que compreenda e interfira na dinâmica da escola como um todo, contribuindo para que esta se organize de forma que não haja tantas rupturas e fragmentações. Um elemento que cada vez mais ganha força nas pesquisas sobre Psicologia Cognitiva também merece destaque como princípio que orienta as ações deste modelo de formação; trata-se da “gestão mental” ou “metacognição”. Segundo Tishman 11, “gestão mental é a atividade de refletir sobre os nossos próprios processos de pensar e avaliá-los(...) Pensar sobre o próprio pensar.” Monitorar seu processo de aprendizagem, localizando dúvidas, construindo “certezas” mesmo que provisórias é um fator que potencializa a construção de uma competência do professor que é defendida por Perrenoud, referente à necessidade de “administrar sua própria formação contínua”. Ciente do seu processo, o professor pode tomar decisões mais claras sobre quais são suas prioridades de estudo e aprofundamento, quais questões podem
10 MEIRIEU, Philippe. Aprender... sim, mas como? Trad. Vanise Pereira Dresh . 7. ed. Porto Alegre: Artes Médicas,1998. 193p. Tradução de “Apprendre...oui, mais comment”.
11 TISHMAN, Shari. Et alii. A cultura do pensamento na sala de aula. Trad. Cláudia Bucheitz. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. 243p. Tradução de “The thinking classroom: learning and teaching in a culture of thinking”.
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ser resolvidas pelo grupo, quais são os elementos externos que interferem no pedagógico e que precisam ser encaminhados, enfim, constitui-se como um sujeito cada vez mais autônomo, exercitando o “aprender a aprender”, podendo desta forma constituir-se no profissional permanentemente reflexivo - objetivo maior do programa de formação. “Um bom pensador é uma pessoa cuja mente observa a si própria.” Albert Camus
Por fim, há de se falar em proximidade. Estar próximo significa manter sempre uma marca de identidade entre formador e grupo de professores, que é constituída pela condição de aprendiz de ambos. Embora ocupem papéis diferentes, pois o formador problematiza, tece considerações, apóia teoricamente, orienta, encaminha, é fundamental que não perca a dimensão de sujeito que aprende, que pensa junto, compartilha seus processos pessoais, pois como uma referência para o grupo, também ensina quando fala do seu percurso, dos materiais que produz, das incertezas, das suas expectativas e receios.
EXAMINANDO AS ESTRATÉGIAS DE FORMAÇÃO QUE FAVORECEM O DESENVOLVIMENTO DAS COMPETÊNCIAS DO PROFESSOR REFLEXIVO Para saber se a água de um balde está quente ou fria deve-se meter a mão no balde. De nada servirá a discussão, por mais brilhante que possa ser. Sabedoria Zen
O modelo do Programa de Formação Continuada desenvolvido pela Avante tem como princípio o desenvolvimento do profissional autônomo e reflexivo. Muitos, e de diferentes naturezas, são os conhecimentos necessários para a formação do professor, assim, por mais adequados que sejam os programas de formação, eles têm um limite de atuação e impacto na competência do professor. Mesmo considerando a complexidade deste processo, é possível avançar significativamente e atuar para (trans)formar. Assim, o Programa de Formação Continuada da Avante tem o seu currículo baseado em três aspectos centrais: conhecimento da estrutura da matéria conhecimento didático conhecimento do sujeito
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A seguir, um detalhamento de cada um destes aspectos:
O CONHECIMENTO DA ESTRUTURA DA MATÉRIA
Um dos grandes desafios e limites do programa de formação refere-se às lacunas referentes à estrutura da matéria. Ao traçar um diagnóstico inicial dos grupos de professores não é raro observar que muitas dificuldades são geradas justamente porque o professor não tem “domínio” sobre o objeto que vai ensinar. Em relação à escrita, por exemplo, por mais que o professor se aproprie das pesquisas ligadas à área da didática, não conseguirá organizar boas intervenções e dar as “ajudas” necessárias aos alunos, se não dominar este processo. Esta é uma questão dilemática e é objeto de muita análise por parte dos formadores. A relação que o professor tem com os atos de leitura e escrita (muitas vezes de distanciamento e resistência) são indicadores que o programa de formação precisa prever situações de sedução e envolvimento, para que o professor possa se interessar por este objeto que é parte integrante do seu ofício. Embora contraditória, esta é uma situação real, que não ocorre apenas com as questões ligadas à leitura e escrita, mas também em relação às demais áreas. Estas variáveis são analisadas pela equipe de formadores, que pode inserir, nas ações previstas, momentos em que estas questões sejam minimizadas ou discutidas. Algumas das situações propostas são: a instauração de círculos de leitura entre os professores, a leitura de textos de circulação social no início dos encontros, a organização de outros eventos de letramento como recitais de poesia, a indicação específica de livros e fontes para tirar dúvidas e as oficinas que propõem situações de escrita/leitura. Neste caso específico, é importante que os professores tenham oportunidade de entender melhor a natureza destes atos, ou seja, tomar consciência do que eles mesmos fazem e explicitar os saberes que já possuem implicitamente e que entram em ação quando lêem ou escrevem. Em um registro reflexivo, Margarete, coordenadora pedagógica de uma das escolas do Sesi, faz a seguinte análise: Hoje o grupo de professoras, do turno matutino, teve oportunidade de discutir sobre uma das questões mais delicadas que um profissional pode se debruçar: o que sei sobre aquilo que pretendo ensinar? A princípio, silêncio geral e a pergunta: o que significa tal comportamento? Estão concordando, discordando ou refletindo sobre o que está sendo dito? Alguém ousa quebrar a monotonia. Uma fala, depois outra e outra,... Todas vêm tecendo o mesmo caminho – o da necessidade de neste momento, centrar-nos no estudo dos conteúdos os quais pretendemos ensinar. Ainda há aquelas que nada falam, mas que concordam com a maioria, segundo diz o ditado.
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Agora saímos desta amigável conversa com sentimentos diversos. Algumas estão paralisadas com a constatação deste fato, outras parecem mobilizadas a arregaçarem as mangas e ir em busca da superação dos obstáculos. Enfim, hoje sabemos que não basta apenas admitir que muito precisamos estudar (como já fazemos há muito tempo) temos que efetivamente ir em busca de alternativas para diminuir nossa deficiência. Neste momento vale tudo: estudar sozinha, estudar com o outro, estudar com os outros, estudar, estudar...
O CONHECIMENTO DIDÁTICO
Os problemas que os professores enfrentam no seu dia-a-dia estão ligados ao ensino e à aprendizagem, portanto, no programa de formação, os conteúdos mais significativos estão relacionados ao conhecimento didático que é construído para resolver problemas específicos da comunicação do conhecimento. Segundo Brousseau, “a ciência didática é o resultado do estudo sistemático das interações que se produzem entre o professor, os alunos e o objeto de conhecimento. É o produto da análise das relações entre o ensino e a aprendizagem de cada conteúdo específico, se elabora através da investigação rigorosa do funcionamento das situações didáticas” 12. As questões que os professores elaboram são muitas vezes de natureza didática: Que atividades posso fazer para que as crianças aprendam determinado conteúdo? Qual fazer primeiro? Como organizar uma sequência? Se os alunos estão discutindo tal questão, como devo intervir? Qual é a intervenção mais adequada quando os alunos cometem determinado erro? Como organizar a s situações de aprendizagem, considerando as diferenças? Foi através da escuta atenta a estas questões, que as pesquisas ligadas à formação evoluíram para um formato mais próximo à prática, pois é através da reflexão das situações de sala de aula que é possível discutir, mais contextualizadamente, as questões didáticas. Assim, os professores têm oportunidade de discutir e se apropriar dos conhecimentos que lhes permitam lidar com as condições didáticas das propostas planejadas, com a maior segurança possível, na medida que foram previamente estudadas e cujos efeitos são conhecidos porque foram aplicados mais de uma vez em diferentes contextos. Portanto, não há receitas, mas sem dúvida há caminhos que são indicados pelo conhecimento didático de cada área.
12 BROUSSEAU, Guy. Os diferentes papéis do professor. In. PARRA, Cecília (org.) Didática da Matemática: reflexões psicopedagógicas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. 258 p.
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O CONHECIMENTO DO FUNCIONAMENTO DO SUJEITO
Os professores estão ávidos para saber como fazer. Como já afirmamos, esta é uma atitude previsível e até certo ponto esperada, pois tanto a formação inicial quanto a própria experiência recente apontavam para uma competência ligada muito mais à execução de postulados metodológicos do que à produção e reflexão do fazer pedagógico, pautado no processo de aprendizagem do sujeito. A partir das idéias da teoria Construtivista, emergiu a necessidade de compreender cada vez mais como a criança aprende, pois este se tornou o ponto de partida para se compreender a “revolução” que ocorreu na didática a partir de então. Podemos afirmar que o que diferencia o professor que continua repetindo um determinado modelo, ou porque não dizer, seguindo as tendências da “moda”, de outro que pergunta porque se faz, é justamente sua compreensão do funcionamento do sujeito, determinando os caminhos da didática. “Precisamos reconhecer cada vez mais como as crianças funcionam, recorrendo a Wallon, descobrindo seu corpo, cada faixa etária, o ser integral e como as crianças lidam com as questões que a vida lhe proporciona. Esse conhecimento seria mais um obstáculo? Assim o nosso ambiente poderia ser repensado, respeitando o modo de ser de cada um. Um ambiente flexível onde muda-se a forma. Buscando um olhar relativo, nunca extremos. Ter um olhar relativo seria mais um obstáculo?” ( fragmento de um relatório da prof. Andréa/ 2001)
Neste contexto percebe-se o quanto a teoria é alimentadora da prática e quanto é desafiador para o professor realizar a “transposição didática”. Saber como e por que fazer sintetiza uma competência global que os professores envolvidos em processos de formação têm buscado constantemente. Por isso, a formação continuada precisa ter um modelo onde o trânsito entre teoria e prática, saber fazer e saber por que fazer, seja facilitado. Este é o desafio!
MODELO DE FORMAÇÃO CONTINUADA DA AVANTE O modelo, relatado neste contexto, é constituído por ações específicas e complementares. Como visa atender as demandas de cada instituição, de alguma forma é feita uma “personalização” de cada proposta, através de uma avaliação criteriosa do perfil, do histórico, dos objetivos e das expectativas da instituição em relação à formação. De maneira geral as propostas se organizam em três ações básicas:
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1. Seminários e Encontros de Alinhamento Conceitual 2. Encontros de análise e reflexão sobre a prática: 2.1. Análise da prática com o grupo de professores da escola 2.2. Observação de sala de aula 3. Reuniões com a equipe de coordenação pedagógica
1. SEMINÁRIOS “Nada mais prático que uma boa teoria”. A primeira ação deste modelo de formação é a realização de Seminários Iniciais de alinhamento conceitual. Esta ação consiste em possibilitar reflexões sobre uma questão que será aprofundada no decorrer do semestre. Por exemplo, se naquele período os encontros de formação terão o foco na área de Língua, haverá um Seminário específico desta área. “(...) é impossível contentar-se com uma formação restrita no “campo de ação”. Se é forjando que se torna ferreiro, para forjar é preciso ter compreendido, por menos que seja, o que implica o mínimo de deslocamento e de distância necessário para “domar” a tarefa.” HADJI, 2001, p. 16 (Revista Presença Pedagógica)
Embora o objetivo seja alinhar o grupo conceitualmente, a forma como os seminários são organizados está ancorada nos pressupostos teóricos de formação descritos nos “Pressupostos que sustentam a prática”. Portanto, não se trata de uma exposição de conhecimentos, mas de situações que ajudem o professor a identificar quais são as teorias que sustentam sua prática, além, é claro, de ampliar seus conhecimentos. Em alguns casos, principalmente no início do processo de formação, há Encontros de Alinhamento Conceitual regulares que variam de 4 a 8 horas, uma vez por mês. Assim como os Seminários Iniciais têm por objetivo proporcionar momentos de ampliação do referencial teórico que sustenta a prática, definindo temas específicos de reflexão. Estes encontros são muito significativos principalmente em contextos em que a cultura do estudo sistemático não está instaurada. Abaixo, um exemplo do planejamento de um encontro de 8 horas com uma equipe de professores que havia iniciado o processo de formação há 2 meses:
ENCONTRO DE ALINHAMENTO CONCEITUAL SESI CIA - SIMÕES FILHO-BA 05/10/2001 Professores de Educação Infantil e Ensino Fundamental – Nível I TEMA: LÍNGUA ESCRITA
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Acolhimento: A partir do número que tirou no sorteio, escreva um bilhete para a pessoa correspondente: Hoje gostaria de lhe dizer... (escrever o que desejar para esta pessoa, expressando seus sentimentos, etc.) Entrega dos bilhetes e leitura pelas pessoas que quiserem compartilhar. Comentários sobre nossas reações diante do texto que nos foi escrito. Introduzir o tema do encontro. Disparador: Fazer um registro pessoal: Na minha vida... Que sentimentos me vêm à mente quando penso em escrever? Quais foram as situações prazerosas de escrita? Quais foram as situações de escrita que não foram significativas e que causaram um “afastamento” da escrita? Socialização das respostas no flip, anotando também os motivos que estão associados ao prazer e ao desprazer. Exposição participada: Transparências: O que se escreve na vida - O que se escreve na escola - problema didático (estabelecer relações com as questões da reflexão inicial) A complexidade da escrita e os aspectos que precisam ser considerados para o planejamento de boas situações de produção de textos: - Decidir o tema e a situação de escrita - Estabelecer claramente a finalidade da escrita - Decidir o destinatário do texto - Conhecer as características do texto Trabalho em grupos Distribuir 4 orientações didáticas sobre situações de aprendizagem neste eixo para que o grupo discuta a pertinência; justifique porque é uma boa situação de aprendizagem e pense nos ajustes necessários para realizá-la. Socialização.
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Exposição participada: Etapas de produção de textos: - Planejar - Produzir - Revisar Trabalho em grupos: Com a aproximação do Dia dos Professores, gostaria que vocês escrevessem textos com o tema: Quem sou eu, professor? Os grupos devem se organizar da seguinte forma: - 2 pessoas produzindo - 2 pessoas observando Caberá aos observadores anotarem de que forma as produtoras se organizam para escrever: que decisões tomam, que dificuldades enfrentam, o que fazem primeiro, como é o percurso da escrita, etc. Cada grupo escreverá um tipo de texto diferente, que será sorteado: - Carta para mandar aos outros professores das outras escolas do Sesi - Notícia para ser enviada ao jornal do Sesi - Receita para mandar aos professores de Coroatá-MA - Manual de instruções para os professores da rede pública de Simões Filho - Propaganda para ser divulgada aos pais Após a produção, fazer uma troca entre os grupos para que façam uma revisão do texto. Socialização dos textos e discussão sobre os aspectos observados. Avaliação do encontro: Escrever um bilhete para o colega sorteado contando o que ficou de mais significativo do encontro. ( A formadora deverá ressaltar as diferenças na função do 1o bilhete e deste último) Texto de apoio para o grupo (xerografado): A escrita como produção de texto – cap. 15 Escrever e ler – vol.1
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Além destes seminários e dos encontros de alinhamento que geralmente acontecem no início e no decorrer dos semestres escolares, também são organizados seminários que são apresentados pelos professores da instituição. Estes são realizados no final dos semestres e são fruto dos estudos que fazem de um livro indicado pela Avante. Esta ação visa possibilitar a socialização dos conhecimentos, bem como promover um momento em que o professor possa realizar a “transposição didática”, estabelecendo relações entre o que leu e a sua prática. Para isso os professores são orientados no sentido de organizar um seminário que também considere os princípios construtivistas e que revele de que forma estes conhecimentos teóricos “alimentam” e subsidiam sua prática. “Para mim a realização dos seminários é muito importante pela oportunidade de ler um livro, de discutir, de debater com todo o grupo. Não que a gente leia só o livro do seminário, a gente lê outros, mas pela questão do tempo, do corre-corre, é bom que a gente pare, que tenha esse momento com este objetivo de troca. As pessoas se encontram e realmente debatem sobre a teoria e a prática.” ( depoimento da prof. Olívia / julho 2001)
“O bacana é a construção mesmo da idéia do seminário. O que nós pensamos no primeiro encontro não foi o apresentado aqui. Foi uma construção entre os momentos individuais e os de grupo, foi um momento de muito crescimento para o grupo, tem o “dedo” de cada um. Nosso objetivo não era apresentar um conteúdo, mas moblizar, botar nossa cabeça para pensar sobre o novo.” ( depoimento da prof. Tatiana / Julho 2001)
O estudo sistemático é um componente fundamental na formação de professores. A implementação de uma cultura de estudo e pesquisa na escola é fundamental para que o professor esteja ampliando sua competência de gerenciar seu processo de formação, além de desenvolver a “autonomia intelectual”, ao mesmo tempo que favorece o intercâmbio de idéias e a cooperação. “Um dia estava com dúvidas sobre a escrita e Rita emprestou-me um livro. Eu li e achei muito importante; um crescimento profissional para mim e minhas colegas e resolvi preparar um seminário para apresentar para elas. Foi muito bom, de acordo com minhas capacidades; mas toda essa coragem foi por causa de vocês, da capacitação que foi uma das melhores coisas que aconteceram na minha vida profissional e pessoal.” (depoimento da prof. Josenice Araújo – Sesi Coutos/ julho 2001)
Um dos movimentos importantes promovidos pelo programa de formação é possibilitar que o professor esteja envolvido em atos de aprendizagem. Assim, por exemplo, ao estabelecer relações entre suas experiências como aprendiz e a de seus alunos, passa a entender melhor como este processo acontece, os obstáculos enfrentados e as diferentes atividades cognitivas que são colocadas “em jogo” na aprendizagem. “Quando a Avante, com seu modelo de capacitação dava-nos um livro para ler e apresentar; no início tive muitas dificuldades para entender o que estava lendo e fazer relações com outras leituras, pois as primeiras leituras que tive foram as que vocês trouxeram (...) Foi então que eu
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resolvi mudar, eu precisava ler para entender como ajudar meus alunos e entender como eles aprendem e então fiz uma rotina na minha vida, onde coloquei o horário fixo para estudar e não só os livros do seminário, mas outros também.” (depoimento da prof. Josenice Araújo – Sesi Coutos/ julho 2001)
A realização dos seminários incorpora a cultura do estudo na escola estimula a formação de grupos de estudo que ocorrem independente dos encontros de formação. Assim, o princípio de “formação para a autonomia” se concretiza, na esperança que cada vez mais o professor possa apropriar-se dos saberes necessários à sua profissão, percebendo-os como provisórios, e portanto, necessitando de constante atualização. A forma como o seminário é organizado pelas equipes de professores também é um indicador do crescimento do grupo. O entendimento de que não se trata de apresentar o conteúdo do livro, mas fazer um exercício de reflexão e de relação entre a teoria que “alimenta” a prática é uma construção que demanda um certo tempo e experiência. Inicialmente, na maioria das vezes eles têm um formato muito mais expositivo, baseado num modelo de transmissão de conteúdos. Mas a vivência e a relação que vai se consolidar dos processos de ensino e aprendizagem fazem com que os professores encontrem formas extremamente criativas e construtivas para realizá-lo. “Hoje há uma preocupação de estar trazendo estas “leituras” para realmente mudar a nossa prática. Quando o seminário saiu do lugar de que a gente iria ler o livro para apresentar e começamos a ter um olhar para este livro como uma referência de mudança ele tornou-se mais funcional, mais significativo e prazeroso.” ( depoimento da prof. Sandra / Julho 2001)
2. ENCONTROS DE ANÁLISE E REFLEXÃO SOBRE A PRÁTICA “Nada podes ensinar a um homem. Podes apenas ajuda-lo a descobrir coisas dentro dele mesmo.” Galileu Galilei
Esta estratégia se constitui na ação mais importante da modalidade de formação que considera o caráter eminentemente prático da profissão docente. É fundamental favorecer o desen-volvimento da atitude investigativa e reflexiva , permitindo ao professor um “olhar” sobre sua prática, transformando-a em objeto de estudo. Uma das formadoras da equipe da Avante e coordenadora dos projetos de formação afirma que: “O que move o professor a mudar é a reflexão da prática, embora ele custe a acreditar que isso funcione (...) A teoria apenas não é suficiente, só funciona se de fato estiver muito ligada à prática servindo para iluminá-la e para voltar a ela através da própria prática.” ( Thereza Marcílio – coordenadora e consultora da Avante )
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Segundo Telma Weiz, a tematização da prática segue a direção contrária à visão aplicacionista de formação de professores, na medida em que propõe um desvelamento da teoria que subjaz e sustenta a prática, a partir da reflexão da própria prática. “A tematização da prática está diretamente vinculada à concepção do professor reflexivo, que toma sua atuação como objeto para reflexão. Ser um professor que pensa e toma decisões é ser um professor que desenvolve o “saber fazer” e a compreensão do “para que fazer”, articulando a reflexão sobre “o que”, “como”, “para quê” e “quem” vai aprender, de forma a garantir a seus alunos o acesso a boas situações de aprendizagem. Para planejar intervenções didáticas pertinentes e de qualidade, é preciso interpretar e analisar o contexto da realidade educativa.” ( MEC -Referenciais de Formação de Professores. 1999 .P.109)
Esta tematização ou reflexão sobre a prática, pode ser feita a partir de documentos como produções dos alunos, planejamentos; por uma problematização elaborada por um professor sobre uma situação prática; pela observação da sala de aula ou pela gravação em vídeo. A seguir, um detalhamento destas possibilidades:
2.1 Análise da prática com o grupo de professores da escola Periodicidade: quinzenal
Não é fácil encarar mais um turno na escola!... Às vezes este já é o terceiro! É desta forma que geralmente os grupos de professores se encontram para refletir sobre a prática a partir de um fragmento de uma situação vivenciada por um dos professores, através do vídeo. De um lado, medo, angústia, desconforto, ansiedade, coragem, abertura, às vezes até uma certa tranqüilidade! Este é o retrato da professora filmada. De outro, professores redimensionando sua concepção de erro, de avaliação, afinal, não estão ali para julgar ou dar nota ao colega, mas desejam aprender com a prática do outro, que na maioria das vezes reflete a própria prática. Um se vê fazendo, Outros vêem o outro fazendo. “Nenhum educador, voluntariamente, vê a si mesmo como de fato é, pois ele tem medo de alterar sua imagem de si, de ter vergonha e, talvez, deseje compreender porque vai ao encontro de seus próprios valores, de mergulhar em seu passado (...) A tomada de consciência passa por um trabalho sobre si e obriga a superar resistências mais ou menos fortes, eis que apenas impõe precauções, um método e uma ética. É importante favorecer a tomada de consciência, sem mais violentar as pessoas ( ou pelo menos ter a intenção de) .” (PERRENOUD, 2201, p. 164)
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Esta combinação de papéis entre os professores – como sujeitos da ação e aprendizes – permite a instauração de uma reflexão da ação. Refletir sua ação à posteriori permite que o professor crie uma “distância ótima” que favorece uma análise mais elaborada e uma visão mais ampla dos diferentes fatores que compõem a ação educativa. Além disso, permite que os múltiplos olhares do grupo possam buscar a construção de um olhar coletivo. A tematização da prática realizada através da análise de vídeos ou outros materiais que de certa forma “traduzem” o fazer do professor é a estratégia utilizada para concretizar sua prática e torná-la objeto de aprendizagem, justamente porque esta análise parte de uma situação onde o professor é o sujeito da ação. “O registro em vídeo de fato deixa uma marca: ele permite uma auto-observação retransmitida, repetida. É uma memória que estimula a reflexão e a análise, individualmente ou em grupo. A imagem do vídeo oferece ao grupo a possibilidade de analisarem juntos a mesma situação pedagógica e de terem um referente único para uma reflexão distanciada sobre os processos em jogo e sobre as competências postas à prova. É uma peça-chave para instumentalizar a ligação teoria – prática.” (PERRENOUD, 2001, p.144)
Mas não é simples instaurar este modelo exatamente porque as concepções de erro e de aprendizagem presentes dificultam o entendimento de que não se está analisando a pessoa do professor, mas a atividade que ele propõe, que de certa forma é referendada pela instituição. Por outro lado, é preciso ter consciência e convicção que a aprendizagem não se dá através da transmissão de conhecimentos, mas é construída a partir de problematizações, interações e elaborações internas e portanto demanda tempo e a construção de um vínculo de confiança e parceria entre os que estão envolvidos. “O professor ver o outro é muito bom, e ver a si mesmo é melhor ainda. Há uma resistência. Há uma sensação muitas vezes de que não está se avançando, pois a escola ainda funciona muito com uma idéia de coisas prontas e acabadas, ou seja, ao terminar um encontro é como se tivesse que sair dali quase que com um pacote fechadinho do que eu aprendi, do que hoje sou, do que agora vou fazer diferente. Incomoda muito ao professor e à escola as coisas mais abertas, e a formação continuada é um processo aberto, não fecha nunca, porque não tem como fechar. Essa é talvez a maior dificuldade para a escola e para o professor. Entender que é um processo aberto e que sempre haverá questões, e que são exatamente essas questões que vão fazer mudar a prática, pois na hora que se responder todas alguma coisa está errada, pois não dá para responder todas. Vamos encontrar respostas que vão se transformar em novas perguntas, e isso ainda é muito complicado para a instituição e para os professores pois este é um modelo de escola e de educação secular e romper com isso não é fácil. Entrar na idéia do construtivismo não é uma coisa simples – que todo conhecimento é um construto, é algo que é produzido constantemente, portanto ele é provisório, é relativo, não pode ser fechado... O que não significa que não se tenha acordos provisórios, não é uma montanha-russa permanente, se tem patamares, momentos de muita estabilidade, mas o processo de formação continuada existe para construir esses acordos provisórios coletivos, mas também para instaurar uma reflexão permanente que por si só vai provocar questões sempre... É preciso continuar perguntando.” (Relato de Maria Thereza Marcílio – consultora e coordenadora da Avante)
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Nenhum de nós, voluntariamente, se vê como de fato é. Cada um cria uma imagem sobre si e é natural que se tema desvendar uma imagem verdadeira. O vídeo é um instrumento muito ameaçador neste sentido, pois possibilita o desvelamento desta imagem. Essa é uma das razões porque tantos professores reagem tão fortemente a qualquer registro desta natureza. O depoimento abaixo revela o quanto é difícil incorporar a idéia de construção na escola, a partir de uma concepção de erro que não seja aquela ligada à crítica. É fundamental estabelecer um ambiente de confiança, de cumplicidade, para que o objetivo do trabalho seja alcançado. Mas esta atitude não se constrói facilmente, sendo necessário ser objeto de reflexão permanente para o grupo. “A filmagem é realmente muito importante na vida de todo profissional, mas às vezes ela é usada como forma de criticar o trabalho do outro professor. Se as críticas não são construtivas elas mobilizam os professores e perde um pouco a união. Tem professor que assiste a filmagem só para procurar o que criticar, sem validar o que o outro fez de bom. É por isso que incomoda tanto, porque ele se sente exposto. É o objetivo do professor que tem que ser analisado e no vídeo não dá para mostrar o trabalho de forma abrangente e isso dificulta (...) Essa conscientização de que a filmagem tem que ser algo para o crescimento do professor é o que falta ainda em relação aos profissionais e isso precisa retomar sempre. Porque a gente “prega” o olhar relativo mas às vezes não exercita.” (depoimento da prof. Maria Gentila/ Julho 2001)
Os encontros de análise de vídeo são organizados da seguinte forma: Os professores recebem antecipadamente um documento elaborado pela equipe da Avante que os subsidia na elaboração do planejamento. Estas orientações (figura 1) são discutidas em um encontro onde se problematizam as questões relacionadas ao planejamento, analisando que aspectos devem ser considerados ao planejar uma situação de aprendizagem . FIGURA 1
ORIENTAÇÕES PARA PLANEJAMENTO E AVALIAÇÃO DA PRÁTICA
Disposição do mobiliário e dos materiais
Estabelecimentos de acordos para o funcionamento do grupo
Espaço de exposição
Resolução de conflitos
Quanto a organização do ambiente:
Agrupamento dos alunos: quantidade de crianças / tipos de atividades / possibilidades de troca Trânsito entre a sala de aula e demais espaços da escola
Quanto ao encaminhamento das situações didáticas: Papel do professor / papel do aluno - No início - Durante
Quanto ao ambiente sócio-moral:
- Ao término
Relação: criança / criança professor / criança demais adultos / crianças
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Quanto à aprendizagem: O que você espera que as crianças aprendam com esta situação de aprendizagem? Por que você pensa assim? O que você pode aprender com as crianças e sobre o funcionamento delas? Qual a relevância desta aprendizagem para a criança? Processo de metacognição (avaliação): As crianças aprenderam o que se pretendia que elas aprendessem? O que a faz pensar assim? Elas aprenderam algo que não estava previsto inicialmente?
O que você mudaria se tivesse que fazer a(s) atividade(s) novamente? O que é preciso mudar/ajustar no planejamento a curto prazo como resultado destas reflexões? Quais foram as atitudes das crianças em relação à aprendizagem? Exemplifique Que estratégias elas usaram? Exemplifique. Que habilidades elas demonstraram? Exemplifique. Que entendimentos e desentendimentos a criança revelou? O que ela ainda precisa saber?
A partir destas orientações e das discussões e modelos da própria escola, o professor elabora um planejamento. Esta aula será filmada para posterior socialização com o grupo de professores da instituição. O professor filmado deve assistir a fita para que possa ter a possibilidade de refletir sobre sua prática antes que o restante da equipe o faça. Após ter assistido, elabora um registro escrito que permite que ele tenha a oportunidade de se distanciar do seu fazer para analisá-lo e problematizá-lo, instaurando questões para uma reflexão individual e posteriormente coletiva. Abaixo, exemplos do movimento de reflexão de dois professores no momento de planejar e posterior à ação. PLANEJAMENTO CICLO - 1 | GRUPO - 3 B | TURNO- Matutino ÁREA - Língua Portuguesa | DATA- 13/09/00
EIXO DE TRABALHO - Produção de escrita SITUAÇÃO DE APRENDIZAGEM - Atividade isolada contextualizada ATIVIDADE - Produção de legenda para acompanhar fotos (visita ao cinema)
OBJETIVO GERAL DA ÁREA: Participar de variadas situações de comunicação oral e/ou escrita, para interagir e expressar seus desejos, necessidades e sentimentos, bem como, interessar-se por conhecer vários gêneros orais e escritos e familiarizar-se aos poucos com a escrita por meio da participação em situações nas quais ela se faz necessária e do contato cotidiano com livros, revistas, avisos, cartazes... podendo, progressivamente, utilizá-la.
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COMPETÊNCIAS A SEREM CONSTRUÍDAS: Que a criança seja capaz de apreciar e fazer uso da linguagem oral e escrita para comunicar-se. CONTEÚDOS: - Participação em uma situação de escrita com função real. - Colaboração com os colegas compartilhando dúvidas e certezas. - Produção de legendas. ORGANIZAÇÃO DA SALA: 1º momento: em roda 2º momento: nas mesas Obs.: O grupo estará divido em dois, metade na oficina de artes e a outra, produzindo as legendas. INSTRUMENTOS DE TRABALHO: Fotos tiradas durante a visita ao cinema, pilot e papeis de ofício colorido (presos às fotos). CONSIGNA: As fotos que tiramos durante a visita ao cinema já chegaram. Que tal expormos lá fora para que outras pessoas possam ver? Então vamos escrever abaixo de cada foto o que aparece. Vocês vão trabalhar nas mesas sentando 2 a 2 e eu vou registrar, o que cada um escreveu, no meu caderno para digitar depois. Alguém quer repetir para os colegas o que vamos fazer? ORIENTAÇÕES DIDÁTICAS: - Lembrar os combinados: levantar o dedo quando quiser falar, escutar a idéia do colega, esperar sua vez... - Falar a consigna; - Ouvir as crianças, intervindo quando necessário; - Distribuir as fotos; - Planejar a escrita: dizer o que estão vendo e o que vão escrever; - Produção das legendas; - Intervir durante a produção. - Possíveis intervenções: - O que aparece nesta foto? - O que vocês podem escrever sobre esta foto? - Precisa escrever o nome das pessoas que aparecem na foto? - Está bom assim ou precisa escrever mais alguma coisa? REFLEXÃO Olha eu aqui outra vez partilhando com vocês minhas dúvidas, receios, angústias... Dessa vez um pouco mais tranqüila com os “olhares da câmara”, talvez porque tive o tempo e o desejo ao meu favor. Dentre as atividades já planejadas para serem desenvolvidas junto ao grupo 3B, escolhi a que pensei ser mais favorável a discussões e enriquecedoras e realmente desejei apresentá-la.
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Então vamos a ela. Fiquei feliz ao assistir a fita e perceber o interesse, envolvimento e atuação das crianças. No entanto, a mesma angústia do dia da filmagem se fez presente. Fico pensando se não estamos exigindo muito em relação a abstração do pensamento. Me senti exigindo de Gigi para que escrevesse, notei que ela apresentou avanços na organização do pensamento revelando o que estava na foto, qual o lugar e o que estava fazendo, mas parecia não mais à vontade para escrever depois da minha insistência, uma prova, creio eu, foi o fato de ter usado o desenho (seu velho conhecido) e não tentativa de escrita, como fez antes. Fico pensando nessas questões e me perguntando se não estamos caminhando para outro extremo, antes na educação infantil os “textos” eram simples, os exercícios motores eram prioridade... E agora? Será que estamos planejando atividades que vão além da zona de desenvolvimento das nossas crianças principalmente no que se refere a produção escrita? E me preocupa a imagem de escola que estamos permitindo que as crianças construam. Então lembrei-me de uma citação do livro, O Imaginário no Poder, de Jacqueline Held: “Senhor, não quero mais ir a escola... Prefiro escutar o que diz, à noite, A voz quebrada de um velho que conta, fumando, As histórias de Zamba e do Compadre Coelho E muitas outras coisas ainda... E depois, é realmente muito triste na escola, Triste como... esses senhores bem educados Que não sabem mais contar histórias”. Guy Tirolien
Convido vocês a refletirem comigo e juntos pensaremos em propostas que não abafem a disponibilidade original para imaginar, fantasiar, criar... diante das imagens, idéias e palavras. É um grande desafio! Mas estamos aqui para quê? Beijos, Marjorie.
PLANEJAMENTO GRUPO 7 | DATA- 17/04/01
ATIVIDADES DE ROTINA
- Roda de Leitura : Leitura do livro de Monteiro Lobato por capítulos. - Revisão das atividades de casa
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ÁREA DE CONHECIMENTO
Língua Portuguesa
PROJETO DE APRENDIZAGEM
Texto narrativo informativo – Autobiografia
PROJETO DE EMPREENDIMENTO
Coletânea de autobiografias que será lançada no dia da exposição “Museu da Páscoa”
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ATIVIDADE 1a Revisão da Autobiografia NATUREZA DA ATIVIDADE (x)aprendizagem ( ) diagnostica ( ) avaliativa CONTEÚDOS - Utilização dos fatores pragmáticos da textualidade: aceitabilidade, coerência, coesão, informatividade, intencionalidade. - Aceitação de críticas do próprio texto, compreendendo-o como produto passível de questionamento e melhoria. - Utilização da estratégia de produção de escrita: revisão INSTRUMENTO DE TRABALHO Primeira versão do texto, ficha de planejamento e roteiro de revisão. DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE Os alunos estarão dispostos em duplas. CONSIGNA Hoje iniciaremos a revisão do texto individual que fará parte da coletânea de autobiografias. Como já conversamos, todo texto precisa ser revisado. Portanto, leia o seu texto com atenção, releia o planejamento e siga o roteiro anotando as informações que ajudem a melhorar a sua produção. Vocês entenderam o que faremos? Quem gostaria de explicar para o grupo? Obs.: O ajudante do dia entregará o roteiro de revisão e a professora ficará com 3 alunos que foram selecionados previamente. POSSÍVEIS INTERVENÇÕES - Que informações deverão ser colocadas primeiro? Por que? Essas informações aparecem no seu texto? O que falta? - Você organizou as informações na ordem em que os fatos aconteceram? - Que palavras você utilizou para marcar o tempo em que os fatos aconteceram? - Agora, leia o segundo parágrafo. Você acrescentaria novas informações? Quais? Releia o seu planejamento e veja se tem informações que possam ajudá-lo. - Você substituiria alguma palavra? Qual? Por qual? - Como tornar o seu texto mais claro e atraente para o leitor? Obs.: Na próxima etapa da revisão, em duplas a professora entregará um roteiro para que a dupla revise um único texto. Numa outra aula, fará o inverso.
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REFLEXÃO Em 17/04/01
Pela primeira vez, passo pela experiência de ter minha aula filmada. Gostaria de expressar que a situação de “filmagem” me deixou à vontade, pois tenho claro que esta é uma situação de aprendizagem e crescimento profissional e que, poderei contar com minhas colegas de trabalho, no sentido de intervirem construtivamente em minhas ações pedagógicas. A intencionalidade desta atividade foi que as crianças fizessem a revisão do seu texto a partir de um roteiro, onde, de posse do planejamento e das questões levantadas no roteiro elas pudessem refletir e propor melhorias sobre a sua própria produção (autobiografia). O grupo demonstrou reconhecer a importância de revisar suas produções, bem como, os procedimentos necessários para realização de tal atividade. Vale ressaltar, que esta foi a primeira revisão que as crianças fizeram individualmente. Para a realização desta atividade, escolhi previamente, três crianças, objetivando acompanhálas mais diretamente, propondo questões em função dos aspectos a serem observados e reestruturados. Como por exemplo, assegurar a estrutura da autobiografia e o nível de informatividade para clareza, compreensão e aperfeiçoamento do texto. Refletimos muito acerca da atividade proposta e chegamos a conclusão de que este não era o momento das crianças fazerem a revisão dos seus próprios textos via um roteiro que envolvia aspectos muitos genéricos. Por esse motivo, algumas crianças se dispersaram e apenas responderam na folha guia (roteiro), sem recorrer ao planejamento e a primeira produção para iniciarem a análise do texto. Após conversarmos bastante sobre o resultado da atividade de revisão proposta para crianças de 6 e 7 anos, chegamos a conclusão que o ideal seria levantar intervenções ao longo do próprio texto do aluno, visando alcançar o nosso propósito. Por isso, planejamos que a próxima revisão será feita em duplas, onde irão ler e avaliar um texto de cada vez, oportunizando assim, que os alunos se concentrem em reler suas produções e melhorá-las a partir das intervenções propostas. Gostaria de ressaltar o quanto as crianças se mobilizaram frente a situação proposta e que outras situações de revisão estão previstas para serem realizadas posteriormente. “O autor que volta ao seu texto, lendo e que produziu, pode sempre fazer novas reflexões, alterar idéias, ditado ou escritura. Assim procedendo, alterna os papéis de escritor e de leitor, submetendo seu próprio texto a provas rigorosas de coerência no estilo e na gramática. Desta maneira o ato de escrever torna-se uma poderosa ferramenta para o uso e desenvolvimento da inteligência humana”. Monique Deheinzelin
Luciane Souza da Silva
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No encontro com o grupo de professores, logo após assistirem a aula em vídeo, o professor que foi filmado será o primeiro a se pronunciar, seja pela sua reflexão escrita ou seja por considerações adicionais que achar necessário. Do ponto de vista do professor-formador, o registro escrito do professor é fundamental no planejamento do encontro, pois proporciona informações importantes no que diz respeito a sua possibilidade de reflexão, suas indagações, que questões são observáveis, bem como a análise que faz sobre outros fatores que envolvem e interferem na dinâmica da aula, como por exemplo o organização da sala, os recursos utilizados, as relações estabelecidas, o limite do tempo, etc. O desafio do formador é planejar boas estratégias de reflexão, a partir de um modelo de ensino que pressupõe a problematização. Segundo Meirieu, “uma pedagogia das situaçõesproblema deverá esforçar-se para instalar dispositivos em que se articulem explicitamente problemas e respostas, em que as respostas possam ser construídas pelos sujeitos e integradas à dinâmica de uma aprendizagem finalizada (...) A explicação nada vale sem a necessidade que a requer e a ela dá sentido (...) A verdadeira pedagogia explicativa não é o ensino das explicações mas a cultura, diríamos o culto das necessidades de explicação.”13 Este encontro com todo o grupo de professores da escola, instaura um ambiente de aprendizagem coletiva, cooperativa e compartilhada. Os professores passam a ter uma visão mais global do funcionamento da escola e constróem juntos práticas que são referendadas a partir de uma análise reflexiva e não de uma imposição hierárquica “Os não saberes a cada dia são especulados e reconhecidos com autonomia, ao mesmo tempo que nos enchemos de coragem e recomeçamos a busca nas leituras. (...) Percebemos em nosso último encontro que os ranços em matemática estão sendo superados a partir do momento em que analisamos a nossa prática e a de outrem...” (Prof. Cássia, Sesi - agosto de 2000)
Este é, sem dúvida, o papel do formador, instaurar o conflito, organizar um ambiente favorável à aprendizagem e criar mecanismos para que a problematização, encarada como fonte de aprendizagem, se transforme em conhecimento novo, construído na interação e nas relações estabelecidas entre teoria e prática. As estratégias de formação são planejadas de acordo com cada situação, pois devem partir dos pontos para reflexão que o formador ou os professores identificaram. Na Figura 2. é possível analisar uma estratégia utilizada pela equipe de formadores da Avante. Relatada de forma mais ampla, sofre ajustes a partir das necessidades e perfil do grupo.
13 MEIRIEU, Philippe. Aprender... sim, mas como? Trad. Vanise Pereira Dresh . 7. ed. Porto Alegre: Artes Médicas,1998. 193p. Tradução de “Apprendre...oui, mais comment”.
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FIGURA 2
PROPOSTA PARA ANTES DA ANÁLISE DO VÍDEO O LUGAR DO ERRO NA APRENDIZAGEM Realização do jogo: “Escravos de jó” por dois grupos de 5 componentes sendo que em um deles quem “erra” sai e no outro quem “erra” continua sendo encorajado pelos colegas para tentar e conseguir. OBS.: Os professores que não jogarem deverão observar a realização da atividade e registra todas as reações para em seguida abrir um debate com todo o grupo.
Após, leitura do planejamento e formulação de duas perguntas acerca do projeto na qual está inserida a situação de aprendizagem Listagem da postura que um professor deve assumir em sala de aula Quadro comparativo da escola que os professores estudaram para a escola que trabalham A idéia de cuidado na Educação Infantil: Listagem dos cuidados que são necessários com as crianças Listagem de cuidados que o professor tem que ter consigo mesmo Comparação das duas listagens e discussão em plenária
PROPOSTA PARA DEPOIS DE ASSISTIR O VÍDEO
Formulação de uma pergunta acerca do assistido e em seguida trocas das perguntas para serem respondidas por uma colega Troca de idéias em duplas e formulação de uma pergunta para ser apresentada em plenária e debatida Produção individual de uma reflexão que o filme provocou acerca da sua postura de professor
Além da problematização e da participação ativa dos professores na construção de novos conhecimentos, a elaboração de estratégias e instrumentos de metacognição ou gestão mental são um ponto fundamental no programa de formação. Neste sentido, os registros se constituem em formas potentes de desenvolver uma auto-regulação do processo de aprendizagem, tanto individual quanto coletivo. Realizar registros sobre a prática constitui-se em uma outra forma de falar de si mesmo, mais “pensada” e analisada, além de possibilitar um exercício de organização de idéias. A escrita favorece uma tomada de consciência tanto das questões ligadas ao “fazer didático” quanto as que se referem à pessoa do professor. “Escrevo porque à medida que escrevo vou me entendendo e entendendo o que quero dizer, entendo o que posso fazer. Escrevo porque sinto necessidade de aprofundar as coisas, de vê-las como realmente são...” Clarice Lispector
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Nos encontros com os grupos de professores há pelo menos dois instrumentos que são sistematicamente utilizados. Um deles é o registro reflexivo que acontece de duas formas. Na primeira cada professor é estimulado a ter o seu caderno de registro que será usado durante os encontros e depois, quando deverá fazer um registro mais elaborado das questões que foram discutidas. Um dos professores fica encarregado em trazer o registro do último encontro para ser lido no início do posterior. Cada instituição coloca um nome e dá um formato para este documento. Abaixo, alguns exemplos de reflexões compartilhadas nos encontros de formação:
DIÁRIO DE BORDO Relatório da Análise de Vídeo Com muito prazer reiniciamos, dia 16 de março de 2001, as atividades de observação desenvolvidas em sala de aula, desta feita analisando um vídeo referente a aula aplicada pela professora Ana Célia Duarte, do grupo 6, turno vespertino. A reunião foi iniciada por Rita Margarete, com algumas considerações sobre a necessidade de começarmos os trabalhos, rigorosamente no horário, a fim de aproveitarmos o máximo das discussões. Após a leitura do protocolo, pela própria Ana Célia, Rita propôs duas questões ao grupo, para serem refletidas durante a exibição do vídeo: O que mudaríamos, o que manteríamos? Foi uma atividade isolada descontextualizada, na área de Língua Portuguesa, tendo como conteúdos, valor convencional do alfabeto, conhecimento e identificação das letras em contextos significativos e descoberta progressiva da natureza alfabética. No primeiro momento, com as crianças sentadas em círculo, a professora expôs a consigna extraindo seus conhecimentos prévios sobre como organizar fichas de nomes, em seguida solicitou a um dos alunos que a repetisse como forma de esclarecimento para o grupo. No segundo momento, já em grupos nas mesas, foram apresentadas as fichas com os nomes dos próprios alunos, enquanto estes eram solicitados a observarem, nomearem e relacionarem os respectivos nomes à outros que tivessem as letras iniciais iguais. A atividade prosseguiu com a entrega, para cada criança, da ficha com seu nome para ser analisada e colocada num cartaz de pregas, enquanto a professora utilizava intervenções a fim de que o grupo percebesse a existência de uma ordem a ser seguida de acordo com as letras do alfabeto. Foi um momento bastante interativo onde as crianças se envolveram com a tarefa, demonstrando conhecimento elementar sobre a ordem em que os nomes deveriam estar arrumados. Iniciada a discussão, as questões anteriores, foram retomadas: O que mudaríamos... Ana Célia ficou com a palavra, dizendo mudar muita coisa, inclusive sugeriu que faria uma sondagem do grupo para saber sobre os conhecimentos trazidos pelas crianças a fim de que, a partir daí, as atividades propostas se tornassem desafiadoras. Sandra prossegue questionando sobre a posição da letra K, que não fora abordada no conjunto, embora tenha sido referendada por uma das crianças. Claúdia referiu-se aos conhecimentos que as crianças trouxeram sobre os nomes masculinos e femininos evidenciados ao arrumarem as fichas no quadro dos nomes da turma.
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Luciana trouxe como ponto positivo a clareza na consigna e organização da sala, mas considerou extenso o discurso da professora, a leitura das palavras, fragmentadas, questionando: O que é ordem alfabética? Para que serve? Ana Célia contra–argumentou: para facilitar buscas, pesquisas... usa-se nas farmácias, bibliotecas, dicionários, listas telefônicas, etc... Antônia Cristina também professora do grupo 6, comentou que usou estratégias diferentes para mesma atividade, utilizando os classificadores onde as crianças teriam que identificá-los com o próprio nome e colocá-los também em ordem alfabética, direcionando as intervenções para os alunos que estão em nível pré- silábico, enquanto recebiam a colaboração dos companheiros em nível silábico. Rita retomou referindo-se à consigna como uma estratégia pouco recomendada para uma sondagem do grupo, sugerindo para tanto, intervenções individualizadas e diferenciadas, para maior segurança do professor e questionou quais conteúdos são fundamentais para se propor ao grupo 6, quais são as hipóteses dessas crianças, para nossa reflexão. Lívia achou um grande desafio para as crianças deste grupo a tarefa proposta, Rita então reforçou questionando sobre a relevância que há para esta criança conhecer a ordem alfabética no momento em que ela está construindo sua escrita, ilustrando sua fala com uma citação de Terezinha Nunes: “recitar até 20, não significa estar contando”, concluindo que recitar ordem alfabética não implica na construção da escrita, que a organização da lista não foi um problema das crianças, mas da professora e sugeriu como consigna significativa, a construção de uma lista para marcar quem já foi ou não ajudante do dia, como tarefa individual ou em duplas, a professora levaria para casa, as produções e prepararia uma aula de revisão onde possibilitaria a criança pensar e produzir escrita. A reunião foi encerrada com sugestões de verdades Coletivas: Observar pontualidade. (Rita Margarete) Esperamos aprender muito, também este ano, assim como aprendemos o ano passado, com as atividades de matemática.(Brito) Parabéns para Ana, pelo seu jeito espontâneo de ser e pela boa relação que tem com as crianças. (Claúdia) É importante pensarmos sobre o papel do professor junto ao grupo 6, e no que vamos trabalhar. (Luciana) Estarmos sempre atentos que o problema deve ser da criança, não do professor. (Lívia) Um mais um, é sempre mais que dois. (Beto Guedes), em relação a este grupo de trabalho. (Luciana) Cacilda Braga Regis
DIÁRIO DE BORDO Quando assumi ser a escriba do diário de bordo, no dia 14/11/00, nosso barco ainda navegava em águas calmas. Mal sabia que Marília, no comando do leme, nos conduziria rumo a ventos e tempestades e nos deixaria em meio ao mar revolto. Para que o leitor desavisado não julgue mal a nossa comandante, explicarei melhor: é que a calmaria foi espantada por perguntas provocativas, cujo objetivo era levar a tripulação a refletir sobre o lugar que a linguagem oral ocupa nos processos de ensino e aprendizagem. E não só aqui, mas em todos os barcos – escolas que navegam pelos sete mares.
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E a mim, que tarefa difícil coube, pois às vezes me empolgo com as discussões e me esqueço dos registros de ampliar o uso da linguagem oral, mas nem sempre o professor sabe potencializar essas situações. O final da viagem se aproxima e Marília prepara seu desembarque, irá para seu reduto em terra firme. Nos sentimos mareadas com o vai e vem intenso das ondas, mas não abandonadas. Ainda no comando, Marília nos convida a tomar o leme, a aprofundar nossos estudos. Desembarca deixando muitas interrogações em cada cabeça. Antes, porém, começa a traçar um mapa para nos orientar, aqui traduzido como verdades coletivas. Convido vocês, leitores do diário de bordo, a seguirem as instruções do mapa: Assim como a linguagem escrita, a linguagem oral deve ser planejada, produzida e revisada. Textos narrativos literários não são potencializadores para aprendizagem da linguagem oral. Nas atividades de linguagem oral é preciso estar atento a forma e ao conteúdo. Linguagem oral pode e deve ser ensinada. Após este relato, só me resta desejar a todos uma boa viagem nas leituras, estudos e propostas de novas atividades envolvendo a linguagem oral. Tomara que, próxima vez, ao refazermos essa mesma rota, possamos nos sentir “qual cisne branco, que em noite de lua, vai navegando num lago azul... Tereza Ernica
DIÁRIO DE BORDO Salvador, 24 de abril de 2001. Iniciamos o nosso encontro com mais uma polêmica discussão a respeito da escrita do nosso diário de bordo. Quem vai fazer? Temos esse desejo? Depois de muitas “lamentações” realizou-se um sorteio de uma forma muito justa e por coincidência as pessoas sorteadas não haviam feito esta tarefa ainda. Eu era uma delas e confesso, tinha pela primeira vez o desejo de escrever, porém vinha a minha cabeça a lista de coisas para fazer e entregar até o dia 8 de maio. Não tinha mais jeito, até Marília havia me sugerido para este papel e agora estou aqui buscando relembrar um pedaço da nossa caminhada... ... Marília iniciou com a leitura de um texto muito verdadeiro: “A lição da Borboleta”, que fala da importância e a necessidade do ESFORÇO em nossas vidas. Foi muito bom receber o texto como “recompensa” e agora lendo-o mais uma vez vejo que o seu significado é muito maior, pois fala que vencendo OBSTÁCULOS alcançamos TUDO o que de fato precisamos. Retomamos o Alinhamento Conceitual e constatamos as possibilidades e limitações do grupo, além de saber que o nosso espaço é uma realidade e um limite também. Seria um obstáculo? Precisamos reconhecer cada vez mais como as crianças funcionam, recorrendo a Wallon, descobrindo seu corpo, cada faixa etária, o ser integral e como as crianças lidam com as questões que a vida lhe proporciona. Esse reconhecimento seria mais um obstáculo? Assim o nosso ambiente poderia ser repensado, respeitando o modo de ser de cada um. Um ambiente flexível onde muda-se a forma. Buscando um olhar relativo, nunca extremos. Ter um olhar relativo seria mais um obstáculo? Discutimos a respeito do PODER e o encanto das brincadeiras e do lúdico como forma de desenvolver os projetos e as situações de aprendizagem, porém lembrando mais uma vez que não podemos ser extremistas. O brincar seria mais um obstáculo?
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Percebemos que existe a necessidade de um espaço de troca, reflexão, planejamento para tentarmos “alinhar” e assim mudar. A busca desse espaço seria mais um obstáculo? Falamos muito da importância de um projeto de Vida Cotidiana: crianças tomando decisões, participando como parte de uma comunidade, todos buscando ouvir e entender o que o outro fala e não só o que o professor com esse poder, o professor sentido-se como parte do grupo e não como o “dono” do grupo e assim favorecer um ambiente sócio-moral. A construção de um projeto de Vida Cotidiana seria mais um obstáculo? Depois de muita troca nos foi proposto pensar em duplas a respeito do nosso ambiente, como ele é e como poderia ser. Pensando não só como espaço físico, mas algo mais: como o cheiro, as expressões, as relações, o seu funcionamento, a mobilização, pensando em cada criança no seu modo de ser, como algo que não pode ser fotografado e sim sentido. Pensar neste espaço que desejamos seria um obstáculo? Durante esta atividade Marília escreveu algumas coisas no quadro: “Tudo é misterioso neste reino que o homem começa a desconhecer desde que começa a abandonar” Cecília Meireles
“Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia”. Marina Colassanti
Tais citações vinham na minha mente como “cutucadas”! Sentir e perceber as cutucadas seria mais um obstáculo? Terminamos a proposta e depois de escutar cada dupla, Marília observou que ainda estamos pensando muito no espaço físico. A escola não é algo uniforme, as atividades devem ter mais fluência com propósito das crianças compreenderem o mundo. Os grupos ficam muito isolados, como pequenas ilhas. Importante seria organizar o tempo e o espaço para que as crianças tivessem maior autonomia e maior trânsito entre os grupos. A importância do ambiente ser revelador da identidade do grupo. Organizar esse tempo e esse ambiente seria mais um obstáculo? Finalizamos com as nossas verdades coletivas: É preciso ser flexível; O ambiente não é apenas o espaço físico; A forma muda o conteúdo; Mais trocas entre os grupos; Menos competitividade. Pensando nestas VERDADES e nos nossos OBSTÁCULOS proponho que nós, com muito ESFORÇO, possamos sair e nos libertar dos nossos “casulos”... Com carinho, Andréa
Outro instrumento de metacognição é a elaboração das verdades coletivas que foram construídas ao longo do encontro. No momento de finalização, o formador propõe que os professores formulem uma ideia ou questão que foi importante para cada um. Estas são socializadas e registradas por todos. Mesmo que provisórias, este registro passa a fazer parte do acervo daquele grupo.
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As verdades desse encontro revelam os sentimentos de gratidão e reconhecimento do grupo em relação a importância desse trabalho de formação em processo: Papel de Margarete tem sido fundamental para os avanços alcançados. Os retornos dados nos planos tem realmente contribuído para a melhoria da qualidade dos trabalhos. A postura de Lisete, de mostrar-se e reconhecer suas limitações e dúvidas, revela a maturidade do grupo para o crescimento e motiva a todas nós para esse exercício. Os questionamentos levantados pelas professoras apresentam muitos dos conhecimentos que o grupo já internalizou e, de fato estão sendo utilizados na prática. Uma questão que ainda requer uma reflexão e planejamento é o tempo dedicado aos encontros e postura de todas nós em relação a natureza desta atividade, que exige uma participação disciplinada. Precisamos mais e mais rever nossos procedimentos no que se diz respeito a escuta/fala nos encontros entre educadores. Precisamos exercitar a escuta (respeito a fala do outro) e planejar a fala (selecionar o que falar/como falar). Finalizo este relato desculpando-me com todas se, em minhas colocações não fui fidedigna ao encontro. Gicélia Lícia Batista Oliveira
Em síntese, esta ação permite que os professores aprendam a partir da análise de sua prática, tenham oportunidade de interagir com seus colegas instaurando uma cultura menos solitária e mais solidária, além de poderem ter uma visão mais ampla do funcionamento da escola, competências fundamentais no desenvolvimento do perfil de profissional que se busca formar.
2.2 Observação em sala de aula Periodicidade: quinzenal
“A ação de olhar é um ato de estudar a si próprio, a realidade, o grupo à luz da teoria que nos inspira. Pois sempre só vejo o que sei (Jean Piaget). Na ação de se perguntar sobre o que vemos é que rompemos com as insuficiências desse saber; e assim, podemos voltar à teoria para ampliar nosso pensamento e olhar.” Madalena Freire
Abrir as portas da sua sala de aula e deixar-se observar não é um movimento fácil para o professor . Seu processo de aprendizagem começa desde este ato de socializar seu espaço e torná-lo um instrumento que permita o exercício da reflexão. Levar em conta a prática significa aceitar falar das dificuldades, dos não-saberes, expor as fraquezas, assumir um
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compromisso de sinceridade. Se considerarmos o contexto social em que vivemos, poderemos compreender sem maiores dificuldades os motivos que levam muitos professores a aparentar uma resistência maior ou menor em relação a este modelo de formação. Esta resistência é gerada muitas vezes pela convicção, mas podemos afirmar que mais ainda, é fruto do medo de errar, de perder, de se fragilizar... Por isso, as ações de reflexão da prática ocorrem na medida em que há um ambiente minimamente aberto, transparente, em que as pessoas envolvidas tenham tido tempo para adquirir confiança, reciprocidade, solidariedade. Nesta perspectiva, a cultura da escola torna-se um fator determinante para a potencialização desta ação (este aspecto será mais amplamente abordado no final do capítulo.) A observação tem como objetivo fornecer elementos para a reflexão da prática, a fim de que se possa construir uma compreensão cada vez maior dos processos inerentes à dinâmica da sala de aula, ou seja, entre planejar e executar há uma série de variáveis que interferem, e na maioria das vezes alteram o planejamento inicial. O professor não pode prever categoricamente como as situações vão ocorrer, assim aprender a refletir sobre sua capacidade de “ler” o contexto para tomar as decisões da forma mais consciente e segura possível faz parte da competência do professor. “A observação em sala é a estratégia que mais dados fornece sobre a complexidade da situação educativa no processo de formação, pois nela não se verifica o desenvolvimento do trabalho exclusivamente no plano do discurso falado ou escrito, mas essencialmente no plano das interações, atitudes, valores, objetivos e intervenções, tendo, por isso um papel fundamental no processo de formação profissional (...) Esta estratégia permite ao professor compreender a complexidade do processo educativo e que há uma parte de improviso em toda ação, mesmo que planejada - os imprevistos são constituintes da relação de ensino e aprendizagem. Mostra que a prática também é um campo de experimentação onde cada professor toma uma decisão, em função de sua análise momentânea, a qual altera o rumo dos acontecimentos, às vezes de forma radical, não sendo possível portanto prever e controlar totalmente as ações.” (Formação de Professores. Escola da Vila.p.23)
Mais uma vez, analisa-se um fragmento com profundidade. Para que esta análise seja mais produtiva é necessário conhecer o contexto mais amplo em que a situação está inserida. O planejamento é utilizado como uma referência para o formador e para os demais professores que observam a aula, portanto deverá ser entregue com antecedência ao formador. Como é feita a observação? São convidados para observar a sala o professor-formador, o colega que leciona na mesma série e o coordenador. Há sempre um cuidado para que não se exceda muito este número de pessoas para evitar uma situação artificializada e constrangedora tanto por parte do professor quanto dos alunos. No momento da observação, é importante estar atento a todas as nuances que compõem o ato pedagógico: a relação professor-aluno, aluno-aluno, o “clima” da sala, a forma como a
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proposta foi lançada, a reação dos alunos, as intervenções do professor, as concepções que estão sustentando sua prática, enfim, estes e outros que vão indicando as crenças, possibilidades e limites presentes na atuação do professor. Do ponto de vista dos demais professores que estão observando, além de estarem exercitando sua capacidade de reflexão, estão tendo oportunidades de vivenciarem bons modelos de atuação. Isso não significa prescrever receitas, mas as boas referências são importantes em qualquer atividade profissional em que os indivíduos estejam engajados a pensar sobre o que fazem, por que fazem e como fazem. O coordenador, que é em síntese um formador, também tem a oportunidade de estar apurando suas possibilidades de observação, bem como tendo uma referência na condução destas situações que deverão fazer parte da sua rotina. Quanto ao formador, é essencial que tenha clareza que nem todas as questões que considera relevantes serão discutidas, e que antes de mais nada é preciso observar o que não está explícito, assim como considerar algumas circunstâncias, como a história de vida profissional do professor, os limites que a própria instituição lhe impõe, sua imagem diante dos colegas, o ambiente mais ou menos aberto às questões conflitantes, etc. Após a observação, o grupo se reúne, podendo convidar para a discussão os professores de séries próximas. O importante é não descaracterizar o caráter mais específico desta ação, que é justamente um dos pontos que a diferencia da análise de prática em grandes grupos. Aqui é possível lidar com questões muito mais ligadas àquela determinada série/grupo. O encontro começa com a socialização do planejamento e o relato oral da professora observada, que iniciará um processo de reflexão da ação, provocado intencionalmente pela formadora. Os questionamentos e observações trazidos pela professora, juntamente com os das demais e os do professor-formador serão o foco das discussões. Cabe ao formador guiar e orientar estas discussões, assim como trazer as referências teóricas que possam validar ou questionar as idéias analisadas. A finalização dos encontros é feita com a socialização e registro das “verdades coletivas” construídas pela grupo como instrumento de monitoramento dos conhecimentos construídos. “A observação enriquece o trabalho do profissional porque ele passa a ter uma postura reflexiva diante dos processos de sala, analisando o “como fazer” para que as metas sejam atingidas de uma forma consciente. Isso é uma otimização do fazer pedagógico, pois a gente vai percebendo, reaproximando, re-significando, ou seja, ainda não está colocado totalmente em prática, até porque nada é teminal e definitivo, mas é um processo bem mais próximo da gente, bem mais claro, ainda que não praticado com toda a profundidade.” ( fragmento do depoimento da prof. Mariglória/ Julho/ 2001)
O depoimento acima revela o quanto é desafiador para o professor realizar uma transposição didática do conhecimento teórico para a prática, referendando a necessidade das ações de formação se aproximem ao máximo da sua realidade.
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“A observação é uma oportunidade riquíssima para a gente trocar um pouco sobre o trabalho desenvolvido em sala e estar podendo ouvir um retorno da Avante. Eu acho que as observações são mais enriquecedoras do que as filmagens do ponto de vista do ciclo, porque a gente tem um conhecimento maior dos objetivos daquela aula porque as pessoas são do mesmo ciclo. As observações têm uma possibilidade mais imediata de crescimento.” ( depoimento da prof. Nanci / Julho 2001)
3. REUNIÕES COM A EQUIPE DE COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA
Historicamente, a função do coordenador pedagógico foi sofrendo redefinições que acompanharam as mudanças na forma como a escola está organizada e nos papéis que cada um desempenha a partir de um novo contexto educacional, principalmente no que diz respeito ao papel do professor. Visto inicialmente como um “executor” de metodologias, cabia ao coordenador, mais conhecido neste contexto como supervisor, determinar e controlar a aplicabilidade destes modelos metodológicos e dos resultados alcançados, como um fiscalizador das tarefas do professor. Por outro lado, não cabia a ele acompanhar diretamente o processo de aprendizagem dos alunos, pois para isso havia o orientador educacional. Com a definição de novos paradigmas que orientam o funcionamento da escola, percebe-se que esta definição de papéis é contraditória porque não é possível acompanhar o processo de ensino, dissociando-o do processo de aprendizagem. Desta forma, o coordenador pedagógico assume um papel mais abrangente de ser parceiro do professor, assumindo a tarefa de ser seu interlocutor diante da complexidade e da totalidade da tarefa educativa. “Reconhecendo a criança como um ser integral e reconhecendo que ela aprende quando é considerada como tal, é fundamental que a figura do coordenador na escola possa estar atento tanto às questões que envolvem os processos de ensino como também os de aprendizagem.Nessa perspectiva a ação do coordenador inova em relação aos modelos que tínhamos anteriormente nas escolas onde havia profissionais especialistas para discutir diferentes aspectos do desenvolvimento do trabalho pedagógico, fragmentandoo (...) Essa é uma contradição enorme porque se fragmenta o sujeito e também de alguma forma tira a autoridade do professor quando você tem outra pessoa para lidar com as questões de aprendizagem e de comportamento. Que autoridade maior pode existir dentro da escola que não o professor para ser interlocutor dos seus alunos frente a todas as demandas que surgem no dia-a-dia de sala de aula? Ele precisa sim, de apoio e aí entra a figura do coordenador pedagógico para que possa “alimentar” o seu trabalho, refletir junto com ele a prática e reconhecer a necessidade de intervir junto ao aluno nos mais diferentes aspectos.” (Depoimento de Marília Dourado – consultora da Avante/maio de 2002)
A partir da redefinição de papéis na escola, a função do coordenador também sofre ajustes e passa a ser a de “guia e orientador” dos processos de ensino e aprendizagem do professor, e
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como tal, assume a função de formador. Aquele que acompanha, problematiza, indica caminhos, fortalece as relações interpessoais e o espírito de equipe, estabelecendo desta forma uma relação de parceria com os professores. Em um momento em que se instauram na escola tantos conhecimentos novos, tantas inseguranças, tantas possibilidades, é o coordenador que está à frente, liderando este movimento de busca contínua de novos conhecimentos e aquisição das competências necessárias ao profissional atual. “O coordenador pedagógico é um formador de professores, um co-autor do trabalho que acontece na sala de aula e, simultaneamente, um “alimentador” do processo de desenvolvimento do projeto educativo e curricular da escola. Cabe a ele não apenas ajudar no direcionamento do trabalho, responder às dúvidas e inseguranças dos professores, ajudá-los na busca de respostas, mas também – e talvez fundamentalmente – formular as questões que perpassam o trabalho da escola e orientam o percurso da equipe no desenvolvimento de seu projeto pedagógico – às quais ele tem uma condição especial de compreender por conta do lugar que ocupa. Aprendi que o lugar do coordenador não é, necessariamente, um lugar de superioridade, nem implica uma relação de dominação. Mas, por ser um espaço onde se entrecruzam as questões de diferentes naturezas do trabalho pedagógico institucional, possibilita uma atuação ao mesmo tempo mobilizadora e aglutinadora de forças em torno de desafios comuns. É um lugar de articulação da criação e produção coletivas.” (fragmento do relatório da prof. Neide Nogueira – coordenadora pedagógica / extraído do livro “O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. 1999. p. 123)
Com este perfil, o coordenador torna-se uma figura importante na instauração de um ambiente propício à aprendizagem do professor, ao desenvolvimento de um currículo que atenda a filosofia da escola e a articulação dos segmentos, quer seja através das séries ou ciclos. Mas, assim como o professor, este profissional passa por uma série de conflitos, tanto em relação a sua identidade como ao exercício da sua função. Visto como um formador, o coordenador precisa adquirir novas competências que estão ligadas à capacidade de organizar boas situações que promovam o aprendizado do professor, a partir da sua observação atenta às questões pedagógicas da escola. Além disso, ele é um articulador que transita pelas questões administrativas que têm um impacto na atuação do professor e também precisa estabelecer uma comunicação eficaz com a família. Reconhecendo a complexidade e a importância da tarefa do coordenador, esta proposta de formação inclui encontros quinzenais de duas horas com a equipe de coordenadores, no intuito de discutir as questões que são próprias da sua função, fortalecendo-os e apoiandoos na tomada de decisões e no entendimento crescente de seu propósito. O modelo de formação prevê a instauração de uma cultura de reflexão e análise da prática do coordenador, porque se ele atua como co-participante, co-responsável e interlocutor da prática do professor é fundamental que ele esteja atento a sua formação. “Creio que sou o que sou hoje pelo trabalho da Avante. Um trabalho que não dá a resposta pronta, mas que faz a gente buscar. Trazer pronto era mais fácil, muitas vezes até quero pronto e peço, mas eu sei que não é o ideal, pois eu iria estar reproduzindo e não aprendendo, então é melhor aprender.” ( depoimento de Maria Albertina B. Santos – coordenadora / Julho 2001 )
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Orientados pelos mesmos pressupostos que sustentam a formação de professores, as reuniões são organizadas a partir dos problemas identificados pelos coordenadores, nos relatórios semanais ou quinzenais que são enviados para a Avante. Estes relatórios têm como propósito estabelecer uma comunicação entre os coordenadores e a equipe de formadores, assim como ser um instrumento que faz parte da rotina, como uma forma de reflexão da
prática, expressando através da escrita as análises sobre a sua atuação
enquanto guia e orientador dos professores, identificando os aspectos que precisam ser melhor investigados, ajustados, para que a sua intervenção seja cada vez mais eficaz. “Os relatórios são importantes porque cada escola tem as suas particularidades, a sua caminhada, e se a pessoa que vai capacitar a gente não conhece de onde estamos partindo, quais as nossas dúvidas, ela vai estar atuando em cima de algo imaginário e não do real.” ( depoimento de Maria Albertina B. Santos – coordenadora / Julho 2001 )
A dinâmica dos encontros de coordenação acontece da seguinte forma: Os coordenadores enviam os relatórios para a equipe de formadores, que os analisa e responde por escrito, fazendo algumas considerações e ajudando-os a refletir sobre as questões. É através deles que o formador elege uma situação problematizadora para ser discutida na reunião com toda a equipe. “As reuniões de coordenação são baseadas nos problemas que a gente enfrenta. A formadora procura tocar nos pontos fracos e fazer a gente refletir. Para algumas coisas tem ajudado, a gente tem conseguido resolver, através destas discussões temos avançado em algumas questões que consideramos um pouco emperradas (...) Eu vejo que o papel do formador é o de “cutucar” e de dar algumas diretrizes. Ele não fica neste lugar de resolver, nós é que temos a responsabilidade de resolver. Às vezes eu me sinto meio impotente diante de algumas questões, às vezes não passa por mim a decisão. Às vezes eu queria que fosse mais direto, talvez sendo mais direto possa estar nos ajudando, mas também pode estar interferindo; é muito difícil... O que limita? A nossa própria postura de fugir dos problemas, de confrontar os problemas, de colocar todas as questões que estão envolvidas, às vezes pela atribulação do dia-a-dia, às vezes por que pensamos “eu vou falar de novo nisso?” e esse de novo é muito significativo porque significar que a gente só olha, fala e não age diante de algumas situações. ( depoimento de Maria Tereza Ernica – coordenadora/ 2001)
Assim como para os professores, esta estratégia de formação causa muito impacto nos coordenadores, pois como revela o depoimento acima, não recebem respostas prontas, mas são suscitados a refletir e buscar seus próprios caminhos. A formação para a autonomia é mais uma vez uma meta da formação. Nos exemplos abaixo, fica evidente o papel do formador que é o de “alimentar” as reflexões, trazer pistas para avançar e não determinar caminhos e soluções:
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RELATÓRIO DA COORDENADORA Salvador, 10 de agosto de 2000
Mônica, A partir de agora, percebo finalmente o papel que preciso desempenhar dentro de meu cargo. Percebo também, que essa transparência traz consigo uma enorme responsabilidade, que até então, não estava muito clara para mim. Sinto uma vontade enorme de buscar, aprender, de me instrumentalizar. Posso dizer até, que estou um tanto ansiosa. Gostaria de possuir uma bagagem grande de conhecimentos teóricos (como se isso fosse possível de um dia para o outro ). Mas pretendo chegar lá. Bom, voltando à prática, gostaria de retornar a nossa última “conversa” a respeito dos projetos. Será que colocamos esses projetos em andamento, mesmo que eles ainda não estejam prontos “no papel” não traz prejuízos aos seus encaminhamentos? Ou se torna mais fácil a partir do momento que sabemos quais os objetivos e competências que esperamos após encerrá-los? Outro ponto que gostaria de discutir com vocês é a respeito do tipo de texto que as crianças terão de produzir durante esse bimestre, que é o texto informativo descritivo (sei que não se trata de decidir essa questão com vocês, apenas refletir e discutir sobre). Retomando, esse tipo de texto cabe, inclusive, dentro do projeto desenvolvido em Ciências Naturais sobre animais. O que me questiono é: Crianças de 1a série, que ainda se encontram na etapa de contato sistemático com o texto em questão, serão capazes de criá-lo em um espaço tão curto de tempo? Terão tido tempo de se apropriarem? Outra coisa, estou confusa em relação ao que seja de fato orientação didática, uma vez que na última reunião de observação nos foi mostrado que se trata de colocar todo o desenvolvimento da aula em tópicos, onde estes estejaminiciados com verbos no infinitivo. Fiquei confusa, pois estávamos adotando esse procedimento desde o início, sem que houvesse nenhum apontamento a respeito. Mais uma vez, não se trata de queixa e muito menos de uma censura, apenas gostaria de esclarecer melhor essa questão. Aguardo ansiosa por nossa conversa. Até lá. Eduarda Guimarães Alves, Coordenadora Pedagógica 1a e 2a Séries
DEVOLUÇÃO DA AVANTE Salvador, 21 de agosto de 2000
Eduarda, Quanta disposição e energia! É olhando para trás que temos a certeza que com esta determinação você continuará crescendo sempre. Cada vez o papel do coordenador ficará mais claro para você, o que não significa que os problemas serão resolvidos, pelo contrário, à medida que tomamos consciência, maiores
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passam a ser os conflitos e desafios. Um deles você já aponta no relatório; o conhecimento teórico. Sem dúvida é preciso sustentar-se no tripé da teoria do conhecimento, da didática e da estrutura da matéria para que nossas análises sejam cada vez mais aprofundadas. Estar no caminho certo é o que importa! Outra questão que você traz no relatório refere-se à elaboração dos projetos. Quanto a isso temos que pensar no possível e não no ideal. O mais importante é a compreensão do objetivo de se trabalhar a partir de projetos e das mudanças na relação professor-aluno-conhecimento. Citando Hernandez, a pedagogia por projetos “não é só uma questão de aprendizagem, é também de ideologia e de forma de conceber o mundo”. Esta é a questão essencial. Mas não é possível definir as competências após sua execução, pois onde fica a intencionalidade prévia do professor? O projeto estar pronto não é um empecilho para iniciar o trabalho, não é preciso ter certeza de seus objetivos e intenções: o que quero que meus alunos aprendam? Em relação ao projeto da escrita (texto informativo - descritivo) podemos conversar melhor na coordenação, mas vamos iniciar nossa reflexão pensando: esta não é a situação ideal pois já sabemos que os alunos precisam passar pelas etapas de contato freqüente, contato sistemático e apropriação, pois esta forma de organização curricular está coerente com a concepção de aprendizagem por aproximações sucessivas. Mas se estamos nos reorganizando curricularmente não temos que ter um “olhar relativo” para estas questões? Será que os alunos terão que se apropriar desta estrutura neste momento de escolaridade? Conversaremos melhor sobre isso! Quanto às orientações didáticas será melhor refletir a partir do material produzido; mas lembre-se que não há modelos e sim referências1 Avante! Um abraço, Mônica
RELATÓRIO DA COORDENADORA Marília, “Tanto que fazer: Livros que não se lêem Cartas que não se escrevem Línguas que não se aprendem, Amor que não se dá, Tudo quanto se esquece. Tanto que fazer! E fizemos apenas isto. E nunca soubemos Quem éramos, nem para quê.” Cecília Meireles
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Os primeiros dias de aula revelam os gostos dos novos frutos que vamos saborear nesse ano, e assim, prenunciam a mudança dos ventos. Entretanto, o silêncio de vozes adormecidas começa a invadir diferentes espaços da nossa infância, enquanto o barco da nossa história prossegue seguindo a correnteza, enchendo os ares de inúmeros cantos, nas horas frescas do amanhecer. Como quem olha o mundo pela metade, escondidas por trás das minhas fantasias de educadora, vou digerindo teorias e práticas, fazendo o balanço do ontem, pensando no amanhã. São muitas necessidades: o alinhamento do trabalho em todo o segmento da educação infantil; a formalização de encontros sistemáticos com a direção; a devolução do relatório das professoras; a redação do seu relatório; a maior instrumentalização teórica do grupo; reuniões de coordenação mais produtivas, do ponto de vista pedagógico; o apoio dos professores. E muito mais: a farmácia que não tem remédio quando as crianças precisam; a sala de reuniões que urge ser arrumada, enquanto os pais entram para o nosso primeiro encontro; a água do chuveiro que acaba e as professoras não sabem como tirar a tinta do corpo das crianças; o texto para reflexão destinado aos pais, que é entregue para alguns grupos e outros não; .........que nunca chega no horário para apoiar o grupo 01; o tênis de um aluno que some e a mãe exige um posicionamento da escola; a mãe que sinaliza a sujeira dos banheiros, com toalhas encharcadas e sem papel; a criança que transita com um estilete enferrujado nas mãos, porque alguém deixou esse material exposto ao alcance dos pequenos ou esqueceu de isolar as “áreas de risco”, as crianças que são encontradas sozinhas pelas instalações da escola, no horário de saída das mesmas; o incômodo estampado no rosto de Sr......., porque nos atrasamos não mais do que meia hora na saída da escola... e por aí vai. De um lado, questões pedagógicas complexas que devem ser foco de atenção constante, infinita. De outro, questões práticas que, na sua grande maioria, do ponto de vista cotidiano, não podemos adiar a resolução das mesmas. No meio, o saldo de 15 dias de trabalho. Nesse período, fui 90% “administradora” e 10% coordenadora, atuando como pólo de ligação entre dois extremos distintos, porém indissociáveis. Dia 10/03/01, as 3h 18min da manhã. Depois de listar todas as pendências, organizar o meu cronograma de observações em classe, a rotina de coordenação, sento para escrever este texto. Mas, isso faz parte do ser educador: trabalhar além do muro das escolas. Os dias do fim de semana, noites, madrugadas e feriados acabam tornando-se úteis também. E a reposição das energias; as horas de sono, de lazer; o exercício do prazer descompromissado, tão salutar para o bom funcionamento da estrutura humana, tudo isso, e muito mais, vai ficando para depois. A nós, só cabe prosseguir, enquanto as nossas ansiedades, angústias, inquietações, preocupações, cansaço vão sendo traduzidos com crises de hipoglicemia, dores de estômago, gastrites, úlceras, alguns quilos a mais ou a menos, expressões faciais abatidas, silêncios, isolamento. Lentamente, vamos nos afastando da família, dos amigos, do dia, da noite, do mundo, da vida... Eu vou e volto. Mesmo que tenha “culpa no cartório”, atendendo a contendo as solicitações emergentes, penso que o que pontuo nos parágrafos anteriores insiste em provocar uma reflexão mais amadurecida. O movimento da escola, jamais será o mesmo depois de 1º de fevereiro deste ano, com uma entrada significativa de profissionais e alunos novos. Em contrapartida, o funcionamento de uma parcela respeitável da comunidade escolar continua sendo o mesmo, em detrimento a todo processo de mudança. No fim das contas, a maioria que se esforça para fazer valer a crença de que “nada do que foi será, do jeito que já foi um dia”, acaba por ver os seus esforços ameaçados em meio a um conjunto de comportamentos cristalizados.
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Assim como insisto na necessidade de uma reflexão mais aprofundada e sistemática das questões de ordem prática, talvez você insista também na justificativa de que a minha sobrecarga de trabalho não passa senão pela psicologia social (é essa mesmo?) e os seus papéis complementares. Será que, de fato, todas as perguntas encontram respostas nessas teorias? No meu entendimento, essa dinâmica aponta lacunas em uma dimensão macro e não em uma dimensão micro, onde me parece, desde há muito tempo, está centrado o foco das discussões passadas e presentes. Seja como for, espero que entenda e descarte qualquer possibilidade de um “risco teórico” de insatisfação particular com a escola. Não tenho dúvidas, que as lacunas vão existir sempre, aqui e em qualquer outro lugar. Na verdade, o meu sentimento, embora pareça um tanto quanto pessimista, passa por uma pergunta: Do ponto de vista nacional, a longo prazo, qual será o reflexo de toda essa vivência na minha trajetória? A formulação desse questionamento é fruto, creio eu, de uma das piores descobertas que fiz ao longo da minha história profissional, muito antes de chegar aqui. Sonho, não garante a sobrevivência de ninguém. Um sonho não pode estar isolado, mas inserido numa espécie de espirito do tempo. Tenho medo de que, algum dia, precise abrir mão de ser educadora, porque o alimento de que preciso, em todas os sentidos, deixou de ser suficiente, para que possa dormir com a sensação de dever cumprido e acordar renovada, pronta e inteira para enfrentar novamente a vida. Estamos entrando na Quarta semana de aula. O movimento dos grupos que coordeno, sobretudo o de ....... e ........(G 01); ......, ........, .........(G 02) ainda revelam um movimento instável. Por parte das crianças, muito choro, vômitos, olhares perdidos e solicitação de colos. As professoras por sua vez, não reagem de forma muito diferente. Sentem-se inseguras, impotentes, pedem ajuda de terceiros, caminham sem direção definida. Vivemos uma situação de emergência. Muitas crianças, principalmente novas transitando pelas escola.; um espaço físico grande, cheio de atrativos; um número inoperante de funcionários; um planejamento que não consegue corresponder aos seus objetivos; pais intranqüilos, fazendo leituras distorcidas do nosso trabalho. Isso é real. Isso é o movimento atual da escola, no I Ciclo da E.I. , deixando que naveguem sozinhas. Talvez, este seja um dos poucos lugares no mundo onde tantos sentimentos contraditórios se encontram e se confundem, enriquecendo a nossa dimensão humana e, conseqüentemente a vida. Quero dispor de um tempo maior, para contar a pais e a todos os nossos visitantes, um pouco mais nossa história. Um mundo surpreendente que vai velando-se aos poucos. Qual o papel da agressividade; construção de conhecimentos? Qual a rotina do segmento da Educação Infantil? O que as crianças tão pequenas fazem na escola? O que significa a palavra ética dentro do contexto escolar? O que vem a ser uma Escola de Educação Infantil? Qual a relação, entre a escola e o mundo? Qual o papel de fato, de um educador ? E, o melhor de tudo, poder dividir o nosso orgulho e as nossas conquistas em tão pouco tempo de história. Afinal, ainda não nos encontramos nem na adolescência! O sol brilhava, acho que a 40º, quando no final da manhã de Quinta-feira (08/03/01) sentei para conversar com Sandra, formalizando o nosso primeiro encontro individual no ano de 2001. A conversa girou basicamente, em torno da preservação da identidade da escola. Uma tarefa que exige esforços. Discutimos a necessidade de alinhamento do nosso discurso e o cuidado para não elegermos nenhum profissional como bode expiatório. Se existem destinos ainda permanecem tão desconhecidos para nós porque ainda temos muito o que caminhar. Entretanto, de todas as maneiras, a escola consegue impor respeito. No encontro de capacitação ficava muito tempo calada, analisando os mistérios do seu interior. A Escola era tão encantadora por dentro quanto me parecera por cima do muro, com seu povo, sua cultura, sua historia.
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Fiquei visivelmente preocupada! Era uma escola fantástica e pensei: nessa viagem é melhor levar alguém junto comigo que saiba lidar com tantas e tão grandes desafios. Por isso, até hoje, caminho com você. Até o próximo!!! Com carinho, Taty
DEVOLUÇÃO DA AVANTE Salvador, 11 de março de 2001
Taty, “O importante é que, se de fato aprendemos o amor com essas pessoas e com essa sociedade, podemos desaprender e reaprender; portanto, há uma grande esperança para nós todos, mas em algum ponto é preciso aprender a amar”. Léo Buscaglia
Suas palavras são fortes e causaram em mim um grande impacto. Ecoam tão intensamente que não consigo pensar em outra coisa a não ser no nosso lugar diante da complexidade de fazer educação, construir e reconstruir a escola, manter relações diversas com diferentes pessoas, conviver com a natureza humana. Sandra, Eliana, Patrícia, Mônica, Leck, Madaí, Juliana, Márcia, Viviam, Edelzuita,... Gustavo, Vanessa,...Helinho, Laíse, Serginho, Cayque,... Letícia, Érica, Rodrigo, Guerra,... Débora, Angélica,... anônimos desconhecidos, ausentes, presentes, parceiros, distantes! Histórias! Quantas histórias... Vidas! Inúmeras... Fragmentos! Novelos com fios diversos, que tecidos e destecidos fazem o dia-a-dia de uma escola. Como ajudar? O amor tem que está acima de tudo! É preciso alimentar o nosso sonho de educação mesmo que seja necessário exercitar a “Utopia do Fragmento”. “O professor muda o mundo, um aluno muda a cada vez”. É este o exercício que precisamos fazer! Somos professores e também precisamos implantar mudanças. Por onde começar? Creio que recuar não é o melhor caminho! Vamos eleger prioridades, definir rotinas, traçar metas, fazer planejamento e avaliar. Sem dúvida são duas dimensões: a pedagógica e a administrativa. É preciso articulá-las. É evidente o quanto estão dissociados. Estão de tal maneira que não nos sentimos a vontade para discutir a escola como todo. Uma instituição não é feita de pedaços preciso uni-los. Penso que talvez seja necessário tomar a iniciativa. Me ocorreu neste instante o quanto seria interessante se discutíssemos juntas o livro: “A Escola como uma organização aprendente”, de Hargraves. Depois de uma noite de sono, acordo e voc6e alerta-me, ligando e “dizendo” que é preciso pensar pois a observação de amanhã é no grupo 2 de........... Diante do que você escreve e do que vou ver, o que dizer? Creio que preciso me preparar. Pego “Aprender e ensinar na Educação
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Infantil” de Isabel Solé e colaboradores e antes de abrir questiono-me: Será que é deste saber que preciso para ser interlocutora do grupo? Creio que não! Vou chegar e discretamente entrar na sala a ser observada, vou deixar o coração “ler” os diferentes sinais, levando em conta a história que já conheço. Vamos garantir a identidade da escola, incorporando o contexto deste ano: novos professores, muitas crianças, variadas famílias, circulação de gente muita gente! Creio que algumas medidas podem ser tomadas: Vamos enviar diariamente textos de reflexão para casa. Talvez algumas perguntas e em seguida um breve comentário. Organize uma palestra “emergência” sobre o tema em questão: Adaptação! Talvez a pessoa indicada seja você. Aceita o desafio? É preciso que as fichas de observação comecem a ser preenchidas o quanto antes. Creio que fazer uma de cada aluno sobre adaptação, como você comentou, é muito interessante; É preciso também começar as suas observações pois assim, você pode dar um retorno no mais específico a cada professora; Pensei também em indicar alguns livros para os pais mais ansiosos. Além destes encaminhamentos penso ser interessante tomar algumas medidas a longo prazo, já pensando em outras situações que podem acontecer. O que? Talvez fazendo uma ficha de avaliação para que os pais preencham. O que acha? Por fim, a certeza que a escola é feito algo que gera avanços muito significativos: a reflexão e análise da nossa prática educativa. Esse movimento tão trabalhoso, que nos exige tanto, também oferece condições de superação dos entraves e identificação do que precisa ser ajustado. A fim de compreendermos cada prática respeitamos as singularidades, as diferenças e características próprias mas precisamos também dar conta da totalidade, da escola como todo, por isso estamos enfrentando este desafio todo. O trabalho precisa ser entendido a partir de uma perspectiva que dê conta de pensar a escola na sua essência. Essa certeza resume a nossa grande ansiedade mas esse é o rumo, vamos em frente! Com cumplicidade, Marília
RELATÓRIO DA COORDENADORA Rita, No mês de abril, aproveitando um dos encontros organizados para ações das Escolas Parceiras (tema avaliação e planejamento), reservei um espaço para avaliar, junto com as professoras, nossa caminhada até aquele momento, e, também, sinalizar questões que não estavam sendo cumpridas a exemplo do prazo de entrega dos relatórios e planejamentos. O grupo (exceto ..............e............) queixa-se que o modelo do planejamento dificulta sua elaboração, por ser muito detalhado, necessita que se recorra a muitas fontes de pesquisa e atrelado a tudo isso aparece, como fator importante e unânime o tempo. Quanto ao relatório, argumentam ser difícil fazê-lo diariamente, principalmente dentro do modelo sugerido, de novo o fator tempo aparece como o vilão.
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Diante dos argumentos pedi ao grupo que decidíssemos naquele momento, então o que fazer, precisávamos de uma definição; mudando o instrumento, revendo a periodicidade do relatório, e estabeleci um prazo de 3 dias para que me entregassem como sugestão outros modelos de planejamento e relatório e assim pudéssemos ajustar. Para mim está claro que a questão não é o modelo destes instrumentos, mas a importância e o entendimento que temos. Não sei mais estimular, encaminhar estas questões. Prof. a. ............ levantou a questão que talvez algumas pessoas não sentissem estimuladas a fazer o relatório, porque algumas das minhas devoluções, talvez, não fossem instrumentalizadoras, não acrescentava, elas ficavam com as mesmas dúvidas ou certezas (não foi consenso). Argumentei que devolvia os relatórios considerando sempre para quem estava escrevendo, e, portanto se não estava trabalhando na zona proximal, isto poderia ser traduzido de duas formas; ou não conheço o grupo ou o grupo não tem demonstrado o quanto já aprendeu; quaisquer das alternativas merecem especial atenção. Quando eu trouxe para o grupo situações que vem ocorrendo que não são dignas do nosso grupo (conversas na porta da sala na presença dos alunos, decisões autoritárias frente aos alunos, etc.) houve um pouco de desconforto, natural é do humano. Sinto que as professoras não têm se sentido muito confortáveis frente a alguns posicionamentos que tenho tomado, o que também para mim é natural, quem não quer um colo o tempo todo disponível? Estou mudando, acredito para melhor, minha forma de liderar o grupo, continuo acreditando na humanização das relações mas sem permissividade. Depois que li as respostas do grupo para as questões quanto ao planejamento e avaliação o que era desconfiança virou certeza. O grupo vê o ato de planejar como algo meramente escolar e sua existência deve-se a necessidade de alguém (coordenação) ter que acompanhar as ações que acontecem na escola, está atrelado a sacrifício, a desconforto. Agora, meu papel será tentar construir novos conceitos e assim ir ajustando os entendimentos. Já selecionei muito material para leitura, em breve apresentarei ao grupo o mapeamento e teremos oportunidade de discutir um pouco mais sobre este tema. Margô
DEVOLUÇÃO DA AVANTE Salvador, 6 de junho de 2001
Margarete, Assim como os alunos estão em processo de aprendizagem, todos nós estamos, como você sabe, e neste processo os retrocessos e contradições fazem parte da caminhada. De fato o tempo é um grande inimigo do professor na realidade que trabalha, entretanto, na sua fala vejo outro obstáculo maior do que o tempo; a falta de compreensão da funcionalidade e importância do planejamento a curto, médio e longo prazo para a prática pedagógica. O relatório também parece que não está sendo valorizado por muitas de suas professoras. Nesta situação o encaminhamento mais eficaz é retomar as discussões do porquê destes dois instrumentos. Acredito que o encaminhamento que voc deu a estas questões, chamando o grupo para conversar, ouvindo-o e argumentando é o melhor caminho, entretanto por si só não garante que estas questões se resolvam. Alguns dos textos que foram lidos e discutidos nas reuniões de coordenação podem ser instrumentalizados para uma reflexão sobre as questões que você traz como situação - problema.
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Quanto as devoluções dos relatórios, penso que talvez elas estejam precisando de boas idéias. Nas devoluções continue instigando-as à reflexão de sua prática e acrescente algumas sugestões de como poderia ser feito e ou o quê poderia ser feito em substituição ao realizado. Sua relação com o grupo é muito saudável e de cumplicidade. Você sabe quando deve acolher e cobrar. O grupo reconhece e verbaliza isto com freqüência. Desta forma todas continuaram crescendo em ritmo cada vez maior. Um forte abraço Rita Margarete
Nos relatórios acima, é possível perceber a atitude reflexiva das coordenadoras, que também estão num processo de construção de um novo “modelo” de trabalho, baseado na parceria com os professores e no compromisso de assumirem o papel de líderes de aprendizagem. O redimensionamento desta prática gera muitos conflitos, inquietações, mas é justamente a partir deste movimento e do apoio e interlocução da formadora que vai se configurando o novo papel do coordenador. As reuniões também são um espaço de estudo e ampliação dos conhecimentos que ancoram as práticas do coordenador. Um item permanente das pautas é a leitura de um texto que pode servir para disparar ou aprofundar e referendar as discussões. Além disso, estes encontros também são um espaço de discussão da rotina do coordenador. Esta é uma questão fundamental pois como esta função passa por uma redefinição histórica, muitas vezes no dia-a-dia o coordenador atende as questões emergentes do ambiente escolar, como as ligadas ao gerenciamento, à burocracia, etc, e as questões que são prioritárias passam, mesmo a revelia, a serem secundárias. Assim, um dos objetivos do trabalho de formação é refletir sobre a estruturação desta rotina, de modo que o coordenador tenha clareza de qual é o seu papel e de quais são as ações que viabilizam e potencializam este trabalho. Desta forma, ele é orientado para se organizar utilizando ações semelhantes às do programa de formação. Isto inclui fazer observações sistemáticas na sala de aula e organizar encontros para dar um feedback para o professor; instaurar uma prática de relatórios entre os professores, sendo seu interlocutor, a fim de apoiá-lo no exercício do registro reflexivo; tematizar situações práticas através de atividades e produções dos alunos para um aprofundamento das questões didáticas; acompanhar o desenvolvimento de projetos e os planejamentos de curto, médio e longo prazo; instaurar discussões interséries/ciclos, como forma de articular a continuidade do trabalho e socializar práticas; organizar momentos de estudo; enfim, planejar uma rotina que seja coerente com o papel que desempenha na instituição. “As ações do Programa de Formação Continuada criam condições para que o coordenador se reconheça como um profissional que tem ações que precisam ser realizadas para que se garanta o sucesso do trabalho didático na escola. Consideramos que é fundamental que o coordenador possa realizar ações de observação de sala de aula, que ele possa assumir o papel de 3o olho da prática do professor, olhando aquela prática com olhos de indagação,
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de questionamento, podendo identificar naquele fazer didático o que precisa ser ressignificado, o que precisa ser melhor analisado, para ser tratado de uma outra forma porque pode estar sendo um obstáculo para a aprendizagem do aluno.” (depoimento de Marília Dourado – consultora da Avante/maio de 2002)
O desejável e necessário é que toda a equipe da escola esteja articulada no desenvolvimento de um projeto pedagógico eficiente e coerente com os princípios que orientam o trabalho. Neste sentido, o fortalecimento do coordenador como um dos líderes deste processo é uma meta desta proposta de formação.
A CULTURA DA ESCOLA: UM ITEM TRANSVERSAL NA FORMAÇÃO “Se modificar o professor envolve modificar a pessoa que ele é, precisamos saber como as pessoas se modificam. Nenhum de nós é uma ilha; não nos desenvolvemos em isolamento. Nosso desenvolvimento dá-se através de nossas relações, em especial aquelas que estabelecemos com pessoas importantes para nós. (...) Se em nossos locais de trabalho há pessoas que são importantes para nós e estão entre aquelas por quem temos consideração, elas terão uma enorme capacidade para, positiva ou negativamente, influenciar a espécie de pessoas e, por conseguinte, a espécie de professores que nos tornamos.” (FULLAN, 2000, p. 55)
As questões que se colocam neste aspecto do programa de formação são: Que tipo de comunidades de trabalho são mais adequadas ao desenvolvimento profissional? Em que tipo de cultura o professor precisa estar inserido para que tenha disposição para aprender? Que tipo de relações devem ser estabelecidas para que o professor se sinta motivado e seguro? Quando perguntamos que tipo de comunidade de trabalho favorece o desenvolvimento do profissional reflexivo e que tipo de relações devem prevalecer, logo pensamos na questão do “isolamento”do professor em seu ambiente de trabalho. De certa forma, esta é uma característica predominante nas escolas há muito tempo. Fatores como a falta de tempo, a sobrecarga de trabalho e até mesmo a forma como as escolas estão organizadas espacialmente, interferem negativamente para perpetuar esta situação. Neste sentido, uma força poderosa que alavanca as mudanças é justamente quando há uma tomada de consciência da necessidade de superação deste estado e um esforço para que esta prática deixe de ser solitária e passe a ser solidária. Fullan14 utiliza uma expressão interessante para definir o movimento de transformação que têm ocorrido nas escolas denominada de “pensamento de grupo”. O estabelecimento desta nova atitude pressupõe conversas freqüentes entre os
14 FULLAN, Michael & HARGREAVES, Andy. A escola como uma organização aprendente. Trad. Regina Garcez. 2. Ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. 136 p. Tradução de “What's worth figting for in your school?”
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professores sobre a prática de ensino, criar uma linguagem comum, observar-se mutuamente enquanto ensinam, planejar, avaliar, pesquisar e preparar juntos diferentes materiais. Esta é uma questão complexa pois envolve uma mudança pessoal por parte dos professores, pois será preciso vencer padrões e rotinas previamente estabelecidas a fim de se conquistar este ambiente coletivo. Neste sentido, o Programa de Formação Continuada se constitui em um elemento favorável, pois pressupõe a formalização destes encontros, o intercâmbio e a colaboração entre professores e demais profissionais e fortalece o próprio movimento de mudança, que lhe é peculiar. “O principal benefício da colaboração é sua capacidade de reduzir a sensação de impotência dos professores e aumentar sua sensação de eficiência.” ( Ashton & Webb. 1986. in. Fullan.2000. p.63)
A construção de uma cultura cooperativa e solidária é muito complexa. É um processo longo, que envolve lutas de força, de poder, dentro e fora da escola, já que esta é um produto da sociedade. Mas também há muitos fatores favoráveis para que esta mudança ocorra. Em muitas situações o clima institucional interfere tanto na produtividade do trabalho, que este movimento emerge dos próprios professores, que buscam uma qualidade melhor nas suas relações profissionais. Segundo Fullan 15 “ensinar sempre será um trabalho exaustivo; os professores estão envolvidos em centenas de interações, em circunstâncias potencialmente geradoras de tensão. A todo momento você tem um contato bastante íntimo, dia-a-dia, com um grande número de crianças e jovens, em uma sociedade bastante complexa; tudo isso é um desafio mesmo para os professores mais dinâmicos. Há, no entanto, dois tipos de exaustão. Uma delas decorre de batalhas solitárias e de esforços não-valorizados, de perda de referenciais e de sentimentos corrosivos de desesperança, levando o professor a acreditar em sua incapacidade em fazer diferença. O outro tipo é aquele cansaço que é parte do trabalho duro, que significa ser um elemento de uma equipe, um reconhecimento cada vez maior de que você está engajado em uma luta cujo esforço é válido e um reconhecimento de que aquilo que você faz acarreta uma diferença fundamental ao colega desencorajado ou ao aluno revoltado.” Assim, concluímos que a cultura instaurada na escola faz muita diferença quando pensamos no profissional comprometido com sua qualificação. Um dos maiores desafios de um programa de formação é exatamente instaurar na escola o que Rosenholtz denomina de “escolas em movimento” ou “enriquecidas em termos de aprendizagem”. Estas são escolas onde predomina esta cultura da cooperação, pois mesmo os professores mais experientes acreditam que ensinar é difícil e portanto jamais podem parar de aprender a ensinar. Assim, dar e receber são ações cotidianas, como conseqüência, há uma probabilidade maior em confiar, valorizar, legitimar e partilhar os conhecimentos que são frutos das experiências profissionais.
15 FULLAN, Michael & HARGREAVES, Andy. A escola como uma organização aprendente. Trad. Regina Garcez. 2. Ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. 136 p. Tradução de “What's worth figting for in your school?”
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Nestas escolas as relações de poder são mais horizontais, pelo menos no que se refere à tomada de decisões, que deixam de ter uma conotação de imposição e passam a ser consideradas como ajustes necessários ao desenvolvimento do trabalho coletivo. Desta forma, o professor passa a ter uma visão mais ampla da escola e das questões que extrapolam os limites da sala de aula. Isso envolve a ampliação e valorização do processo de liderança compartilhada, em que as questões da escola são discutidas e analisadas coletivamente, em que os professores passam a participar das decisões e das reflexões que orientam os “caminhos” da instituição. Esta atitude não significa uma ameaça aos diferentes papéis desempenhados pelas pessoas, mas uma redefinição da forma como as decisões são tomadas e os problemas são resolvidos. “Nos últimos tempos, temos vivido uma revolução silenciosa nas escolas em geral. De fato isso tem gerado muita inquietação nas instituições, pois por muito tempo a função da escola foi de informar, de transmitir conhecimento. A partir do momento que há uma ressignificação desta função e um reconhecimento de uma função social e socializadora da escola, tornou-se necessário também ressignificar as relações que são estabelecidas neste ambiente. Neste sentido o desafio é imenso, até porque nós, brasileiros, estamos aprendendo a lidar com relações democráticas nestes últimos anos e as escolas muitas vezes reproduzem modelos sociais e a hegemonia do modelo autoritário da sociedade também é traduzida no ambiente da escola e isso se revela nas relações altamente autoritárias, hierarquizadas, em figuras que determinam todos os processos educativos. Considerando este contexto, é muito desafiador construir uma nova cultura e mobilizar todos os envolvidos a se constituírem em uma comunidade aprendente, que de fato estabelece relações mais horizontais, reconhecendo que são diferentes papéis, são diferentes posições, diferentes funções, mas todos em prol de uma educação de qualidade, que de fato promova aprendizagens e , para isso, precisam estar apoiados uns nos outros, mantendo relações onde a democracia seja uma mola mestra e esteja de fato alimentando o dia-a-dia dos envolvidos. Hoje, reconhecemos que na comunidade escolar todos são educadores , portanto, devem estar envolvidos, atuando no sentido de promover avanços e aprendizagens significativas .(...) Se queremos efetivamente construir um mundo melhor, sem dúvida, a escola é um espaço para que se aprenda a construir uma nova cultura, onde as relações estejam estabelecidas em um outro patamar.” (depoimento de Marília Dourado – consultora da Avante/maio de 2002)
Portanto, este programa de formação tem esta meta “transversal” que é de instaurar ou fortalecer esta cultura na escola, a fim de que se torne cada vez mais um espaço propício para a aprendizagem. Para isso, é necessário compreender a cultura que foi construída em cada instituição, seus valores, formas de funcionamento e, numa relação de parceria, modelada pelas atividades do programa e pelas ações do formador, “provocar” reflexões que repercutam positivamente neste modelo de escola como “uma instituição que aprende”. Uma das grandes contribuições deste modelo de formação para a instauração de uma cultura mais democrática e que propicia a aprendizagem é justamente a possibilidade de reconhecer que o profissional de educação é um eterno aprendiz, que os saberes são transitórios e por isso são transformados, assim como a própria sociedade. Como parte da
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sociedade, a escola também se movimenta para enfrentar os desafios inerentes a todo processo de mudança. “A formação é um elemento de desenvolvimento pessoal e profissional do professor, mas ela também faz parte do investimento da instituição escolar em seu capital humano. Passar de uma concepção individual da formação para a de um investimento institucional significa conciliar imperativos individuais e projetos de grupo; significa considerar a formação como um co-investimento no âmbito do desenvolvimento do projeto do estabelecimento.” (PERRENOUD, 2001, p.98)
Isto é feito nos encontros com a equipe de professores, coordenação e direção, na reflexão sobre os papéis dos demais funcionários da escola, na elaboração compartilhada de documentos curriculares, na valorização das práticas culturais sociais, na leitura e compartilhamento dos livros preferidos, na construção de um vínculo de confiança entre os profissionais e os formadores, enfim, nas relações interpessoais, que extrapolam a dimensão profissional e valorizam o professor como uma pessoa integral e não apenas como um “feixe de competências ou deficiências”. “A formação do professor deve ser pensada levando-se em consideração a importância que esta atividade tem do ponto de vista da formação dos seres humanos.” Alícia Fernández
ALGUMAS CONCLUSÕES, MESMO QUE PROVISÓRIAS, PARA ESTA QUESTÃO Do caminho percorrido, há muito mais a percorrer... Não é nada fácil um olhar “fora” estando dentro. Com esta experiência, pude exercitar mais uma vez o quanto a reflexão da ação, realizada a posteriori é um instrumento precioso e fundamental para o exercício de qualquer atividade que exija uma reflexão contínua. Muitas descobertas além das impressas nestas linhas foram feitas, uma parcela de conhecimento empírico se transformou em conhecimento sistematizado, outras inúmeras incertezas surgiram e outras tantas variáveis foram sendo descobertas, evidenciando cada vez mais a complexidade de ensinar e aprender. É preciso reconhecer os limites desta produção. A pretensão foi muito mais de apresentar um modelo do que de analisá-lo, pois para fazer isso, uma série de questões objetivas e subjetivas teriam que ser consideradas, dando-lhe um formato muito mais abrangente. Além disso, os resultados alcançados divergem muito de acordo com cada instituição, pois são muitos os elementos que interferem na dinâmica do trabalho. Um olhar foi lançado, apontando um modelo de formação que esbarra em uma série de limites próprios e externos, que sofre interferências, que procura ajustar-se a contextos
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diversos, que causa um impacto significativo nas instituições e nas pessoas. Mas fica a certeza, pelo menos provisória, que a forma como o modelo está estruturado é extremamente favorável àqueles que se interessam por boas estratégias de formação e que buscam uma coerência entre ensinar e aprender. Também não há dúvida que o professor precisa de apoios nesta trajetória de formação contínua. Acredito cada vez mais que a escola precisa estar abrindo este caminho, tornandose uma instituição que se estrutura de tal forma que favoreça o crescimento daqueles que nela atuam, tendo uma visão educacional mais ampla, pois o aperfeiçoamento do ensino é um empreendimento muito mais coletivo do que individual. Isso significa que não basta o professor querer, é preciso dar-lhe condições. O desafio de qualquer programa de formação continuada é enorme no contexto da educação brasileira. Muitas vezes as situações são muito contraditórias: falar de cultura, com um professor que não tem condições de comprar livros; ter um discurso de formação de alunos produtores de texto, quando os professores escrevem tão pouco; falar de aprendizagem significativa e os recursos são escassos, enfim, mesmo sem ter a intenção de generalizar é preciso considerar este cenário que é real e que dificulta muito o desenvolvimento profissional, mesmo porque, algumas variáveis estão “fora” das possibilidades de atuação da formação. Os modelos de formação continuada precisam considerar a história pessoal e profissional do professor, respeitando-o como profissional que está sendo convidado, muitas vezes pressionado, a refletir e ressignificar, num curto espaço de tempo, uma prática que foi validada pela instituição de ensino e pela sociedade durante muito tempo. Necessitam compreender e acolher os sentimentos do professor neste complexo exercício de reconstruir a sua identidade pessoal e profissional e desta forma, ajudá-lo a superar as matrizes do processo inicial da sua formação docente, saindo do lugar do aprendiz observador, para o lugar de aprendiz pesquisador. A contradição existe e é convivendo com ela que estamos transformando a realidade. Mas, sejamos otimistas, a educação de qualidade para todos, inclusive para os professores já é realidade em muitas escolas brasileiras, este relato é uma prova de como é possível formar, qualificar, mesmo considerando a complexidade desta questão. Há muito o que fazer, mas é preciso reconhecer, que muito já tem sido feito. E este é um momento extremamente favorável, pois nunca se produziu tanta pesquisa nesta área, nunca se buscou tanto as respostas para a indagação maior de todo formador que é: como o professor aprende? Finalmente, inspirando-me mais uma vez em Perrenoud, uma última reflexão parece necessária. “Somente pode gerir uma formação para a reflexividade um formador preparado para uma conduta reflexiva; somente pode acompanhar o desenvolvimento profissional sem prejuízos, o formador que também está em processo de busca e desenvolvimento do seu “eu”16.
16 PERRENOUD, Philippe. Formando professores profissionais. Trad. Fátima Murad e Eunice Gruman. Porto Alegre: Aretes Médicas, 2001. 224 p. Tradução de “Former des enseignants professionnels: Quelles stratégies? Quelles compétences?”
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Este é sem dúvida, o grande mérito deste capítulo! Possibilitar mais um olhar atento sobre esta questão, assumindo-a com toda a complexidade que lhe é inerente, e mesmo com a certeza de não se ter todas as respostas, dar um impulso para que se compreenda um pouco mais o processo de aprendizagem do professor, conduzindo aqueles que se interessam por esta questão para o desenvolvimento de uma competência importante para todo formador: reconhecer seus limites e possibilidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL.MEC. Secretaria de Educação Fundamental. Referenciais para formação de professores. Brasília: Sec. Ed. Fund. 1999 . 177p . PERRENOUD, Philippe. 10 novas competências para ensinar. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. 192 p. Tradução de “Dix nouvelles compétences pour enseigner”. _ . Construir as competências desde a escola. Trad. Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. 86p. Tradução de “Construire des compétences dès l'école”. _ . Dez novas competências para ensinar. Trad. Patrícia C. Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. 192 p. Tradução de Dix nouvelles compétences pour enseigner. _ . Formando professores profissionais. Trad. Fátima Murad e Eunice Gruman. Porto Alegre: Aretes Médicas, 2001. 224 p. Tradução de “Former des enseignants professionnels: Quelles stratégies? Quelles compétences?” _ . A prática reflexiva no ofício de professor: profissionalização e razão pedagógica. Trad.Cláudia Schiling. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002. 232 p. Tradução de “Développer la practique réflexive dans le métier d'enseignant WEISZ, Telma. O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. Ática, 1999. 133 P.
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3 Como Venho me Tornando Professora Rita Margarete Moreira Santos
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COMO VENHO ME TORNANDO PROFESSORA
“Partir. Sair... Tornar-se vários, desbravar o exterior, Bifurcar em algum lugar... Não há aprendizado sem exposição, Às vezes perigosa, ao outro... Eu me exponho ao outro, às estranhezas...” Michel Seres
O CURSO DE MAGISTÉRIO Era início da década de 1980. Os cursos profissionalizantes estavam na ordem do dia. A Escola Técnica Federal de Pernambuco era considerada a melhor opção para quem precisava trabalhar logo cedo (era o meu caso). Mas, justamente por ser a melhor opção para inserção no mercado de trabalho, a concorrência eliminava os pretendentes menos preparados (que também era o meu caso). Depois da Escola Técnica, para as mulheres, a melhor opção era o magistério. Naquela época, a oferta de emprego e a valorização do professor ainda motivavam as jovens a cursar o magistério. Os concursos públicos eram freqüentes, muitas vezes com carga horária de 20 horas semanais, ótimo para nós, mulheres adolescentes que, no discurso vigente no meu contexto sociocultural, logo seríamos donas de casa, mães e esposas. As minhas irmãs, professoras, ratificavam esta crença, apesar de muitas vezes reclamarem, enfaticamente, do baixo salário, da falta de reconhecimento e do comportamento inadequado dos alunos. Embora os comentários das minhas irmãs causassem certa confusão entre as vantagens e desvantagens do magistério, eu não tinha muitas opções para escolher nem a ousadia peculiar aos adolescentes para decidir por outra opção profissional que não fosse a mais indicada para as jovens do meu contexto sócio-econômico. Então, fui matriculada no curso de magistério em um colégio da Rede privada do Recife. No primeiro ano, constavam do currículo as disciplinas convencionais do científico – atual ensino médio – e a disciplina específica literatura infantil. Passei o ano letivo tentando estabelecer relação entre literatura infantil e as duas dentições da criança. Assunto abordado durante todo o ano por Cristina - uma professora magricela, de cabelos castanhos e longos. Uma jovem muito simpática e acolhedora. Apaixonada por seu noivo e por isso contava os meses que antecediam o casamento. Talvez porque Cristina estivesse tão apaixonada e a primeira e a segunda dentição fossem pouco assunto para ser discutido na disciplina de literatura infantil durante todo o ano letivo, a professora usasse algumas aulas para nos falar do seu noivo, dos planos que pretendia realizar em breve e de um sobrinho que cismava em afirmar que a lua sempre o perseguia. Quando ela chegava nesta questão, e sempre chegava, falava um pouco e vagamente das descobertas de Piaget. No entanto, foi com ela, professora de fala macia e acolhedora, que eu vi pela primeira vez alguém falar de crianças, com carinho e empolgação.
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No segundo ano, recorrendo ao privilégio de ter uma irmã professora da Rede Municipal de Educação do Recife, consegui uma vaga no centro de referência para o curso de magistério daquela cidade – Escola Sílvyo Rabello. Estudava em turno integral e recordo-me, com facilidade, de poucas disciplinas: Prática Educativa (incluía o estágio) e Didática, das quais Zélia, professora experiente e bem conceituada na comunidade daquela escola, era titular. Ela era sisuda, exigente, pontualíssima e possuía uma enorme sacola de tecido. Mas nada tinha de parecido com a maleta daquela professora descrita em um conto por Lygia Bojunga: dentro de sua sacola, nas aulas da disciplina Didática, não havia pacotes de cores diferentes, nós, suas alunas, não ficávamos ansiosas para saber qual seria o assunto da aula. Não aprendíamos com os colegas. Ainda diferentemente da professora do conto, Zélia, nas aulas de Prática Educativa, abria sempre o mesmo pacote e retirava o invariável: sucata, hidrocor, cola, tesoura, régua, etc. material necessário para nos ensinar a confeccionar os flanelógrafos, os personagens que seriam usados nas futuras aulas a serem ministradas no estágio e as barrinhas para as aulas sobre unidades, dezenas e centenas, usando o Q. V. L. (Quadro Valor de Lugar). Outra atividade freqüente nesta disciplina era o “estudo de caso”, escrito, dirigido e solucionado pela professora Zélia. Nós tínhamos o papel passivo de responder como agiríamos diante das situações-problema elaboradas pela professora, mas a palavra final era sempre dela, independente das respostas que chegássemos. Esta postura de Zélia refletia a concepção do que era ser professor: profissional que carrega receitas infalíveis e aplicáveis a todas as situações, situações que inclusive estão previstas e não são afetadas por variável alguma. Nesta perspectiva, o professor era considerado um mero consumidor dos saberes produzidos por outrem, assim como todos os alunos eram iguais e sofriam do mesmo “mal”. Portanto, a mesma receita curá-los-ia. Desta disciplina eu não gostava. Sentia-me sem jeito e desmotivada para recortar, colar pintar, plastificar (pincelando com cola) as gravuras recortadas de livros para ilustrar as histórias que um dia, quando eu estivesse regendo uma sala, talvez contasse para os alunos. Na disciplina Prática Educativa estava incluído o estágio (observação de aula), uma parte da carga horária em uma escola privada, outra parte em uma escola municipal. Na Rede privada o estágio era em uma escola montessoriana (não lembro o nome) e apenas observávamos as aulas. Chamava-me a atenção o fato das crianças seguirem um ritual de enfiar cadarços, encaixar peças independentemente das competências já construídas ou da semelhança com as crianças alvo da pesquisadora montessoriana. Nada nos era explicado ou comentado. Mas, deduzia que era a metodologia mais apropriada porque a diretora era representava da OMEP (Organização Mundial para Educação Pré-escolar) no Estado de Pernambuco e a escola era bastante reconhecida na comunidade da Escola Sílvyo Rabello. As observações feitas nas escolas públicas, não traziam novidade. O descaso pelo aluno e a insatisfação das professoras com a realidade em que trabalhavam (faltava material didático, as crianças não se interessavam por nada, eram mal educadas, falavam errado) eram os elementos novos, comparando a escola anterior. Estas queixas eram bastante familiares. As minhas irmãs faziam as mesmas reclamações sempre que falavam de trabalho.
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As recordações sobre as aulas de Psicologia, já no terceiro ano do Magistério resumem-se a afirmação do professor “Um lar é cada coisa em seu lugar.” Com muito esforço lembro-me vagamente que ele falava muito dos lares desestruturados que impactavam negativamente no aprendizado das crianças. História Geral com o professor Adauto - um senhor obeso, de idade avançada que durante todo o ano falava de Dário Nabucodonosor e o que diferencia Deus do homem; “Deus é onisciente, onipresente e onipotente”. Bem, até que o assunto era mais agradável do que o abordado nas aulas de psicologia, mas além de ser sempre o mesmo assunto, ele ministrava aula sentado, meio sonolento, sem nenhum recurso ou roteiro. As aulas eram sempre iguais; mesma abordagem, semelhante desmotivação e a mesma obrigação de copiar, novamente, inclusive as vírgulas, o que já haviam sido ditados e copiados em aulas anteriores, entre um cochilo e outro do professor Adauto. Estas são as lembranças que guardo do curso de magistério no qual fui aprovada com ótimas notas.
INGRESSO NO MERCADO DE TRABALHO As expectativas de emprego fácil foram frustradas. As Secretarias Municipal e Estadual de Educação não abriram inscrições para concurso nos três primeiros anos após a minha formatura. O tão fácil esperado emprego foi difícil. Fiz estágios em algumas escolas da rede privada acreditando na possibilidade de ser contratada. Foram momentos angustiantes: não sabia como agir. As escolas apenas diziam que eu observaria algumas salas. Tal qual fiz por dois anos quando era estudante. Sentava-me no fim da sala, observava tudo, depois ia para casa querendo entender a funcionalidade de tal estágio e até mesmo de muitas atividades que assistia. Mas concluía que algo em mim, definitivamente, estava errado. O modelo de estágio era o mesmo da escola onde estudei. Então deveria ser eficiente. Mas, por que eu não conseguia ver sentido em ficar a manhã toda sentada sem dizer uma palavra? Cansei e resolvi oferecer meus serviços “dando reforço escolar”. A partir deste momento, acredito que fui me formando professora. As crianças começaram a mostrar-me que eu sabia muito pouco sobre como elas aprendiam e do que me propunha a ensinar. A decepção de saber que não sabia o quanto pensava maltratou-me bastante, mas mostrou-me que eu podia e devia questionar o que havia aprendido. Saber sobre o que ensinar foi “facilmente resolvido” porque bastava recorrer a algumas enciclopédias e livros didáticos, ler mais do que a escola daquelas crianças pediam e conseguia explicar e estabelecer relações entre os diversos fragmentos eleitos pela escola como conteúdos importantes para as crianças decorarem. Em 1985 cheguei a Salvador para morar. Fui trabalhar numa escola de educação infantil. A minha primeira escola! Lá, Montessori não era referência. A concepção de aprendizagem adotada era a do século XVII - o Empirismo: “o conhecimento é adquirido pelos sentidos e o
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sujeito é basicamente passivo, já que está exposto às influências que vêm do exterior e que agem sobre ele...”1 Aquela situação me fez lembrar a professora Zélia. Coerente com esta concepção de aprendizagem, todas nós, professoras, elaborávamos muitos exercícios de fixação. Principalmente os pontilhados para o aluno cobrir, recortar papéis e colar. Exercício muito valorizado para desenvolvimento da coordenação motora: o aluno pegar corretamente no lápis, aprender a escrever e, bem depois, escrever. Acreditava-se que o aluno precisava seguir esta seqüência no processo de aprendizagem da escrita. Então, as atividades de casa eram réplicas das feitas em sala. Ainda assim eram minuciosamente explicadas para garantir que todos fizessem certo, evitando o máximo possível o erro. Em 1987 ingressei em uma escola privada de grande porte (três mil alunos) escola de tradição na cidade de Salvador na qual estudaram grandes personalidades do nosso Estado. Ao mesmo tempo, fui aprovada num processo de seleção da Rede SESI e passei no vestibular para pedagogia. Apesar de tanta conquista, ainda não sabia muito bem porque estava estudando para ser professora. Talvez por ter gostado de lidar com o poder que o saber de professor parece oferecer. Talvez por gostar de lidar com crianças. Com certeza não era porque tinha ciência do meu papel como professora ou, muito menos, da função da escola. Não sabia que “O professor pode mudar o mundo, um aluno a cada vez.” (escrito na porta de uma sala de aula que visitei em Toronto). A Faculdade de Educação da Bahia onde eu cursei a graduação discutia a importância do professor conscientizar-se da função da escola na transformação da realidade social de seus alunos. E na bibliografia indicada aos alunos estavam as publicações assinadas por Moacir Gadotti, Bárbara Freitag, José Carlos Libâneo e outros. Ao mesmo tempo, na escola da rede privada, onde eu trabalhava, chegaram as interpretações feitas por Lauro de Oliveira Lima e Ester Pillar Grossi sobre a teoria Construtivista. Conheci Lúcia Regina, ex-aluna de Ester Pillar e recém chegada do Rio Grande do Sul para assumir uma das salas de alfabetização. Aos poucos ouvia falar em Psicogênese da escrita, recorria mais a Piaget, aquele pesquisador de quem Cristina, minha professora noiva, no magistério, havia falado. A leitura das produções destes autores foi fundamental para eu refletir sobre a minha prática. Éramos mais de 30 professoras naquela escola e acredito que refletíamos movidas 2 pela angústia e preocupação de justificar a nossa própria ação, o que, segundo Perrenoud , esta reflexão não se constitui numa alavanca essencial de autoformação e, por conseguinte de construção de novas competências e de novas práticas. Assim, as discussões sobre a necessidade de rever o como e o que ensinar eram confusas. Algumas de nós reconheciam a incoerência entre a teoria e a prática da qual estávamos nos apropriando. Mas, não tínhamos o que Perrenoud chama de lucidez profissional: “saber analisar e explicar sua prática, tomar consciência do que se faz” 2. 1
DELVAL, Juan. Crescer e Pensar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.244p.
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PERRENOUD. Philippe, et alii. Formando professores profissionais. Porto Alegre: Artmed, 2001. 224p.
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Além disso, a marca de contradição, inerente aos processos de mudanças, se revelava na postura da direção e da coordenação do colégio: ao mesmo tempo em que incentivavam as tentativas de revisão do nosso fazer pedagógico, aceitavam e apoiavam encontros entre o corpo docente e os autores de livros didáticos, patrocinados pelas editoras interessadas em convencer a comunidade escolar que seu produto era o melhor. Esta situação causou confusão e exigiu que a escola se posicionasse com clareza a respeito da sua opção pedagógica. O que também não era fácil porque nós, professoras, ainda não tínhamos nos apropriado do discurso que, naquele momento, repetíamos. Esta indefinição e as notícias de novas (novas para nós) publicações sobre como o indivíduo aprende e a necessidade imperiosa de rever a prática pedagógica da instituição fizeram a direção da escola buscar apoio de uma consultoria pedagógica, a Avante Consultores Associados. De início, o grupo de professoras aceitou bem. Mas à medida que foi desafiado a refletir, explicar e teorizar a sua prática, a maioria reagiu resistindo à idéia de reconstruir sua identidade profissional. A consultoria foi suspensa e voltamos a ficar sozinhas, tateando em busca de uma luz que indicasse o caminho a ser seguido. Quanto a mim, fiquei deslumbrada com o novo revelado pela consultoria e por outros profissionais que a Escola trazia para ministrar cursos e palestras. Na mesma proporção do deslumbramento, a angústia aumentava. Muitas vezes chorei diante daquela montanha de cadernos, livros e atividades que eu elaborava e devia corrigir. Não sabia o quê corrigir, nem porquê, e isto afligia-me muito mais. Procurei respostas e através das pesquisas de Terezinha Nunes3 aprendi que os “erros” ortográficos têm natureza diferente e que expressam ideias das crianças a respeito de como a escrita funciona, assisti Lúcia Browne4 falar de suas descobertas sobre a aquisição das regras ortográficas. Fui convencida da necessidade de rever a minha prática. Naquele momento, o meu sentimento era de afogamento em um mar de informações. Eu percebia que entre tantas informações, estavam possíveis caminhos para sair do afogamento, mas não conseguia processar tantas informações e fazer uso de algumas delas para salvar-me do afogamento. Dessa forma, o estado de angústia e insatisfação crescia, corrigir as atividades que eu exigia que as crianças fizessem e que nem eu mesma sabia para que serviam, dava-me a certeza de que eu e as crianças perdíamos tempo. Eu tinha certeza que não podia continuar como estava. Mas como deveria fazer? Era a grande pergunta para as minhas questões. Navegando naquele bravio mar de dúvidas, onde via ou ouvia algo novo, para lá corria. Lembro-me de ter ouvido em um seminário que era importante que as crianças fizessem reconto, por escrito. Então meus alunos da 2ª série (a escola era organizada por série) assistiam a vídeos de contos clássicos, ou liam os livros para depois reescrever os contos. As crianças não gostavam da ideia; assistiam ou liam os livros protestando. Depois era a minha vez de protestar quando tinha que corrigir todos aqueles textos. Na verdade eu apenas
3
NUNES, Terezinha. Chefe do departamento de psicologia da Oxford Brookes- Universidade
4
BROWNE, Lúcia. Professora da pós-graduação em psicologia da Universidade Federal ide Pernambuco
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COMO VENHO ME TORNANDO PROFESSORA
corrigia a ortografia e a concordância. O que mais poderia assinalar naquelas produções? Eu não sabia! Também não sabia o porquê nem para quê aquele trabalho serviria no processo de aprendizagem do aluno. Em 1996, deixei a escola que estava trabalhando desde 1987 para ingressar em uma outra, também privada, que vivia o auge do seu processo decisivo de mudança das concepções de ensino e de aprendizagem. Esta instituição estava escrevendo seu currículo. Cheguei no momento que a Avante organização responsável pela formação continuada da equipe pedagógica (a mesma que conheci na escola que trabalhei anteriormente), havia solicitado ao corpo docente contribuições para esse documento. Cabia aos professores, coordenadoras pedagógicas e à diretora dizerem qual a concepção de cidadão, de ensino e de aprendizagem orientariam o trabalho da escola, a partir da escrita do currículo. O corpo docente estava muito inseguro. Muitos reclamavam da enorme demanda de trabalho e de responsabilidade que há três anos vinha aumentando sem que o salário ou outro tipo de reconhecimento tivesse acompanhado. Naquele ano alguns professores não chegaram até o final do período letivo, uma professora adoeceu; segundo ela, o médico diagnosticou como estresse e sobrecarga de trabalho. Outras, ainda, esperaram a conclusão do ano letivo e pediram demissão afirmando que a demanda de trabalho era grande demais, que estavam confusas e inseguras com tantas mudanças. Eu não conseguia entender aquele movimento de saída, traumático, de um processo que já havia sido instaurado há três anos (tempo que a escola tinha de formação continuada), inclusive com a participação de uma representação das professoras em congressos internacionais. Apesar das turbulências, não senti dificuldades para adaptar-me ao processo nem ao grupo. Fiz parte do segundo ciclo do ensino fundamental. Trabalhei com uma parceira que também era estreante na escola e no grupo 9 (turma que assumiu) e tínhamos como coordenadora uma profissional sonhadora, empenhada em fazer daquela escola um espaço de aprendizagens significativas para os alunos e professoras. A diretora era muito próxima e colocavase à disposição, sempre. Além disso. Trabalhar naquele ambiente foi muito desafiador. A prática já construída pela escola colocava em xeque quase tudo que eu fazia. Precisei ler muito mais. As dúvidas agora concentravam-se no como fazer e no que fazer. Porque onde eu queria chegar estava definido. Mas não era tão simples assim. A escola trabalhava com a Pedagogia por Projetos e o aluno era sujeito ativo no seu processo de aprendizagem; professor deveria ter clareza do que pretendia que os alunos construíssem como aprendizagem. Nesta perspectiva, era necessário ter amplo conhecimento da estrutura da matéria que se ensina, da didática, da psicologia e da realidade socioeconômica política e cultural que os sujeitos do processo estavam inseridos. Enfim, era preciso saber mais do que eu sabia. Convencida da necessidade de estudar, empenhei-me para acompanhar o ritmo das mudanças. Li a bibliografia que o grupo de professores já havia lido e participei de todos os cursos e encontros internacionais que a Avante realizava anualmente com pesquisadores e estudiosos reconhecidos. Aprendi bastante, mas, muitas vezes surpreendia-me com as
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contradições entre a minha prática e os conhecimentos que pensava já ter construído porque naquele momento não entendia meu próprio processo de aprendizagem. Eu não levava em conta a minha história de vida que, querendo ou não, era refletida na prática pedagógica. As marcas da Escola onde aprendi e ensinei (no período anterior) não podiam ser apagadas tão rapidamente e a partir de uma enorme quantidade de informações que recebia em tempo recorde. No anos seguinte, 1997, a formação continuada desenvolvida pela Avante compreendia três ações: Observação de uma aula, quinzenalmente. Em seguida, análise e discussão com a professora da sala observada, a partir das anotações feitas pela consultora. Participavam da discussão a coordenação pedagógica, a direção e demais professoras do mesmo ciclo de ensino; Reuniões quinzenais com a direção e coordenação pedagógica para análise e reflexão de seus papéis; Encontros, também quinzenais, com o corpo docente para análise e reflexão da prática pedagógica da escola. A reflexão partia da análise do material produzido pelos professores e coordenação pedagógica (atividades de suporte de papel, filmagens de aulas, relatórios diários ou semanais).
Avaliando os avanços da equipe pedagógica da escola, naquele ano a Avante propôs um projeto de tutoria, que tinha como objetivo planejar, produzir, realizar e socializar boas situações de aprendizagem. Para isso, foi escolhida uma sala para ser o laboratório. A professora desta sala era a piloto do projeto e contava com o acompanhamento mais sistemático da consultora. As reuniões eram semanais (em turno contrário ao de trabalho na escola) para planejar, produzir e avaliar situações de aprendizagem e atividades de suporte de papel que seriam realizadas na sala laboratório. Semanalmente acontecia filmagem de uma atividade realizada na sala laboratório para ser analisada e discutida por toda a equipe pedagógica da escola. Além disto, a consultoria fazia observações quinzenais nesta sala, de uma situação de aprendizagem e depois, fazia uma reflexão sobre o desenvolvimento da atividade; a postura e atitudes dos alunos e da professora; sobre as aprendizagens que as crianças demonstraram ter construído e os possíveis encaminhamentos pra a próxima aula. A primeira sala laboratório foi a minha. E pelas demandas e responsabilidades supracitadas, foi a situação mais desafiadora que já havia enfrentado até então. Entretanto, uma atmosfera motivante pairava sobre aquele ambiente. A cumplicidade e o empenho do grupo afirmavam que eu não estava sozinha, os meus medos, insegurança não saberes,... eram dele também. E assim, aquele semestre teve um significado em minha formação maior do que os quatro anos que cursei a graduação em pedagogia. Na graduação questões sobre o ensino e a aprendizagem foram abordadas muito superficialmente e não vivenciei situação que me levasse a refletir sobre a prática, a pensar na possibilidade e na necessidade de ser uma professora-pesquisadora, embora Pereira afirme que esta era a ênfase da formação de professor, naquele momento: “Do treinamento do técnico em educação, na década de 70, observa-se a ênfase na formação do educador na primeira metade dos anos 80 e, nos 90, um redirecionamento para a 5 formação do professor-pesquisador.”
5
PEREIRA, Júlio Emílio Diniz. Formação de Professores: pesquisa, representações e poder. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. 168p.
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COMO VENHO ME TORNANDO PROFESSORA
Além disso, os meus conhecimentos acadêmicos não me ajudaram a identificar, analisar, compreender e intervir nas questões de ensino e de aprendizagem em minha sala de aula. Em contra partida, no processo de formação continuada, principalmente no projeto de tutoria, a tematização de situações práticas eram constantes e exigia o pensamento práticoreflexivo de todas as envolvidas no planejamento, execução e avaliação das atividades (direção, coordenação e professoras). Assim, neste trabalho cooperativo identifiquei dificuldades busquei alternativas de ações, elaborei propostas de intervenções didáticas, refleti e discuti sua adequação. Para que isso fosse possível, precisei revelar meus não saberes. Falar das angústias, socializar a minha prática. Atitude não cultivada entre nós, professores, conforme afirma Cifali: “No mundo da educação e do ensino, o erro e a dúvida não são expostos já de longa data. Trata-se de não mostrar nenhum temor que seja usado contra nós. Estamos presos em 6 desafios políticos que impedem de tornar públicos os fracassos e as dúvidas.”
Todavia, falar destes sentimentos e socializar os retornos que eu dava aos alunos por escrito não foi fácil. Lembro que ao organizar algumas atividades para socializar com o grupo, senti tanta insegurança que pensei em desistir. Acredito que não o fiz porque paralelamente a preocupação e ao desafio de ressignificar a prática, procurei compreender e gerenciar o meu processo de aprendizagem. Fui tomando consciência do porquê da insegurança e do medo a medida que aprofundei a leitura sobre as tomadas de consciência do professor. Sobre isso, afirma Perrenoud: “(...) Inúmeras tomadas de consciência são inibidas não porque revelariam diretamente um passado recolhido, mas porque trariam à luz comportamentos e atitudes pouco defensáveis em relação ao que se pensa ou gostaria de ser. [...] Outras tomadas de consciências são menos dolorosas. Nenhuma é anódina, porque o retraimento ou o esquecimento sempre têm um sentido. Nossa cultura instiga-nos a valorizar a lucidez. Nossa cegueira fere-nos no dia em que compreendemos quem somos verdadeiramente.”
Nesse processo, administrando angústias e ressignificando meu fazer, reconstruí o meu ser professor. Fui convidada pela Avante para participar de algumas ações pontuais em programas de formação continuada de professor e por dois anos atuei, paralelamente, como formadora (pela Avante) e professora ou coordenadora pedagógica. Esta situação possibilitou-me exercitar o olhar relativo no que se refere ao processo de aprendizagem do professor e certamente do meu próprio. Conhecimento de muita valia para o trabalho de formação continuada que eu desenvolvia. É neste processo de contradições, ação-reflexão-estudo-reflexão-ação, que estou construindo o meu ser professor. Hoje, sei que foi iniciado desde quando entrei na escola, pela primeira vez, como aluna. Desde que li as atitudes da minha primeira professora comecei a construir o que é ser professor. Aliás, não sei por que não guardo recordações, exatamente, das primeiras professoras. Talvez a explicação seja simples, tal qual um livro incipiente que lemos por obrigação e pouco depois de nada lembramos, esqueci delas.
6
CIFALI, Mireille. Conduta Clínica, Formação e Escrita. In: Formando professores profissionais: quais estratégias? Quais competências. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2001. 224p. cap.6, p.101-114.
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FORMAR PARA TRANSFORMAR O caso do município de Irecê
O certo é que a radiografia da professora Rita Margarete, quando posta contra a luz, transforma-se num caleidoscópio cujas imagens, se observadas atentamente, mostram a professora Miraci (séries iniciais – fundamental I) fazendo seus ditados rotineiros e alertando: “[...] na mesma linha, se não der, na outra.” Prova do quanto subestimava os alunos. Vê-se o professor Laércio (1º ano – ensino médio) exigindo as fichas de leitura das obras literárias que líamos por obrigação. Pobre mestre! Não sabia que “A literatura não tem objetivos além de si mesma”.7 Aparece ainda a professora Givanilda (séries iniciais – fundamental I) exigindo a participação dos alunos nas dramatizações que planejava e seus constantes sermões, responsabilizando cada um pela pouca aprendizagem. Identifica-se a professora Mary (1º ensino médio), sapiência em pessoa! Acreditava tanto no seu saber e adorava imensamente ouvir sua própria voz a ponto de falar, sozinha, os 50 minutos de aula. Este é o meu “currículo oculto” no processo da minha formação de professora. Para identificá-lo e compreendê-lo, vou recuperando, também, recordações da convivência com algumas colegas de trabalhos que contribuíram para a minha formação profissional. Acredito que este exercício de identificar o impacto das relações com os colegas de trabalho em nossa formação é fundamental para nós professores que, como afirma Fullan8, não costumamos fazer parte de um grupo cooperativo; trabalhamos isolados, solitários, longe dos colegas. Então, reconheço como a convivência e o acolhimento das colegas de trabalho, no período de 1987 a 1996, Onely Mabel, Zenóbia Carvalho, Ana Cristina Barata, Ana Bernadete Menezes, Jôse Guerreiro, Maria de Lourdes Pereira e Jelza Guimarães, foram importantes para a minha autoconfiança, naquele momento desafiador de ingresso em uma escola de grande porte. As orientações de como lidar com as crianças, com as famílias, as dicas na hora do planejamento e elaboração de atividades foram valiosas. A segunda metade da década de 1990, período que mais refleti sobre a minha prática de sala de aula. Certamente a equipe da Avante, consultoria pedagógica da escola, ao colocar-se como parceira das professoras; incentivando, acolhendo e ajudando o grupo a encontrar possíveis encaminhamentos para as questões levantadas, contribuiu bastante para esta reflexão. Além disso, contei com o apoio, de Maristela Marques, Neide Silveira, Eugênia Costa, Lílian Mustafá, Fabiane Brasileiro, Fabianni Rocha e outras colegas. Juntas, procurávamos valorizar, duvidar, legitimar, partilhar, cooperar, produzir e avaliar conhecimentos. Construímos um espaço importante ara a nossa autoformação, Era um espaço no qual, nas palavras de Nóvoa: “(...) as práticas e as opiniões singulares adquirem visibilidade e são submetidas a opiniões de outros”.9 Fazendo parte desse grupo comecei a perceber a profissão de professor de outra perspectiva, tal como descreve Weisz e Sanchez:
7
ALVES, Rubem, Entre a Ciência e a Sapiência: o dilema da Educação. 2 ed. São Paulo: Loyola, 1999. 148p
8
FULLAN, Michael, A escola como organização aprendente: buscando uma educação de qualidade. 2 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. 136p
9
NÓVOA, Antonio. Professor se forma na escola. R. Nova Escola. São Paulo. fevereiro 2001.
151
COMO VENHO ME TORNANDO PROFESSORA
“Começamos a perceber a profissão de professor como uma profissão que pressupõe uma prática de reflexão e atualização constante. [...] Seu papel tende a ser mais exigente: precisa se tornar capaz de criar ou adaptar boas situações de aprendizagem, adequadas a seus reais 10 alunos, cujos percursos de aprendizagem ele precisa saber reconhecer.”
Na função de coordenadora pedagógica trabalhei com Gisélia Quadros, Lisanete Almeida, Ana Paiva e Thaís Costa, companheiras que conheciam bem o funcionamento da escola e a história dos alunos e compartilharam comigo sem nenhuma restrição a minha condição de recém chegada no grupo. As professoras que coordenei, ávidas por conhecimentos, trouxeram outro desfio, pois lidar com as questões que facilitam e as que dificultam a autoformação do professor, do lugar de consultora é diferente de lidar do lugar de coordenadora que está envolvida na engrenagem de funcionamento da escola. Falar das trocas que fiz com tantas companheiras de profissão me faz lembrar de Fulann quando afirma: “Nosso desenvolvimento dá-se através de nossas relações, em especial daquelas que estabelecemos com pessoas importantes para nós” 10. Acredito que a formação continuada que prioriza o desenvolvimento do pensamentoreflexivo mexe com pontos nevrálgicos do professor: conceitos, valores, certezas, autoestima, saberes e não saberes. Desafia o professor a ser protagonista da construção de uma Escola de qualidade para todos - uma empreitada que exige dele a reconstrução da Escola onde estudou, lecionou e foi reconhecido; Exige que o professor reconstrua o seu fazer. Assim, provoca sentimentos que têm grande impacto na decisão do professor permanecer no processo de formação. Esta formação também instaura um ambiente altamente favorável para a profissionalização do professor e impõe ao consultor, além da competência técnica, atitudes de respeito, tolerância, paciência, compreensão, acolhimento, incentivo e cobrança para criar um ambiente favorável à aprendizagem e à superação dos medos, do isolamento, do receio de expor-se ao outro. Foi com atitudes como estas que Thereza Marcílio11 foi uma das pessoas mais importantes para que eu ressignificasse a minha prática. Ela compreende o processo de aprendizagem complexo e às vezes lento do professor como próprio das reconstruções raras e singulares do ser humano que está, segundo Nanci Nóbrega, “sempre no gerúndio; construindo, aprendendo, ressignificando, recomeçando...”12 A análise que faço do meu percurso ajuda-me, no trabalho com formação de professor, a compreender e encaminhar as questões que eles trazem, pois, como disse Perrenoud: “Somente pode gerir uma formação para a reflexividade um formador preparado para uma conduta reflexiva; somente pode acompanhar o desenvolvimento pessoal sem prejuízos o formador que também está em processo de busca e desenvolvimento do seu 'eu'”.
10 WEISZ, Telma, SANCHEZ, Ana, O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo: Ática, 2000. 133p. 11 MARCÍLIO, Maria Thereza. Diretora do núcleo de educação da Avante – Qualidade, Educação e Vida 12 NÓBREGA, Nanci
152
4 Consolidando e Institucionalizando a Transformação da Escola Municipal A nova proposta curricular de Irecê
A proposta foi discutida ao longo de 1999/2000 com representante dos diversos segmentos da rede municipal de ensino, sistematizada pelas consultoras Maria Thereza Oliva Marcilio de Souza e Marilia Régis Dourado e consta de 3 volumes. Aqui será abordado apenas até o item 9 deste sumário
1
APRESENTAÇÃO
2
JUSTIFICATIVA
3
A REDE MUNICIPAL DE IRECÊ 3.1
Histórico
3.2
Organização
3.3
Perspectivas
4
MISSÃO
5
VISÃO
6
METAS
7
FINALIDADES DA EDUCAÇÃO
8
OBJETIVOS GERAIS DA PROPOSTA CURRICULAR DA REDE MUNICIPAL
9
REFERÊNCIAS TEÓRICAS
10
EDUCAÇÃO INFANTIL 10.1
Objetivos gerais: capacidades
10.2
O trabalho didático na Educação Infantil e seus fundamentos
10.3
Componentes curriculares: âmbitos de experiência e sua organização 10.3.1 Formação pessoal e social 10.3.2 Linguagem 10.3.3 Conhecimento de mundo
10.4
11
Avaliação
ENSINO FUNDAMENTAL 11.1
Objetivos gerais: capacidades
11.2
O trabalho didático no Ensino Fundamental e seus fundamentos
11.3
Componentes curriculares: áreas de conhecimento, temas transversais e sua organização 12.3.1 Língua 12.3.2 Matemática 12.3.3 Ciências Naturais 12.3.4 Ciências Sociais 12.3.5 Artes 12.3.6 Educação Física
11.4
12
Avaliação
BIBLIOGRAFIA
FORMAR PARA TRANSFORMAR O caso do município de Irecê
CONSOLIDANDO E INSTITUCIONALIZANDO A TRANSFORMAÇÃO DA ESCOLA MUNICIPAL
1.
Apresentação “Não podemos mais olhar para o currículo com a mesma inocência de antes. O currículo tem significados que vão muito além daqueles aos quais as teorias tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade.” (Tomaz Tadeu da Silva -1999)
Este documento, o Currículo Unificado da Rede Municipal de Ensino de Irecê – Educação Infantil e 1o e 2o Ciclos de Ensino Fundamental – é fruto de um trabalho que teve a participação da equipe da Secretaria Municipal de Educação, dos coordenadores pedagógicos, diretores e vice-diretores de escola, representantes de professores e da sociedade civil organizada, coordenado e sistematizado pela equipe da AVANTE – Qualidade, Educação e Vida - ONG, também responsável pela elaboração do texto final. Ele deve ser o norteador das ações desenvolvidas nas escolas para a formação do cidadão, cujo perfil e competências foram delineados no processo de sua elaboração, por todos os que dele participaram. Enquanto documento norteador, tem como característica ser aberto, flexível e passível de ajustes às diversidades sub-regionais, culturais e religiosas existentes no município. Contudo, o fato de não ser um modelo rígido e homogeneizante não invalida o seu papel como instrumento propulsor e organizador de ações que visam à melhoria da qualidade do ensino nas escolas do município, buscando garantir a todos o acesso aos bens e serviços gerados pela sociedade. Desta forma, sua aplicação estará contribuindo de maneira decisiva para a formação do cidadão e a construção de uma sociedade justa e democrática.
O Currículo compreende: as metas e os objetivos da rede municipal de ensino, a partir da definição da sua Missão; a organização geral do trabalho didático, a partir dos fundamentos teóricos adotados e, também, da história e da situação atual da rede municipal de Irecê. Na organização geral do trabalho didático são apresentados os objetivos, os conteúdos, a seqüenciação e as orientações didáticas – o que, quando e como se ensina – e, ainda, orientações, critérios e instrumentos para diagnóstico e acompanhamento do processo - o que, quando e como se avalia.
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CONSOLIDANDO E INSTITUCIONALIZANDO A TRANSFORMAÇÃO DA ESCOLA MUNICIPAL
2.
Justificativa
A década de 90, última do século, testemunhou mudanças de paradigmas em diversas áreas da atividade humana: econômica, com o fortalecimento do capitalismo e a queda da União Soviética; tecnológica, com os avanços da informática e da robótica; política, com a constituição de novos blocos e de outras relações entre as nações e os blocos continentais. Do ponto de vista social, essas mudanças têm fortalecido um modelo altamente excludente, com uma distância crescente entre os poucos que muito têm e os muitos que nada têm. Destarte, a possibilidade de ascensão e de mobilidade social, assim como os valores da vida em grupo e da cooperação, tornam-se mais raros. Neste contexto, a educação surge como uma estratégia para o desenvolvimento e se fortalece enquanto instrumento de aperfeiçoamento pessoal e inclusão social, e como agente de formação do pensamento crítico inspirador e alimentador de outros modelos de produção e organização sócio-política. Para tal é necessário garantir o acesso, a permanência e o sucesso de todas as crianças à escola; tornando-se necessário, portanto, assegurar a qualidade do serviço oferecido. Recuperando os compromissos assumidos pelo Brasil na Conferência Mundial de Educação, em Jomtien – Tailândia em 1990, e apresentados no documento Educação para Todos, é preciso ampliar a visão que se tem de educação básica e do significado de uma oferta de qualidade: uma educação que seja capaz de satisfazer às necessidades básicas de aprendizagem de todos - crianças, jovens e adultos - dentro e fora do sistema escolar famílias, comunidade em geral, bibliotecas, centros culturais, meios de comunicação, lugar de trabalho -, e ao longo da vida. É necessário também assumir uma visão multissetorial em relação às políticas educativas, sabendo que, embora a educação seja estratégica para o desenvolvimento, ela não é capaz de resolver todos os problemas; ao contrário, ela deve se inserir como parte de uma política econômica e social que vise o bem-estar das maiorias. Mais do que isso, é preciso que se mantenha uma perspectiva sistêmica, evitando-se a fragmentação por níveis, ciclos, modalidades e que se garanta uma visão de longo prazo em contraposição ao curto prazo predominante na elaboração de políticas e diretrizes governamentais, mormente nos municípios. É a partir deste pano de fundo que se questiona o modelo da escola sustentado na repetição e memorização de conceitos, na reprodução de funções hierarquicamente organizadas, na separação do saber e do saber fazer, desvalorizando este último. Portanto, é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa, solidária, capaz e feliz que a escola se organize, coerentemente, em torno destes valores. Ela precisa ser eficaz e eficiente, buscando processos educativos transformadores que possibilitem aos alunos construírem o conhecimento e apropriarem-se das informações que precisam. Ela deve, ao mesmo tempo, apresentar os princípios organizadores capazes de formar os valores estéticos, políticos e éticos, constituidores deste novo homem.
156
FORMAR PARA TRANSFORMAR O caso do município de Irecê
A produção de conhecimento em áreas relacionadas à educação, tais como a psicologia cognitiva, a lingüística, a matemática, entre outras, tem um impacto na didática e conseqüentemente na organização do trabalho docente. Piaget, Vigotsky, Emília Ferreiro, Chomsky, Brousseau, Vergnaud, John Dewey, Paulo Freire, Anísio Teixeira são alguns dos responsáveis pelas novas idéias em áreas diversas que provocam as mudanças que vêm acontecendo na escola. O panorama educacional do Brasil apresenta-se bastante contraditório: índices de analfabetismo e de improdutividade escolar - evasão + repetência - convivem com ações voltadas para a melhoria da formação dos professores, ampliação do calendário letivo, investimento na formação de gestores locais, aumento do período de escolaridade obrigatória. Símbolo do esforço nacional são as leis 9394/96, das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e a 9424/96 que cria o FUNDEF. O MEC, por sua vez, cumprindo o papel de articulador da política educacional do país, elabora e divulga documento que organiza os Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação Infantil até o Ensino Médio, inclusive os da Formação de Professores. O Conselho Nacional de Educação elabora Diretrizes Curriculares e normas voltadas para o aperfeiçoamento do trabalho desenvolvido nas escolas. Este conjunto de instrumentos e documentos estabelecem, de fato, as diretrizes e bases que fomentam as condições para uma mudança na educação, a partir dos municípios e das escolas. Sintonizado com esse movimento de mudança, o município de Irecê, na gestão do prefeito Adalberto Lélis, priorizou a área de educação, estabelecendo como uma das ações a serem realizadas a elaboração deste currículo. Para tal, contou com o apoio e o compromisso da Secretaria Municipal de Educação, traduzidos na formação e envolvimento do grupo de trabalho que participou do processo de elaboração deste documento.
3.
A Rede Municipal de Irecê 3.1 Histórico
O município de Irecê está localizado ao noroeste do estado da Bahia, com economia baseada na agricultura, sendo um dos maiores pólos nacionais de produção de feijão e outros grãos. É caracterizado também por ter um povo lutador, forte e destemido. Nos últimos tempos vem enfrentando longos períodos de estiagem, com quebras de safra que influenciam seu processo de desenvolvimento econômico e social. Sucessivas administrações municipais caracterizaram-se por não desenvolverem políticas sociais e diretrizes econômicas coerentes com as necessidades de crescimento do seu povo, levando a uma estagnação do processo cultural ireceense. Nesse panorama, a educação nunca foi considerada prioridade, sendo colocada em lugar de descaso e pouca valorização, o que trouxe implicações sérias e desastrosas para os processos de ensino e aprendizagem. Até 1996,
157
CONSOLIDANDO E INSTITUCIONALIZANDO A TRANSFORMAÇÃO DA ESCOLA MUNICIPAL
mais da metade da população em idade escolar estava fora da escola, a rede escolar deteriorada, salários atrasados, profissionais desassistidos no que se refere à formação permanente, salas de aula superlotadas, práticas pedagógicas arcaicas, índices elevados de repetência, evasão e defasagem idade/série, situação esta que não era acompanhada do ponto de vista de dados e informações estatísticas confiáveis. Em 1997, diagnóstico da situação existente constatou a necessidade urgente de intervenções para transformação dessa realidade, levando à definição de prioridades e metas para a educação no município. Era imprescindível buscar caminhos que apontassem para uma educação de qualidade. Foram firmadas, então, as seguintes parcerias técnicas e iniciados projetos para a instauração de um trabalho pedagógico, conforme se indica a seguir:
Com a Avante Qualidade, Educação e Vida – ONG: Acompanhamento sistemático aos professores da rede, nas áreas de Língua Portuguesa e Matemática, iniciando em 97 com os profissionais das séries iniciais, ampliando até o ano 2000 com o atendimento à educação infantil e ao ensino fundamental – Nível I; Acompanhamento dos processos de aprendizagem dos alunos do 1º ciclo do ensino fundamental; Composição e acompanhamento da equipe de coordenação pedagógica; Acompanhamento à equipe de gestão, envolvendo os dirigentes da Secretaria, os diretores e vice-diretores das unidades de ensino.
Com o Instituto Ayrton Senna, CETEB, Petrobrás, BNDES, FNDE e o Ministério da Educação e Desporto: Desenvolvimento e implementação do Projeto de Aceleração de Aprendizagem.
Com a Fundação Banco do Brasil: Elaboração participativa do Currículo Unificado da Rede, ao longo de 12 meses, entre julho de 99 e julho de 2000, com a consultoria da Avante; Construção de salas de leitura e quadras poliesportivas; Realização do Projeto BB Educar com acompanhamento a 100 alunos.
Com a Cotidiano, empresa de consultoria pedagógica local: Formação de professores de jovens e adultos e acompanhamento dos processos de ensino e de aprendizagem dessas turmas durante o ano 1999.
158
FORMAR PARA TRANSFORMAR O caso do município de Irecê
Além dessas parcerias, o município, realizou as seguintes ações com recursos próprios: reformas da estrutura física de 24 escolas; construção de 5 novas escolas; ampliação de 1 prédio escolar; aquisição de 134 livros técnicos e de literatura; realização de 3 concursos públicos para professores e pessoal de apoio; construção de 2 quadras poliesportivas; reforma da Biblioteca Municipal; aquisição de 2 veículos.
3.2 Organização O quadro atual da rede (novembro/2000) é o seguinte: Número de estabelecimentos
03
Ensino Fundamental
31
(Educação Infantil e Ensino Fundamental)
1997
Promoção
85 %
97 %
Repetência
15 %
4%
Evasão
20 %
9%
Defasagem
67 %
61 %
1998
1999
Promoção
97 %
94 %
Repetência
3%
6%
Evasão
9%
8%
13 %
3%
10.452
Professores concursados
144
Professores contratados
250
Professores leigos
1996
34
Educação Infantil
Alunos matriculados
Índices de desempenho da rede:
09
Defasagem
A rede está organizada em ciclos, rompendo com o modelo seriado, compreendendo: Educação Infantil:
Ensino Fundamental – Nível I:
1º ciclo: 0 a 3 anos (Creche)
1º ciclo: Grupos 6, 7 e 8
2º ciclo: 4 e 5 anos (Pré-escola)
2º ciclo: Grupos 9 e 10
159
CONSOLIDANDO E INSTITUCIONALIZANDO A TRANSFORMAÇÃO DA ESCOLA MUNICIPAL
3.3 Perspectivas
Secretaria Municipal de Educação Considera-se fundamental que o órgão gestor atue como articulador e gerenciador das políticas públicas educacionais, encaminhando: a implantação do Sistema Municipal de Educação; a garantia do funcionamento pleno dos diversos órgãos colegiados; a implantação e a manutenção de uma política de valorização de magistério traduzida: - na existência e implementação de um plano de carreira; - na realização de concursos públicos; - no incentivo à formação de 3o grau do professor. a organização interna do órgão gestor, com a definição de: - papéis; - funções; - equipes; - critérios para ocupação dos cargos. a implantação de um sistema de avaliação de desempenho da rede, à semelhança do SAEB/ENEM e outros; a organização do calendário escolar, de maneira compatível com a realidade das atividades econômicas da região, tais como safra, feira, ensejando uma maior integração da escola com a vida cotidiana e, conseqüentemente, melhores índices de frequência; o reconhecimento das diversidades e a construção de uma política de atendimento aos alunos especiais que apresentam diferenças no ritmo e modo de aprendizagem a exemplo do Sistema de Monitoria em implantação na rede; o reconhecimento das escolas como comunidades educativas autônomas oferecendo condições para que elaborem seu Projeto Pedagógico e seu Regimento; a construção de uma interlocução permanente com a sociedade civil.
Na unidade escolar Considera-se fundamental o fortalecimento das escolas como comunidades educativas que integram uma rede, implementando-se: a construção de rotinas de trabalho para diretores, vice-diretores, coordenador pedagógico e professores; a implantação de grupos de estudo e registros freqüentes da ação educativa, que garantam a análise permanente da prática;
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o acompanhamento freqüente do progresso do aluno, verificando-se sistematicamente se o aluno está aprendendo e utilizando-se essa informação para tornar o programa educacional mais efetivo; o combate à ausência e à evasão escolar; a participação dos pais, acompanhando e sugerindo atividades que enriqueçam o conteúdo e a melhoria da escola como um todo; a construção de uma atmosfera de organização, seriedade e segurança; o gerenciamento do tempo, de maneira que a maior parte dele seja utilizada com atividades de aprendizagem; a constante avaliação do trabalho da equipe da escola; a inclusão de crianças portadoras de necessidades especiais no sistema regular de ensino, buscando o apoio de profissionais habilitados ao atendimento dessas necessidades.
4.
Missão Assegurar que todos os habitantes do município de Irecê tenham acesso, permaneçam e tenham sucesso em todos os níveis da educação básica oferecida com qualidade.
5.
Visão Ser uma rede de ensino de referência para a microrregião de Irecê, pela qualidade dos serviços oferecidos e pelos resultados alcançados.
6.
Metas Assegurar a oferta de ensino fundamental a 15.000 crianças e adolescentes, até o ano 2001; Corrigir a distorção idade-série em 100% das classes do 1o e 2o ciclos do ensino fundamental, até 2001; Ampliar o atendimento na Educação de Jovens e Adultos, garantindo a matrícula de 3.000 alunos, até 2004; Oferecer formação profissionalizante para 1.000 jovens e adultos, até 2002; Fazer com que todas as 34 escolas da rede atendam aos padrões mínimos definidos pelo MEC, até 2003; Construir 7 quadras poliesportivas e instalar uma biblioteca escolar em cada escola, até 2004;
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Oferecer transporte escolar para todos os alunos que precisem ir de uma localidade para outra, quando não houver oferta de continuidade escolar no local, até 2001; Garantir formação continuada para todos os professores, ampliando sua carga horária de contrato para 25 h semanais, a partir de 2001.
7.
Finalidades da Educação
Definir um currículo para uma rede de ensino significa indicar objetivos de aprendizagem e propor situações de ensino que levem à construção das competências mínimas necessárias à realização plena do indivíduo e sua participação na sociedade. Para tal é preciso pensar sobre quais as demandas que se colocam para todos que aspiram a viver bem e produtivamente, alongando o olhar para o futuro, projetando a sociedade na qual queremos viver. Segundo José Bernardo Toro, essas competências e capacidades mínimas, são as seguintes: domínio da leitura e da escrita; capacidade de fazer cálculos e de resolver problemas; capacidade de analisar, sintetizar e interpretar dados, fatos e situações; capacidade de compreender e atuar em seu entorno social; capacidade para receber criticamente os meios de comunicação; capacidade para localizar, acessar e usar melhor a formação acumulada; capacidade para planejar, trabalhar e decidir em grupo.
Para formar este sujeito é necessário que a escola, enquanto instituição social responsável pela educação formal, ofereça condições para que ele construa as capacidades e domine as competências mínimas, possibilitando-lhe ir além, aprendendo a aprender, favorecendo sua inserção plena e sua participação produtiva na sociedade. Neste momento da nossa história, percebe-se o anseio da maioria das pessoas por uma sociedade democrática, justa, aberta à diversidade, produtiva, com capacidade para relacionar-se e contribuir com outros grupos. Esta sociedade só poderá ser formada por pessoas que sejam solidárias, participativas, críticas, criativas, reflexivas, cooperativas e produtivas. É preciso, portanto, ampliar as finalidades da educação, atribuindo a ela parte significativa da responsabilidade pelo desenvolvimento integral do educando, a formação de sua consciência, o exercício responsável de sua liberdade, sua capacidade de relacionar-se com os demais e de respeitar a todos. Definir um currículo para uma rede de ensino significa, então, fazer a opção por uma função social do ensino. Tradicionalmente, no Brasil, o sistema de ensino tem servido para selecionar os que “podem” continuar aprendendo e que deverão chegar até à universidade.
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Nesta perspectiva a escola tem funcionado como legitimadora da organização da sociedade e mantenedora da situação vigente. Por esta lógica, a missão da educação básica não é formar para a vida, mas para o ensino superior, cuja finalidade por sua vez é formar o doutor. Cada professor, nesse modelo, tem como objetivo “dar conta do programa”, para que o colega da série seguinte possa, por sua vez, organizar o seu programa. Isto passa a ser mais importante do que preparar para a vida. Para que esse discurso possa se manter é preciso ignorar que há um número significativo de egressos do ensino fundamental que não continua no ensino médio; por sua vez a maioria dos que concluem este nível não vão para a Universidade. Ou seja, como diz Perrenoud (1999), “a escola trabalha amplamente um circuito fechado e interessa-se muito mais pelo sucesso nos exames ou pela admissão no ciclo de estudos seguintes do que pelo uso dos conhecimentos escolares na vida”. Optar pela educação plena de todos os cidadãos significa optar por uma escola inclusiva, que promova aprendizagens necessárias à vida e à formação integral do sujeito. Isto significa deixar de agir como instituição “preparatória” de um futuro meramente acadêmico, dissociado da vida plena. Romper, pois, com essa lógica significa repensar os conteúdos e as formas do trabalho didático, os tempos e os espaços da escola; significa, sobretudo, repensar a formação e as condições de trabalho do professor. Tudo tem que estar voltado para garantir que a freqüência à escola possibilite ao aluno ser um sujeito competente na condução da sua vida como indivíduo e como membro de uma coletividade. Formar o cidadão pleno para o aqui e agora significa portanto reconhecer em cada criança e adolescente de hoje, um sujeito de direitos e deveres; significa construir competências e definir limites; significa participar da construção de uma sociedade baseada no respeito à dignidade, no reconhecimento da diversidade e na rejeição a qualquer forma de discriminação, violência e injustiça. Finalmente, no contexto atual de globalização, os educadores e o governo do município de Irecê subscrevem o texto apresentado no Fórum Mundial de Educação em Dakar - Senegal, no mês de abril de 2000, posicionando-se pela salvaguarda de valores essenciais à identidade latino-americana e apresentando-os como finalidades da educação. São eles: o valor supremo da pessoa e a busca de um sentido da existência humana, entendendo que o respeito à pessoa e ao seu desenvolvimento estão acima do progresso material representado exclusivamente pelo aumento do consumo e do conforto; o sentido comunitário da vida, característico das nossas culturas, principalmente as indígenas: compartilhar e servir, ser solidário mais que competitivo, saber conviver privilegiando o bem estar coletivo, respeitar as diferenças contrariando as tendências de exclusão e cuidar dos mais fracos e desprotegidos; a multiculturalidade e a interculturalidade – nossas nações são povos de povos, gestados por meio de processos de mestiçagem biológica e cultural, motivo pelo qual a abertura à pluralidade
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de raças, etnias e culturas é essencial à nossa identidade e é um valor a ser reafirmado pela educação; a abertura e valorização de formas de conhecimento e de aproximação à realidade que transcendem a racionalidade instrumental: as linguagens simbólicas, a intuição, a sensibilidade à vulnerabilidade humana, a recuperação criativa da tradição e a apreciação pela beleza; a liberdade, entendida – na tradição que Paulo Freire acertadamente recolheu – como uma conquista sobre nossos egoísmos e os dos demais, como construção da autonomia da pessoa e de seu sentido de responsabilidade, como superação de todas as opressões mediante a compreensão do opressor e a disposição de compartilhar com ele a tarefa de construir um mundo para todos; trabalho como meio de realização pessoal e portanto direito fundamental, não como subordinação acrítica aos interesses do capital nem como busca de maximização do lucro; a busca do outro na construção do “nós”, que fundamente o sentido ético da vida humana e a presença constante da utopia e da esperança.
8.
Objetivos Gerais da Proposta Curricular da Rede Municipal
Contribuir para que o aluno seja capaz de: Construir sua identidade e autonomia, desenvolvendo a auto-estima e o equilíbrio pessoal e fortalecendo a capacidade de aprender a aprender, mantendo vivas a curiosidade e o espírito investigador; Reconhecer-se membro de uma comunidade, através da criação e/ou fortalecimento de vínculos e do reconhecimento do outro, respeitando as diversidades cultural, étnica, religiosa, sexual e social, recusando conseqüentemente qualquer forma de discriminação ou preconceito, construindo atitudes de solidariedade, compaixão e responsabilidade. Ampliar seus conhecimentos, através do acesso a informação atualizada, aos meios de comunicação existentes na comunidade e aos conteúdos fundamentais das áreas de conhecimento selecionadas para integrarem o currículo, como parte do saber historicamente construído pela humanidade, adquirindo competência e habilidades específicas..
9.
Referências teóricas
Como ponto de partida é necessário definir a escola como a instituição social cuja função é educar, instruir e formar os cidadãos para a participação plena e produtiva na sociedade, para a realização de seus talentos e a busca da felicidade. A natureza do serviço prestado é portanto educativa, a prática que o caracteriza é a pedagógica e o conhecimento produzido pela instituição é o conhecimento didático. Estabelecer esses limites significa ter clareza do papel da escola e poder criar instrumentos e mecanismos de acompanhamento, controle e avaliação da instituição: significa ainda,
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perceber as relações entre a escola e outras instituições, assim como, as relações entre o saber didático e outros saberes. É importante reconhecer que por trás de toda e qualquer prática pedagógica há referências teóricas e, mais ainda, é preciso entender que ensinar é uma atividade social das mais complexas e delicadas, que requer conhecimento profundo do objeto de conhecimento, do sujeito aprendiz e da ciência didática. Segundo Délia Lerner: “Deste modo, o saber didático, ainda que se apóie em saberes produzidos por outras ciências, não pode deduzir-se simplesmente deles; o saber didático se constrói para resolver problemas próprios da comunicação do conhecimento. Resultado, pois, do estudo sistemático das interações que se produzem entre o professor, os alunos e o objeto de ensino. É produto da análise das relações entre o ensino e a aprendizagem de cada conteúdo específico, se elabora através da investigação rigorosa.”
Por tudo isso, ensinar requer atitudes de escuta, de compaixão e de acolhimento – genuína solidariedade – e de encantamento permanente. Mais ainda, a capacidade de lidar com o inusitado e de conviver com a insegurança. É, pois, indispensável tornar a prática pedagógica um objeto de conhecimento a ser estudado, analisado, para que possa ser, a um só tempo, transformada e transformadora. Ao se eleger um determinado conteúdo, propor formas específicas de organizar o conhecimento, sugerir tipos de atividades, escolher entre possíveis seqüências didáticas, existe uma determinada concepção de homem, de sociedade, de aprendizagem e de ensino que guia estas ações e decisões. O primeiro referencial para análise da prática está pois ligado à função social do ensino. As perguntas são: para que educar, para que ensinar? As respostas a estas perguntas são o que dá sentido ao ato de educar e que, neste documento, foram apresentadas no capítulo das Finalidades da Educação. A partir da explicitação das finalidades – garantir as aprendizagens necessárias à formação de cidadãos autônomos, críticos e participativos, que atuem com competência e responsabilidade na sociedade, resolvendo os problemas com os quais se defrontam – podem ser definidos os conteúdos a serem trabalhados na escola. Em linhas gerais são eles: o fortalecimento da identidade do sujeito, o domínio da língua falada e escrita e dos princípios e fatos da matemática; a compreensão do funcionamento da sociedade nas suas dimensões espacial e temporal; os princípios da investigação científica e o uso dos recursos tecnológicos; o acesso à informação e a possibilidade de apreciar e produzir as diversas expressões artísticas; o cuidado e o respeito com o corpo e com o ambiente, visando a preservação da vida com qualidade, sabendo lidar com as transformações sofridas por ambos; o exercício da convivência no respeito às diferenças.
Proceder a essa seleção, tendo como base uma determinada concepção filosófica, é condição necessária mas não suficiente para a prática pedagógica. É preciso ainda conhecer e explicitar uma concepção de aprendizagem e de desenvolvimento humano. A partir dos marcos teóricos da epistemologia genética (J. Piaget), da teoria sóciointeracionista (Vigostky) e das
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novas abordagens da psicologia cognitiva, estabelece-se um marco explicativo construtivista do desenvolvimento e dos processos de aprendizagem do ser humano. Segundo a epistemologia genética, o processo de produção de conhecimento é complexo e se dá por aproximações sucessivas e pela reorganização permanente do conhecimento. Ele caracteriza-se ainda pela provisoriedade pois não é algo pronto e acabado que deve ser incorporado pelo sujeito; antes, é um constructo do próprio sujeito ao agir sobre o mundo e ser influenciado por ele. Assim é algo que é passível de transformações e ajustes permanentes. Sintetizando: o conhecimento não é o resultado de mera cópia da realidade pré-existente, mas um processo dinâmico e interativo, através do qual a informação externa é interpretada e reestruturada pelos sujeitos cognoscentes que constróem progressivamente modelos explicativos, cada vez mais elaborados e potentes. Sendo esta a referência teórica sobre o conhecimento e seu processo de produção, é preciso também que se definam os pressupostos relacionados ao desenvolvimento do ser humano nos aspectos físico, emocional e cognitivo. Para tal, o marco teórico escolhido é o formulado por Jean Piaget, que possibilitou a realização de muitos outros estudos e pesquisas. Como resultado, existe hoje um conjunto de idéias respaldadas cientificamente que ajudam a entender o funcionamento do sujeito que aprende e como ele vai modificando seus esquemas 1, ampliando e complexificando a sua compreensão do mundo. Assim, a cada estágio do desenvolvimento - sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal - corresponde uma forma de organização mental, uma estrutura intelectual que se traduz em possibilidades de aprendizagem a partir das experiências vividas. Aprendizagem e conhecimento, nesta perspectiva, relacionam-se. Para aprender, o sujeito deve dispor de possibilidades, que são os esquemas assimiladores e é na ação sobre o mundo que o sujeito constrói conhecimentos e a si mesmo, modificando e ampliando as suas estruturas mentais. O ambiente social deve propiciar à criança oportunidades de interagir com outros indivíduos e levar à cooperação e à colaboração. Ele, o ambiente social, é um dos quatro fatores de desenvolvimento mental proposto por Piaget, juntamente com a maturação do sistema nervoso, o ambiente físico e a equilibração sucessiva. As ações, a motivação e a cooperação social estão intimamente ligadas às funções intelectuais. O progresso intelectual provoca modificações ao nível da afetividade e das relações sociais. Esta influência, todavia, é recíproca: através da interação social, a criança é levada a sair de uma perspectiva centrada em si (egocêntrica) para ter uma visão mais objetiva dos acontecimentos. Isto irá exigir partilha de significados, levar em consideração vários pontos de vista.
1
Esquema: conceito utilizado por Piaget para descrever a organização da mente. O ser humano possui ao nascer alguns esquemas relacionados a atos reflexos que lhe permitem sobreviver. Estes esquemas, no processo adaptativo de assimilação e acomodação, transformam-se progressivamente através de diferenciações e coordenações nas “organizações” lógicas da inteligência adulta.
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Esta é também a posição de Wallon (1973). Segundo ele, o ambiente e a criança influenciamse reciprocamente e cada criança estabelece um sistema próprio de relação com o meio a cada momento. Isto pode ser observado nas atividades em que ela se envolve, na forma como interage com os demais, no tempo que dedica a cada atividade, no significado que atribui a diferentes aspectos da situação, nos locais e objetos que seleciona para brincar. É fundamental, pois, que o professor observe e identifique cada criança para que possa organizar o ambiente de maneira que potencialize a aprendizagem. Qualquer atividade educativa, portanto, principalmente as realizadas pela escola, por sua intencionalidade, tem que levar em conta o nível de desenvolvimento operatório do sujeito, para que as atividades planejadas se ajustem às peculiaridades do funcionamento e da organização mental do aluno. A teoria sóciointeracionista traz elementos que iluminam esta relação: sujeito aprendiz x produção de conhecimento. Ela nos permite entender a relação constante, profunda e dinâmica entre o sujeito e o conhecimento, destacando o papel da cultura, portanto das interações entre as pessoas e entre elas e as diversas formas de organização social. A partir dessa referência é possível afirmar que a repercussão das experiências educativas formais sobre o crescimento pessoal do aluno está igualmente relacionada com os conhecimentos prévios com os quais ele inicia sua participação nas mesmas. O aluno inicia uma nova aprendizagem escolar a partir de conceitos, concepções, representações, procedimentos e valores que foram construídos em uma experiência prévia e os utiliza como instrumentos de leitura e de interpretação com implicações no resultado da aprendizagem. Levando, pois, em conta o nível conceitual do aluno é preciso considerar, simultaneamente, os dois aspectos anteriores mencionados. O que o aluno é capaz de fazer e de aprender depende tanto do seu estágio de desenvolvimento operatório, como do conjunto de conhecimentos já construídos em suas experiências prévias de aprendizagem.
Com esse entendimento, o lugar da escola e o papel do professor se definem enquanto mediadores, guias e orientadores do processo de aprendizagem. O “lugar ideal” da intervenção pedagógica é aquele em que a criança sabe alguma coisa mas não o suficiente para resolver o problema com autonomia e em que a ajuda do professor é instrumentalizadora para a aprendizagem em questão e para a construção das competências desejadas; trata-se, segundo Vigotsky, de atuar na Zona de Desenvolvimento Proximal da criança (ZDP), que está entre o que a criança já conhece e sabe (zona de desenvolvimento efetivo) e o que ela ainda não sabe, que é o nível de desenvolvimento potencial. Desenvolvimento, aprendizagem e ensino são três elementos relacionados entre si: o nível de desenvolvimento potencial determina as possíveis aprendizagens que o aluno pode realizar graças ao ensino, e, por sua vez, este pode chegar a modificar o nível de desenvolvimento efetivo do aluno mediante as aprendizagens que promove. Segundo Bruner, o papel do ensino é o de prover “andaimes” que sustentem a criança na escalada da construção do conhecimento. Portanto, o ensino eficaz é aquele que parte do nível de desenvolvimento do aluno, não para acomodar-se e sim para fazê-la avançar através da zona de desenvolvimento proximal, para ampliá-la e gerar novas zonas de desenvolvimento proximal.
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Um outro princípio teórico que deve nortear as práticas escolares é o que diz respeito ao caráter significativo que a aprendizagem deve ter. A vida apresenta problemas, propõe questões que precisam ser resolvidas e enfrentadas pelas pessoas. Aprender é estratégico para a vida, para a sobrevivência, para a realização pessoal. Assim, as situações didáticas planejadas devem ser significativas para os alunos. Para tal, elas precisam cumprir duas condições a seguir mencionadas. Os conteúdos propostos têm que ser potencialmente significativos. É necessário que eles sejam organizados e apresentados a partir de uma lógica interna, o que requer conhecimento da estrutura da matéria. O não respeito a essa condição poderá causar confusão e dificultar a aprendizagem. Há ainda um outro nível de significatividade que é a psicológica. Para que haja significatividade psicológica é preciso organizar e apresentar o conteúdo de forma que o aluno possa estabelecer relações e atribuir sentido ao objeto de aprendizado. Isto significa levar em conta a realidade de cada aluno, as suas circunstâncias e necessidades, as suas experiências e conhecimentos favorecendo a construção, ampliação e transformação de esquemas de conhecimento. A atitude dos aprendizes deve ser favorável à aprendizagem significativa; isto quer dizer que o aluno deve estar motivado para relacionar o que aprende com o que já sabe.
Por tudo isso, há um estreito e forte vínculo entre o significado da aprendizagem e a sua funcionalidade. É fundamental que o conhecimento possa ser utilizado em todas as circunstâncias em que for necessário. Quanto mais numerosas e complexas forem as relações estabelecidas entre o novo conhecimento e os elementos da estrutura cognitiva, mais possibilidades terá de ser assimilado e de provocar acomodações e maior será a sua funcionalidade pois o sujeito poderá relacioná-lo com novas situações e conteúdos. Ademais, o processo mediante o qual se produz aprendizagem significativa requer intensa atividade por parte do aluno. É necessário salientar que a atividade em questão não significa necessariamente atividade física. Esta pode até existir, principalmente entre crianças pequenas, mas a atividade da qual se está falando é a atividade mental. Por atividade mental entende-se o engajamento do sujeito na resolução de uma situação- problema, na mobilização pela resposta a um desafio, no aguçamento da curiosidade, na formulação de hipóteses, na busca de comprovação para seu ponto de vista. É preciso, pois, assegurar que a atividade proposta seja organizada a partir de perguntas reais que sejam suficientemente importantes para as crianças buscarem respostas. Nesse contexto torna-se necessário reconsiderar o papel que tem sido atribuído à memória na aprendizagem escolar. A memorização mecânica, repetitiva, de curta duração, tão importante em situações de provas e exames, onde é necessário dar a resposta que o professor espera e que está nos livros, tem muito pouco interesse para situações de aprendizagem significativa, a não ser como apoio. É maior, por outro lado, a importância da memória compreensiva ou de longa duração enquanto ingrediente fundamental no processo de aprendizagem. É ela quem possibilita estabelecer relações, recuperar dados que iluminam novas questões, produzindo como resultado a transformação e/ou ampliação de esquemas.
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Esses esquemas constituem a estrutura cognitiva do sujeito e podem manter, entre si, relações de extensão e complexidade diversas. O objetivo da educação escolar é exatamente a modificação dos esquemas de conhecimento do aluno, seja pelo enriquecimento, diferenciação, seja pela construção e coordenação progressiva dos mesmos. Finalmente, assumir estas referências teóricas como fundamento para a prática pedagógica, pressupõe uma organização didática que as expresse, significa ainda intervenções pedagógicas que considerem o aluno como sujeito e a sua relação com o objeto de conhecimento como construção, a partir da necessidade de resolver problemas e de enfrentar desafios. O lugar do professor na tríade sujeito aprendiz – objeto de conhecimento - professor é, exatamente, o de organizador de situações, o de formulador de questões, o de informante privilegiado. A Pedagogia por Projetos é a referência teórica escolhida para a organização didática da rede. Os fundamentos da Pedagogia por Projetos podem ser encontrados nas obras de diversos educadores como Freinet, no movimento da escola nova com Dewey e aqui no Brasil, particularmente, nos livros e nas realizações de Anísio Teixeira. Como representantes contemporâneos destacamos Fernando Hernandez e Josette Jolibert. A opção pela Pedagogia por Projetos deve-se à coerência existente entre o trabalho com projeto e as finalidades da educação da rede de ensino, que visam formar plenamente sujeitos que se reconheçam como aprendizes, sejam reflexivos, autônomos e críticos em relação a informação que os rodeia e tenham uma inserção produtiva e transformadora na sociedade. Para tanto, o trabalho das escolas da rede deve estar alicerçado nos princípios da vida cooperativa e da gestão participativa, constituindo-se em um espaço real, aberto a múltiplas e diversas relações com o exterior. Isto significa oferecer aos alunos, professores e demais envolvidos, condições mais favoráveis de agirem sobre o meio em que vivem, tomarem decisões coletivas, compartilharem diferentes pontos de vista, assumirem responsabilidades, projetarem-se no tempo através do planejamento de suas ações e constituírem-se enquanto sujeitos aprendizes, produzindo conhecimento com sentido e unidade. Para uma melhor definição da organização dos projetos nas escolas distinguem-se dois tipos: Projetos de empreendimento: ações complexas em torno de uma meta definida, com uma certa amplitude e funcionalidade. Os empreendimentos de uma instituição têm fins em si mesmos e o propósito de oferecer condições aos alunos envolvidos para tomarem decisões, assumirem responsabilidade e, acima de tudo, agirem em situações reais e envolventes que tenham sentido para eles; Projetos de aprendizagem: têm como objetivo sistematizar ações em torno dos objetos de aprendizagem previstos, respondendo às questões acerca do que, quando e como propor situações-problemas que propiciem a transformação dos conhecimentos.
Além do uso da Pedagogia por Projetos na organização do trabalho didático, sugerem-se outras formas de sistematização para o bom funcionamento dos trabalhos. Atividades permanentes e de rotina, e atividades isoladas contextualizadas ou descontextualizadas devem ser planejadas e organizadas em torno dos aspectos que porventura não foram contemplados nos projetos de aprendizagem, ou porque são conteúdos de outro eixo de
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trabalho ou porque são melhor sistematizados em seqüências didáticas independentes, como por exemplo, a ortografia na área de língua portuguesa ou o cálculo mental na matemática. As atividades permanentes são situações que devem ser organizadas com o propósito de garantir a funcionalidade do trabalho didático tendo como marca a periodicidade na rotina do grupo. As rodas de leitura ou de curiosidade, a roda inicial e o lanche são exemplos de atividades permanentes. A definição dos projetos de empreendimento da escola e dos diferentes grupos, a organização dos projetos de aprendizagem e a definição das seqüências didáticas em atividades isoladas contextualizadas ou não, devem integrar o projeto pedagógico das escolas, tendo como documento norteador o currículo da rede.
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