Paisagens da Serra da Mantiqueira Um mergulho ao caminho da materialidade - Pedro Icaro Alvarenga

Page 1



Pedro Ícaro Alvarenga

Paisagens da Serra da Mantiqueira: Um mergulho ao caminho da materialidade

Belo Horizonte Faculdade de Belas Artes 2022



UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Faculdade de Belas Artes Departamento de Artes Plásticas Pedro Ícaro da Silva Alvarenga

Paisagens da Serra da Mantiqueira: Um mergulho ao caminho da materialidade

Belo Horizonte 2022



Pedro Ícaro da Silva Alvarenga

Paisagens da Serra da Mantiqueira: Um mergulho ao caminho da materialidade

Trabalho de conclusão de curso (TCC) apresentado ao curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Minas Gerais como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Bacharel em Artes. Habilitação: Gravura Orientador: Prof. Dr. George Gütlich Coorientadora: Profa. Dra. Eliana Ambrosio

Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG 2022



Pedro Ícaro da Silva Alvarenga Paisagens da Serra da Mantiqueira: Um mergulho ao caminho da materialidade

Trabalho de conclusão de curso (TCC) apresentado ao curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Minas Gerais como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Bacharel em Artes. Belo Horizonte, __ de _________ de 2022

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________ Prof. Dr. George Rembrandt Gütlich Universidade Federal de Minas Gerais

_____________________________________________ Prof. Antônio Milton Signorini Universidade Federal de Minas Gerais

_____________________________________________ Profa. Dra. Eliana Ambrosio Universidade Federal de Minas Gerais

_____________________________________________ Patricia Montrezol Brandstatter Universidade Estadual Paulista



AGRADECIMENTOS

Expresso os meus agradecimentos especiais aos meus amados pais, Alexsandra Marta da Silva Alvarenga e Marcelo Xavier de Alvarenga, que sempre estiveram ao meu lado dando todo o apoio, sem medir esforços para me ajudar a alcançar meus objetivos nesta jornada. A minha grande admiração por vocês. Gostaria de agradecer à todos os professores pela generosidade e respeito compartilhado, em especial meus agradecimentos aos professores George Gütlich e Eliana Ambrosio, pela disposição, paciência e carinho que sempre manifestaram nos ateliês ao longo do meu percurso. Aos meus amigos de longa data e colegas de estudo, agradeço por todo apoio e solidariedade nos ateliês e em meio a tudo que vivemos em conjunto. A minha amada companheira Ana Pullitti, que escolheu estar ao meu lado partilhando seu amor, me ajudando em meus momentos de frustrações com suas palavras de ternura e amparo.



“Eis o lápis sobre o papel. Eis onde a falange sonhadora torna ativa a aproximação de duas matérias; eis onde as matérias empenhadas no desenho concluem e fixam a ação da mão obreira. Assim, com a mais extrema delicadeza, a mão desperta as forças prodigiosas da matéria. Todos os sonhos dinâmicos, dos mais violentos aos mais insidiosos, do sulco metálico aos traços mais finos, vivem na mão humana, síntese da força e da destreza.” Gaston Bachelard, O direito de sonhar


RESUMO Composta por uma extensa várzea nas encostas da Serra da Mantiqueira, a paisagem é marcada pelo contraste rural e industrial associado principalmente ao plantio de arroz e seus canais de irrigação agrícola. A produção tem como elemento central de investigação o registro das paisagens moduladas do Vale do Paraíba no interior de São Paulo sob a perspectiva da dimensão simbólica e afetiva sob os diferentes meios gráficos. Busco retratar uma paisagem não apenas figurativa, como também explorar recursos íntimos da memória. As paisagens e figuras representadas são transformadas de acordo com a materialidade técnica, nesta coleção reúne-se gravuras em metal, xilogravuras, desenhos e fotografias produzidas nos ateliês coletivos da universidade no período de estudos da graduação. Palavras-chave: Gravura. Paisagem. Serra da Mantiqueira. Afeto. Matéria


ABSTRACT Comprising an extensive floodplain on the slopes of Mantiqueira Mountains, the landscape is marked by the rural and industrial contrast associated mainly with rice planting and its agricultural irrigation channels. The production has as a central element of investigation the registration of the modulated landscapes of the Vale do Paraíba in the province of São Paulo from the perspective of the symbolic and affective dimension under the different graphic media. I try to portray a landscape that is not only figurative, but also explores intimate resources of memory. The landscapes and figures represented are transformed according to the technical materiality, this collection brings together metal engravings, woodcuts, drawings and photographs produced in the collective ateliers of the university during the graduation period. Keywords: Printmaking. Landscape. Mantiqueira Mountains. Affection. Matter.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 01 - Fragmento do Caderno de registros, 2020. 29,7 x 21 cm. Nanquim s/ papel ............... 34 Figura 02 - Fragmento do Caderno de registros, 2020. 29,7 x 21 cm. Nanquim s/ papel ............... 36 Figura 03 - Fragmento do Caderno de registros, 2020. 29,7 x 21 cm. Nanquim s/ papel ............... 37 Figura 04 - Fragmento do Caderno de registros, 2020. 29,7 x 21 cm. Nanquim s/ papel ............... 38 Figura 05 - Fragmento do Caderno de registros, 2020. 29,7 x 21 cm. Nanquim s/ papel ............... 39 Figura 06 - Paisagem em Aquarela I 202214 x 10 cm - Aquarela ................................................. 40 Figura 07 - Paisagem em Aquarela I I 202214 x 10 cm - Aquarela ............................................... 41 Figura 08 - Registro fotográfico de Impressão em Ateliê, 2021 .....................................................44 Figura 09 - Registro fotográfico de Impressão em Ateliê, 2021 .....................................................45 Figura 10 - Vista da Mantiqueira I, 2021. 15 x 45 cm. Xilogravura de fio ......................................46 Figura 11 - Vista da Mantiqueira II, 2021. 13 x 45 cm. Xilogravura de fio .....................................48 Figura 12 - Araucária, 2022. 15 x 15 cm. Xilogravura de Topo ......................................................52 Figura 13 - Pássaro, 2022. 15 x 45 cm. Xilogravura de Topo .........................................................53 Figura 14 - Livro dos Amuletos, 2022. 15 x 16 cm. Xilogravuras de Topo.....................................54 Figura 15 - Livro dos Amuletos, 2022. 15 x 16 cm. Xilogravuras de Topo.....................................55 Figura 16 - Fragmento do Caderno de registros, 2022. 19,5 x 7 cm. Nanquim s/ papel ........................56 Figura 17 - Sem Título (Paisagem em Processo), 2022. 19,5 x 7 cm. Gravura em Metal .....................57 Figura 18- Sem Título, 2022. 19,5 x 7 cm. Gravura em Metal .......................................................58 Figura 19 - Sem Título, 2022. 7 x 6,5 cm. Gravura em Metal .........................................................62 Figura 20 - Sem Título, 2022. 10 x 20 cm. Gravura em Metal ........................................................63 Figura 21 - Sem Título, 2022. 10 x 20 cm. Gravura em Metal ........................................................64 Figura 22 - Sem Título, 2022. 7 x 6,5 cm. Gravura em Metal .........................................................66 Figura 23 - Sem Título(em processo), 2022. 19,5 x 7 cm. Gravura em Metal ................................67 Figura 24 - Sem Título, 2022. 19,5 x 7 cm. Gravura em Metal .......................................................68


SUMÁRIO 1 1.1 1.1.2 1.1.3 1.1.4

Origem ........................................................................................................... 19 Introdução ....................................................................................................... 19 Mantiqueira que chora .................................................................................... 20 Moradas .......................................................................................................... 22 Processos .........................................................................................................26

2 2.1

Peregrinação .................................................................................................. 31 Portfólio .......................................................................................................... 31

3 3.1

Reflexão ......................................................................................................... 71 Considerações Finais ...................................................................................... 71 Referências .................................................................................................... 72



INTRODUÇÃO A coleção de obras artísticas apresentadas neste trabalho são o substrato de reflexões íntimas de um passado composto por arranjos imagéticos e emocionais gravados sobre a matéria e reunidos nos últimos cinco anos de produção motivada pelas paisagens e elementos presentes no específico cenário geográfico natural vivenciado no interior paulista durante minha infância. Situada na divisa dos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo sobre um vasto panorama formado por uma imensidão de morros verdes cobertos de mata densa assentada, há a Serra da Mantiqueira, uma numerosa cadeia de montanhas de blocos maciços de Granito entre mil e três mil metros de altitude revestida por florestas, o geógrafo brasileiro Aziz Ab’Saber consagrou o termo “mares de morros”1 para definir essas particularidades do modelado relevo do Brasil Tropical Atlântico característico, comparando estas formações rochosas a um aspecto de agitação marítima. A etimologia da palavra “Mantiqueira”2 tem origem no idioma Tupi-Guarani e é formada pela junção das palavras Amana que seria “chuva ou nuvem carregada de chuva” e Tikira “goteira” compreendida como “A Serra que chora” ou “A Serra que a Chuva Goteja”. De acordo com as lendas locais, especula-se que tal nome tenha sido motivado pela bruma ou névoa característica da região, que se forma sobre a serra, encharcando a mata e contribuindo com a formação de inúmeras cascatas e pequenas cachoeiras gotejantes que descem pelas encostas. Reportarei em seguida um registro da tradição oral comumente compartilhada na região o mito da Mantiqueira retirado do livro “A Lenda de Algures”.

1 AB’SABER. 2003. p. 57 2 Mantiqueira. In. HOUAISS, A. Pesquisado em 06/05/22 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 2001.

19


MANTIQUEIRA QUE CHORA Conta a lenda que havia uma princesa encantada da Brava Tribo Guerreira do Povo Tupi. Seu nome o tempo esqueceu, seu rosto a lembrança perdeu, só se sabe que era linda. Era tão linda que todos a queriam, mas ela não queria ninguém. Vira homens se matarem por vê-la. Tacapes velozes triturando ossos, setas certeiras cortando carnes. Como poderiam amá-la se não amavam a si próprios? A Bela Princesa se apaixonou pelo Sol, o guerreiro de cocar de fogo e carcás de ouro, que vivia lá em cima, no céu, caçando para Tupã. Mas o Sol, ao contrário de tantos príncipes, não queria saber dela. Não via sua beleza, não escutava suas palavras nem se detinha para tê-la. Mal passava, cálido, por sua pele morena, sua tez cheirando a flor, mal acariciava seus pelos negros, suas pernas esguias e, fugaz, seguia impávido a senda das horas e das sombras. Mas ela era tão bonita que, seus pequenos túrgidos seios, seus lábios de mel e seiva, sua virginal lascívia acabou também encantando o Sol. E o Guerreiro de Cocar de Fogo fazia horas de meio-dia sobre o ITAGUARÉ... A Lua mal surgia sobre a serra, já sumia acolá. Logo, não havia noite. O sol não se punha mais e não havia sono, não havia sonho, e tão perto vinha o Sol beijar a amada que os pastos se incendiavam, a capoeira secava e ferviam os lamaçais...

20


De tênues penugens de prata, plumas alvas de cegonha-AÇU, a Lua viu que estava ameaçada por uma simples mulher. O Sol, que na Oca do Infinito já lhe dera tantas madrugadas de prazer, tantas auroras de puro gosto, apaixonara-se por uma mulher... E de tanto que Tupã quis saber o que era, que a Lua, cheia de ódio, crescente de ciúme, minguando de dor, se fez um novo ser de noite-sem-lua e foi contar tudo para Tupã. Como uma simples mulher ousou amar o Sol? Como o Sol ousou deter o tempo para amar alguém? Que ele nunca mais a visse! Mas o Sol tudo vê!... Tupã ergueu a maior montanha que existia lá e, dentro, encerrou a Princesinha Encantada da Brava Tribo Guerreira do Povo Tupi. O Sol, de dor, sangrou poentes e quis se afogar no mar. A Lua, com a dor de seu amado, chorou miríades de estrelas, constelados e prantos de luz. Mas nenhum choro foi tão chorado como o da Princesinha, tão bela, que nunca mais pode ver o dia, que nunca mais sentiria o Sol... Ela chorou rios de lágrimas, Rio Verde, Rio Passa-Quatro, Rio Quilombo, rios de águas límpidas, minas, fontes, grotas, ribeiras, enchentes, corredeiras, bicas, mananciais. Seu povo esqueceu-se de seu nome, mas chamou-a de Amantigir, a ‘Serra-que-chora’, Mantiqueira, a montanha que a cobriu... Conta a lenda que foi assim... (BAJGIELMAN. 2014)

21


MORADAS Sob a vasta eminência da Serra da Mantiqueira passa docemente aos seus pés o rio Paraíba do Sul que, com voluptuosas curvas, demarca seu caminho na mata. À direita de sua margem se vê uma extensa planície verdejante, onde se assenta um pequeno município de formoso aspecto pitoresco, Tremembé1 , região onde nasci e fui criado, composta por pequenas habitações ao redor de uma capela do Senhor Bom Jesus fundada em 1669. A cidade tem nome de origem Tupi – Tirime’mbé “Tere-membé”, compreendida como “Escoar Molemente” simbolizado como água afamada, água boa para a saúde. O município foi batizado com esse nome pelo grande curso de água em sua geografia, o que também fez possível ser compreendido como terreno alagado ou bacia encharcada em alusão à planície de inundação característica da região. Em sua proximidade, seguindo a estrada para ainda mais perto da serra encontra-se outro município que também fez parte de minha infância, Pindamonhangaba2, de origem Tupi – “Pindá’monhãgaba”, compreendida como “Fabricação de Anzol”, batizado com esse nome por ser uma região abundante em peixes e muito frequentada para pesca de subsistência. Assim, vivendo sobre os pés de tamanha exuberância e imensidão da gigante Mantiqueira, estabeleci relações afetivas que se mesclam as minhas memórias. Com essas paisagens que sempre estiveram presentes ao longo de meu desenvolvimento, entretanto, não havia ainda vivenciado um distanciamento que pudesse me fazer compreender melhor a singularidade da paisagem, questionando a minha visão habitual em dois momentos.

1 Tremembé. In. Pesquisado em 06/05/21 Dicionário Eletrônico Ilustrado TupiGuarani <https://www.dicionariotupiguarani.com.br/dicionario/tremembe/>

22

2 Pindamonhangaba. In. Pesquisado em 06/05/21 Dicionário Eletrônico Tupi-Guarani <http://www.dicionariotupi.com.br/dicionario/significado-tupi-pindamonhangaba/>


Inicialmente por meio do distanciamento geográfico com a mudança para Belo Horizonte em Minas Gerais que nutriu a ausência daquele ambiente abastado de memória, e por segundo, pelos escritos do poeta Augusto-Emilio Zaluar, que em sua Peregrinação pela província de São Paulo em 1860 - 1861, relata as primeiras impressões que teve ao conhecer a cidade de Pindamonhangaba; Encontra-se sobre uma vasta eminência formada por uma larga ondulação do terreno, e como assentada no regaço de verdejantes campinas, a formosa cidade de Pindamonhangaba. O lugar para sede de uma povoação não poderia ter sido melhor nem mais poeticamente escolhido. Imensas planícies que se fecham sob a serra da Mantiqueira, com um aspecto majestoso, e, contemplada aos raios do sol poente ou ao reflexo pálido da lua. O solo como o oceano em calmaria desenrola-se em ondas de verdura, e de vez em quando, no seio de suas dobras esmaltadas, alveja ao longe uma casinha pitoresca que a vista alcança, e é uma fazenda que sorri como uma mansão de paz e um asilo de felicidade. O firmamento arqueia-se puro sobre este painel encantador, e no horizonte imaculado estampa-se o vulto irregular das serranias azuladas e transparentes como as colinas da Itália e as montanhas da Grécia. (ZALUAR. 1976. p. 104)

23


Em leitura a seus escritos, estabeleci uma conexão que inicialmente não compreendia: o que me cativava? Pela descrição de um olhar estrangeiro passei a enxergar melhor aquilo que me aturdia silenciosamente, uma beleza insuspeitada. Me vi acompanhando o poeta em sua peregrinação, revisitei com ele este ambiente ora por meio de minhas memórias, ora pela contemplação do poeta. No entanto, em reflexão percebi que a paisagem havia se transformado por um processo de industrialização e plantio de campos de arroz que resultou em uma geometrização da extensa várzea do Rio Paraíba do Sul. Tal antropização do espaço natural produziu um novo desenho sobre aquele descrito por Zaluar. A rizicultura como atividade produtiva sistemática na região tem como marco inicial a chegada da colônia italiana em 1891, quando cerca de 400 imigrantes fixaram-se no bairro do Paiolinho em Taubaté, que se tornou em 1925 o Distrito denominado de Quiririm. (...) É deste momento, período pós-abolicionista da virada do século XIX, que envolve a Primeira República, os primeiros sinais da nova paisagem rural e urbana em gestação. Já se anunciava ali o uso das águas e a geometria regular da área cultivada pelos arrozais, assim como pelos núcleos urbanos que surgiram das vilas e povoados das colônias agrícolas. (GÜTLICH. MORELLI. 2014. p. 16) Assim, compondo as reflexões regentes aqui apresentadas, buscarei desenvolver uma narrativa visual a partir do capítulo seguinte.

24



PROCESSOS Em meu processo de produção artística parto inicialmente do desenho à pena, por meio de pequenos cadernos de registros espontâneos transcrevo em imagens meus pensamentos. Em um segundo momento essa linguagem poética é trabalhada sobre outras matérias, observando também suas potencialidades em cumplicidade com o pensamento que orienta a pesquisa gráfica. Com a prática do desenho busco representar paisagens e figuras, servindo-me da versatilidade que o material proporciona para a produção em ambientes distintos me permitindo uma vasta liberdade de peregrinar nos espaços, carregando apenas um caderno e caneta. O conjunto de desenhos nos cadernos proporciona novas narrativas de composição, estas mesmas se verificam em constante transformação, revelando sempre novas particularidades de um mesmo contexto. O desenho aqui situa-se como um processo de investigação ativa da paisagem. Cada elemento do conjunto de desenhos funciona, tanto como uma aproximação consciente quanto como portal de memória, por onde incitam-se novos caminhos de descobertas para a pesquisa do artista. No livro Evandro Carlos Jardim; Arte, Trabalho e Ideal, o artista e pesquisador reflete em entrevista sua relação com o processo constante dos cadernos de croquis. Relação essa que fundamentou meus pensamentos para o processo de produção artística: “O caderno, na minha opinião, tem vida própria. A luta, no meu caso, é ver até que ponto esse esboço que eu venho fazendo a vida inteira tem algum sentido para quem vê. Eu o consulto sempre. O caderno é a obra.” (BARROS. 2019. p. 51)

26


Pensamentos e lembranças estão lá transcritos em imagens corporificadas no papel, prontas para serem acessadas, revisitadas e reagrupadas, permitindo novos mecanismos de desenvolvimento e formas de pensar a imagem. O desenho projeta o percurso do processo que, por sua vez, faz um paralelo à linguagem da gravura. O fazer gráfico na matéria carrega em si o registro do tempo, evidenciando no momento do labor suas características próprias. Paralelamente ao desenho experienciei outros processos de expressão artística que posteriormente fundamentaram minha poética. Na fotografia analógica, a linguagem me serviu para compreender melhor a composição da paisagem e me apresentou particularidades, como as manchas e efeitos espontâneos criados pelos filmes fotográficos fora de validade e o aspecto reticulado que o processo fotográfico revela sobre a superfície da imagem. Do mesmo modo, a fotografia também me permitiu a liberdade para peregrinar enquanto registrava as paisagens. Em decorrência a afinidade as características plásticas da fotografia analógica me interessei pela gravura. Nas técnicas de gravação em relevo, especificamente na xilogravura, pude observar que a madeira reivindica sua força exigindo ferramentas afiadas que possibilite gravar sobre sua superfície, o tipo da madeira e de corte são fundamentais para determinar o êxito na hora de encavar, a matéria é inflexível e não negocia com a ferramenta é necessário respeitar e seguir seus veios. Gravar na madeira é retirar os excessos, se desvencilhar dos acúmulos e incertezas e deixar fruir na superfície da tabua o movimento que ela permite fazendo cortes e retirando as lascas com precisão no gesto.

27


Por outro lado na gravura em metal, usando processos de gravações indiretas o trabalho de abertura da matriz se dá pela ação dos ácidos, permitindo movimentos fluidos sobre a chapa de metal, no entanto o metal exige uma observação delicada nos processos de entintagem da matriz, onde a variação pode direcionar o trabalho para uma outra atmosfera. A impressão pode modificar o lócus da obra reestruturando suas narrativas, o labor da impressão exige características precisas para cada técnica usada. Baseando-se nos princípios de impressão do artista Antônio Francisco Albuquerque, relata em suas experiências e técnicas da gravura em metal: Cada gravura precisa do seu ajuste, em função dos materiais e das técnicas usadas. (...) Na impressão de matrizes com gravações mais profundas, não basta aumentar a pressão da prensa, podendo chegar a valores exagerados e desnecessários. Deve-se sempre considerar o conjunto de todos os fatores: gravação, papel, tinta, feltro etc. (BUTI. LETYCIA. 2015. p. 265)

As investigações das especificidades da matriz são fundamentais para uma nova forma de linguagem transformando a natureza dos trabalhos ainda no campo das ideias mudando a maneira como será retratado. O que é possibilitado pela exposição e intimidade do indivíduo com a potencialidade da matéria. No livro Gesto Inacabado: processo de criação artística, a autora Cecilia Almeida Salles observa o percurso do processo de conhecimento do artista:

28


O percurso criativo pode ser observado sob a perspectiva da construção de conhecimento. A ação do artista leva à aquisição de uma grande diversidade de informações e à organização desses dados apreendidos. O percurso criador deixa transparecer o conhecimento guiando o fazer, ações impregnadas de reflexões e de intenções de significado. A construção de significado envolve referência a uma tendência. A criação é, sob esse ponto de vista, conhecimento obtido por meio da ação. (SALLES. 2011 p. 127)

Este percurso criador possibilita por meio da ação uma nova perspectiva de reflexão, o gesto que cria e reorganiza o pensamento de forma contínua estabelecendo uma relação da estrutura da ideia para o plano concreto, o historiador de arte Henri Focillon em seu texto A Vida das Formas seguido de Elogio da Mão estabelece relação pelas mãos que conduzem para uma ação mútua em que o espirito se serve da mão de modo igual a mão que serve do espirito, de forma que; A mão arranca a capacidade de tocar da sua passividade receptiva, organiza-a para a experiência e para a ação. É ela quem ensina o homem a tomar posse do espaço, do peso, da densidade e do número. Criando um universo inédito, deixa por todo o lado as suas marcas. Entra em relação com a matéria, que metamorfoseia, com a forma, que transfigura. Educadora do Homem, a mão multiplica-o no espaço e no tempo. (FOCILLON. 1943. p. 128)

29


Assim, as perspectivas de observação são refinadas no percurso das experimentações artísticas sob matéria influídas pela ação criadora, que consequentemente pode resultar em soluções estéticas que concretizam a poética do artista. Cabe ressaltar que, conjuntamente a minha pesquisa pude acompanhar diferentes experiencias de investigação técnica realizadas por colegas artistas, por meio de estágios em docência e convívio nos ateliês coletivos, sendo de grande importância para minha trajetória. Pude inferir que, o ambiente de trabalho do atelier compartilhado se mostra de grande valia mútua uma vez que, as experiencias e descobertas obtidas por meio da ação são compartilhadas e comparadas em coletividade. Gerando não apenas a reflexão da experiencia do indivíduo, como também comparando as trajetórias e práticas resultadas.

30


31


32


“A pintura de paisagem, como todas as formas de arte, foi um acto de fé. E no começo do século XIX quando começaram a declinar as crenças mais ortodoxas e sistemáticas, a fé na natureza tornou-se uma especie de religião. É esta a doutrina wordsworthiana que subjulga muita da poesia e quase toda a pintura do século e inspirou a sua maior obra de crítica, Modern Painters. A crença de que a santidade implícita da natureza tinha um efeito purificador e enaltecedor sobre os que abriam os seus corações à sua influência, recebeu a sua formulação mais elaborada nessa obra extraordinária, onde descrições pormenorizadas de formas naturais, folhas, ramos, nuvens, formações geológicas, ocupando centenas de páginas, pareciam muito relevantes aos seus leitores contemporâneos, embora a um século anterior ou posterior pudessem parecer afastadas tanto da crítica de arte como da teologia.” (CLARK. 1949. p. 165)

33


34

Figura 01 - Fragmentos do Caderno de registros 2020 29,7 x 21 cm - Nanquim s/ papel


35


36

Figura 02 - Fragmentos do Caderno de registros 2020 29,7 x 21 cm - Nanquim s/ papel


Figura 03 - Fragmentos do Caderno de registros 2020 29,7 x 21 cm - Nanquim s/ papel

37


38

Figura 04 - Fragmentos do Caderno de registros 2020 29,7 x 21 cm - Nanquim s/ papel


Figura 05 - Fragmentos do Caderno de registros 2020 29,7 x 21 cm - Nanquim s/ papel

39


40

Figura 06 - Paisagem em Aquarela I 2022 14 x 10 cm - Aquarela


Figura 07 - Paisagem em Aquarela II 2022 14 x 10 cm - Aquarela

41


“Belíssimo panorama o que se descortina do alto destes montes, quase a topetar com as nuvens! A encosta que acabamos de vencer rasga-se nos aos pés em abismo profundo de onde apenas emerge o cimo do mais alto arvoredo. Um pouco adiante os contrafortes da serra, em dobras sucessivas, declinam-se até confundirem-se na planície verde-terra onde reluzem, ao sol da tarde, manchas alongadas e multiformes que são as voltas ou meandros do Paraíba lá embaixo. (...) No alto da serra a paisagem modifica-se. O terreno rasga-se profundo em sulcos numerosos, alguns de 180 a 200 metros mais baixos do que o nível geral do planalto.”

42


“Os montes levantam-se revestidos de vegetação desigual. De ordinário a encosta de sueste apresenta-se coberta de espesso mato de onde emergem em linhas aprumadas os belíssimos espécimes do pinho-brasileiro (araucaria brasiliensis), e na oposta face os campos a que a grama rasteira e mimosa empresta os tons alourados das messes de trigo. Estamos na linha das divisas dos dois ricos Estados. As terras paulistas descambam bruscas pela encosta com águas precipites e ruidosas que vão ao Paraíba, as mineiras estendemse por dobras sucessivas formando essa plateia de montanhas intervaladas por potentes ribeirões, por cima das quais ainda se divisam em longínquo horizonte as serras alongadas do vale do Sapucaí e do rio Grande.” (SAMPAIO. p. 15)

43


44

Figura 08 - Registro fotográfico de Impressão em Ateliê 2021


Figura 09 - Registro fotográfico de Impressão em Ateliê 2021

45


46

Figura 10 - Vista da Mantiqueira I 2021 15 x 45 cm - Xilogravura de fio


47


48

Figura 11 - Vista da Mantiqueira II 2021 13 x 45 cm - Xilogravura de fio


49


“Em resumo, a paisagem do gravador é um ato. É um ato longamente meditado, um ato concluído com lenta energia sobre a dura matéria metálica. Mas, por um insigne paradoxo, essa lentidão ativa nos desvela a inspiração de forças rápidas. Assim, o gravador nos incita a agir, a agir depressa. Ele nos revela o poder da imaginação dinâmica, da imaginação das forças. Uma paisagem gravada é uma lição de poder que nos introduz no reino do movimento e das forças” (...) “A planície é fugidia - é um movimento de fuga que, sob suas paralelas amontoadas, varre, dissolve o horizonte. Assim acaba o mundo: uma linha, um céu, nada. Ao longe, a terra não trabalha. Tudo então se aniquila. Mas eis o tabuleiro dos campos cultivados, os sulcos civilizados dos proprietários, as propriedades violentadas de todos esses ladrões de terra, as demarcações, os limites, os fossos. O gravador, como um lavrador, põe-se a trabalhar em cada cerrado. Goza a comunhão das ferramentas: o arado não é o buril da gleba?”

50


“O gravador nos conta seu trabalho, sua lavra, sua tão próxima vontade. O buril nos devolve à matéria firme. Sim, o cobre é um solo. Mas todo trabalhador sonha cosmicamente: o gravador da planície vai ao encontro de um grande sonho de trabalho da terra. Sob esse trabalho monótono e duro, eis, com efeito, que o campo se torna ventre, seio, torso, corpo. A gleba se infla, a gleba assume o relevo de uma forma cortejada.” (BACHELARD. 1994. p. 60)

51


52

Figura 12 - Araucária 2022 15 x 15 cm - Xilogravura de Topo s/ variação de impressão


Figura 13 - Pássaro 2022 15 x 15 cm - Xilogravura de Topo

53


54

Figura 14 - Livro dos Amuletos 2022 15 x 16 cm - Xilogravura de Topo s/ variação de impressão


Figura 15 - Livro dos Amuletos 2022 15 x 16 cm - Xilogravura de Topo s/ variação de Impressão

55


56

Figura 16- Fragmento do Caderno de processos 2022 19,5 x 7 cm - Nanquim s/ papel


Figura 17 - Sem Título (Paisagem em Processo) 2022 19,5 x 7 cm - Gravura em Metal - Água forte e Água tinta

57


58

Figura 18 - Sem Título 2022 19,5 x 7 cm - Gravura em Metal - Água forte e Água tinta


59



“O viajante aprecia a experiência de partir, de dividir, de alternar, a qual se submete sucessivamente em detrimento da vivência do contínuo e do permanente. A viagem “romantica” não leva somente à prática da visão do outro, propicia e tira proveito da emoção das rupturas, do se perder e do se encontrar. Treina um conhecimento por pontos de vista alternados, desenvolve a capacidade de entrar e sair do assunto, de ver a partir de fora e a partir de dentro. Em suma, condiz com a visão de múltiplos pontos de vista, individuais e culturais.” (BELLUZZO. 1994. p. 12)

61


62

Figura 19 - Sem Título 2022 7 x 6,5 cm - Gravura em Metal - Água forte e Água tinta


Figura 20 - Sem Título. 2022 10 x 20 cm - Gravura em Metal - Água forte e Sugar-lift Água tinta

63


64

Figura 21 - Sem Título 2022 10 x 20 cm - Gravura em Metal - Água forte e Água tinta


65


66

Figura 22 - Sem Título 2022 7 x 6,5 cm - Gravura em Metal - Água forte e Água tinta


Figura 23 - Sem Título (em processo) 2022 19,5 x 7 cm - Gravura em Metal - Água forte e Água tinta

67


68

Figura 24 - Sem Título 2022 19,5 x 7 cm - Gravura em Metal - Água forte e Água tinta


69


70


CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste breve panorama acerca da investigação das paisagens moduladas do Vale do Paraíba, situo inicialmente as características geográficas predominantes do bioma, que fez parte de minhas vivencias de infância, referenciando relatos e publicações de autores que enfatizam e transbordam a contemplação poética, associando à minha peregrinação sob a dimensão simbólica e afetiva da paisagem. Diante desta busca me deparo revisitando lembranças habituais de grande afeição compreendendo com um novo olhar meus interesses pela paisagem. Os diferentes meios gráficos, tratam os caminhos pelos quais busquei retratar as paisagens, explorando a diversidade de processos de feitura propiciados pela diversidade no contato da matéria e ferramenta, contribuindo para o desenvolvimento de novos mecanismos do pensar a imagem. Trajetória que expõe continua reflexão ao labor artístico, da matéria e ferramenta. Neste trabalho apresento uma breve investigação acerca dos processos, que por sua vez se mostrou um campo muito vasto. Espero desenvolver este tema em minhas pesquisas acadêmicas, em virtude do vasto manancial de possibilidades vislumbrado durante o processo.

71


REFERÊNCIAS

AB’SÁBER, Aziz. Os domínios da natureza no Brasil: Potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003 BACHELARD, Gaston. (1994). O direito de sonhar (José Américo Motta Pessanha, Trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. (Originalmente publicado em 1970) BAJGIELMAN, Selma. Lenda de Algures. Ed. Novo Mundo. 2014 BARROS, Fabiana (org.) Evandro Carlos Jardim Arte, Trabalho e Ideal. São Paulo: Edição Sesc São Paulo, 2019 BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. São Paulo. Metalivros: Fundação Emílio Odebrecht, 1994 BUTI, Marcos. LETYCIA, Anna. Gravura em Metal. São Paulo. 1ª Edição Edusp. 2015 CLARK, Kenneth. Paisagem na arte. Lisboa: Edição Ulisseia. 1949

72


FOCILLON, Henri. A Vida das Formas: seguido de Elogio da Mão. Lisboa. Edição 70, 1943 GÜTLICH, George Rembrandt. MORELLI, Ademir Fernando. História da várzea do médio rio Paraíba do Sul: estado atual do projeto de Reerguimento Econômico do Vale do Paraíba. In. IV SEMINÁRIO REGIONAL SOBRE GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS, 2014, Campus Rio Paraíba do Sul/ Upea, 2014. SALLES, Cecilia Almeida. Gesto Inacabado: processo de criação artística. 5ª edição Revista e ampliada. São Paulo: Intermeios, 2011. SAMPAIO, Teodoro. Viagem à Serra da Mantiqueira: Campos do Jordão e São Francisco dos Campos. São Paulo. Editora Brasiliense. 1978. ZALUAR, Augusto Emilio. Peregrinação pela província de São Paulo (1860) – (1861). São Paulo. Livraria Martins Editora. 1976.

73






Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.