Versão digital da revista bem cuidar – 5ª edição

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bem cuidar

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revista

REGULAMENTAÇÃO

DA PROFISSÃO DE EDUCADOR SOCIAL

ESPECIAL A REVOLUÇÃO DO CUIDADO

Paulo Freire:

semeador de sonhos e patrono da educação brasileira

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Em 50 anos de atuação no Brasil, a Aldeias Infantis já atendeu mais de 120 mil crianças e suas famílias em vulnerabilidade social. E agora faz um convite a você: seja um Amigo SOS. Com uma pequena quantia mensal, você garante programas de fortalecimento familiar e comunitário e a defesa dos direitos da criança e do adolescente brasileiro. Com pouco mais de R$ 1 por dia, você investe em um futuro livre de pobreza e violência.

Ligue: 0800 777 0123 ou envie um SMS “BEMCUIDAR” para 28595


ATB

Que a vulnerabilidade social não separe crianças do mais importante: suas famílias.

• Presente em 12 estados e Distrito Federal; 24 cidades brasileiras; • 3.467 famílias sendo fortalecidas; • 4.846 crianças em atividades no contraturno escolar; • Impacto na vida de mais de 120 mil crianças e adolescentes em 50 anos; • Mobilizamos pessoas para um cuidado infantil de qualidade. /aldeias.brasil

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aldeiasinfantis.org.br


sumário Artigo Master - O que fazer para bem cuidar de crianças e adolescentes? - pág. 10

Especial - A Revolução do Cuidado/ A Cultura do Cuidado Integral - pág. 20

Debate - Regulamentação da educação social no Brasil - pág. 34


Protagonismo - Acampamento de Verão na Aldeias Infantis SOS de Poá - SP - pág. 42

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Soluções - Programa de Manaus atende famílias de crianças com autismo - pág. 44

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Educação para a Vida - Mobilização pela Manutenção da Creche Aberta da USP - pág. 54


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editorial

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O cuidado no centro de tudo Nas páginas desta edição especial sobre a Revolução do Cuidado, uma das principais preocupações de nossos articulistas está em colocá-lo no centro de tudo. Do planejamento das leis que regem os direitos fundamentais das crianças e adolescentes ao simples abraço de bom dia, o cuidado precisa, como disse o pensador Leonardo Boff, ser encarado como um projeto existencial, civilizatório. Chegamos a essa premissa não apenas pelo nosso atuar cotidiano, mas inspirados também nos ideais e práticas de ícones reconhecidos internacionalmente, como o austríaco Hermann Gmeiner, fundador da Aldeias Infantis SOS, que assegurava: “a qualidade da nossa vida depende da qualidade e contribuição que cada um de nós dedicamos para o cuidado”. Também celebramos o legado do patrono da educação brasileira, Paulo Freire, que valoriza a autonomia e potência do educando no processo pedagógico. O Brasil perdia há 20 anos o pensador, mas jamais perderá a contribuição do seu ideário no qual o ensino é inerente ao diálogo e do protagonismo de cada um. Essas são as bases desta edição, que demonstram que o cuidado não apenas protege, mas promove o melhor que cada indivíduo pode fazer pelo desenvolvimento infantil, estimulando as potencialidades de cada criança. Um primeiro passo para realmente ver fortalecida com vigor nossa capacidade, como brasileiros, em promover desenvolvimento econômico, social, político, humano e moral, que tanto ansiamos.

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você sabia? Após 27 anos, o princípio de absoluta prioridade continua sendo o foco do Estatuto da Criança e do Adolescente. Isso significa que a criança e o adolescente devem ser a prioridade para o Estado, para a sociedade e para a própria família, já que são pessoas em desenvolvimento e em processo de formação da personalidade. Segundo o ECA “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Os ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável também incluem objetivos e metas relacionados à proteção da criança e do adolescente, à educação infantil e à redução das desigualdades. Os países membros da ONU, incluindo o Brasil, comprometeram-se a adotar os ODS (2015 a 2030). São 17 objetivos e 169 metas. Nem todos fazem referência às crianças e aos adolescentes, mas todos são relevantes para o futuro deles, uma possibilidade ímpar de melhorar os direitos e o bem-estar de cada criança e adolescente, especialmente os mais desfavorecidos, além de garantir, com oportunidades justas para todos, um mundo melhor e mais saudável para esta e para as próximas gerações.

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colaboradores desta edição

Vital Didonet é licenciado em filosofia e pedagogia, mestre em educação e especialista em educação infantil, foi presidente da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar - OMEP Brasil, Vice-presidente mundial da OMEP e consultor na área da educação infantil e dos direitos da criança.

Maria Thereza Marcilio é Licenciada em Pedagogia - UFBA, Mestra em EducaçãoHarvard Graduate School of Education e Presidente da AvanteEducação e Mobilização Social.

Alvaro Cesar Giansanti é formado em História pela USP, em Pedagogia pelo Centro Universitário Claretiano, com especialização em Educação pela USP e Bacharel em Direito também pela USP. É autor de vários livros e membro de entidades que promovem a garantia de direitos de crianças e adolescentes.

expediente

Fabio Paes editor e jornalista responsável: Roberto Conrado – MTB 75894SP arte e diagramação: Daniel Fogaça conselho editorial: Sandra Greco da Fonseca, Aguinaldo Campos, Fabio Paes e Rodrigo Zavala redação: Cristina de Oliveira, Lourdes Guimarães e Roberto Conrado colaboradores e articulistas: Alejandra Gonzáles Riveros, Alvaro Cesar Giansanti, Clarissa Medeiros, Claudius Cesson, Edielson Souza Santos, Fabio Paes, José Pucci Neto, Leonardo Puentes Canon, Marcelo Iniarra Iraegui, Marco Antonio da Silva (Markinhus), Marcos Candido, Maria Thereza Marcilio, Maristela Barenco, Nayana Brettas, Paula Marçal Natali, Richard Pichler, Roberto da Silva, Ronaldo de Oliveira, Salete Valesan Camba, Sandra Greco da Fonseca e Vital Didonet foto capa: iStockphoto/RF fotos: Divulgação, arquivo Aldeias Infantis SOS Brasil, Purestock/RF e iStockphoto/RF impressão: Paulus tiragem: 5.000 exemplares realização: Aldeias Infantis SOS Brasil coordenador geral:

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entre em contato

bemcuidar@aldeiasinfantis.org.br Rua José Antônio Coelho, 400 – Vila Mariana São Paulo/SP CEP 04011-061 Brasil Tel +55 (11) 5573-1533

gestora nacional:

Sandra Greco da Fonseca Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores, não refletindo, necessariamente a opinião da Revista Bem Cuidar.


atitude

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Marcelo Corrêa/Divulgação

eu apoio

Richard Pichler é assessor Global de Relações Externas da Aldeias Infantis SOS Internacional. Após deixar o cargo de CEO em 2016 (cargo que ocupava desde 1995), representa hoje a Aldeias Infantis na ONU, na União Europeia (EU) e em grandes organismos e movimentos internacionais pela infância.

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As crianças serão pais amanhã. Se queremos mudar como as crianças serão cuidadas no futuro, devemos colocar nossa mente e nossos corações em como as crianças devem ser tratadas hoje. E trabalhar pelos direitos da infância é a base disso.

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artigo master

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o que fazer para bem cuidar de crianças e adolescentes? Por Alvaro Cesar Giansanti

Divulgação/RF

Um olhar sobre o direito de crianças e adolescentes a serem bem cuidadas, a importância da convivência familiar e comunitária e como garantir sua educação, autonomia, desenvolvimento, respeito, proteção, acolhimento e atendimento às diferenças.

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artigo master

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Qual é a melhor forma de crianças e adolescentes crescerem de modo saudável, educadas e com responsabilidade de tornarem-se cidadãos plenos? A resposta para essa questão aparentemente tão simples é unânime: a família é a instituição mais apta para educar e promover o crescimento e o desenvolvimento das crianças e adolescentes. Seu direito à convivência familiar e comunitária está atualmente previsto em várias leis, sendo obrigação dos poderes públicos, da família, da comunidade e da sociedade em geral garantir seu atendimento. É na família que se vivencia desde cedo a relação de cuidado e se constroem vínculos baseados na afetividade, fundamentais para a formação da identidade, para o amadurecimento emocional e para o desenvolvimento das habilidades necessárias à vida social, como a participação na coletividade e a compreensão da natureza, do respeito mútuo e dos limites estabelecidos. A falta dessa convivência familiar, a fragilização ou até o rompimento dos laços afetivos familiares são fatores que contribuem decisivamente para que muitos dos que são privados desse direito não superem os traumas decorrentes dessa falta e não conquistem uma inserção social adequada.

Mas de quais tipos de família estamos falando? Observamos atualmente uma evolução do conceito de família, com a ampliação dos modelos familiares. O censo populacional realizado em 2010 apontou que as famílias tradicionais, compostas por pai, mãe e filhos advindos da união do casal, representavam apenas 49,9% das famílias existentes no país. Além da família constituída pelos pais biológicos, destacam-se outros modelos em expansão: a família ampliada (constituída por avós, tios, etc.), a família monoparental (com filhos criados por apenas um dos pais), as famílias constituídas por casais homoafetivos com filhos adotivos, e a família substituta (formada por pais adotivos ou a que se constitui em casas-lares nas instituições de acolhimento melhor estruturadas), dentre outras. Infelizmente, ainda hoje é comum encontrar crianças e adolescentes vítimas da falta da estrutura familiar, expostos a toda forma de abandono e violência, negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão. Somente com a união de esforços da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público, essas crianças e adolescentes poderão ser resgatados de seu futuro predestinado à marginalidade e da reprodução da vida miserável que receberam de herança de quem os lançou nesse mundo. A importância da convivência familiar e comunitária A convivência familiar e comunitária é um valor protegido juridicamente tanto em tratados internacionais como em diferentes âmbitos da legislação brasileira. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu artigo 227 que

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as crianças e adolescentes são sujeitos de um conjunto de direitos – dentre eles, a convivência familiar e comunitária – a serem assegurados com absoluta prioridade. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela lei 8.069, de 13 de julho de 1990, apresenta todo um capítulo que trata do direito à convivência familiar e comunitária, objetivo a ser atingido por políticas públicas e pelos programas que visam garantir o cuidado de crianças e adolescentes. Ao analisar criticamente o significado de “convivência” no mundo atual, verificamos que não se trata de algo abstrato ou disperso em manifestações culturais das sociedades contemporâneas. Necessariamente, o ato de conviver implica em uma relação complexa, intensa, que possibilita às partes nele envolvidas, múltiplas possibilidades de construção de vínculos baseados nos princípios da intimidade, da familiaridade, da alteridade e da solidariedade. Dentre os inúmeros exemplos de convivência que os seres humanos desenvolvem socialmente, interessa-nos, aqui, valorizar aqueles que envolvem a relação de crianças e adolescentes com suas famílias (quaisquer que sejam seu modelo) e com a comunidade onde se encontram inseridos.


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abandonados nas ruas em condições desumanas ou passam longos períodos acolhidos em abrigos.

Sua integração na vida social da comunidade onde moram é um fator de socialização que contribui para a construção de vínculos afetivos com a sociedade. A centralidade do exercício da cidadania por crianças e adolescentes é pautada pelo estabelecimento de relações positivas com parentes, amigos, vizinhos, autoridades e na convivência com as regras de funcionamento da sociedade. O confronto de ideias e o reconhecimento de diferenças existentes no convívio social formam as identidades individuais e os valores de solidariedade, liberdade e responsabilidade. Apesar das leis que instituíram o direito à convivência familiar e comunitária, sabemos que não há garantias para seu pleno cumprimento. Muitos adolescentes e crianças sobrevivem em famílias desestruturadas; outros vagam

O que fazer para garantir que este seja um direito não apenas respeitado, mas também uma oportunidade (talvez única) das crianças e adolescentes em situação de risco e abandono superarem essa condição? A ausência ou precariedade da vida em família e em comunidade contribuem para que crianças e adolescentes se envolvam em diversas formas de violência, como furtos e roubos, mendicância, uso e tráfico de drogas, exploração sexual, trabalho precário, dentre tantas outras. Indicando a prevalência que a vida em família deve ter sobre quaisquer outras formas de inserção social, o ECA determina que o ambiente em que crianças e adolescentes vivem deve estar livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes, consideradas como influências nocivas à formação e desenvolvimento dos seres humanos em momento fundamental de sua formação.

A garantia do direito à convivência familiar e comunitária avançou em dezembro de 2006, quando foi lançado o “Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária” (PNCFC). Esse documento é considerado por especialistas como um marco histórico por definir que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, abandonando-se definitivamente o conceito de “menores em situação irregular” (terminologia ultrapassada adotada pela legislação anterior). Ao considerá-los como sujeitos, o Plano reafirmou a concepção da criança e do adolescente como “... indivíduos autônomos e íntegros, dotados de personalidade e vontade próprias que, na sua relação com o adulto, não podem ser tratados como seres passivos, subalternos ou meros “objetos”,

“Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária (...).” número 05 •

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artigo master

devendo participar das decisões que lhes dizem respeito, sendo ouvidos e considerados em conformidade com suas capacidades e grau de desenvolvimento. O fato de terem direitos significa que são beneficiários de obrigações por parte de terceiros: a família, a sociedade e o Estado. Proteger a criança e o adolescente, propiciar-lhes condições para o seu pleno desenvolvimento, no seio de uma família e de uma comunidade, ou prestar-lhes cuidados alternativos temporários, quando afastados do convívio com a família de origem, são, antes de tudo e na sua essência, para além de meros atos de generosidade, beneficência, caridade ou piedade, o cumprimento de deveres para com a criança e o adolescente e o exercício da responsabilidade da família, da sociedade e do Estado. Esta noção traz importantes implicações, especialmente no que se refere à exigibilidade dos direitos.” Muitas famílias, no entanto, passam por processos de desestruturação, fragilizadas diante das precárias condições de vida que enfrentam,

atingidas por diferentes fatores que dificultam seu funcionamento, como o desemprego, a falta de moradia, a dependência de drogas, a separação dos pais, a marginalidade e a violência na comunidade em que estão inseridas, dentre outros. Nessas condições, como fazer para que as famílias desestruturadas consigam prover as condições necessárias para bem cuidar de seus filhos? Apesar das famílias serem potencialmente capazes de se reorganizar diante das pedras encontradas no caminho, muitas ainda não atingiram esse patamar de superação. Precisam ser apoiadas em seu esforço para utilizar plenamente sua capacidade de se reinventar e de transformar suas relações interpessoais de modo a promover a felicidade de todos que a integram. Para isso, é necessário implementar programas de fortalecimento familiar e comunitário. Com a participação e articulação da comunidade, em um movimento conjunto com associações de moradores, administração pública e organizações sociais, tais programas podem oferecer atividades culturais e desenvolver ações voltadas para a educação, esporte, lazer e empregabilidade. Além disso, promove-se

“Zelar pela dignidade das crianças e adolescentes – tarefa de todos – é o que pode trazer esperança de uma vida melhor para toda a sociedade”

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maior atenção à segurança alimentar das crianças e adolescentes, além de orientações psicopedagógicas para enfrentar dificuldades de aprendizagem. O fortalecimento e integração da família na comunidade possibilita também que sejam fornecidas orientações para saúde da mulher, capacitação para geração de emprego e renda para jovens e adultos, apoio legal e orientação para cuidado e proteção de seus filhos. A comunidade pode se beneficiar de atividades de fortalecimento de suas lideranças e potencialidades locais. Portanto, para que as famílias sejam empoderadas e se fortaleçam diante das adversidades, especialmente no que se refere ao respeito aos direitos de crianças e adolescentes, devem ser apoiadas nas suas necessidades por políticas públicas que contribuam para a reorganização das complexas relações familiares. Obviamente, isso exige investimentos em programas direcionados para a construção, fortalecimento e resgate dos vínculos familiares e comunitários. O Estado precisa ser sempre cobrado para que o caráter prioritário dos investimentos nesses programas saia dos discursos e torne-se realidade. Devido ao frequente descumprimento das leis que estabelecem os direitos da infância e da adolescência, o Poder Judiciário tem sido cada vez mais acionado. A legislação incluiu, dentre as medidas protetivas que visam evitar a violação de direitos, a hipótese dos pais ou responsáveis perderem ou terem suspenso seu poder familiar, em que


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que o modelo de abrigo ainda é responsável pela maioria dos acolhimentos.

a família biológica perde a guarda dos filhos. Isso pode ocorrer quando verifica-se que os pais ou responsáveis não cumprem sua obrigação de garantir sustento, guarda e educação dos filhos menores e quando ocorrem situações de risco, abandono, abusos e maus tratos no âmbito familiar. Ou seja, quando a família não cumpre seu papel de bem cuidar dos seus filhos. Consideradas medidas extremas, a perda e suspensão do poder familiar devem ser aplicadas apenas em último caso, sempre levando-se em conta o melhor interesse da criança e do adolescente, e seu direito à convivência familiar e comunitária. Apesar da excepcionalidade dessas medidas, o fato é que Juízes de várias instâncias frequentemente promovem a destituição do poder familiar e o encaminhamento de crianças e adolescentes para acolhimento institucional. Retirados da convivência com sua família biológica por decisão judicial e encaminhados para instituições, muitas crianças e adolescentes permanecem vários anos sem qualquer contato com seus pais ou outros familiares, e sem ter acesso às famílias substitutas, onde possam construir novos vínculos afetivos. Apesar da evolução das leis e das políticas públicas, destacamos aqui a necessidade de serem reformulados os conceitos que justificam a priori o encaminhamento de crianças e adolescentes para acolhimento institucional, uma vez

As origens históricas e a permanência do modelo asilar marcaram profundamente a cultura brasileira em relação ao que se deve fazer com as crianças e adolescentes, abandonados ou vítimas de violências. Ainda hoje, há quem acredite que a melhor alternativa é sua clausura em abrigos impessoais, com atendimento marcado por relações autoritárias e onde os abrigados são destituídos da esperança de novos horizontes. Já é mais que sabido que não basta que o Judiciário destitua os pais ou responsáveis de seu poder familiar. Também não é suficiente que as crianças e adolescentes retirados do convívio familiar onde são alvo de violência, maus-tratos e abandono, sejam encaminhados para quaisquer entidades de acolhimento onde tiver vaga e onde continuarão sendo vítimas da violência institucional. Esse não é um “mal menor”. Em todo o país, muitos abrigos ainda funcionam sem atender às exigências do ECA, e o acolhimento é feito em locais caracterizados pela ausência de atenção individualizada às crianças e adolescentes, mantidos em grupos numerosos, em ambientes inadequados.

adultos que substituam sua família biológica na sua educação e preparação para a vida adulta. A mudança na cultura do cuidado às crianças e adolescentes tem sido lenta, mas progressiva, e constata-se que a implementação das políticas de prevenção ao abandono, aí incluídos os programas de fortalecimento familiar e comunitário, tem apresentado melhores resultados em relação às políticas tradicionais de abrigamento. Isso se deve, também, à existência de uma legião de abnegados que milita na luta pelos direitos da criança e do adolescente, buscando superar os obstáculos encontrados a cada passo dessa trajetória. Graças a essas pessoas e organizações sociais, as injustiças têm sido mais combatidas, os direitos mais respeitados e as políticas públicas implementadas com maior competência e seriedade. Zelar pela dignidade das crianças e adolescentes – tarefa de todos - é o que pode trazer esperança de uma vida melhor para toda a sociedade. Alvaro Cesar Giansanti é formado em História pela USP, em Pedagogia pelo Centro Universitário Claretiano, com especialização em Educação pela USP e Bacharel em Direito também pela USP. É autor de vários livros e membro de entidades que promovem a garantia de direitos de crianças e adolescentes.

A reorientação da atividade dessas entidades tem sido um processo repleto de desafios e contradições, agravado pela ausência de dados confiáveis sobre o funcionamento dos abrigos e pela precariedade da fiscalização por parte das Prefeituras, dos Conselhos Tutelares e do Ministério Público. Conclui-se, também, que não é apropriado que os acolhidos permaneçam em entidades onde, em seu cotidiano de acolhimento, não construam uma vivência de modelo familiar com

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visões cuidado

diálogos do cuidar américa latina Educação, qualidade e subjetividade: desafios para as políticas públicas de educação inclusiva. Humberto Maturana, Doutor em Biologia, diz que o tipo de interações entre os seres humanos é que especifica o espaço possível para a comunidade. Portanto, o tipo de interações que construímos com as crianças e adolescentes como uma sociedade, como uma família ou como comunidades educativas podem determinar a quantidade de espaço possível para eles. Neste contexto, se a interação é marcada pela aceitação, respeito, confiança, cuidado, colaboração e até mesmo admiração pelo outro, especialmente nas diferenças substantivas, então vamos encontrar uma comunidade com elevado capital social e com enormes possibilidades de ser e fazer, sob os pontos de vista material, espiritual, cultural, político e social. Neste sentido, a questão é, o quanto dessas interações subjetivas são incorporadas em programas educacionais e políticas públicas para promover projetos de educação de qualidade. No caso do Chile, a discussão atual sobre a reforma educacional tem focado em acabar com o lucro na educação pública, melhorando o acesso à educação em setores vulneráveis, enquanto se aguarda o principal, que é a melhoria da qualidade na educação pública e, nesse sentido, respondendo à pergunta: o que a sociedade vai decidir como modelos educacionais de qualidade? Um modelo educacional de qualidade é fundamental quando as crianças e adolescentes vêm de áreas de pobreza e vulnerabilidade social.

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Neste sentido, o direito a uma educação de qualidade, conforme estabelecido pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e pela Agenda para o Desenvolvimento Sustentável, assinado pela maioria dos países do mundo, deve ser concebido como uma estratégia-chave para construir, não só conhecimento mais cognitivo, mas também, mais capital social e cultural, o que nos permite mover mais rapidamente para a inclusão social de crianças e suas famílias. Melhorar a qualidade da educação não é só mais acesso, ou mais anos de escolaridade, mas também perguntar: onde queremos chegar, como país ou como sociedade, como estão e estarão nossas crianças e adolescentes, com 5, 10 ou 15 anos? Que tipo de cidadãos precisamos para avançarmos no desenvolvimento humano em nosso país? Ou, o que vamos fazer para garantir que, se uma criança for deixada para trás no sistema educacional, alguém vai encontrar a causa do atraso e corrigir? Por isso, é particularmente relevante examinarmos a fragilidade que apresentam as políticas públicas na educação para incorporar dimensões culturais e subjetivas de pais, alunos e professores, considerando também que estudos em educação mostram que um dos fatores-chave para o desempenho escolar em áreas de pobreza, é a gestão da subjetividade daqueles que compõem a comunidade escolar. Alejandra Riveros González - Advogada com Mestrado em Políticas Públicas e Assessora de Advocacy da Aldeas Infantiles SOS Chile


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brasis O VII ENES está chegando

Nos anos 80 as diretrizes pedagógicas do atendimento aos meninos e meninas de rua ganharam força envolvendo diversos atores por meio de atividades coletivas. A figura do Educador Social aparece e se constitui na presença solidária junto aos meninos e meninas do Brasil. Nesse período, são garantidos os direitos das crianças e adolescentes com a nova Constituinte (1988), Convenção dos Direitos das Crianças (1989) e o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) estabelecendo novos paradigmas para a Criança e o Adolescente. Com o ECA, a sociedade mobiliza-se para sua implementação por meio de políticas públicas, principalmente à Criança e o Adolescente em situação de vulnerabilidade pessoal e social. Apesar dos avanços legais, é inegável a violação de direitos e a dificuldade da universalização das políticas públicas. A cultura assistencialista e repressora ainda persiste. A Educação Social, vinculada ao saber popular, democracia, justiça e solidariedade, se tornou instrumento de luta.

e mobilização dos educadores e da educação social. Os Educadores e Educadoras são sujeitos multiplicadores de saberes e práticas, que constroem junto aos demais trabalhadores, com caminhos, animação, pistas e postura, com formação de base e de lideranças, mobilizando comunidades populares, políticas públicas e os alicerces do projeto popular. O VII ENES, que acontecerá em outubro de 2017, na cidade de Fortaleza - CE, abordará o tema “Educação Social na Luta pela Democracia e Direitos”, incluindo na programação do evento uma análise da conjuntura, a fundação da associação nacional dos educadores e educadoras sociais, uma audiência pública sobre a regulamentação da profissão de educador e educadora social e o I encontro nacional de educadores e educadoras sociais de rua. Participe! Marco Antonio da Silva Souza (Markinhus) é cientista social, coordenador geral do projeto Meninos e Meninas de Rua, secretário geral do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e conselheiro do cndh.

A Educação Social e os Educadores Sociais estão presentes nas instituições estatais, movimentos sociais e nas ONG’s, entre outros segmentos. São fundamentais nas proposições das politicas públicas, bem como no debate da regulamentação da profissão dos Educadores Sociais. O I ENES Encontro Nacional de Educação Social aconteceu em São Paulo em 2001. Até hoje foram realizados seis ENES nas regiões: Sudeste, Sul, Nordeste e Centro-Oeste. Os ENES são espaços de reflexão, construção e produção coletiva de práticas, metodologias, intercâmbios e conhecimentos, qualificando a atenção aos direitos das populações participantes das práticas dos educadores, fortalecendo a cidadania ativa, estimulando a organização

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visões cuidado

olhar interessado Era uma vez uma brincadeira que tinha o poder de transformar cidades Foi nesta brincadeira séria que entrei junto com as crianças, movida pelo sonho de transformar o mundo com elas e ver as pessoas felizes ao se reconectarem com suas crianças e com seus sonhos, vendo o mundo com olhos de encantamento e esperança.

experimentar a cidade. Passei a enxergar uma cidade que abriga e conta histórias. Em cada janela mora uma história diferente! Histórias caminhantes narradas pelas crianças que vamos encontrando, impressas nas ruas, calçadas e muros por meio de pinturas e grafites.

Durante esta brincadeira as crianças foram me transformando enquanto SER HUMANO e transformando todos do seu entorno: professores, famílias e vizinhos. Elas me ensinaram que o mais importante é SER na sua plenitude e não TER coisas, títulos, nomes, simplesmente SER que encontra outro SER, onde você vê de forma humana o outro, que está ali, diante de você.

E, assim, nesta grande e séria brincadeira, as crianças vão criando novas cidades, mais criativas, mais humanas, mais brincantes, mas sustentáveis, porque, neste jogo da descoberta, ir sem medo te leva ao novo.

Ao aceitar o convite das crianças de entrar nesta brincadeira de transformar cidades, me abri para infinitas possibilidades de ver, viver, sentir,

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Nayana Brettas é formada em ciências sociais pela PUC-SP e mestre em Sociologia da Infância pela Universidade do Minho-Portugal, fundadora da CriaCidade, coordenadora do projeto criança fala e membro da rede de empreendedores sociais red bull amaphiko.

Athony Kunze/Divulgação

As crianças não criam barreiras entre estes dois SERES. Elas abraçam, sorriem, conversam mesmo sem te conhecer, elas não têm medo do outro. A criança vê com calma, na alma, um mundo inteiro pela frente para desvendar, experimentar, recriar, brincar e transformar. Um mundo feito por pessoas, para pessoas em que temos encontro com encontro. Aprendi que nestes encontros é preciso qualidade de presença, o que as crianças têm em abundância quando brincam, porque vivem como o fluir de um rio na sua inteireza.

E, nesse mundo, cabe a cada um de nós criar essas cidades, porque nenhum problema é tão grande quando a solução é coletiva e criativa.


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pedagogia do cotidiano Como revolucionar as ações de cuidado? Não é possível pensar práticas político-pedagógicas sem que coloquemos em reflexão os nossos próprios modos de pensar. Acreditamos ou nos fizeram acreditar que é possível inventar novas práticas de vida e de educação, mantendo a mesma lógica dos modos de vida que consolidaram a grande crise que estamos atravessando. Como revolucionar as ações de cuidado envolvendo crianças, adolescentes e jovens? Que modos de pensar precisam atravessar nossa formação pedagógica, para tecermos práticas inovadoras? Dois grandes problemas atravessam nosso fazer e pensar pedagógico. O primeiro tem a ver com o modelo atual de sociedade, voltado para o desempenho e a produtividade. Educa-se para a competição, para a produtividade, para o resultado, para as avaliações externas, para transformar sujeitos do conhecimento em pessoas que se sujeitam à lógica da exploração, para o tempo cronológico, e como forma de espetáculo. Desse modelo tem vindo todas as formas de esgotamento, seja moral, pessoal, institucional e pedagógico.

O segundo tem a ver com um educar tendo como referência o futuro das crianças, adolescentes e jovens e não o presente – como se isso fosse possível! Revolucionar as ações de cuidado, numa perspectiva pedagógica, passa por uma interrupção desta lógica produtivista e voltada para o futuro. Cuidar implica em forjar tempo para se olhar face a face, para se resgatar o olhar que contempla sem pressa. Cuidar implica num tipo de desconexão, que nos tire destas engrenagens tecnológicas que nos ensinam a falar (mais que ouvir!), e a responder estímulos de forma prévia. Cuidar implica na possibilidade de acolher o outro, na experiência presente, de contemplá-lo e ouvi-lo em sua singularidade. Cuidar implica, enfim, numa experiência ética e estética, de abertura a novas sensibilidades e à criação. Cuidar é fundar um novo modo de existência que começa dentro de nós, Educadores, como uma escolha, diante dos modelos de mundo que estão disponíveis. Maristela Barenco é educadora socioambiental e professora universitária (UFF), doutora em Meio Ambiente, professora universitária e assessora de movimentos sociais.

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especial - a revolução do cuidado

a cultura do cuidado integral por Vital Didonet

“Mitos antigos e pensadores contemporâneos nos ensinam que a essência humana não se encontra tanto na inteligência, na liberdade ou na criatividade, mas no cuidado. Nele identificam-se os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir” (Leonardo Boff).

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especial - a revolução do cuidado

V vida é cuidado

Nós somos frutos do cuidado. Estamos aqui, lendo este artigo, porque alguém cuidou, ou está cuidando de nós neste momento. Desde o útero de nossas mães, até hoje, fomos cercados de atenções e zelo. As pessoas que nos amaram no começo fizeram tudo o que era necessário e sua imaginação sugeria que sobrevivêssemos aos riscos de morte, para afastar os perigos que podiam nos ferir ou magoar, para abrir a estrada da vida com o mínimo de contrariedades e perigos. Muitas vezes nos deram suas mãos para atravessarmos trechos tenebrosos. Foram como luzes para iluminar o que não víamos. O cuidado que nos envolve desde o instante em que fomos concebidos, e durante os anos da infância, dizia respeito à nossa vida, à saúde e à alimentação, à roupa e ao calçado, mas também às brincadeiras, simples e arrojadas iniciativas de exploração do mundo ao nosso redor, com o que pensávamos das coisas e dos acontecimentos e com os sentimentos que despertavam nossa consciência para o que víamos e nos afetava. Cuidar vai muito além dos gestos de garantir o bem-estar físico. Expande-se em todas as dimensões de nossa pessoa e de nossas relações com os outros. Como uma neblina suave, preenche os vales

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de nossa alma e encobre os cumes de nossos desejos, dos nossos sonhos e ideais. Nós somos frutos do cuidado. Dos outros e de nós próprios. Porque nós também cuidamos de nós mesmos. Aprendemos a nos cuidar. Além daquilo que entra no âmbito dos cuidados materiais ou físicos, há outros lugares a serem cuidados, como o coração e a mente, ou seja, os sentimentos e os pensamentos. Também estes precisam ser envoltos em atenção para não nos ferirem, para não machucarem os outros, para nos elevarem em vez de nos abaterem ou jogarem no poço da tristeza, da solidão, do desânimo ou da depressão. Se fossem retirados – coisa impossível – todos os cuidados que estão nos protegendo neste momento, sucumbiríamos física e psiquicamente. O que foi dito acima pode ser resumido nestas frases: O cuidado é uma dimensão ontológica do ser humano. É constitutivo de nossa existência e de nosso fazer cotidiano. Porque fomos e somos cuidados, porque cuidamos de nós e do outro, numa teia de cuidados recíprocos. O Estado tem um papel no cuidado O cuidado não está só entre as pessoas. O Estado também tem o dever de cuidar das pessoas e de suas relações, dos indivíduos singulares, dos grupos sociais, da sociedade inteira. Cuidar da vida em todas as suas etapas – da infância, adolescência, juventude, vida adulta e dos idosos - provendo os meios de desenvolvimento pessoal e social. Cuidar dos meios que possibilitem às pessoas viverem a cidadania, isto é, terem presença e participação na vida social, cultural e econômica. Em outras palavras, realizar as ações que assegurem que aquilo que a

sociedade definiu como direito seja garantido a todos. A todos sem exceção, com equidade e dignidade. Os instrumentos para o Estado prover os meios são as leis e as políticas públicas, os programas e as ações que as põem em prática. O cuidado nas leis O cuidado deve estar presente na formulação, no debate, no aprimoramento e na aprovação das leis. Ele implica, também, na rejeição de projetos que retiram direitos, criam privilégios ou reduzem as condições necessárias para a garantia dos direitos. Para cumprirem essa função, os legisladores devem entender de “Cuidado”, nas suas diversas dimensões e as especificidades do cuidar em cada etapa da vida humana. O cuidado, na sua dimensão política, começa na elaboração da Constituição da República e prossegue nas leis, nas três esferas da Federação – União, Estados, DF e Municípios. Mas ele inicia antes, na experiência dos que são eleitos a cargo legislativo, de terem sido cuidados ou terem sofrido descuido na infância, nos amores e desamores, nas concepções sobre a vida, nos objetivos e compromissos que assumem na vida. E está presente no voto dos eleitores. Daí por que é preciso escolher com cuidado a quem eleger. E acompanhar, atentamente, sua


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Uma Cultura de Cuidado é muito mais do que ações isoladas, independentes e pontuais de cuidado, ou mesmo do que uma política ou um programa de atenção à Primeira infância. atividade legislativa. As leis têm que ser guardiãs do cuidado que protege e promove a vida, que zela por todos, com equidade e justiça. Ao fazerem, por exemplo, o Estatuto do Idoso, a Lei de Acessibilidade, o Estatuto do Índio, ao aprovarem uma lei sobre demarcação das terras indígenas, quando alteram a proposta de Orçamento da União, cortando programas e aumentando recursos em outros, quando selecionam as emendas parlamentares que serão aprovadas, os legisladores estão atuando no conteúdo e na forma do Estado cuidar dos cidadãos. Favorecendo, facilitando ou dificultando esse trabalho. O cuidado da criança como Cultura O Marco Legal da Primeira Infância, aprovado pela Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016, pode ser chamado também de “a lei do cuidado integral à Primeira Infância”. O inciso IV do art. 4º assim o diz: “promover a formação de uma cultura de proteção e promoção da criança, como apoio dos meios de comunicação social”. Uma leitura atenta do texto produz a sensação de que o Marco Legal da Primeira Infância está impregnado de cuidado desde o início da gestação até os seis anos de idade. Se esta lei for executada na profundidade significativa dos seus princípios e na extensão abrangente de suas determinações, ela estará contribuindo para criar e aprofundar a Cultura do Cuidado Integral da Criança no Brasil.

Se entendermos por cultura o conjunto amplo, complexo e estável de pensamentos, sentimentos, linguagem, costumes e hábitos, crenças e valores, as relações sociais, o modo de organizar a vida coletiva, de agir e reagir, de produzir e consumir, de olhar e interpretar, o modo de organizar o espaço e usar o tempo, concluímos que o ambiente e o espaço estão impregnados por ela. Dessa forma, a cultura do cuidado forma as pessoas para serem atenciosas e zelosas com as crianças. Isso está muito além de “atos de cuidado”. Mas assim como a cultura não é uniforme, também a cultura do cuidado à criança terá no seu bojo exceções individuais e de grupos e diferentes níveis de engajamento e responsabilidade. Há que se trabalhar para que ela seja a mais ampla possível. Assim como uma “Cultura de Paz” promove a paz em todos os ambientes, para todas as pessoas, ensina a superar divergências, a resolver conflitos, a recuperar a alegria do encontro, a ser solidário e cooperativo, a “Cultura do Cuidado Integral à Primeira Infância” gera uma atitude de proteção e promoção das crianças em todos os espaços onde elas fazem sua vida, durante todos os momentos e em tudo o que constitui seu desenvolvimento. As políticas são produtos culturais. Elas são constituídas por concepções e valores, por aspirações e decisões que se forjam na cultura. As políticas direcionadas à vida e ao desenvolvimento da criança carregam no seu bojo o entendimento que o governo e a sociedade ou

O Estado também tem o dever de cuidar das pessoas e de suas relações, dos indivíduos singulares, dos grupos sociais, da sociedade inteira.

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grupos sociais, políticos, étnicos, religiosos ou econômicos que influenciaram a construção dessas políticas, têm sobre a criança e seus direitos, sua presença e participação na sociedade, sobre o significado das interações e a importância da convivência, sobre sua condição de sujeito e cidadã. Essa cultura do cuidado integral precisa ser formada no Brasil. Temos leis reconhecidamente avançadas, políticas de alta qualidade em vários campos da atenção à criança, programas exitosos do governo federal, dos estaduais, distrital e municipais. O progresso na área da saúde, da educação infantil, da assistência social e da proteção à criança são reconhecidos e aplaudidos. Mas ainda falta muito e esse é o propósito do Marco Legal da Primeira Infância: avançar. Como avançar na cultura do cuidado integral à criança? O que o Marco Legal da Primeira Infância determina para que se entrelace na sociedade brasileira a Cultura do Cuidado Integral? Primeiro, que se aplique o princípio constitucional de prioridade absoluta para a criança e o adolescente. Sem esse princípio, jamais as crianças teriam como disputar com outros grupos etários e outras demandas sociais e econômicas o lugar que precisam no orçamento e nas políticas sociais.

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Um segundo item é a concepção holística de criança e a prática social de atendimento integral e integrado. Predomina a visão fragmentada das ciências, das profissões e da gestão pública, setorializada e verticalizada. Se a setorialização é a forma que corresponde melhor à oferta especializada dos serviços públicos, é fundamental que os setores dialoguem horizontalmente, que atuem articuladamente, que cheguem na criança com unidade de pensamento, com coerência de concepções, com abordagem integral. O Marco Legal da Primeira Infância estabelece como ponto de partida das políticas públicas a concepção holística de criança, sujeito de direito e cidadã, que deve ser atendida na sua inteireza e completude de pessoa. Para tanto, cita as áreas prioritárias e indispensáveis que devem estar contempladas nessas políticas: saúde, alimentação, nutrição, educação infantil, convivência familiar e comunitária, assistência social à família da criança, cultura, o brincar e o lazer, o espaço e o meio ambiente, a proteção frente a toda forma de violência e à pressão consumista, a prevenção de acidentes e a adoção de medidas que evitem a exposição precoce à comunicação mercadológica. Temos aqui áreas novas, ainda não visitadas pelas políticas públicas, como a pressão que as crianças sofrem para se tornarem consumidoras, a comunicação mercadológica que as usa como objeto de lucro. Outras, embora presentes, são insuficientes ou frágeis, como o acesso à creche, à produção cultural para as crianças e o reconhecimento de suas próprias produções como a cultura, a convivência familiar de grande número de crianças, a violência, principalmente doméstica, contra a criança.

Há, também, políticas com evidências de que estão se evadindo, como os espaços de brincar em casa, na escola, na rua e na cidade, o direito das crianças urbanas de conviver com a natureza, enfim, o direito à infância e à singularidade, em outras palavras, à diversidade. O conjunto de princípios estabelecidos pelo Marco Legal da Primeira Infância é um catálogo de cuidados à infância. Se tomados de forma integrada, eles são capazes de forjar o próximo nível da cultura do cuidado. Vejamos: a) Atender ao interesse superior da criança e sua condição de cidadã e sujeito de direito. É um princípio revolucionário, embora antigo, pois provém da Convenção dos Direitos da Criança, das Nações Unidas (1989). A revolução que sua correta aplicação causará é de tomar a criança como ponto de partida para a definição da política e das ações e não o orçamento já definido para ela, os modelos de serviço centrados nos profissionais ou na tradição dos estabelecimentos de saúde, educação e assistência social, o gosto e interesse dos adultos. Quando estes pedem ou apoiam ações de atenção à criança com o objetivo de se verem liberados do encargo de cuidar (se tomam o cuidado como encargo e não como dinâmica constitutiva da vida, das elações e dos laços humanos), não é a criança o ponto de partida da


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ação e sim o adulto. Esse cuidado é revolucionário porque a criança muda da posição de objeto das políticas sociais para a de sujeito, e sua condição infantil passa a ser a definidora do que e como os serviços devem ser providos. b) Ouvir as crianças durante a elaboração das políticas para elas. A lei determina que se incluam as crianças como participantes, em processos adequados às suas características etárias e de desenvolvimento. Em outras partes da lei são estabelecidas algumas condições para que essa escuta seja ética. Essa é também uma condição de sujeito das políticas a elas dirigidas. c) Respeitar a individualidade e ritmos de desenvolvimento das crianças e valorizar a diversidade das infâncias brasileiras. Políticas universais, como saúde e educação, não significa serem uniformes. A diversidade decorrente das etnias, da região, da cultura e do meio socioeconômico, é expressão das singularidades das crianças, que não pode ser negada, e uma riqueza nacional, que não pode ser desperdiçada. d) Reduzir as desigualdades no acesso aos bens e serviços. Cuidar da criança é cuidar de todas as crianças, com o olhar no direito de cada uma ao acesso aos meios de vida e desenvolvimento. Ao se promover a atenção a todas, as que estão na sombra das políticas públicas vêm à luz, passam a ser vistas, e suas necessidades não atendidas começam a pressionar. Não cuida bem de suas crianças o país que exclui, ignora e menospreza parte delas, seja por que razão for. A redução das desigualdades na infância é a chave que abre o círculo vicioso da desigualdade social e econômica no País.

No decorrer da vida, crianças bem atendidas, via de regra, se tornam adolescentes integrados na escola, jovens inseridos no trabalho, famílias com melhores condições de cuidar e educar os filhos. E a desigualdade começa a desfazerse, dando lugar a uma sociedade mais equânime. e) Cuidar das crianças é cuidar também de suas famílias e dos profissionais que se encarregam de atender a seus direitos. Winnicott escreveu uma frase que se tornou paradigmática: “Um bebê sozinho não existe; ele existe com sua mãe”. Quis dizer com isso que uma criança não está solta do espaço, não vem do nada nem se sustenta na vida sem o cuidador. Portanto, não se pode atendê-la bem, se não se atende seu cuidador, as relações e o ambiente em que ele está inserido. O Marco Legal da Primeira infância tem vários dispositivos sobre a formação dos profissionais e sobre a atenção à família da criança. A brevidade deste artigo não comporta citá-los. Conclusão

criança seja plena e bela, vença todas as peripécias, do corpo e da alma, e se construa sólida e solidária. Cuidar é, também, deixar-se cuidar. Devemos dar à própria criança o direito de cuidar de nós. Ela sabe dar um sorriso, dizer uma palavra, arrancar um arquétipo do nosso inconsciente, dar um abraço quando percebe que disso carecemos. Cuidamos dela, mas também de sua capacidade de doar-se, de sua experiência de ser dom. Cuidar é também receber, acolher, deixar-se abraçar. Porque a criança cresce não apenas pelo que ganha, mas também pelo que dá. E essa é uma experiência importante para se tornar, também ela, um adulto que cuida. Vital Didonet é licenciado em filosofia e pedagogia, mestre em educação e especialista em educação infantil, foi presidente da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar - OMEP Brasil, Vice-presidente mundial da OMEP e consultor na área da educação infantil e dos direitos da criança. Atualmente sua atuação está centrada nas políticas públicas pela Primeira Infância.

O cuidado protege e promove. Não é restritivo nem seletivo. Não discrimina nem privilegia. Mas a todas as crianças oferece o melhor de que os indivíduos e a sociedade dispõem para que elas vivam a vida mais plena que for possível aqui e agora, e cheguem, no desenvolvimento, até onde suas potencialidades as levarem. Há um cuidado que sufoca e aprisiona, tolhe corridas e voos, impede exploração e descobertas; que restringe a experiência, o pensamento e inibe a expressão de sentimentos e emoções. É um grave descuido, para não dizer um “contra-cuidado”. Mas há um cuidado que zela, com firmeza e ternura, para que a vida da

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Sandra Greco da Fonseca, gestora nacional da Aldeias infantis SOS Brasil e Salete Valesan Camba, diretora da Flacso Brasil, nesta entrevista para a Revista Bem Cuidar expressam suas opiniões sobre fatos e questões que envolvem a revolução do cuidado de crianças, adolescentes e jovens, os 50 anos da Aldeias Infantis SOS Brasil e os legados de Hermann Gmeiner e de Paulo Freire. Revista Bem Cuidar – Antes e depois do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, como você descreveria a revolução do cuidado de crianças e adolescentes no Brasil? Sandra Greco da Fonseca - Realmente houve um avanço significativo e uma mudança real. O ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, resgata a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e trata do tema como uma referência em políticas públicas. Infelizmente, o que nós podemos constatar ainda hoje é que, mesmo após tantos anos da sua promulgação, ainda existem artigos e questões legais no ECA que não são respeitadas, ou que não são devidamente implementadas como políticas, no entanto, o avanço foi significativo e muito do que se tem hoje, as próprias instâncias dos conselhos tutelares, que são instâncias também de defesa e proteção, tratam a criança como sujeito de direito. Salete Valesan Camba - A revolução foi feita com a afirmação das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos no ordenamento jurídico nacional, que teve início com a Constituição Federal de 1988 e que estipula, em seu art. 227, que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. De maneira similar, o Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 13 de julho de 1990 pela Lei nº 8.069, também afirma, no seu art. 4º, que “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” de crianças e adolescentes.

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Revista Bem Cuidar - O Brasil é reconhecido internacionalmente como um país que possui um sólido ordenamento jurídico na infância e na adolescência, embasado em critérios de proteção integral. Como a sociedade civil, as políticas públicas e o ECA contribuíram com esse cenário? Esse cenário é real? Sandra Greco da Fonseca - A primeira questão que vem à tona quando nós pensamos e refletimos a esse respeito é que, realmente, o Brasil é referência nas políticas públicas, principalmente na América Latina. Quando viajamos e temos contato com pessoas de outros países é que se pode constatar que, efetivamente, as políticas públicas no Brasil, não só na questão da infância, mas em outros âmbitos também, são referências para a formulação de políticas e de marcos legais em outros países. Por outro lado, acho que não se pode negar o processo que envolveu a sociedade civil e as ONGs, desde a promulgação do Estatuto. Muitas pessoas, referências na sociedade civil foram envolvidas na discussão, que terminou com a formulação do ECA e no seu modelo aprovado e promulgado como lei. E isso é muito importante, porque a sociedade civil precisa ser ouvida e respeitada em seus anseios. Efetivamente, o ECA comporta avanços e esse olhar da sociedade civil. Salete Valesan Camba - O cenário na parte de ordenamento jurídico é real. Nas últimas três décadas, o governo e a sociedade civil mobilizada avançaram na promoção e defesa de direitos da infância e da adolescência em áreas como o marco


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aplicados de forma isonômica. Todos trabalham com os mesmos princípios, mesmo hoje, com toda a atualização do marco legal, com a diminuição de crianças nos serviços de acolhimento e um expressivo aumento do trabalho com as famílias no fortalecimento de vínculos. legal, a diminuição da mortalidade infantil, a universalização do ensino fundamental, o acolhimento, o cuidado e a erradicação do sub registro civil de nascimento. Porém, o Estado que promulgou o ECA é também o principal violador dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. Revista Bem Cuidar - A Aldeias Infantis SOS está comemorando 50 anos de atividades no país. Como esse modelo de Organização humanitária, fundada por Hermann Gmeiner em 1949, na Áustria, influenciou a construção dos princípios do bem cuidar de crianças, adolescentes e suas famílias no Brasil? Sandra Greco da Fonseca - Hermann Gmeiner foi um pioneiro nos princípios do bem cuidar de crianças e adolescentes. Seus ensinamentos falam de sensibilidade, de compaixão e de sempre se colocar no lugar do outro. E, nesse sentido, ele, em 1949, no pós-guerra, teve a sensibilidade de perceber que os meninos, na maioria órfãos, precisavam de um olhar de cuidado. E foi isso o que ele fez a vida inteira. Com o apoio de pessoas próximas começou a construir essa grande obra que é a Aldeias Infantis SOS, e o princípio dessa Organização é, efetivamente, o bem cuidar de crianças, adolescentes e jovens. Essa missão é exercida pontualmente, principalmente pelas cuidadoras residentes e educadores sociais, que são as pessoas que diretamente atuam junto a essas crianças, adolescentes e jovens, atendidos pela Organização, porque tiveram seus direitos violados, ou porque se encontram numa situação de extrema fragilidade física e emocional, e é aí que se materializa essa questão do cuidado. Esse cuidado tem que ter qualidade. E o que garante a qualidade desse cuidado é a harmonia, o amor incondicional e a unicidade de diretrizes e de procedimentos, porque a organização está em 134 países e em todos os países, as diretrizes e os procedimentos organizacionais são

Salete Valesan Camba - Ao criar a concepção e conceito de acolhimento para a Aldeias Infantis SOS, Hermann Gmeiner construiu uma nova realidade para centenas de crianças, adolescentes e mães destroçadas pelas guerras e conflitos. Reconheceu o direito de cada indivíduo como um sujeito coletivo ao possibilitar a formação de novos núcleos familiares. Uma organização que é referência no Brasil e que tem sua caminhada vinculada à participação nos Fóruns e Conselhos, na construção do Marco Legal brasileiro, no fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos, na definição da concepção de família acolhedora e na garantia do direito a convivência familiar e comunitária. Que inova na metodologia do cuidar e educar, que fortalece vínculos e cria espaço para reconstrução de vidas. Revista Bem Cuidar - Qual a sua visão sobre a participação e o legado do educador Paulo Freire em relação ao atual momento da educação e do cuidado de crianças e adolescentes no país? Sandra Greco da Fonseca - Falar de Paulo Freire é falar de uma pessoa que teve uma importância muito grande na minha formação e ao mesmo tempo é falar de pessoas à frente do seu tempo, porque eu acho que o Paulo Freire e o Hermann Gmeiner foram contemporâneos. Infelizmente, nunca tiveram a oportunidade de conversar, mas eu entendo que eles tinham muitas coisas em comum. Esse princípio do cuidado, de olhar o outro, de se sensibilizar, de ter compaixão pelo outro é um fator que une as duas histórias e as duas trajetórias. Eu sinto que se eles estivessem vivos hoje, lamentariam muito a situação que vivemos, e que não está acontecendo só no Brasil, mas, como estamos falando do Brasil, esse cenário, tanto na educação, quanto nas políticas públicas para crianças, adolescentes e jovens, tem sofrido sistematicamente reveses e redução de direitos conquistados duramente ao longo da história. Em relação à educação, com certeza Paulo Freire deixou um legado que é reconhecido internacionalmente, mas, no Brasil, algumas novas medidas apontam para um retrocesso e para uma participação mínima dos mais interessados que

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desse processo. Negar à eles a cultura e a educação é tirar-lhes a chance de se tornarem cidadãos conscientes de direitos e deveres. Nesse sentido, é assumir a própria incompetência do Estado em lhes assegurar o direito básico que é a educação. são os estudantes e os próprios educadores, que têm a voz, cada vez menos ativa na condução dos processos educacionais do país.

Revista Bem Cuidar - Quais os desafios enfrentados pelas organizações da sociedade civil na defesa e promoção dos direitos da criança e do adolescente?

As Organizações que trabalham no terceiro setor precisam buscar, de forma radical, a defesa e a proteção das crianças e adolescentes, que é um direito conquistado e porque, na maioria das vezes, eles não têm voz. São o que chamamos de invisíveis, e eu acho que a nossa atuação não tem sentido se nós não dermos voz a eles e os incentivarmos a fazer uma leitura crítica de mundo, que é um dos legados que o Paulo Freire nos deixou, na perspectiva de serem jovens atuantes e adultos conscientes, com um olhar de construção coletiva. Paulo Freire começou a pensar a alfabetização usando recursos básicos, como rabiscar a areia com um galho ou bastão. Ele transcreveu essa simplicidade para a sua proposta, sem pensar em grandes pressupostos e recursos didáticos.

Sandra Greco da Fonseca - Os desafios são enormes. Principalmente para organizações que trabalham com crianças vulneráveis, infelizmente consideradas pela sociedade um incômodo. Está tudo bem e tranquilo enquanto elas estão confinadas, quando não convivem com a sociedade. Daí está tudo bem. Mas quando trazemos essas crianças para a visibilidade da vida em sociedade é que acontecem os primeiros conflitos. Além da existência desse cenário, diante do qual estamos sempre em busca de soluções, vivemos ainda uma situação que é um retrocesso na política de direitos humanos no país, em especial para as crianças, adolescentes e jovens, então, mais do que nunca, as organizações da sociedade civil que atuam na área de direitos humanos, especialmente nas políticas de proteção integral, têm essa tarefa de buscar essa unicidade, um enfrentamento a estas situações, de maneira que possamos preservar o que já temos, sem perdermos mais direitos.

Salete Valesan Camba - Uma das importantes contribuições de Paulo Freire com a Educação para crianças e adolescentes é a Escola Cidadã, um espaço de comunidade pautada nos princípios da Educação Popular e da Cultura Popular. Nela, a formação, na perspectiva freiriana, pressupõe a participação, a ludicidade, a dialogicidade, a vivência e a interatividade. A pedagogia dialógica de Freire valoriza os “saberes de experiência feita”. Promove o diálogo permanente entre saberes do cotidiano, construídos nos espaços informais e saberes escolares formais, visando a passagem da atitude passiva à atividade crítica, construtora de liberdade e solidariedade emancipatória. Colabora para a formação de sujeitos capazes de refletir sobre sua realidade e agir para transformá-la. Para Paulo Freire, a educação é fundamental para qualquer indivíduo se tornar um cidadão consciente e crítico. Mas é realidade que no Brasil, a infância, a adolescência e a juventude pobre são excluídas

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O lema da organização é “nós não podemos perder nenhuma criança”, e para não perdermos nenhuma criança, precisamos do amparo legal e efetivo, de políticas públicas, que referenciem e que se materializem, como opções para estas crianças, e, ao mesmo tempo, precisamos dessa reação da sociedade civil, apoiando as organizações que fazem esse trabalho. Hoje, com os 17 ODS – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, os países membros da ONU, entre eles o Brasil, assinaram o compromisso de implementar essas diretrizes em todas as áreas, porque são princípios fundamentais para o desenvolvimento e sobrevivência da humanidade, sem deixar ninguém para trás. Salete Valesan Camba - O principal desafio é o Estado violador de Direitos. Mas, existem outros desafios cotidianos como: - Desafios econômicos são uma presença constante na vida destas organizações, que limitam a atuação e a abrangência do atendimento, tirando o foco do trabalho social.


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- Desafios jurídicos, mesmo considerando o novo marco legal – MROSC, uma vez que ele não resolve todas as questões na relação Estado x Sociedade Civil organizada. - Desafios com a sociedade pelo preconceito, exclusão e estigma em relação às crianças e adolescentes acolhidos. - Desafios com a mudança cultural da sociedade brasileira no quesito colaboração, apoio e contribuição para a manutenção do trabalho destas organizações. Revista Bem Cuidar - De que forma o cuidado de crianças e adolescentes pode ser aperfeiçoado no país? Sandra Greco da Fonseca - Em termos de marco legal, se nós conseguíssemos implementar efetivamente o que está disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente, com suas políticas complementares, que é o plano nacional de convivência familiar e comunitária, que estão mais no âmbito teórico, já dariamos conta desta proteção integral. O que nós precisamos é diminuir a dicotomia entre o discurso, a teoria e as ações práticas. As organizações do terceiro setor e o governo têm um papel fundamental nessa atuação direta e todos nós precisamos entender que o atendimento e a responsabilidade pelas crianças, adolescentes e jovens brasileiros é do Brasil, então, ela não pode ser transferida apenas para o governo, só para as organizações ou só para a sociedade civil. Temos que trabalhar em conjunto, buscando a aplicação prática e a implementação do ECA.

Salete Valesan Camba é diretora da Flacso Brasil

Salete Valesan Camba - Com a garantia plena do direito à participação. Como sujeitos de direitos, as crianças e os adolescentes desfrutam da garantia do direito de participação. Isso é assegurado legalmente nos artigos 12 ao 17 da Convenção Sobre os Direitos da Criança e também nos artigos 3, 15 e 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No entanto, na prática, sabemos que a participação efetiva e legitimada é um processo complexo e desafiador, a ser vencido por uma sociedade adulta, moldada na cultura da incapacidade da criança e do adolescente terem reflexões e opiniões próprias. Participação é o envolvimento ativo das crianças e dos adolescentes nas decisões que afetam suas vidas. A participação da criança e do adolescente, proporcional ao seu grau de desenvolvimento e amadurecimento, favorece seu processo de formação e de informação, promovendo a construção do seu próprio protagonismo.

Sandra Greco da Fonseca é gestora nacional da Aldeias Infantis SOS Brasil

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paulo freire: semeador de sonhos e patrono da educação brasileira “Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo, não do mundo maior dos meus pais.O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.” Paulo Freire

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Paulo Freire brincou muito na infância. Brincadeiras de rua, com seus irmãos e amigos, sem barreiras de classe social, cor ou religião. Momentos inesquecíveis, para ele e para todos que vivenciaram experiências semelhantes, porque, por meio de brincadeiras, as crianças desenvolvem saberes e a “leitura de mundo sempre precede a leitura da palavra”. Há 20 anos, o Brasil perdia Paulo Freire: educador, pedagogo, filósofo e patrono da educação brasileira, considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial e defensor de um sistema de ensino mais justo. Criou uma metodologia de alfabetização conhecida como Método Paulo Freire, que, segundo ele, “tratava-se muito mais de uma teoria do conhecimento do que uma metodologia de ensino, muito mais um método de aprender do que um método de ensinar”. O legado freiriano enfatiza, na educação de jovens, adultos e crianças, a importância de uma educação dialógica, segundo

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Freire, “essencial desde a primeira infância”, incentivando ainda, na educação infantil, as rodas de conversa, o cuidado e a qualidade do relacionamento, com o propósito dessas crianças serem reconhecidas como sujeitos de direitos, autônomos, “participando coletivamente da construção de um saber, que vai além do saber de pura experiência feita”, capazes de criar e recriar o conhecimento e suas próprias histórias de vida. Para Freire, além de “mudar a cara da escola” era preciso demonstrar respeito pelas crianças, professores e pais, pela própria escola e pela comunidade, ouvindo essas crianças e a sociedade. Uma nova educação, para Freire, só seria possível com uma profunda mudança da sociedade, da política, da ética, do cotidiano dos indivíduos e dos grupos sociais. Essa nova educação não aceita a constante exploração dos oprimidos. Seria uma educação “para a autonomia e para a capacidade de dirigir”, para formar cidadãos plenos, enfim, uma educação cidadã. Mesmo após tantos anos de existência, o Método Paulo Freire permanece atual e cada vez mais necessário, atendendo às necessidades de milhares de educadores

e educadoras que desejam fazer de suas práticas político-pedagógicas, ações de emancipação, libertação e ressignificação do ato de aprender e ensinar crianças, jovens e adultos de todas as classes sociais, trabalhadores, agricultores, pescadores, sem-terra, indígenas, quilombolas, refugiados, catadores, recicladores, e os que nunca tiveram voz. Paulo Reglus Neves Freire nasceu no dia 19 de setembro de 1921, em Recife, Pernambuco, na época, uma das regiões mais pobres do país, onde logo cedo pôde experimentar as dificuldades de sobrevivência das classes populares. Acreditava profundamente no ser humano e nos ensinou a compreender a educação como instrumento de mudança, porque, segundo afirmava, “a educação não muda o mundo, a educação muda pessoas, as pessoas mudam o mundo”. Graduado pela Faculdade de Direito de Recife (Pernambuco). Foi professor de Língua Portuguesa do Colégio Oswaldo Cruz, diretor do setor de Educação e Cultura do SESI (Serviço Social da Indústria) e superintendente do mesmo. Ao lado de outros educadores e pessoas interessadas na educação escolarizada, fundou o Instituto Capibaribe e foi quase tudo como educador, professor, criador de ideias e métodos.


A coragem de pôr em prática um autêntico trabalho de educação que identifica a alfabetização como um processo de conscientização, capacitando o oprimido tanto para a aquisição dos instrumentos de leitura e escrita, quanto para a sua libertação, fez dele um dos primeiros brasileiros a serem exilados. Trabalhou como professor na Universidade de Harvard, em 1969, em estreita colaboração com numerosos grupos engajados em novas experiências educacionais tanto em zonas rurais quanto urbanas. Durante os dez anos seguintes, foi Consultor Especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra (Suíça). Nesse período, deu consultoria educacional junto a vários governos, principalmente na África. Em 1980, depois de 16 anos de exílio, retornou ao Brasil e lecionou na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Em 1989, tornou-se Secretário de Educação no Município de São Paulo. Durante seu mandato, fez um grande esforço na implementação de movimentos de alfabetização, de revisão curricular, empenhou-se na recuperação salarial dos professores e, entre outras ações, criou o Mova-SP, um movimento de alfabetização de jovens e adultos. A metodologia por ele desenvolvida foi muito utilizada em todo o Brasil em campanhas de alfabetização. Sua principal obra “Pedagogia do Oprimido”, tem como proposta um método de alfabetização dialético e o diálogo com as pessoas simples, não só como método, mas como um modo de ser realmente democrático. Paulo Freire é autor de muitas obras. Entre elas: Educação como prática da liberdade (1967), Pedagogia do oprimido (1968), Cartas à Guiné-Bissau (1975),

A Educação na Cidade (1991), Pedagogia da Esperança (1992) e À sombra desta mangueira (1995). Foi reconhecido mundialmente pela sua práxis educativa por meio de numerosas homenagens. Além de ter seu nome adotado por muitas instituições é cidadão honorário de várias cidades, no Brasil e no exterior. No dia 10 de abril de 1997 lançou seu último livro intitulado “Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa”. Paulo Freire faleceu em São Paulo no dia 2 de maio de 1997, deixando para os brasileiros e para o mundo, um legado que inspirou muitas histórias bem-sucedidas e a construção de um futuro melhor para todos. Fonte: IPF - Instituto Paulo Freire www.paulofreire.org

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Foto: Acervo IPF - Instituto Paulo Freire

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regulamentação da educação social no brasil por Roberto da Silva

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Educação Social compreende as práticas de educação realizadas fora da sala de aula, pejorativamente designadas como Educação não Formal. Neste sentido, educação para a cidadania, em direitos humanos, para as relações étnico-raciais, para o consumo consciente, alimentar, para a saúde ou para o trânsito são genericamente denominadas Educação não Formal. Quando estas práticas são orientadas pelo referencial teórico da Pedagogia Social elas podem ser mais corretamente identificadas como práticas de Educação Social, de Educação Popular ou de Educação Comunitária porque recorrem aos elementos das mesmas matrizes culturais das quais se origina o povo brasileiro, ou seja, tradições indígenas, africanas e europeias. Pedagogia Social é a área de conhecimento das Ciências da Educação que tem como objeto de estudo e pesquisa a educabilidade social do indivíduo e dos grupos. Educação Social é o campo da prática e abarca todos os espaços, tempos e lugares nos quais se desenvolve a convivência e as relações humanas e independe de nível de escolaridade, de renda ou do lugar que ocupa na estrutura social. Além da educabilidade social do indivíduo pode-se falar da edu-

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cabilidade social da família, da escola, da igreja, das empresas, dos partidos políticos, das instituições da República e até mesmo de um país, pois falta de Educação (social) existe em todas as esferas e dimensões da vida. Tradicionalmente desenvolvidas no âmbito das organizações sociais, populares, comunitárias e não governamentais, são largamente praticadas também nos movimentos sociais, em comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhas, de pescadores, etc.) e foram incorporadas por institutos e fundações empresariais e até mesmo o Sistema Único de Saúde incorpora suas contribuições. Os praticantes destas modalidades educativas hoje são incorretamente chamados de oficineiros, artistas de rua, arte-educadores, artistas populares, artesãos, mestres de capoeira, mestres de ofício, animadores culturais e nunca de educadores ou de professores, exatamente por não haver regulamentação destas práticas e nem exigências de escolaridade ou de formação específica para ministrá-las. O fundamento legal para lutar pela regulamentação da Educação Social no Brasil é dado pela própria Constituição Federal de 1988 (artigo 205) e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Artigo 1º da Lei nº 9394/96) ao definir que “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. No Brasil, somente a Educação Escolar é regulamentada e isso significa que ela tem leis federal, estaduais e municipais, que há políticas próprias de financiamento, de formação de professores, piso salarial e sistemas de avaliação.

Se a Educação é tão ampla e se desenvolve por meio de variados processos como diz a LDB, então perguntamos: E as outras Educações? Porque não são regulamentadas e o que significaria regulamentá-las hoje no Brasil? Para fazer a Educação Escolar, também denominada Educação formal, temos no país cerca de 198 mil unidades escolares onde trabalham cerca de 2,2 milhões de professores para atender cerca de 45 milhões de alunos. Fazendo a Educação Social, Popular ou Comunitária temos no mesmo país cerca de 570 mil instituições entre ONGs, OSD, OSCIPS, institutos e fundações que empregam cerca de 2,1 milhões de trabalhadores e atendem, tanto a população escolar, quanto seus familiares e pessoas que estão fora da escola. Só considerando o aspecto quantitativo, a regulamentação da Educação Social significaria dobrar o contingente de trabalhadores que se dedica às tarefas educativas e quase triplicar os espaços educativos que atendem a população brasileira. Do ponto de vista qualitativo seria somar esforços entre a Pedagogia Escolar e a Pedagogia Social, articular a colaboração entre a Educação Escolar e a Educação Social e colocar a Educação Popular e a Educação Comunitária a favor de uma educação verdadeiramente


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O impacto social desta articulação entre duas áreas de conhecimento seria extraordinário no Brasil, principalmente se ela considerar alguns indicadores importantes: 1. que seja admitida a formação de nível médio/ técnico para início da profissão; 2. que aproveite os saberes constituídos no mundo da vida; 3. que seja uma profissão voltada principalmente para a juventude que precisa do primeiro emprego e; 4. que haja uma estrutura de carreira para valorizar a formação técnica, tecnológica, em níveis superior e de pós-graduação. O Catálogo Nacional de Cursos Técnicos indica os cursos e dá as orientações para formação de profissionais de nível técnico com cargas horárias de 800 a 1.200 horas. Para propiciar a formação temos dois CEFETs (Centro Federal de Educação Tecnológica); 23 escolas técnicas nas Universidades Federais; 38 institutos federais (IFES); 637 unidades do SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial); 5.325 escolas técnicas estaduais e municipais. Quase todas estas instituições oferecem cursos gratuitos e o curso técnico pode ser concomitante, integrado ou depois do Ensino Médio. Do ponto de vista do financiamento, tanto da formação quanto da empregabilidade dos profissionais formados em nível técnico, o Brasil possui

Por meio de uma continha muito simples podemos ver o potencial de inclusão da Educação Social. A juventude (população de 15 a 29 anos), segmento que mais sofre com o desemprego, com a violência e com o assédio do consumo e das drogas, soma em torno de 26 milhões de pessoas no Brasil. Dar formação pedagógica a 10% dessa juventude, para que possam atuar em suas comunidades, significaria ter 2,6 milhões de jovens trabalhando na prevenção a fatores de risco, na difusão das artes, do esporte e da cultura. No Ensino Médio temos cerca de 8,3 milhões de alunos matriculados; no Ensino Técnico 1,4 milhão alunos; nas favelas cerca de 11 milhões de pessoas; nas prisões mais de 700 mil presos. No Programa Bolsa Família são 14 milhões de pessoas atendidas e o universo de desempregados ultrapassa os 12 milhões de brasileiros. Parte destas pessoas têm conhecimentos úteis para compartilhar com seus iguais e suas comunidades. A maioria é atendida ou já foi atendida em programas e projetos sociais e quase todos se sentiriam cidadãos úteis, podendo trabalhar em favor da transformação da qualidade de vida em suas próprias comunidades. Capacitar 10% de cada um destes contingentes significaria gerar, de imediato, e sem maiores custos, cerca de 7.340.000 empregos. Nenhuma área tem potencial para criar tantos empregos tão rapidamente a baixo custo e nenhuma é tão prioritária quanto a Educação.

de Lei nº 5346/2009, de autoria do Deputado Chico Lopes (PCdoB/CE) e a regulamentação isolada só da profissão de Educador Social é tratada no Projeto de Lei do Senado nº 328/2015 proposta pelo Senador Telmário Mota (PTB/RR). Roberto da Silva é Professor Livre Docente em Pedagogia Social no Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, presidente da Associação Brasileira de Pedagogia Social (ABRAPSocial) e editor da Coleção Pedagogia Social.

Foto: Marcos Santos/USP Imagens

integral, integrada e integradora. Suporte legal, meios de financiamento e infraestrutura para colocar isso em prática o Brasil já tem.

modalidades como PRONATEC, PROEJA FIC e PROEJA TÉCNICO, PROJOVEM URBANO e CAMPO, Bolsa Formação, além do próprio FUNDEB, se Educadores Sociais forem incluídos dentre os trabalhadores da educação, conforme determina o Artigo 61 da LDB.

A regulamentação da Educação Social como campo de trabalho profissional de educadores populares, sociais e comunitários é objeto do Projeto

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debate

o educador social e a regulamentação profissional A regulamentação da profissão de educador social envolve uma série de aspectos inerentes à atividade, que abrangem, entre outros itens, desde uma formação heterogênea até o diversificado perfil dos profissionais do setor em atividade no país. É por esse motivo, e pela importância do tema, que a Revista Bem Cuidar abriu um espaço nesta editoria para que educadores com visões diferenciadas sobre essa questão pudessem expor suas opiniões.

formação específica e adequada a favor de uma atuação mais qualificada Por José Pucci Neto

Atuando como Educador Social em Curitiba (Paraná), desde 1996, acompanho o processo nacional da Regulamentação da Profissão do Educador Social no Brasil (por dois projetos de leis que tramitam no Legislativo). Nós, educadores sociais brasileiros, vemos isso como de extrema importância, pois precisamos de formação específica, adequada e qualificada para nossa atuação, que se dá com pessoas em estado de vulnerabilidade e risco social, o que exige a atuação de um profissional à altura deste desafio. Regulamentar a profissão do (a) Educador (a) Social no Brasil trará, como consequência, a segurança da atuação destes profissionais e um padrão de

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atendimento com qualidade para a população. Defendemos o Projeto de Lei do Senado Federal PLS Nº 328/2015 por regulamentar a profissão do (a) Educador (a) Social Brasileiro com formação de nível superior. Mundialmente, em países como Alemanha, Portugal, França, Finlândia e Uruguai, entre outros, os (as) Educadores (as) Sociais já são considerados profissionais com formação de nível superior. Para o Brasil, não desejamos nada além do que já existe no mundo: um consenso de que essa profissão, pelas suas especificidades, exija uma formação de nível superior.

José Pucci Neto é Educador Social em Curitiba, servidor publico municipal na FAZ - Fundação de Ação Social de Curitiba, Técnico em Reabilitação à Dependência Química pela Escola Técnica da Universidade Federal do Paraná e Membro do Sistema de Garantias de Direitos Humanos da Criança e do Adolescente.


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a regulamentação da profissão merece uma ampla discussão Por Ronaldo de Oliveira

Há que se discutir muito sobre as leis e projetos de leis que giram em torno da regulamentação da profissão de educador social. A meu ver, todo aprendizado é valido, mas, se para ser educador é preciso ter um curso universitário, o que faremos com os milhares de educadores que nem ao menos têm o curso primário? Contudo, o conhecimento que eles têm e transmitem, fruto de suas experiências, nenhuma universidade poderá oferecer. É necessário procurarmos uma forma de atender toda essa camada. Inclusive, vou participar do ENES Encontro Nacional de Educação Social que acontecerá de 12 a 15 de outubro,

em Fortaleza - CE. Durante o evento, que reunirá mais de mil educadores de todo país, além da delegação internacional, haverá uma audiência pública e será uma excelente oportunidade de debatermos sobre esse tema. Da maneira como está sendo proposto, com certeza sou contra, porque esse formato deveria ter sido discutido com os interessados, no caso, os educadores, por meio de audiências públicas e seminários, mas não da forma como foi colocado. Somos favoráveis a uma regulamentação que não seja

excludente e que contemple tanto a formação de nível superior, quanto técnica e cursos básicos.

Ronaldo de Oliveira é Educador social, secretário geral de imprensa do Sindicato dos Químicos do ABC e membro da Coordenação Nacional de Educação Social.

exercício da profissão com garantias e uma formação plena Por Paula Marçal Natali

Meu posicionamento sobre a regulamentação da profissão de educador (a) social é favorável à PL 328/2015, que dispõe sobre a formação em nível Superior de Ensino, garantido a todos (as) educadores (as) sociais atuais (independente da sua formação e escolaridade mínima) seu direito de titulação e de exercício profissional. Os principais argumentos em defesa desta proposta são: o trabalho do (a) educador (a) social tem como base a educação para os direitos humanos, o que exige uma formação e atuação complexa, que pode ser contemplada no ensino superior. Diversos países reconhecem esta característica e delegam a formação a este grau de conhe-

cimento, como a Espanha e o Uruguai, entre outros. Educadores (as) sociais desenvolvem o seu trabalho compondo equipes multiprofissionais com profissionais de ensino superior e este fato gera dificuldades no desenvolvimento do trabalho, como o não reconhecimento de nossas ações educativas nas equipes, além da remuneração baixa e diferenciada para os educadores. Apoiamos o PL 328/2015, pois reflete de forma mais realista a atuação dos (as) educadores (as) sociais brasileiros (as) e valoriza a profissão no campo formativo, apontando para a mesma direção de outras profissões da área de educação no país.

Paula Marçal Natali é Professora da Universidade Estadual de Maringá/ UEM, Membro do Fórum Brasileiro de Educadoras/es Sociais/ FORUMBEES e Associação de Educadores Sociais de Maringá/AESMAR. Integrante do Programa Multidisciplinar de Estudo, Pesquisa e Defesa da Criança e do Adolescente/PCA. Educadora Social desde 1999.

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educador social: um ofício que contempla diferentes saberes Por Marcos Candido

Em relação à regulamentação da profissão de educador social, penso que o primeiro ponto a ser considerado é a diversidade. Tomando como exemplo a experiência dentro do Projeto Axé, alguns dos nossos educadores sociais trabalham a partir do saber popular, que vem da cultura do povo, como por exemplo, os mestres de capoeira e os mestres de percussão. O conhecimento dessas pessoas é que as credencia a desenvolver o trabalho de educação social. Vale ressaltar que, quando pensamos no significado da expressão “educador social”, nos damos conta de que seu principal trabalho é “produzir sociedade”

e essa produção se estabelece a partir de diferentes conhecimentos, sendo a universidade apenas um dos lugares, dentre outros, onde esses saberes sociais se constituem. Imagino que ganharíamos muito se pensássemos na educação social como um ofício, procurando identificar uma série de competências necessárias a serem desenvolvidas, e se buscássemos para esse sujeito uma formação interdisciplinar, mas que não fosse fundamentada apenas em um discurso universitário. Dada a diversidade de situações, penso que

qualquer projeto de regulamentação precisa passar por um amplo processo de discussão em âmbito nacional.

Marcos Candido é Educador social há mais de 30 anos. Cofundador e Coordenador do Projeto AXÉ, em Salvador – BA.

regulamentação para valorização profissional Por Edielson Souza Santos

A minha opinião é a de que a profissão de educador social seja regulamentada, contudo, sem a exigência de uma formação acadêmica. Há muitas pessoas que atuam como educadores sociais como, por exemplo, aquelas que realizam atividades voltadas à arte de rua como capoeira, grafite, ou arte circense, desenvolvendo um trabalho de educação social e que merecem ter a sua profissão regulamentada. Ter esse reconhecimento é fundamental, sobretudo nos dias de hoje, em que estamos diante de reformas que preveem mudanças em relação aos direitos do trabalhador. A situação fica mais complicada para quem não tem sua profissão regulamentada, sendo

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privado de uma série de direitos trabalhistas. Acredito que, com a regulamentação, esses profissionais possam ter direitos e benefícios garantidos. No meu ponto de vista, educador social é aquele que direta ou indiretamente trabalha na transformação social, seja de crianças ou adultos. Vamos pensar naqueles educadores que lidam com o ensino da arte no interior do país ou nas grandes capitais, trabalhando com o couro, madeira, barro, dança, música, etc. Ao transmitir esses ensinamentos para os outros, estão educando e transformando esses cidadãos. Porém, não são reconhecidos como educadores!

Edielson Souza Santos é Educador Social. Atua na Secretaria de Relações de Trabalho da CNQ (Confederação Nacional dos Químicos), em São Paulo.


VII ENES Encontro Nacional de Educação Social Data: 12 a 15 de outubro de 2017

PARTICIPE! Local: UNIPACE – Universidade do Parlamento Cearense - Fortaleza - CE Endereço: Av. Pontes Vieira, 2391 - Dionísio Torres Fortaleza - CE, CEP 60130-241 Programação: Análise da Conjuntura Nacional, Fundação da Associação Nacional dos Educadores e Educadoras Sociais, AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE A REGULAMENTAÇÃO DA PROFISSÃO DO EDUCADOR E EDUCADORA SOCIAL, Fechar posicionamento do ENES sobre a regulamentação dos Educadores e Educadoras Sociais, I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras de Rua. Informações e Inscrições Tel.: (85) 3031 7557

Apoio:

Pelo direito de viver em família


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protagonismo

acampamento de verão na aldeias infantis sos de poá Por Leonardo Puentes Canon

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O Acampamento de Verão Estreitando Laços, que aconteceu no Programa de Poá da Aldeias Infantis SOS Brasil, em 2017 foi inspirado na experiência da Aldeias Infantis SOS Espanha, em Tenerife, Ilhas Canárias, que convidou as crianças, adolescentes, jovens e a equipe do Programa de Poá para participarem de eventos semelhantes, em 2015 e 2016.

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Retornando ao Brasil, as crianças e adolescentes trouxeram como bagagem, inúmeras ideias e muita vontade de implementar, reviver e compartilhar com outras crianças e adolescentes da Organização, as experiências e os bons momentos que viveram na Espanha, porque encontraram no Acampamento de Verão que aconteceu lá, um espaço de liberdade, onde os participantes vivenciaram um trabalho conjunto e sentiram-se livres, autônomos e protagonistas na construção e transformação do mundo. Observando a motivação e o interesse das crianças e adolescentes pelo projeto, a equipe da Organização, com o apoio e a participação da gestora nacional, Sandra Greco da Fonseca, mobilizou-se no sentido de iniciar um planejamento para a realização do Acampamento de Verão aqui no Brasil, com o propósito de

oferecer a mesma experiência para as crianças, adolescentes e jovens brasileiros, adaptada e contextualizada para a realidade do país. Foi assim que começou o planejamento do projeto e um diálogo com a Aldeias Infantis SOS Espanha, que gerou uma gratificante colaboração mútua e a assinatura de um acordo programático entre a Aldeias Infantis SOS Espanha e Aldeias Infantis SOS Brasil, viabilizando a realização de um sonho: o primeiro Acampamento de Verão Estreitando Laços, com a participação e o apoio de orientadores espanhóis, que acompanharam e assessoraram toda a programação e os procedimentos estabelecidos


pelo marco legal do acordo programático entre as Aldeias Infantis SOS do Brasil e da Espanha. A programação do evento começou no dia 22 de janeiro, com a chegada dos participantes e terminou em 04 de fevereiro, com uma alegre reunião de encerramento e um sentimento de “quero mais”. Durante o evento, na parte da manha, as crianças e jovens participaram das oficinas de: educação ambiental, gastronomia consciente, educomunicação e bioconstrução. No período da tarde, os participantes tinham espaços de lazer relacionados com o cuidado e preservação do meio ambiente, rodas de conversa, mini palestras e trabalhos coletivos que fortaleceram o pensamento crítico e promoveram para todos, uma visão de cidadãos e de mundo.

O Acampamento de Verão favoreceu a participação de todos e seus protagonistas foram as crianças, adolescentes e jovens, em um espaço onde se criam redes, e onde abrem-se novas possibilidades de conhecimento e criação de novos vínculos e laços, graças ao intercambio com participantes que vivem realidades e contextos diferentes. Em nível educativo, o Acampamento oferece aos participantes a oportunidade de aprender fazendo, descobrindo suas próprias capacidades, potencialidades e talentos, que, de outra forma, não teriam como descobrir ou reconhecer. É uma excelente oportunidade de serem eles mesmos, já que estão continuamente em um ambiente que favorece esse sentimento e a interação com os outros participantes.

O Acampamento de Verão Estreitando Laços, para a Aldeias Infantis SOS Brasil, foi uma experiência muito gratificante. As oficinas de educação ambiental, gastronomia consciente, educomunicação e bioconstrução, aconteceram simultaneamente e fizeram do acampamento um ecossistema vivo, pulsante, forjando uma realidade particular para cada participante, com exemplos de ações e práticas necessárias para a construção de um mundo sem violência ou violação dos direitos de crianças e adolescentes. Leonardo Puentes Canon é coordenador geral da Aldeias Infantis SOS Brasil – Programa de Poá-SP

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Divulgação/Aldeias Infantis SOS Brasil

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soluções

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programa de manaus atende famílias de crianças com autismo O projeto Cuida Bem de Mim Casa Azul, uma iniciativa da Aldeias Infantis SOS Brasil em Manaus, tem como meta atender 32 crianças com autismo e suas famílias.

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Apesar das inúmeras pesquisas que ainda são desenvolvidas para definição do que é o autismo, desde a primeira descrição feita por Leo Kanner em 1943, existe um consenso em torno do entendimento de que o autismo é caracterizado por aspectos observáveis que indicam déficits na comunicação e na interação social, além de comportamentos repetitivos e áreas restritas de interesse. Essas características atingem 0,6% da população e variam de acordo com o desenvolvimento cognitivo. No Dia Mundial do Autismo, celebrado em 2 de abril, o Programa de Manaus da Aldeias Infantis SOS Brasil deu início ao projeto Cuida Bem de Mim Casa Azul, uma alternativa de atendimento socioassistencial para o desenvolvimento da meta de 32 crianças (03 a 12 anos) com autismo e suas famílias, que encontram-se fora da rede de atendimento, em situação de vulnerabilidade social e com risco de fragilização dos laços parentais.

Com a iniciativa, a organização oferecerá atividades socioeducativas, atendimento individualizado com fonoaudiólogo e psicólogo, duas vezes por semana, bem como, jogos para o desenvolvimento da criatividade, comunicação e interação social das crianças e de suas famílias. Promoverá também desenvolvimento da resiliência familiar por meio de trabalhos de grupos e atividades que estimulem as potencialidades das famílias e a vinculação afetiva com seus filhos. “A Casa Azul apoia os pais nesse amor incondicional e celebra com eles o desenvolvimento e a autonomia alcançada, mesmo diante do aparentemente impossível”, afirma o gestor do Programa de Manaus, Nelson Peixoto. Dessa forma, os profissionais nas áreas da psicologia, fonoaudiologia, serviço social, educação física, facilitadores de oficina e serviços gerais, contribuem para o desenvolvimento das atividades, com foco no protagonismo das famílias para o cuidado.

Segundo Peixoto, pelo histórico de crianças acolhidas na organização, família pobre e sem recursos, sem auxilio e perspectiva de vida, vê a criança com autismo como um potencial peso econômico e social. “Precisamos crer, junto com os pais, no desenvolvimento possível a partir da forma de tratá-lo”. Ainda com base na atuação da organização, o gestor acredita que se investe muito no desenvolvimento dessas crianças, que alcançam bons resultados a partir do acompanhamento sistemático de psicólogos e fonoaudiólogos. “Podemos fazer algo antes das crianças perderem o cuidado de suas famílias”. A Aldeias Infantis SOS Brasil, Programa de Manaus, atualmente como Vila Educadora tem em seus projetos ações que buscam proteção, defesa e promoção dos direitos das crianças, adolescentes, jovens e seus familiares, acreditando que investir na família gera como resultado o desenvolvimento social e uma sociedade mais consciente, justa e participativa.

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pauta infância

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o cuidado e a educação infantil Por Maria Thereza Marcilio

“Sabemos o que é qualidade em cuidado e educação. Sabemos o que uma bela infância representa. A hora de se justificar já passou, há muito tempo. Agora é a nossa única oportunidade de viabilizar o futuro para as crianças. Devemos agir juntos, com maior urgência e eficácia, para garantir as possibilidades de todas as crianças. O que mais importa?” Bonnie Neugebauer

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Cuidado como intrínseco ao desenvolvimento O ser humano tem como uma de suas características fundamentais a dependência absoluta para realizar as tarefas que lhe assegurem a sobrevivência ao chegar ao mundo. Ao nascer, o bebê traz tudo que é necessário ao seu pleno desenvolvimento, é uma promessa, uma possibilidade de potência, porém, para que isso se transforme em realidade, ele precisa ser acolhido, cuidado e inserido na comunidade. São condições sem as quais não é possível o seu desenvolvimento. Caso um bebê não seja cuidado desde o seu nascimento, não conseguirá sobreviver. Boff (1999), refletindo sobre o cuidado, nos relata que este “[...] serve de crítica à nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador de

um novo paradigma de convivialidade.” Cuidar seria a base do ser humano, desde seu nascimento até sua morte. Sem o cuidado, a pessoa definharia e perderia o sentido de sua existência e como consequência morreria. Cuidar seria a afirmação da capacidade do ser humano para com seu semelhante, presente até no gesto mais simples. Afirmando que “cuidar é mais que um ato, representa uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.” Os sentidos do cuidado Mas o que é cuidar, cuidado? Qual o sentido da palavra? Etimologicamente, a palavra cuidado é oriunda do latim cogitātu, reflexão e pensamento. Significa, entre outras coisas, atenção e cautela, precaução. É interessante notar a origem, pois o uso corrente associa-se muito mais à questão da precaução, da provisão e da proteção do que a uma atividade reflexiva que envolve pensamento. Como se as atitudes que caracterizam o cuidar prescindissem da reflexão ou do pensamento, algo que remeteria mais às esferas da ação e da emoção do que da reflexão. Essa cisão entre pensar e sentir, que se manifesta com frequência no mundo

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ocidental, pode ser identificada em diferentes camadas da ordem social, desde o modo de produção até as relações pessoais, passando pela maneira como percebemos o ambiente e a natureza. E a Educação Infantil, como fica? Historicamente o atendimento à primeira infância é visto como responsabilidade da família, em contextos de família extensa, cabendo à mãe o papel de principal responsável. Ao longo do tempo, somente as crianças abandonadas ou oriundas de famílias vulneráveis eram acolhidas em estabelecimentos que tinham como missão, guardar, alimentar e atender às necessidades das crianças. A ida à escola era a partir dos 7 anos no ensino primário, hoje chamado Ensino Fundamental. Os jardins de infância surgem para receber crianças a partir de cinco anos com a perspectiva de prepará-las para a escola, daí surgiu a denominação pré-escola. Assim se estabeleceu a cisão: os estabelecimentos que acolhiam as crianças “desamparadas” eram de caráter assistencial, “cuidavam” das crianças e para isso não havia necessidade de uma profissionalização, era algo que se fazia por caridade e bastava “gostar” de crianças, atributo considerado inerente ao feminino. Já o jardim de infância era um lugar voltado à preparação para a escola. As crianças tinham que submeter-se a rotinas e fazer tarefas relacionadas a aprendizagem da língua escrita. Em ambos os estabelecimentos a marca de gênero se faz presente: a força de trabalho é feminina e os salários não são altos. Essa história se traduz na tensão entre assistência e educação que persiste até hoje, responsável pela separação entre cuidado e educação e, mais que isso, em consolidação da ideia de que o cuidado é uma tarefa menor, restrita ao atendimento de necessidades básicas, não demandando formação específica, ao contrário da educação que se traduz em ensino de

conceitos e habilidades relacionadas a cultura escolar e, portanto, requerendo formação profissional. A Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, fruto de muita escuta e debate em clima pós ditadura, foi um marco no sentido de ampliar o conceito de cidadania, incorporar valores contemporâneos e apontar para uma nova ordem. Assim, ela traz como inovação a educação como responsabilidade compartilhada pela família, sociedade e estado. O conceito de responsabilidade compartilhada traz em si a ideia de cuidado e indica a grandeza e a complexidade da tarefa. Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Compartilhar o quê: a atenção, o cuidado, a educação, o desenvolvimento. Traz também um outro conceito que é o da integralidade da criança, o olhar sobre as crianças não deve ser fragmentado, repartindo-as por diferentes agentes. Todos juntos compartilham o dever de atender à criança. Especificamente em relação à educação infantil o artigo 208 afirma: Educação lnfantil será oferecida em creches e pré-escolas. Além do mais, preserva o direito de todos os trabalhadores urbanos e rurais no artigo 7º: Assistência gratuita aos filhos desde o nascimento até os 5 anos de idade em creches e pré-escolas. Esses avanços se desdobram no Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069 aprovada em 13/07/90 que no seu artigo 54 afirma: É dever do Estado assegurar... atendimento em creche e pré-escola às crianças de 0 a 5 anos. O Brasil portanto, se adianta à Convenção Internacional dos Direitos da Criança promulgada em 1990 da qual o país é signatário. A Convenção defende a criança como sujeito de direitos englobando:

“o nosso desejo é que os diferentes profissionais envolvidos no cuidado, atenção, educação e proteção da primeira infância, sejam capazes de ver, na mais pobre e mais desprezada das crianças, o brilho da inteligência, a centelha da humanidade” bemcuidar

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No âmbito da educação, a LDB (1996) avança nesta mesma direção e estabelece a educação infantil como a primeira etapa da educação básica a ser ofertada por meio do atendimento em creches, pré-escolas e centros de atendimento infantil. A organização obedece a cortes etários, sendo que as crianças de 0 a 3 anos e 11 meses frequentam a creche e as de 4 a 5 anos e 11 meses vão à pré-escola. A definição de atendimento por faixas etárias e a uniformização da nomenclatura não são questões apenas da formalidade legal; ambas traduzem concepções de infância, de educação infantil e de justiça social. Dizer que todas as crianças de 0 a 3 anos matriculadas em instituições educativas estão numa creche traz para o campo da Educação Infantil a dupla função de educar e cuidar, revelando-os como termos indissociáveis. A creche não é para os pobres e desvalidos, mesmo quando já são crianças em idade escolar, também não é política pública de assistência social. Ela sai de um lugar quase marginal, sem regulamentação, por vezes clandestina e ganha legitimidade oficial. Ela está na educação, é parte da educação básica e requer profissionais com formações específicas, que possam prover o cuidado e a educação, necessárias ao pleno desenvolvimento das crianças. É imperativo reconhecer o cuidado como algo que vai além do lugar pouco valorizado da assistência. Agora ele tem que ser visto como atendimento a necessidades emocionais e afetivas, traduzido pelo aconchego, acolhimento, consolo, assim como atenção às necessidades básicas de alimentação, sono e higiene. Há como que um pressuposto de que se deve proceder à integração entre educar e cuidar, ou seja, mesmo que nunca tenham estado verdadeiramente separadas, essas dimensões devem ser intencionalmente pensadas de modo integrado, pois se a criança necessita de cuidados, como proteção e aconchego, também é verdade que vivenciará experiências mais enriquecedoras se estiver sendo estimulada por profissionais formados para desenvolver atividades educativas programadas.

Nacionais Curriculares de Educação Infantil, da Política Nacional de Educação Infantil, dos Indicadores de Qualidade de Educação Infantil entre outros têm tido impacto na organização da oferta de educação tanto no seu aspecto qualitativo como quantitativo. No entanto, as demandas que surgem para a formação de profissionais, para a qualificação dos ambientes e para a organização da carreira de magistério ainda estão longe de serem equacionadas. Há muitas desigualdades regionais, de classe, de gênero, de etnia, de localização, de moradia, de condições materiais, de oferta e de formação profissional. Para finalizar, o desafio que se coloca é: transformar intenção em gesto, vencer a distância entre o firmado e o realizado, vencer a iniquidade, comprometer-se com a justiça social. Para tanto, é necessário que todo o esforço leve à formulação de políticas, programas e atividades que respeitem e estejam de acordo com o modo da criança ser e estar no mundo e que ofereçam a possibilidade de atendimento integral e integrado, inclusive às famílias, com as diretrizes e princípios que o país já definiu. Nas palavras da pesquisadora e militante da Educação Infantil, Fúlvia Rosenberg: ...“Enfrentar o descompasso entre esse ideal, contemporâneo e sofisticado, e o real da prática cotidiana, o desafio entre o normatizado pelos documentos e pelas propostas sofisticadas que elaboramos nessas últimas décadas, e as condições sociais, políticas, econômicas e culturais que geram uma sociedade e uma Educação Infantil ainda intensamente discriminatórias”... Diante desse cenário o nosso desejo é que os diferentes profissionais envolvidos no cuidado, atenção, educação e proteção da primeira infância, sejam capazes de ver, na mais pobre e mais desprezada das crianças, o brilho da inteligência, a centelha da humanidade. Maria Thereza Marcilio é Licenciada em Pedagogia - UFBA, Mestra em Educação-Harvard Graduate School of Education e Presidente da Avante-Educação e Mobilização Social.

ONGAvante/Divulgação

proteção, provisão e participação. Essa formulação evidencia também a dimensão do cuidado como elemento central e norteador para a concretização da criança como sujeito de direitos.

Estes avanços recentes, nos âmbitos das concepções de infância e de educação infantil como direito, do marco legal do país e da produção e publicação de documentos institucionais, a exemplo das Diretrizes

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cultura de doação

como funciona e qual o atual cenário da atividade de captação e mobilização de recursos no brasil Por Marcelo Iniarra Iraegui

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A atividade de Captação de Recursos pode ser definida como uma ação, ou um conjunto de ações desenvolvidas pelas organizações sociais, por meio das quais, e a partir da construção de um conjunto de estratégias e processos, elas possam levantar e mobilizar recursos financeiros para o financiamento e sustentabilidade de suas causas. É a construção de uma ponte ou conexão entre as necessidades de uma causa e os recursos financeiros que as pessoas, empresas, governo e outros atores podem doar voluntariamente para essa causa.

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Vivemos diante de um cenário que vem sendo caracterizado por uma acelerada mobilização das organizações sociais em busca de soluções que possam gerar recursos. Especialmente pela disponibilidade no mercado de inúmeras soluções digitais, treina-se rapidamente alguns colaboradores no uso dessas ferramentas, que passam a ser usadas sem a expertise necessária de realizarem com êxito essa conexão entre as causas e os possíveis doadores. A atividade de mobilização e captação de recursos requer planejamento, conhecimento, experiência, tempo, investimento e equipe treinada. É um processo, e não uma ação pontual. Os brasileiros enfrentam hoje um momento político e econômico bem turbulento, que vem gerando inúmeras mudanças de comportamento. Se compararmos o atual desempenho do terceiro setor em relação aos últimos anos, podemos observar uma valorização ou participação mais ativa de pessoas físicas como doadores e micro financiadores de causas, por meio de doações mensais e automáticas.

A Aldeias Infantis SOS Brasil foi uma das organizações pioneiras nessa estratégia de criar e buscar pessoas físicas como doadores. Outras organizações, nacionais e internacionais, tais como a Médicos sem Fronteiras, UNICEF e Greenpeace, entre outras, também ajudaram a criar e construir essa cultura de doação de pessoas físicas, que continua acontecendo, apesar das dificuldades e do atual cenário político e econômico do país. O setor governamental e o setor corporativo sempre foram doadores. O novo ator dentro desse contexto é o doador pessoa física. Nesse novo caminho, em busca de doadores pessoas físicas, uma das estratégias mais usadas é o “face to face”, ou o pedido de doações nas ruas e espaços públicos, por meio dos “facers” (pessoas treinadas, que apresentam suas causas, preenchem cadastros e pedem as doações).


A repaginação do “face to face”, os pedidos de doações por meio de recursos digitais, e o crowdfunding, emergiram como grandes inovações do setor nos últimos anos. E as organizações bem estruturadas estão usando quase todos esses recursos simultaneamente. Há ainda aquelas que trabalham com mala direta, mas, os recursos mais usados são os eventos “face to face”, as redes sociais e a TV. Todos temos visto vários anúncios na TV pedindo doações para organizações sociais. Minha área de especialização é o marketing digital. Comecei a fazer captação de recursos por meios digitais e recebi a primeira doação em 1996, na Argentina e há mais de 20 anos venho captando recursos por meios digitais no Brasil. Os meios digitais oferecem uma excelente relação custo x benefício, mas, ao mesmo tempo, bons resultados com esse recurso, assim como em todo o universo da comunicação, exigem expertise no setor e um alto nível de especialidade que combina:

estratégia, experiência, criatividade, conteúdo, recursos humanos competentes, planejamento financeiro, muito profissionalismo e paixão pela causa. De forma geral, algumas organizações criaram uma noção equivocada sobre a mobilização de recursos pela internet, porque acreditam que somente as ferramentas ou aplicativos em si são suficientes. Não basta saber colocar um post no facebook, no twiter ou uma foto no instagram. Para captar recursos com sucesso é preciso planejamento e uma estratégia, como a de inspirar pessoas a terem primeiro uma experiência não financeira, uma espécie de degustação, como por exemplo, curtir uma página no facebook, conhecer a causa e se cadastrar para receber informações ou para participar de uma campanha e posteriormente fazer uma doação on-line ou receber uma ligação através do telemarketing, que poderia transformá-lo em doador mensal, porque a necessidade de captação de doações sistemáticas e mensais é um fato. Em tempos de crise, o trabalho das organizações deveria ser ainda mais valorizado, porque o nível de

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desemprego e a situação geral de marginalidade e a pobreza aumentam e exigem um trabalho social ainda mais intenso. Eu sempre digo que é em tempos de crise que descobrimos quem são nossos verdadeiros amigos. Então, esse é o momento que estamos vivendo agora, com mais de 14 milhões de desempregados no país e uma situação que vem gerando uma legião de pessoas, com todo tipo de necessidades e de cuidados. É um cenário desafiador, mas as Organizações da Sociedade Civil têm esse nome porque buscam representar a sociedade, fazendo avançar suas causas, uma missão que o governo, as empresas e as pessoas sozinhas não podem cumprir. Marcelo Iniarra Iraegui é um profissional de marketing inovador e ativista, com mais de 20 anos de experiência com organizações sociais sem fins lucrativos.

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perfil – meu trabalho

tonho das olindas: educando e celebrando a vida Por Cristina de oliveira e Lourdes Guimarães

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Antônio José da Silva, mais conhecido como Tonho das Olindas é educador social, pedagogo e professor de danças populares. Sua trajetória como educador social também é marcada por uma forte atuação junto à ONG Grupo Ruas e Praças, que faz um trabalho com crianças e adolescentes na região metropolitana das ruas de Recife. Coordenador do MNMMR (Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua) em Pernambuco e um dos educadores sociais mais reconhecidos no país e também no exterior, Tonho das Olindas, muito antes de ser um educador social, pode sentir o impacto do trabalho social na sua própria educação, ainda na infância, e essa experiência foi fundamental para delinear o seu futuro profissional:

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“Vim da Casa Guia-Mirim, lá em Olinda, onde comecei a aprender e ler através da cultura popular. Foi a partir daí que percebi ser possível, por meio da cultura, desenvolver um trabalho com a educação. Acredito que a grande transformação dessa juventude hoje seja por meio da cultura atrelada à educação”, observa. Foi no MNMMR que Tonho das Olindas começou a trabalhar com as crianças e adolescentes. O Movimento, fundado na década de 80 por um grupo de educadores, teve grande importância na discussão sobre a problemática das crianças e adolescentes em situação de rua, como revela Tonho: “Esse grupo de educadores começou a se reunir em nível estadual, em Pernambuco, depois regional, no Nordeste e por fim em âmbito nacional, quando em 1985, buscou-se criar um grande movimento que pudesse pensar nos direitos da criança e do adolescente no país”. O trabalho do Movimento se fundamenta, sobretudo, no conhecimento dos desejos dos jovens, dos seus sonhos e dos problemas dentro da realidade que os cerca, procurando desenvolver uma autoconsciência crítica. “A partir daí, essas crianças vão cobrar do conselho tutelar, do conselho municipal, do conselho esta-

dual e dos órgãos competentes, com um conhecimento mais claro sobre o que está faltando dentro da sua comunidade e entendendo que não podem ser excluídas nesse processo. Dentro do movimento a gente não faz ‘para’, mas sim ‘com’; é uma participação de co-gestão. Os meninos participam da escolha da coordenação, do tema dos encontros, do congresso, seminário, etc. Isso dá direito para essas crianças e adolescentes e é a grande chave de ser educador social nesse país”, explica Tonho. Para ele, o educador social tem um importante papel na transformação social das crianças e jovens e saber ouvi-las é primordial: “temos que chegar mais perto dessas crianças e adolescentes, escutar o que eles têm a dizer e fazer um trabalho de


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confiança, para poder mostrar para eles que são capazes de mudar sua própria situação através da pedagogia da libertação, da esperança, do amor e do respeito”. Nesta perspectiva, as crianças e jovens são levados a refletir dentro de um processo de formação e organização política. “O meu papel é fazer com que isso aconteça de uma forma mais clara e lúdica, para que essas crianças e adolescentes possam entender que eles conseguem defender os seus próprios direitos junto aos conselhos municipal e estadual, dentro de debates, nas conferências de direitos humanos, etc.”, ressalta o educador.

sujeito bastando realizado, porque, tudo o que aprendi como criança e adolescente na cidade de Olinda, pude repassar para todos os amigos e amigas e para aqueles que mais precisam dessa experiência. Se esse processo de educação e cultura me transformou, com certeza transforma também várias outras crianças e adolescentes. Quando encontro jovens e adultos que passaram por esse trabalho, é só carinho e recordação de coisas boas. É muito bom perceber que esse trabalho que faço tem um efeito muito grande na vida das pessoas”, conclui.

Cristina de oliveira é jornalista, professora e dramaturga e Lourdes Guimarães é jornalista, professora e produtora.

De acordo com Tonho, uma das maiores riquezas envolvidas no trabalho com a educação social é a troca de experiências com as crianças e adolescentes: “é preciso entender que nós aprendemos muito com essas crianças e adolescentes. Sempre coloco que aprendo mais do que ensino. Como educador, quero dizer para todos os educadores como é importante ter essa clareza e ter a humildade de socializar, pois são muitas histórias de vida, de situações problemáticas. Também é preciso entender que precisamos escutar primeiro, conversar com os meninos e perguntar o que eles querem . Não podemos ter tudo pronto”. Em todos esses anos como educador social, Tonho se sente muito feliz e pleno em sua missão. “Com a experiência desse trabalho sou um

tonho das olindas: educador social, pedagogo e professor de danças populares.

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mobilização pela manutenção da creche aberta da usp

Ocupação Creche Aberta/Divulgação

Por Cristina de Oliveira e Lourdes Guimarães

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O fechamento da Creche e Pré-Escola Oeste mobilizou pais, funcionários e docentes da Comunidade USP para manter aberta a instituição, que há 35 anos é referência no ensino de educação infantil.

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Foi com surpresa que pais, professores e alunos receberam a notícia, em 16 de janeiro deste ano, de que a Creche e Pré-Escola Oeste, localizada no Campus Butantã da Universidade de São Paulo (USP), seria fechada. De acordo com Isadora de Andrade Guerreiro, estudante de pós-graduação da USP, integrante da Associação de Pais e Funcionários da creche USP e mãe de uma criança atendida pela Creche Central, nem os pais e nem os funcionários foram consultados previamente: “Ficamos sabendo que a creche seria fechada e que viria um caminhão para retirar os móveis da unidade. Nos organizamos em pouco tempo e ocupamos a creche para impedir o fechamento”. A mobilização ficou conhecida como “Ocupação Creche Aberta”. Com o fechamento, as crianças passaram a ser atendidas pela Creche Central, também localizada na Cidade Universitária. “Foi um momento tenso, pois não houve

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uma preparação para a transição. As crianças perderam seus lugares, onde já estavam habituadas. E também não foi nada fácil para os funcionários e professores que foram expulsos do seu local de trabalho”, observa Ana Clara Renó Yoshitake, professora da Creche Central e mãe de uma das crianças atendidas na Creche Oeste. A unidade Creche Oeste estava operando aquém da sua capacidade, com 40 vagas preenchidas, apesar de poder atender até 110 crianças. Isadora explica: “Desde 2015 a USP não abre vaga para as creches. Um dos motivos alegados é a falta de recursos e a crise financeira. Também diziam que não havia demanda, mas não se abria processo seletivo. O Conselho Universitário, no final do ano passado, deliberou pelo preenchimento destas vagas, contudo, ao invés disto, a Reitoria fechou uma creche, preenchendo as vagas ociosas apenas nas outras unidades do sistema”. Pesquisa e Pioneirismo A unidade é considerada como uma referência em modelo educacional na área de ensino no Brasil. Dentre seus diferenciais, Ana Clara destaca: a relação que se estabelece com a oralidade, a literatura e as

linguagens artísticas, o ato de pensar os assuntos com as crianças, escutar o que elas estão dizendo e muito mais. “Um aspecto importante é o conceito de creche aberta, em que a família tem entrada liberada, podendo interagir e brincar com as crianças, participando da formação delas como cidadãs”, completa Ana Clara. A creche universitária também é pioneira na pesquisa e desenvolvimento de modelos de educação infantil. “Há o envolvimento e pesquisas de muitas áreas: educação, saúde, arquitetura e psicologia, entre outras. São muitas unidades que trabalham o tema da primeira infância”, observa Isadora. Luta pela permanência Desde o fechamento da creche, pais, funcionários e vários apoiadores do movimento “Ocupação Creche Aberta” se revezam para preservar o espaço e elaboram uma série de atividades no local. Isadora acrescenta: “Realizamos


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“Desde o fechamento da creche, pais, funcionários e vários apoiadores do movimento Ocupação Creche Aberta se revezaram para preservar o espaço e elaboram uma série de atividades no local”

eventos infantis com artistas e professores, além de atividades culturais abertas à comunidade USP e entorno. Em vez de manter um espaço fechado, demos um uso para ele. Conseguimos realizar cuidados compartilhados, em que os pais ajudam a cuidar dos filhos de outros pais”. Em trecho da carta divulgada pelos integrantes da ocupação, a reivindicação primordial é o direto à educação: “O ato político da ocupação busca preservar um programa modelo de educação infantil, reconhecido internacionalmente. Preserva o direito das crianças à educação; o direito de suas mães e pais a estudarem; o direito das funcionárias e funcionários ao trabalho e ao reconhecimento como educadoras e educadores”.

pais. Há também um impacto na comunidade USP. Os estudantes da USP, principalmente as mulheres que não têm aonde deixar os filhos, acabam desistindo de estudar”, reforça Isadora. Impasse Em 23 de março, a justiça expediu uma liminar favorável à manutenção da Creche. Até o presente momento, o pedido de reintegração movido pela Reitoria da USP está suspenso, aguardando o julgamento do mandado de segurança que delibera a reabertura da Creche Oeste. “A USP até agora não disse por que iria fechar a unidade e para onde estava levando o acervo da creche, que é um dos mais importantes da América Latina. Não tinha justificativa e o Ministério Público negou a reintegração de posse. Entramos com um processo liminar para que não seja retirada a creche da USP. Eles recorreram e voltamos a entrar com recurso.

Os ocupantes não querem o prédio para si, mas devolver o bem para o poder público”, revela Isadora. A redação da Revista Bem Cuidar tentou contato com a Reitoria da USP, mas até o fechamento desta matéria não obteve retorno. Cristina de oliveira é jornalista, professora e dramaturga e Lourdes Guimarães é jornalista, professora e produtora.

A enorme carência de vagas em creches também é uma preocupação levantada pela ocupação. “São mais de 100 mil crianças à espera de uma vaga nas creches munici-

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artigo paulus

Foto: Miguel Pachioni

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guerra, violência e perseguição elevam deslocamentos forçados a um nível sem precedentes

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A nova edição do relatório “Tendências Globais”, o maior levantamento da organização em matéria de deslocamento, revela que ao final de 2016 havia cerca de 65,6 milhões de pessoas forçadas a deixar seus locais de origem por diferentes tipos de conflitos – mais de 300 mil em relação ao ano anterior. Esse total representa um vasto número de pessoas que precisam de proteção no mundo inteiro. Segundo Luiz Fernando Godinho, porta-voz do ACNUR no Brasil, “as crianças, que representam a metade dos refugiados de todo o mundo, continuam carregando um fardo desproporcional de sofrimento, principalmente devido à sua elevada vulnerabilidade. Tragicamente, 75 mil solicitações de refúgio foram feitas em 2016 por crianças que viajavam sozinhas ou separadas de seus pais, sendo provável que este número subestime a real situação destas crianças”, afirmando ainda que “a discriminação contra as mulheres e meninas é causa e consequência do deslocamento forçado e da apatridia. Muitas vezes, esta discriminação é agravada por outras circunstâncias, como origem

étnica, deficiências físicas, religião, orientação sexual, identidade de gênero e origem social”. O número de 65,6 milhões de pessoas abrange três importantes componentes. O primeiro é o número de refugiados, que, ao alcançar a marca de 22,5 milhões tornou-se o mais alto de todos os tempos. Destes, 17,2 milhões estão sob a responsabilidade do ACNUR, e os demais são refugiados palestinos registrados junto à organização irmã do ACNUR, a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA). O conflito na Síria continua fazendo com que o país seja o local de origem da maior parte dos refugiados (5,5 milhões). Entretanto, em 2016 um novo elemento de destaque foi o Sudão do Sul, onde a desastrosa ruptura dos esforços de paz contribuiu para o êxodo de 739,9 mil pessoas até o final do ano passado. No total, já são 1,4 milhão de refugiados originários do Sudão do Sul e 1,87 milhão de deslocados internos (que permanecem dentro do país). O segundo componente é o deslocamento de pessoas dentro de seus próprios países, que ao final de 2016 totalizou 40,3 milhões em comparação aos 40,8 milhões no ano anterior. Síria, Iraque e o ainda expressivo deslocamento dentro da Colômbia foram as situações de maior deslocamento

interno. Entretanto, o deslocamento interno é um problema global e representa quase dois terços do deslocamento forçado em todo o mundo. O terceiro componente está relacionado aos solicitantes de refúgio, pessoas que foram forçadas a deixar seus países em busca de proteção como refugiados. Globalmente, ao final de 2016, o número total de solicitantes de refúgio era de 2,8 milhões. Todos esses números evidenciam o imenso custo humano decorrente das guerras e perseguições em nível global: 65,6 milhões significam que, em média, 1 em cada 113 pessoas em todo mundo foi forçada a se deslocar – uma população maior que o Reino Unido, o 21º país mais populoso do mundo. “Sob qualquer ângulo, esse é um número inaceitável e evidencia mais do que nunca a necessidade por solidariedade e de um objetivo comum em prevenir, resolver as crises e garantir de forma conjunta que os refugiados, deslocados internos e solicitantes de refúgio de todo o mundo, recebam proteção e assistência adequadas enquanto as soluções estejam sendo estabelecidas”, afirmou o Alto Comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi. “Precisamos fazer mais por essas pessoas. Em um mundo que está em conflito, é necessário determinação e coragem, e não medo”. Uma conclusão fundamental do relatório “Tendências Globais” é que o nível de novos deslocamentos

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artigo paulus

Segundo Luiz Fernando Godinho, porta-voz do ACNUR no Brasil, “‘as crianças, que representam a metade dos refugiados de todo o mundo, continuam carregando um fardo desproporcional de sofrimento, principalmente devido à sua elevada vulnerabilidade”

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continua muito alto. Do total contabilizado ao final de 2016 (65,6 milhões), 10,3 milhões representam pessoas que foram forçadas a se deslocar pela primeira vez. Cerca de dois terços deste contingente (6,9 milhões) se deslocaram dentro de seus próprios países. Isso equivale a 1 pessoa se tornando deslocada interna a cada 3 segundos – menos tempo do que se leva para ler essa frase. Ao mesmo tempo, o retorno de refugiados e deslocados internos para as suas casas, em conjunto com outras soluções como reassentamento em outros países, significaram melhores condições de vida para muitas pessoas em 2016. No total, 37 países aceitaram 189,3 mil refugiados para o reassentamento. Cerca de meio milhão de refugiados tiveram a oportunidade de voltar para seus países, e aproximadamente 6,5 milhões de deslocados internos regressaram para suas regiões de origem – embora muitos deles tenham voltado em circunstancias abaixo do ideal e ainda com um futuro incerto. Em todo o mundo, a maior parte dos refugiados (84%) encontra-se em países de renda média ou baixa, sendo que um a cada três (4,9 milhões de pessoas) foi acolhido nos países menos desenvolvidos do mundo. Este enorme desequilíbrio reflete diversos aspectos, inclusive a falta de consenso internacional quando se trata do acolhimento de refugiados e a proximidade de muitos países pobres às regiões em conflito. Os dados também evidenciam a necessidade de países e comunidades que apoiam refugiados e outras pessoas deslocadas serem assistidas de forma mais consistente – evitando instabilidades que prejudicam o trabalho humanitário necessário para salvar vidas ou que levam a novos deslocamentos.

A Síria continua representando os maiores números de deslocamento no mundo, com 12 milhões de pessoas (quase dois terços da população) que ou estão deslocadas dentro do país ou foram forçadas a fugir e hoje são refugiados ou solicitantes de refúgio. Sem contar a situação de refugiados palestinos que já tem longa duração, colombianos (7,7 milhões) e afegãos (4,7 milhões) continuam sendo a segunda e terceira maior população de pessoas forçadas a se deslocar (sejam refugiadas ou deslocadas internas) no mundo, seguidos pelos iraquianos (4,2 milhões) e sul-sudaneses (a crise de deslocamento que cresce mais rapidamente). O ACNUR também estima que, até o final de 2016, ao menos 10 milhões de pessoas não tinham nacionalidade ou corriam risco de se tornarem apátridas. Entretanto, os dados recolhidos pelos governos e comunicados ao ACNUR limitavam o número de apátridas a 3,2 milhões em 75 países diferentes. O relatório “Tendências Globais” é uma avaliação estatística do deslocamento forçado e, por esse motivo, acontecimentos relevantes em 2016 não foram registrados. Isso inclui o aumento da politização sobre questões de refúgio em muitos países, e o crescimento das restrições do acesso à proteção em algumas regiões ficam de fora do relatório também desenvolvimentos positivos como os históricos encontros sobre Refugiados e Migrantes em setembro de 2016, a emblemática Declaração de Nova York que estabeleceu uma abordagem mais inclusiva e inovadora para lidar com situações de deslocamento, sob as diretrizes do Comprehensive Refugee Response Framework, e a grande e contínua generosidade dos países anfitriões e contribuições financeiras governamentais tanto para refugiados como para outras populações deslocadas. Fonte: ACNUR-ONU www.acnur.org.br


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acontece nas redes

não aos castigos físicos e humilhantes! rede não bata, eduque promove dia “d” pela educação sem violência. www.naobataeduque.org.br

Mobilização, diálogo e sensibilidade, são as três palavras que marcaram o Dia “D” pela Educação Sem Violência organizado pela Rede Não Bata, Eduque (RNBE) em 26 de junho, data em que a Lei Menino Bernardo completou três anos. A norma proíbe castigos físicos e humilhantes contra crianças e adolescentes. Centenas de pessoas que frequentam unidades de saúde e escolas da rede pública de ensino no Rio de Janeiro e em Santa Catarina foram abordadas por jovens munidos de cartazes, panfletos e muitos argumentos em favor de

uma educação saudável e positiva. Pertencentes a grupos parceiros da RNBE, como a Rede de Adolescentes Promotores da Saúde (RAP da Saúde/ RJ), as equipes realizaram rodas de diálogo e dinâmicas de sensibilização com o público. “Foi maravilhoso ver a disponibilidade, o entusiasmo e o potencial criativo tanto dos adolescentes, quanto das equipes. Esse é o objetivo da RNBE: contribuir para que os jovens se apropriem do tema para mudar o quadro futuramente”, comemora a coordenadora da RNBE, Marcia Oliveira.

sobre o movimento nacional pró-convivência familiar e comunitária – MNPCFC www.movimentonacionalpcfc.org.br

O MNPCFC se organiza em forma de rede sob a governança de Organizações da Sociedade Civil (OSC) fortes e atuantes na temática da Convivência Familiar e Comunitária. Hoje, mais de 60 OSCs em todo Brasil acompanham o Movimento, com resultados significativos de incidências técnica e política em todo o território nacional. Juntas, promovem e defendem a vida em família para toda criança e adolescente, principalmente, na família e comunidade de origem. Os membros atuam mobilizando os conselhos e fóruns de seus municípios e estados, bem como disseminando

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documentos nacionais e internacionais. Em maio de 2017, foram disseminados dois documentos importantes que falam sobre Reintegração Familiar e Reforma do Sistema Institucional. Após quatro anos idealizando e fomentando a criação desta rede, a Associação Brasileira Terra dos Homens deixa a Secretaria Executiva visando a alternância das lideranças do Movimento o que está posto do Regimento Interno, aprovado em 25 de maio de 2017. Por meio do site www. movimentonacionalpcfc.org.br é possível baixar as publicações, documentos disponíveis e acompanhar as ações.


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ciranda 2030: uma coalizão de organizações sociais para o cumprimento dos ods www.infanciaods2030.com.br

Em 2015, 193 países membros da ONU, reunidos na Cúpula de Desenvolvimento Sustentável, firmaram o acordo sobre a nova agenda de desenvolvimento global, a chamada Agenda 2030. A Agenda 2030 propõe 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, 169 metas, meios de implementação e mecanismos para avaliação e acompanhamento, entre outras ações que exigem a cooperação dos países participantes e um compromisso político claro para alcançar grupos mais vulneráveis.

Diante dessa proposta surgiu a Ciranda 2030, uma coalizão de organizações, entre elas a Aldeias Infantis SOS Brasil, a ChildFund, a Plan International, a World Vision, Fundação Abrinq e o IFAN, que se uniram em busca da garantia e do cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes previstos nos ODS. Entre as conquistas da Ciranda 2030 podemos citar a criação da Comissão Nacional dos ODS, instância colegiada paritária, criada pelo governo federal a fim de internalizar, difundir e

dar transparência ao processo de implementação da Agenda 2030 no país e a participação de representantes da coalizão no Fórum Político de Alto Nível das Nações Unidas, nos dias 10 a 19 de julho de 2017, em Nova Iorque. Para saber mais: http://infanciaods2030.com.br e http://agenda2030.com.br

CIRANDA 2030

plataforma “a criança e o espaço: a cidade e meio ambiente” aborda o direito das crianças à cidade e traz histórias de iniciativas inspiradoras www.primeirainfancia.org.br

O planejamento e a organização dos espaços onde as crianças vivem é fundamental para o seu desenvolvimento integral. E para apoiar gestores públicos e defensores de direitos que queiram desenvolver políticas públicas de qualidade voltadas às crianças, a Rede Nacional Primeira Infância acaba de lançar o site “A criança e o espaço: a cidade e o meio ambiente”. O site disponibiliza informações, sugestões e histórias de iniciativas de sucesso que dizem respeito aos espaços na cidade voltados para o bom desenvolvimento infantil das crianças de até seis anos. Além de navegar na plataforma e enviar sugestões de projetos

inspiradores, o público pode fazer download gratuito de um livro digital, que reúne o conteúdo do site: www.primeirainfancia.org.br/ criancaeoespaco. O site está organizado em cinco eixos relacionados ao direito das crianças à cidade: moradia e saneamento, mobilidade e circulação, espaços para brincar, educação e cultura, participação infantil e interação das crianças com a natureza. Em cada um desses eixos, os gestores municipais e defensores de direitos das crianças têm acesso a um texto de introdução sobre o tema, com referências teóricas e legais, sugestões e

histórias de projetos inspiradores em todo o país. O projeto “A criança e o espaço: a cidade e o meio ambiente” é uma realização da secretaria executiva da Rede Nacional Primeira Infância / CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular, com o apoio do Alana, Bernard van Leer Foundation e do Instituto C&A.

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cultura – bem cuidar recomenda

cinema o filme da minha vida que vê no cinema da cidade grande, Tony faz do amor, da poesia e do cinema suas grandes razões de viver. Baseado no livro “Um Pai de Cinema”, de Antonio Skármeta, autor chileno de “O Carteiro e o Poeta”, tem roteiro adaptado por Selton Mello e Marcelo Vindicatto. O elenco traz Vincent Cassel, Selton Mello, Johnny Massaro, Bruna Linzmeyer, Rolando Boldrin, Ondina Clais, Beatriz Arantes, João Prates, Erika Januza, Martha Nowill e Antonio Skármeta, em participação especial. “O FILME DA MINHA VIDA” foi produzido por Vania Catani da Bananeira Filmes e distribuído pela Vitrine Filmes.

Foto: Divulgação

Terceiro longa-metragem dirigido por Selton Mello, “O FILME DA MINHA VIDA” estreiou em agosto em todo o Brasil. Ambientado no sul do país na década de 60, o filme mostra, com imagens quase poéticas, o processo de amadurecimento do jovem Tony Terranova (Johnny Massaro), sua relação estreita com a mãe, a ausência do pai – o francês Nicolas (Vincent Cassel), seus anseios, dilemas e amores. Após tornar-se professor de francês num colégio da cidade, convive com os conflitos dos alunos no início da adolescência. Apaixonado por livros e pelos filmes

Nunca me sonharam traça um panorama do ensino médio nas escolas públicas do Brasil sob diferentes pontos de vista, mas principalmente a partir dos estudantes. Passando pelas cinco regiões do país, o longa-metragem traz depoimentos de jovens, professores, diretores de escolas e especialistas sobre o valor da educação como um direito fundamental e revela os sonhos, as angústias sobre o futuro, os desafios e as motivações das diversas juventudes brasileiras. Filmado em mais de dez estados do Brasil, o longa é apresentado pelo Instituto Unibanco, dirigido por Cacau Rhoden e produzido pela Maria Farinha Filmes.

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Foto: Divulgação

documentário nunca me sonharam

O documentário foi selecionado para abrir a 4ª edição do Festival Ciranda de Filmes em São Paulo. Entrou no circuito comercial em São Paulo e no Rio de Janeiro em

8 de junho, e desde essa data está disponível para exibições públicas gratuitas, na plataforma VIDEOCAMP, exceto nas cidades onde o filme está em cartaz no cinema.


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livro onde vou morar ? a vida de uma criança refugiada Este impressionante livro de fotos “Onde Vou Morar? A Vida de Uma Criança Refugiada”, de Rosemary McCarney, chama a atenção para milhares de crianças ao redor do mundo que foram forçadas a fugir da guerra, do terror, da fome, de doenças e de desastres naturais com imagens de crianças e jovens refugiados em movimento, com o pouco que lhes sobrou e cheios de incertezas. E, mesmo com um futuro incerto, essas crianças e jovens tentam se adaptar e são capazes até de encarar a vida que os espera com esperança e otimismo.

Foto: Divulgação

As emocionantes imagens registradas na obra são do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). São fotos de crianças em países como Líbano, Ruanda, Iraque, Níger, Hungria, Jordânia e Grécia.

jogo jogo da política Cerca de 800 estudantes e cem professores já participaram do Jogo da Política, lançado em junho, com o objetivo de debater o tema com jovens do ensino médio. É um jogo que simula a atuação do Executivo, do Legislativo e do Judiciário para ensinar política. O Jogo da Política nasceu há dois anos após o resultado da pesquisa Sonho Brasileiro da Política mostrar que 64% dos 1.400 entrevistados, de 18 a 32 anos, achavam que política tinha que ser discutida nas escolas. A partir desta informação, as pesquisadoras Carla Mayumi e Beatriz Pedreira,

responsáveis pelo estudo, se uniram à agência escola de jornalismo Enóis Inteligência Jovem e ao laboratório de cultura digital LabHacker, representado pelo ativista social Pedro Markun, e desenvolveram uma metodologia para ensinar política nas escolas. Foram criados três jogos, um para cada poder, durante imersões feitas com jovens de diferentes idades e classes sociais. O Jogo da Política pode ser baixado gratuitamente do site: www.jogodapolitica.org.br.

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crônica

vielas e becos Por Clarissa Medeiros

Vielas e becos me encantam. E quando se anunciam através de escadarias, então... Permito-me resignação diante do tamanho de cada degrau, ditando a passada exata para atingir o topo sem perder o ar. O ingresso cobrado aqui é a desaceleração do caminhante, que altera necessariamente seu passo para caber no caminho e preservar um resto de fôlego, essencial no instante seguinte: - Olá... você sabe... onde encontro... a casa daaaa... Dona Luzia? Endereços de nada adiantam. Becos não se submetem a aplicativos de celular, lembrando que mapas não são territórios. Atravessá-los é desafio que se faz com o corpo, não com a mente: siga aquele cheiro e vire quando o muro ficar verde. Tem um atalho que dá para passar de ladinho... A vida na viela se amontoa em uma promiscuidade de vozes, emaranhado de fios, pregações nas TVs, frenéticas panelas de pressão, martelos, gritos de adolescentes vulgares e cheias de sonhos. Como dificilmente sei em que direção seguir, deixo-me perder naquele frio de barriga, raro momento de uma vida encaixotada e previsível: minha hora tem preço, minha agenda é para meses adiante, minhas tarefas têm nome e sobrenome o tempo todo. Mas agora, só agora, fico aqui. Perdida. Escondida. Inteira. Por trás de janelas, vejo ou imagino olhos de velhas dissolvendo em suas memórias histórias que não são mais delas. Invejo-as. Elas têm tempo no olhar. Filhotes macios e famintos rodeiam em busca de afago e comida. Só tenho o primeiro. Visitar Marias, Luzias, Ivones é sempre um prazer. Conversa de mulher velha se derrama sobre as mesas junto com toalhas bordadas e bolos assados especialmente para me esperar. Demoro, mas sempre chego. - Da próxima vez, traga a família! Vá com Deus! Sair de um lugar com a certeza de que nunca se vai voltar me assusta. - A senhora sabe sair daqui? - Sei sim! – minto. Difícil explicar o prazer de perder-me. Quando não sei onde estou, estou. Voltar é sempre caminho diverso do ir, não é mero avesso. Estar em um mundo tão diverso do meu me traz. Ponto. As bordas do bairro impõem novas vielas e convites, materializando a escadaria sem que eu preveja. Seria a mesma? Desfaço os degraus, um de cada vez, despindo-me das outras mulheres que eu poderia ter sido: velhas, novas, mães, prostitutas, líderes, loucas... Sou tantas que os ombros pesam, cedendo lugar à tristeza de que uma vida só é pouco. Muito pouco.

O caminho leva tempo suficiente para retomar a agenda, as tarefas e honorários. Suspiro diante do tal edifício e do porteiro uniformizado que me informa mecanicamente: - Terceiro andar. Dessa vez, o percurso tem caminhos desenhados com arbustos e fontes, plaquinhas, não tem como errar. Babás vestidas de branco olham entediadas telas de celulares enquanto crianças barulhentas parecem se divertir. Aguardando um elevador, recebo inesperada visita do beco em pensamentos e tomo impulsiva decisão, impregnada de anseios invisíveis. Vou pela escada. Clarissa Medeiros é psicanalista e escritora.

bemcuidar

• número 05

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Minha carona aguarda exatamente no mesmo lugar, nada mudou. Carro fresco e motorista gentil: - A próxima visita é no Edifício São Domingos, doutora. - É prédio? – pergunto, decepcionada.



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