Espaço vazio

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—I— O TEATRO DO ABORRECIMENTO MORTAL

Posso chegar a um espaço vazio qualquer e fazer dele um espaço de cena. Uma pessoa atravessa esse espaço vazio enquanto outra pessoa observa – e nada mais é necessário para que ocorra uma acção teatral. No entanto, não é bem a isto que nos referimos quando falamos de teatro. Cortinas vermelhas, projectores, verso branco, riso, escuridão: todas estas ideias estão misturadas na imagem difusa transmi-tida por uma só palavra com múltiplos sentidos. Dizemos que o cinema matou o teatro; e com esta expressão referimo‑nos ao teatro como ele era no tempo em que o cinema apareceu, um teatro com bilheteiras, foyer, assentos rebatíveis, luzes de ribalta, mudanças de cenário, interlúdios, música – como se, por definição, o teatro fosse isto e pouco mais. Vou tentar dividir a palavra em quatro sentidos, identificando quatro significados diferentes – e assim falarei de um Teatro do Aborrecimento Mortal, de um Teatro Sagrado, de um Teatro Bruto e de um Teatro Imediato. Por vezes, estas quatro formas de teatro coexistem, realmente, no West End de Londres ou em Nova Iorque, na zona de Times Square. Por vezes, estão a milhas de distância, o Sagrado em Varsóvia, e o Bruto, em Praga; 7


às vezes, são metafóricos: misturam-se, um com outro, num espectáculo ou num acto. E, algumas vezes, durante um único momento, aparecem os quatro interligados: o Sagrado, o Bruto, o Imediato e o do Aborrecimento Mortal. O Teatro do Aborrecimento Mortal reconhece-se à primeira vista, pois é sinónimo de mau teatro. Sendo esta a forma de teatro mais frequente, e aquela que se encontra mais associada ao teatro comercial, alvo de desprezo e de ataques constantes, poderá parecer uma perda de tempo insistir em criticá-lo. Contudo, só teremos consciência da real dimensão do problema se percebermos que as coisas aborrecidas são enganadoras, podendo surgir em qualquer momento. A actual situação do Teatro do Aborrecimento Mortal, pelo menos, é particularmente óbvia. Por toda a parte, o número de espectadores de teatro vai diminuindo. Ocasionalmente, aparecem novos movimentos, novos dramaturgos com talento, e por aí fora; porém, de um modo geral, o teatro, que já não consegue elevar o espírito nem educar, deixou mesmo de conseguir distrair. Tem-se dito frequentemente que o teatro é uma prostituta, querendo com isto sugerir que a sua arte é impura, mas actualmente há um outro sentido em que esta expressão é verdadeira – as prostitutas recebem o dinheiro e depois oferecem pouco prazer. A crise da Broadway, de Paris, do West End, é, afinal, a mesma crise: não precisamos que nos dêem os números da bilheteira para saber que o teatro se transformou num negócio moribundo e que o público também já o percebeu. De facto, se o 8


público alguma vez chegasse a exigir o divertimento puro de que tanto fala, teríamos uma enorme dificuldade em saber por onde começar. Não existe um teatro que dê verdadeiro prazer; e não são apenas as comédias triviais ou os musicais de má qualidade que nos fazem sentir que perdemos dinheiro – o Teatro do Aborrecimento Mortal fere mortalmente as grandes óperas e tragédias, as peças de Molière e as de Brecht. Mas é nas obras de William Shakespeare que o Teatro do Aborrecimento Mortal se instala com maior segurança, conforto e manha. O Teatro do Aborrecimento Mortal dá-se bem com Shakespeare. Vemos as suas peças representadas por bons actores, de um modo aparentemente correcto – têm um aspecto vivaz e colorido, há música, e toda a gente está bem vestida, tal como se espera que aconteça no melhor teatro clássico. Apesar disso, em segredo, achamos que é terrivelmente aborrecedor – e, lá no fundo, pensamos que a culpa é de Shakespeare, do teatro, ou mesmo nossa. Para agravar a situação, há sempre um espectador mortalmente aborrecido que, por razões especiais, aprecia a falta de intensidade e até mesmo a falta de diversão, tal como o erudito que fica satisfeito com a representação rotineira dos clássicos, recitando baixinho os seus diálogos preferidos, sem que nada perturbe a renovada confirmação das suas teorias de estimação. No fundo, ele quer um teatro mais sublime do que a vida, confundindo uma espécie de satisfação intelectual com a verdadeira experiência que procura. Infelizmente, associa o peso da autoridade ao tédio – e, assim, o Teatro do Aborrecimento Mortal segue o seu caminho. 9


Quem acompanhar os grandes êxitos de bilheteira, ano após ano, poderá observar um fenómeno curioso. Esperaríamos que esses espectáculos fossem mais vibrantes, mais animados, mais deslumbrantes do que os espectáculos falhados – mas nem sempre é assim. Em quase todas as temporadas, nas localidades onde o público gosta de teatro, há um grande êxito que foge a esta regra, uma peça que triunfa graças ao tédio – e não apesar dele. Afinal, as pessoas associam a cultura a um certo sentido de dever, tal como associam os figurinos de época e as longas falas à sensação de aborrecimento; inversamente, a dose certa de aborrecimento funciona como uma garantia tranquilizadora quanto ao valor de um espectáculo. É certo que a dosagem é tão subtil que se torna impossível estabelecer uma fórmula exacta – quando excessiva, o público abandona a sala; quando insuficiente, os espectadores podem achar que a intensidade do tema se torna desagradável. No entanto, os autores medíocres encontram facilmente a mistura perfeita – graças a isto, perpetuam o Teatro do Aborrecimento Mortal, com os seus êxitos entediantes, colhendo a aclamação geral. O público espera que o teatro lhe dê algo que possa considerar «melhor» do que a vida; por esta razão, confunde cultura, ou os logros da cultura, com algo que não conhece mas pressente que pode existir – e assim, tragicamente, engana-se a si próprio quando transforma um espectáculo de má qualidade num êxito. Quando falamos do que é mortal, percebemos que a diferença entre a vida e a morte, tão clara no homem, se torna mais difícil de distin10


guir noutras áreas. Um médico reconhece facilmente a diferença entre o sopro da vida e o pobre monte de ossos que a vida já abandonou; mas nós estamos menos treinados para reconhecer quando é que uma ideia, uma atitude ou uma forma perderam a sua vivacidade e ficaram moribundas. É difícil definir, embora uma criança consiga rapidamente perceber. Deixem-me dar um exemplo. Em França, há duas maneiras insuportáveis de representar tragédias clássicas: a tradicional, que implica uma voz e uns gestos especiais, um ar nobre e uma dicção melodiosa e afectada; e outra, que se resume a uma versão insípida da primeira. Os gestos nobres e os valores aristocráticos estão a desaparecer cada vez mais depressa da vida quotidiana, e as novas gerações acham o estilo eloquente cada vez mais vazio e desprovido de sentido. Isto leva o jovem actor a uma busca desesperada e impaciente daquilo a que chama a verdade. Ele quer dizer as suas falas de um modo mais realista, dar-lhes o tom de um discurso coloquial mais autêntico, mas tem dificuldade em aplicar esse estilo à rigidez formal do texto. Vê-se obrigado a um compromisso desconfortável, que não possui a frescura da linguagem vulgar nem é ostensivamente histriónico, como acontece com aqueles actores que exageram nos maneirismos. Aí, a sua representação não consegue ganhar força – ora, como o exagero tem força, tende a ser recordado com alguma nostalgia. Inevitavelmente, há sempre alguém a defender que a tragédia devia voltar a ser representada «tal como foi escrita», o que até poderia acontecer se a palavra escrita conseguisse explicar-nos como é que 11


um dia ganhou vida, mas infelizmente só nos sabe dizer o que está escrito no papel. Não há registos, não há gravações – apenas especialistas, mas nenhum teve conhecimento em primeira mão. As provas originais já desapareceram, e o que nos resta são imitações sob a forma de actores tradicionalistas que continuam a representar à maneira tradicional, inspirando-se em modelos imaginários, como o estilo dos actores mais velhos que eles próprios viram e recordam – um estilo que, por sua vez, era já uma recordação de outros antecessores. Uma vez assisti a um ensaio na Comédie Française: um actor jovem estava à frente de um actor muito velho, falando e gesticulando como ele, trabalhando a personagem como se fosse um reflexo no espelho. Não devemos confundir isto com a grande tradição dos actores do Teatro Nô, por exemplo, que transmitem o conhecimento oralmente, de pai para filho. Nesse caso, o que se transmite é o sentido – e o sentido nunca é uma coisa do passado; é algo que pode ser encontrado na nossa experiência do presente. A imitação do aspecto exterior da representação, porém, serve apenas para perpetuar os maneirismos, dificilmente relacionáveis com o que quer que seja. Quando se trata de encenar Shakespeare, voltamos a ouvir o mesmo conselho: «representem o que está escrito». Mas o que é que está escrito? Um conjunto de signos numa folha de papel. As palavras de Shakespeare são um registo das palavras que ele queria que fossem ditas, palavras que saíam da boca das pessoas como sons, com um determinado tom, com pausas, ritmo e gestos que complementavam o seu sentido. Uma palavra não começa como palavra – é o produto final de um pro12


cesso que se inicia por um impulso, estimulado por uma atitude e um comportamento que ditam a necessidade de expressão. Este processo ocorre dentro do dramaturgo e repete-se dentro do actor. Ambos podem apenas ter consciência das palavras; no entanto, para o autor e depois para o actor, a palavra é a pequena parte visível de uma formação gigantesca que não se vê. Alguns autores tentam fixar o significado e a intenção das suas peças com indicações cénicas e explicações, mas não podemos deixar de ficar impressionados com o facto de os melhores dramaturgos serem aqueles que se explicam menos. Eles percebem que, muito provavelmente, o excesso de indicações será inútil. Compreendem que só seguindo um processo semelhante ao da criação original é que conseguirá descobrir-se o verdadeiro caminho do modo como uma palavra deve ser dita. Isto não pode ser negligenciado nem simplificado. Infelizmente, no momento em que um amante fala, ou quando um rei faz ouvir a sua voz, nós precipitamo-nos e pomos-lhes uma etiqueta: o amante é «romântico», o rei é «nobre» – e, antes que nos apercebamos, estaremos a falar de amor romântico e nobreza aristocrática como se fossem coisas que pudéssemos tirar do bolso e mostrar aos actores. Ora, estas ideias não têm uma existência tangível; se as quisermos encontrar, o melhor que podemos fazer é tentar reconstituí-las a partir da literatura e da pintura. Se pedirmos a um actor para representar em estilo romântico, ele fará um esforço corajoso nesse sentido, acreditando que sabe o que queremos dizer. A que pode ele recorrer? Ao instinto, à imaginação e a um 13


bloco de notas com memórias teatrais – que lhe darão acesso a um «romantismo» vago, logo misturado com a imitação disfarçada de um qualquer actor mais velho pelo qual ele sinta admiração. Se procurar na sua experiência pes­soal, os resultados podem não casar bem com o texto; se representar apenas aquilo que pensa ser o texto, será imitativo e convencional. De qualquer modo, o resultado é sempre um compromisso – e pouco convincente, na maioria dos casos. É inútil supor que as palavras que aplicamos ao teatro clássico – como «musical», «poético», «maior do que a vida», «nobre», «heróico», «romântico» – têm um sentido absoluto. Elas são reflexos da abordagem crítica característica de um determinado período, pelo que tentar, hoje, construir um espectáculo que respeite esses princípios é o caminho certo para o Teatro do Aborrecimento Mortal – neste caso, com uma respeitabilidade que o faz passar por encarnação da verdade. Certa vez, ao fazer uma comunicação acerca deste tema, tive a oportunidade de aplicar um teste prático. Por sorte, estava entre o público uma mulher que nunca tinha lido ou visto Rei Lear. Dei-lhe a primeira fala de Goneril e pedi-lhe para a recitar o melhor que soubesse, realçando o que considerasse mais importante. Ela fez uma leitura muito simples – e a própria fala surgiu com extrema eloquência e encanto. Expliquei-lhe, então, que, supostamente, aquela era a fala de uma mulher terrível e sugeri que voltasse a ler, mas agora com uma atitude hipócrita. Ela tentou fazê-lo, e a assistência viu quão difícil podia ser lutar com a música simples das palavras quando se quer representar de acordo com uma indicação: 14


Senhor! Amo-vos mais do que as palavras o podem dizer; mais carinhosamente do que a vista, do que o espaço, do que a liberdade; acima de tudo quanto pode ser estimado de rico ou de raro; não menos do que a vida, quando ela é dotada de graça, de saúde, de beleza, de honra; tanto como não houve filho algum que assim amasse ou qualquer pai que assim fosse amado; o meu amor é um amor que torna pobre a palavra, impotente o falar; é assim que eu vos amo, além de tudo quanto acabo de vos dizer.

Qualquer pessoa pode experimentar fazer isto. Saborear o texto na língua. Estas palavras são de uma senhora bem-nascida, habituada a falar em público, que se sente segura e à vontade em sociedade. Quanto a indicações sobre a personagem, só conhecemos o seu aspecto exterior, que é elegante e atraente. E, no entanto, se pensarmos nas representações em que Goneril diz esta primeira fala como uma vilã macabra, e se olharmos novamente para o seu discurso, percebemos que isso só pode ter sido influenciado por preconceitos sobre a atitude moral de Shakespeare. De facto, se Goneril não representar um «monstro» na sua primeira entrada em cena, mas apenas o que as suas palavras sugerem, todo o equilíbrio da peça muda – e, nas cenas posteriores, a sua maldade e o martírio de Lear não são tão crus nem tão simplificados como podem parecer. Também é verdade que ficaremos a saber, no final da peça, que as acções de Goneril fazem dela aquilo a que chamamos um monstro – mas um monstro real, complexo e interessante. Num teatro vivo, testaríamos diariamente nos ensaios as descobertas do dia anterior, pron15


tos a acreditar que a verdade da peça voltara a escapar-nos. Mas o Teatro do Aborrecimento Mortal aborda os clássicos com o ponto de vista de quem acredita que alguém, algures, já descobriu e definiu como é que a peça deve ser feita. Este é o problema habitual daquilo a que despreocupadamente chamamos estilo. Cada obra tem o seu próprio estilo, tal como não podia deixar de ser, pois cada época tem também o seu estilo. A partir do momento em que queremos fixar esse estilo, ficamos perdidos. Pouco tempo depois de a Ópera de Pequim ter estado em Londres, seguiu-se-lhe a visita de uma companhia rival da Formosa, a Companhia de Ópera Chinesa. A companhia de Pequim mantinha a ligação com as respectivas origens e fontes, recriando os seus modelos ancestrais em cada sessão; a companhia da Formosa, com os mesmos números, ficava pela reprodução das memórias, menosprezando alguns pormenores, exagerando nas partes mais vistosas, esquecendo o sentido – nada renascia. Apesar de se tratar de um estilo estranho e exótico, a diferença entre a vida e a morte era perfeitamente identificável. A verdadeira Ópera de Pequim era o exemplo de uma arte teatral em que as formas exteriores não mudam, de geração para geração; ainda há poucos anos, parecia tão bem conservada que poderíamos acreditar que iria continuar assim para sempre. Hoje em dia, até esta soberba relíquia desapareceu. A sua força e a sua qualidade permitiram-lhe sobreviver muito para lá do seu tempo, como um monumento; mas acabou por chegar o dia em que se tornou evidente a distância a que se encontrava da sociedade envolvente. Os Guardas Vermelhos são o 16


reflexo de uma China diferente. Não existe qualquer relação entre a grande maioria das atitudes e mensagens da Ópera de Pequim e a nova estrutura mental em que o povo chinês vive actualmente. Hoje em dia, em Pequim, os imperadores e as princesas foram substituídos por proprietários e soldados, com a mesma perícia acrobática a servir de veículo para temas muito diferentes. Para um ocidental, é fácil lamentar esta terrível perda cultural. Sendo verdade que há um elemento trágico na destruição desta herança milagrosa, julgo que a atitude impiedosa dos Chineses relativamente a um dos seus bens mais preciosos está intimamente ligada ao sentido do teatro vivo: o teatro é sempre uma arte de autodestruição, é sempre escrito no vento. O teatro profissional junta pessoas diferentes em cada sessão e comunica com elas através da linguagem do comportamento. Um espectáculo é montado e, normalmente, repetido – da melhor maneira e com a maior precisão possível; mas a partir do momento em que está pronto, há qualquer coisa invisível que começa a morrer. No Teatro de Arte de Moscovo, no Habimah de Tel Aviv, há produções que se mantêm durante quarenta anos, ou mais. Assisti a uma reposição fiel da encenação que Vakhtangov fez nos anos 20 para a Princesa Turandot; vi o próprio trabalho de Stanislavski, optimamente preservado: mas o interesse de ambos não ia além do valor de antiquário; nenhum deles tinha a vitalidade de uma nova invenção. Em Stratford, onde tentamos não esgotar o potencial de bilheteira de cada peça com temporadas muito longas, discutimos agora este assunto 17


com uma atitude muito empírica: concordámos que cada encenação terá um prazo máximo de cinco anos. Não é apenas pelo facto de os penteados, o guarda-roupa e a maquilhagem ficarem datados; todos os elementos associados a uma encenação – os atalhos que facilitam a expressão de certas emoções, o gesto e a gesticulação, os tons de voz – se encontram em constante flutuação numa bolsa de valores invisível. A vida não pára, os actores e o público estão constantemente a receber novas influências; e outras peças, outras artes, o cinema, a televisão, os acontecimentos correntes juntam-se todos para rescrever a história e actualizar a verdade dos nossos dias. Nas casas de moda, alguém dá um murro na mesa e diz «as botas estão claramente in» – isto é um facto existencial. Um teatro vivo que julgue conseguir ficar à margem de algo tão trivial como a moda acabará por murchar. No teatro, cada forma alguma vez criada é mortal; todas as formas precisam de ser recriadas com as marcas das influências de tudo o que as rodeia. Neste sentido, o teatro é relatividade. E, apesar disso, o grande teatro não é uma casa de moda: há elementos perpétuos que são recorrentes e determinados elementos que estão sempre subjacentes à actividade dramática. A armadilha mortal consiste em acentuar a distinção entre as verdades eternas e as variações superficiais: esta é uma atitude de snobismo subtil que se revela fatal. Para dar um exemplo, parece ser consensual que a necessária renovação dos cenários, do guarda-roupa e da música é uma competência evidente dos encenadores e dos restantes responsáveis por essas 18


áreas. Quando se trata de atitudes e comportamentos, tudo se torna mais confuso, prevalecendo uma tendência para acreditar que, se esses elementos corresponderem à verdade do texto, devem continuar a assumir a mesma forma expressiva. Intimamente relacionado com isto encontra-se o conflito entre encenadores e músicos na ópera, na qual duas formas completamente diferentes, a expressão dramática e a musical, são tratadas como se fossem apenas uma. O músico lida com o material que melhor expressa o invisível. A sua partitura é uma notação dessa invisibilidade, e o seu som é produzido através de instrumentos que não estão sujeitos a grandes mudanças. A personalidade do executante não é muito importante, mas um clarinetista magro consegue produzir mais facilmente um som cheio do que um clarinetista gordo. O veículo da música difere da música em si. Assim, tudo na música vai e vem, sempre da mesma maneira, sem ser necessário rever ou repensar. Mas o veículo do teatro é a carne e o sangue, que funcionam com regras muito diferentes, pois o veículo, o meio, não pode ser separado da mensagem. Só quando um actor se desnuda poderá assemelhar-se a um instrumento puro, como um violino, e mesmo assim só se tiver um aspecto físico absolutamente clássico, sem barriga ou pernas arqueadas. Tendo por vezes uma condição semelhante a esta, o bailarino consegue reproduzir gestos formais sem que estes sejam modificados pela sua própria personalidade ou pelo movimento exterior da vida. Mas a partir do momento em que se veste e usa a sua 19


própria língua para comunicar, o actor entra no território flutuante da manifestação e da existência, que partilha com o espectador. Por ter uma experiência tão diferente, o músico não compreende por que razão o tradicionalismo que divertia Verdi e fazia Puccini desmanchar-se a rir deixou de ser divertido ou revelador nos nossos dias. A Grand Opéra é, muito claramente, o Teatro do Aborrecimento Mortal elevado ao absurdo. A ópera é um pesadelo de gigantescas questiúnculas a propósito de pormenores insignificantes; de episódios surrealistas que andam sempre à volta da mesma ideia: nada precisa de mudar. Na ópera, tudo precisa de mudar – mas a mudança está bloqueada na ópera. Mais uma vez, não nos deixemos levar pela indignação, pois estaremos novamente a errar o alvo, se simplificarmos o problema, considerando que a tradição é a principal barreira que nos afasta de um teatro vivo. O aborrecimento está em todo o lado: no ambiente cultural, nos valores artísticos que herdámos, na estrutura económica, na vida do actor, no trabalho do crítico. Quando começamos a examinar esta questão, descobrimos que pode ser enganadora e sugerir mesmo o contrário, pois o Teatro do Aborrecimento Mortal não deixa de ter alguns aspectos entusiasmantes, ou até mesmo momentaneamente satisfatórios, em que se vislumbra um clarão da vida real. Em Nova Iorque, por exemplo, o factor que mais contribui para o aborrecimento mortal é o factor económico. Isto não significa que todo o trabalho ali realizado seja mau, mas uma peça já nasce com defeito quando, por razões económicas, ape20


nas pode contar com três semanas de ensaios. O tempo não é um factor absoluto nesta matéria; podem obter-se resultados espantosos em três semanas. No teatro, por vezes, aquilo a que vulgarmente chamamos química, ou sorte, consegue provocar uma espantosa explosão de energia, dando origem a uma vertiginosa reacção em cadeia de invenções atrás de invenções. Mas isto é raro: o senso comum ensina-nos que excluir sistematicamente a hipótese de exceder três semanas de ensaios dará maus resultados na maior parte das vezes, não sobrando tempo para experimentar nem para correr riscos artísticos. O encenador tem de chegar ao produto final ou é despedido, tal como o actor. É verdade que o tempo também pode ser usado de forma inútil; é possível ficar sentado a discutir, com preocupações e improvisações, durante meses, sem resultados minimamente visíveis. Na Rússia, assisti a encenações de Shakespeare com uma abordagem tão convencional, que me levaram a pensar que dois anos completos de discussão e estudo de arquivos podem resultar pior do que o trabalho realizado em três semanas por uma companhia com poucos meios. Conheci um actor que ensaiou Hamlet durante sete anos e nunca chegou a representá-lo porque o encenador morreu antes de a peça poder estrear-se. Por outro lado, as encenações de peças russas ensaiadas à maneira de Stanislavski continuam a atingir um nível de representação com o qual só conseguimos sonhar. O Berliner Ensemble usa bem o tempo, usa-o livremente, demorando cerca de doze meses a preparar um novo espectáculo; ao longo dos anos, têm vindo a constituir um 21


repertório absolutamente notável – e cada uma das peças tem sempre a sala cheia. Em termos capitalistas elementares, isto representa um negócio melhor do que aquele teatro comercial onde os espectáculos desconchavados e pouco originais raramente têm êxito. Em cada temporada, na Broadway ou em Londres, muitos espectáculos luxuo­sos saem de cena ao fim de duas ou três semanas, contrastando com a pequena produção que vai resistindo. Apesar disto, a percentagem de desastres não mudou o sistema nem abalou a ideia de que tudo acabará bem, de uma maneira ou de outra. Na Broadway, o preço dos bilhetes continua a subir e, ironicamente, à medida que as temporadas são mais calamitosas, os grandes êxitos das novas temporadas fazem ainda mais dinheiro. Com um número cada vez menor de espectadores, as bilheteiras vêem entrar cada vez mais dinheiro, até se chegar ao dia em que o último milionário estará disposto a pagar uma fortuna por uma representação privada e exclusiva. E assim percebemos que aquilo que é um mau negócio para alguns é um bom negócio para outros. Todos se queixam, mas muitos querem que o sistema fique como está. As consequências artísticas são graves. A Broadway não é uma selva, é uma máquina com inúmeras peças interligadas. No entanto, cada uma dessas peças está a ser brutalizada; foi deformada para caber no seu sítio e cumprir bem a sua função. Este é o único teatro do mundo onde cada artista – e refiro-me a cenógrafos, compositores, técnicos de luz, assim como actores – precisa de um agente para a sua protecção pessoal. Dito assim, 22


soa a melodrama, mas todas essas pessoas estão, de certo modo, em perigo; o seu trabalho, a sua reputação e o seu modo de vida estão diariamente em risco. Teoricamente, tal tensão devia produzir um ambiente de medo e, se isso acontecesse, o seu poder destruidor seria evidente. Na prática, a tensão subjacente culmina no famoso ambiente da Broadway, que é muito emotivo, aparentemente caloroso e cheio de boa-disposição. No primeiro dia de ensaios para o musical House of Flowers, o seu compositor, Harold Arlen, trazia um aciano azul na lapela, champanhe e presentes para toda a gente. Enquanto ele cumprimentava o elenco com abraços e beijos, Truman Capote, o autor do libreto, disse-me num tom sombrio: «Hoje é só amor. Amanhã aparecem os advogados». E era verdade. Ainda antes da estreia, a vedeta, Pearl Bailey, pedir-me-ia uma indemnização de 50 000 dólares por via judicial. Para um estrangeiro, todas aquelas coisas eram (retrospectivamente) divertidas e excitantes – o termo «show business» aplicava-se a tudo, e tudo desculpava –, mas, em termos mais objectivos, o comportamento extremamente caloroso está directamente relacionado com a falta de delicadeza emocional. Nestas condições, torna-se raro encontrar a calma e a segurança que anulam o receio de exposição. Refiro-me à intimidade real e discreta que nasce quando se trabalha durante muito tempo com alguém, desenvolvendo uma verdadeira relação de confiança – na Broadway, é frequente ver gestos grosseiros de auto-exposição, embora isto nada tenha a ver com a relação subtil e sensível entre pessoas que trabalham e confiam umas nas outras. 23


Quando os Americanos dizem que invejam os Ingleses, referem-se a esta sensibilidade peculiar e a uma maneira muito particular de dar e receber. Eles chamam-lhe estilo e consideram-no um mistério. De cada vez que se escolhe um elenco para uma peça em Nova Iorque e nos dizem que um determinado actor tem «estilo», isso normalmente significa uma imitação de uma imitação de um europeu. No teatro americano, as pessoas falam do estilo com um tom sério, como se isto fosse um maneirismo que pudesse adquirir-se – e os actores que já representaram clássicos e foram elogiados pelos críticos com base «nessa» característica fazem tudo para perpetuar a ideia de que o estilo é uma coisa rara que só alguns actores-cavalheiros possuem. A América poderia ter facilmente o seu teatro de grande qualidade, pois já possui todos os elementos: força, coragem, humor, dinheiro e a capacidade de encarar realidades difíceis. Numa manhã, dei por mim no Museu de Arte Moderna a olhar para a multidão de pessoas que ali estavam para comprar os bilhetes a um dólar. Tinham quase todas um ar inteligente e o aspecto de um bom público – usando aqui o critério simples e pessoal de «um público para o qual gostaríamos de fazer peças». Nova Iorque tem um dos melhores públicos em potência do mundo inteiro. Infelizmente, vai muito pouco ao teatro. O público vai pouco ao teatro porque os preços são muito elevados. Certamente até poderia pagar essas quantias, mas já sofreu muitas desilusões. Não é por acaso que Nova Iorque tem os críticos mais influentes e mais exigentes do mundo. Quem, ano após ano, se 24


sentiu obrigado a conferir a estes homens simples e falíveis o estatuto de especialistas altamente remunerados foi o público, pois já não se podia dar ao luxo de assumir o risco sozinho, tal como acontece com um coleccionador quando deseja comprar uma obra cara: a tradição dos avaliadores de obras de arte, como Duveen, chegou à fila da bilheteira. E assim se encerra o círculo; além dos artistas, também o público precisa de alguém que o proteja – e, de um modo geral, os indivíduos curiosos, inteligentes e inconformistas mantêm-se afastados. O que eu acabei de descrever não é exclusivo de Nova Iorque. Quando encenámos A Dança do Sargento Musgrave, de John Arden, no Athénée, em Paris, tive uma experiência que ilustra esta situação. Foi um autêntico fracasso, com má recepção crítica e salas praticamente vazias. Acreditando que haveria um público para a peça, algures na cidade, anunciámos três sessões gratuitas. O chamariz dos bilhetes à borla funcionou de tal maneira que esses espectáculos pareceram estreias adiadas. As pessoas lutavam para entrar, a polícia viu-se forçada a colocar grades de ferro ao longo do foyer, e a própria peça correu muitíssimo bem, com os actores, animados pelo ambiente da sala, a oferecerem a sua melhor representação, que lhes valeu depois uma ovação. No mesmo teatro que na noite anterior parecia uma morgue lúgubre, ouvia-se agora o rumor característico do sucesso. No final, acendemos as luzes da sala e observámos o público. Jovens, na sua maioria, bem-vestidos, algo formais até, de fato e gravata. Françoise Spira, a directora do teatro, apareceu no palco. 25


– Há aqui alguém que não tem possibilidade de comprar o bilhete? Um homem pôs a mão no ar. – E os restantes, por que razão é que só vieram com entradas gratuitas? – A crítica era má. – Acreditam na crítica? Ouviu-se um forte coro: – Não! – Então, porquê…? E ouviu-se a mesma resposta de todas as direcções: o risco era demasiado grande, muitas desilusões. Por aqui podemos ver como se desenha o círculo vicioso. O Teatro do Aborrecimento Mortal vai cavando resolutamente a sua própria sepultura. Ou talvez possamos atacar o problema por outro lado. Se o bom teatro depende de um bom público, então cada público tem o teatro que merece. No entanto, os espectadores não aceitarão facilmente essa responsabilidade. Como é que se pode pôr isto em prática? O dia em que as pessoas forem ao teatro para cumprir um dever será um triste dia. Uma vez dentro do teatro, o público não se pode açoitar para ser «melhor» do que era quando ali entrou. Num certo sentido, não há mesmo nada que um espectador possa fazer; e ao mesmo tempo, há aqui uma contradição, pois tudo depende dele. Quando a Royal Shakespeare Company fez digressão com o Rei Lear pela Europa, o espectáculo ia melhorando continuamente, sobretudo entre Budapeste e Moscovo, onde fizemos as melhores representações. Era fascinante observar como um público composto 26


lar­gamente por pessoas com poucos conhecimentos de inglês conseguia influenciar tanto um elenco. Estes espectadores traziam com eles três coisas: adoravam a peça, tinham uma grande vontade de contactar com estrangeiros e, acima de tudo, possuíam uma experiência da vida na Europa do pós-guerra (até estes últimos anos da década de 60) que lhes permitia estabelecer uma ligação directa com os dolorosos temas da peça. A qualidade da atenção deste público manifestava-se no silêncio e na concentração: uma sensação que habitava a sala e que influenciava os actores, como se uma luz brilhante incidisse sobre o seu trabalho, o que fez com que as passagens mais obscuras ficassem mais claras, sendo representadas com uma riqueza de significação e um uso perfeito da língua inglesa que poucas pessoas no público podiam acompanhar – mas que todas conseguiam pressentir. Os actores ficaram emocionados e entusiasmados, seguindo para os Estados Unidos na disposição de oferecer a um público que fala inglês tudo o que este momento de concentração lhes tinha ensinado. Eu fui obrigado a regressar a Inglaterra e só me reencontrei com a companhia em Filadélfia, algumas semanas mais tarde. Para minha surpresa e desencanto, grande parte daquela qualidade desaparecera da representação. Tive vontade de atribuir a culpa aos actores, mas era evidente que eles estavam a fazer tudo o que podiam. A relação com o público é que mudara. Em Filadélfia, o público percebia perfeitamente o inglês, sem dúvida, no entanto era largamente composto por pessoas que não se interessavam pela peça, pessoas que estavam ali por todas 27


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