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Manejo de cana crua

navegar

ou deixar o barco ir a pique

A cultura da cana-de-açúcar foi a primeira atividade de produção agrícola implantada no Brasil, apenas 32 anos após o descobrimento da nova terra. As mudas de cana, trazidas dos Açores e da Madeira por Martim Afonso de Souza e plantadas na Capitania de São Vicente, incentivaram esse donatário a construir ali o primeiro engenho de açúcar do Brasil, o “Senhor Governador”, conhecido, a partir de 1540, como “Engenho São Jorge dos Erasmos”.

Ainda nas décadas de 1530 e 1540, a lavoura da cana se expandiu para as áreas costeiras ao norte da Baía de Santos e chegou até Olinda, na Capitania de Pernambuco.

Na região Nordeste, as condições de clima propiciaram produzir açúcar de melhor qualidade que o mercado europeu exigia e remunerava melhor. A produtividade agrícola era menor do que a obtida em São Vicente, mas era compensada pela maior concentração de sacarose no colmo e pela melhor qualidade do açúcar.

A hegemonia brasileira na produção de açúcar durou até o início do século XVII, quando a descoberta de ouro nas Minas Gerais redirecionou o foco da Coroa portuguesa, que passou a investir na interiorização.

A cultura da cana-de- -açúcar foi a primeira atividade de produção agrícola implantada no Brasil, apenas 32 anos após o descobrimento da nova terra. "

Além disso, a conquista por holandeses, ingleses e franceses de áreas antilhanas produtoras de cana alterou o panorama do domínio açucareiro na Europa. Esse histórico pode parecer descabido neste artigo, mas visa realçar que, desde o início da canavicultura no Brasil, a necessidade de se reinventar continuamente e transformar problemas em oportunidades vem fazendo a diferença entre continuar navegando ou deixar “o barco ir a pique”.

O setor canavieiro brasileiro já passou por fases de bonança, mescladas com crises econômicas, períodos de clima atípico, surtos de pragas e doenças da cana, além das frequentes políticas governamentais equivocadas, que inviabilizaram empreendimentos açucareiros durante toda a sua história. É digno de nota um fato mais recente, que poderia ter sido o fim do cultivo da cana em grande extensão de áreas no estado de São Paulo, a proibição de queimadas nos perímetros urbanos. O Decreto Estadual 28.895, de 1988, proibia a queima dos canaviais situados a menos de 1 km de qualquer aglomerado urbano. A colheita manual sem a queima da cana implicaria maior risco de ataques de insetos e animais peçonhentos, ferimentos, incêndio acidental e outros riscos para os trabalhadores rurais. Além disso, o baixo rendimento na colheita da cana cortada manualmente, sem queimar, elevaria muito seu custo de produção. A tentativa de solução foi redirecionar as poucas colhedoras mecanizadas, então existentes nas usinas, para colher a cana crua nos perímetros urbanos.

Celio Manechini Consultor da CMA - Capacitação em Manejo Agronômico

Entretanto, era necessário definir como seriam executados, em seguida, os tratos culturais nas soqueiras, na presença da palha que permaneceria sobre o terreno após a colheita da cana sem queimar. Considerando a importância estratégica e econômica de continuar produzindo cana nos perímetros urbanos, o Centro de Tecnologia Copersucar investiu capital e esforço em pesquisa para, inicialmente, conhecer a nova situação e, a médio prazo, desenvolver práticas agronômicas para manejar o canavial sem queima.

Canaviais colhidos sem queimar, em usinas no estado de São Paulo, vinham sendo acompanhados desde 1986 pelo CTC, para avaliar a evolução da lavoura nesse tipo de manejo. Essas avaliações subsidiaram as primeiras recomendações de adubação para a cana crua, feitas pela Seção de Manejo de Solos, e indicaram as mudanças que deveriam ser feitas pela Seção de Projetos Mecânicos Agrícolas nas colhedoras, para melhorar seu desempenho na colheita da cana crua. O “Projeto Cana Crua” do CTC foi instituído a partir de 1990, para criar conhecimento para manejar canaviais sem a despalha a fogo. Como objetivos de longo prazo, o Projeto visava avaliar os efeitos que a palha deixada no campo e a inclusão de mais palha na matéria-prima poderiam causar em todas as fases da cadeia de valor da agroindústria, no campo, no transporte e no processo industrial.

Contando com equipes técnicas multidisciplinares do CTC, o Projeto conduziu centenas de experimentos em usinas cooperadas. Cada tipo de experimento era avaliado e reinstalado sobre as mesmas parcelas, após cada colheita, e visava comparar resultados, nas condições com e sem palha, para definir: a. fontes, doses e localização dos fertilizantes minerais em soqueiras; b. cultivo mecânico das soqueiras; necessidade e tipo de cultivo; c. fertirrigação e complementação nitrogenada do canavial; d. aptidão das variedades de cana-de-açúcar para manejo sem queima; e. efeito do manejo sem queima na qualidade da matéria-prima industrial; f. controle químico e cultural de plantas daninhas com diferentes quantidades de palha; g. efeito da eliminação da queima sobre a população de pragas da cana- -de-açúcar; h. efeito da cobertura de palha sobre o manejo do solo e a dinâmica da água; i. efeito da colheita mecanizada sobre o solo e a lavoura; j. tipos de preparo do solo e plantio para o manejo da cana sem queimar.

A avaliação dos resultados obtidos a cada ano, aliados à análise dos fatores climáticos e fenológicos, permitiram concluir que a eliminação da queima e o consequente aumento da quantidade de palha introduziram mudanças no sistema de produção da cana-de-açúcar.

Parte dessas mudanças representam desvantagens da cana crua, ao comparar esse sistema de manejo com o anterior, com queima. Esses efeitos foram observados logo após a primeira colheita dos ensaios sem queima e podem ser citados, como: • maior dificuldade de colheita, pelo grande volume de massa vegetal; • risco de pisoteio nas soqueiras, pela maior dificuldade de visualização; • aumento no teor de perdas na colheita mecanizada; • maior conteúdo de impurezas vegetais na matéria-prima; • risco de compactação do solo quando colhido com umidade; • menor eficiência do transporte devido à menor densidade da carga; • perda de açúcar na moagem por arraste pela fibra; • risco de pragas, protegidas pela palha e não mais eliminadas pelo fogo; • menor maturação, pelo maior período de umidade no solo.

Outras mudanças, as benéficas, foram notadas após alguns anos de colheita sem queima. Esses benefícios são devidos à maior quantidade de palha no campo, protegendo o solo contra a ação deletéria do impacto das gotas de chuva, do vento e da radiação solar diretamente sobre sua superfície. Os maiores benefícios são devidos à: • eliminação da queimada e de suas consequências sobre o solo, a biosfera, o ambiente e a população; • reciclagem de nutrientes e da matéria orgânica do solo; • eliminação das perdas de água do solo por evaporação; • redução do risco de erosão, pela proteção da superfície do solo; • possibilidade de sistematizar a lavoura, ganhando eficiência operacional; • eliminação da deterioração da cana, que ocorria após a queima; • possibilidade de mudar frentes de colheita a qualquer momento, se necessário; • redução do uso de herbicidas no controle de aproximadamente 90% das espécies de plantas daninhas; • eliminação do cultivo mecânico das soqueiras; • favorecimento de macro e microrganismos úteis no solo (infiltração de água); • perenização dos agentes de controle biológico de pragas.

Além desses fatos, a biomassa adicional, quando queimada nas caldeiras, produz vapor para movimentar turbogeradores, transformando as usinas em unidades termoelétricas, sem o consumo de combustíveis fósseis, produzindo energia elétrica limpa e renovável, situadas próximo aos centros consumidores e produzindo energia, na época, de menor disponibilidade de água nas hidrelétricas.

Os resultados de longo prazo do projeto mostraram que existem variedades de cana com maior aptidão para o manejo sem queima ─ entenda-se colheita mecanizada. Essa aptidão varietal é resultado da soma das características agrotecnológicas dos colmos e morfológicas das suas touceiras.

O ponto crítico do sistema de produção da cana crua é a alta intensidade de mecanização exigida, com aumento do tráfego de grandes máquinas nos talhões. Considerando apenas a colheita, a esteira da colhedora trafega duas vezes, e os pneus do conjunto trator-transbordo, no mínimo, mais seis vezes em cada entrelinha do canavial, a cada colheita.

Isso aumenta muito o risco de pisoteio da soqueira e compactação do solo, tornando indispensável a adoção de tecnologias e práticas que minimizem esses riscos: • treinamento continuado em todos os níveis de gestão na usina; • padronização do espaçamento entre as linhas da cana; • ajuste das bitolas dos equipamentos agrícolas; • instalação de GPS e piloto automático nas máquinas agrícolas; • monitoramento local ou remoto das operações; • adequação da velocidade de operação ao grau de dificuldade local do canavial; • outras práticas que possam garantir a sustentabilidade do empreendimento, através do aumento da produtividade agrícola, da qualidade da matéria-prima e dos produtos finais e, em última análise, da redução do custo de produção do açúcar, do etanol, da energia elétrica e dos demais subprodutos.

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