Excerto NÃO SEREI EU MULHER? As Mulheres Negras e o Feminismo, de bell hooks

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NÃO SEREI EU MULHER? AS MULHERES NEGRAS E O FEMINISMO

bell hooks TRADUÇÃO

Nuno Quintas


A PUBLICAÇÃO DESTA OBRA BENEFICIOU DE UMA PARCERIA COM HANGAR – CENTRO DE INVESTIGAÇÃO ARTÍSTICA

T ÍT ULO O R IG IN A L

Ain’t I a Woman: Black Women and Feminism AUTO RA

bell hooks T RADUÇ ÃO

Nuno Quintas RE VISÃO

João Berhan CO NCE P Ç ÃO G R Á FI C A

Rui Silva | www.alfaiataria.org DE SE NHO S

Isabel Carvalho PAGINAÇ ÃO

Rita Lynce IMPRE SSÃO

Guide – Artes Gráficas CO PYRI G H T

© 2015 Gloria Watkins Todos os direitos reservados. Tradução a partir da língua inglesa, publicada por acordo com Routledge, afiliada de Taylor & Francis Group LLC. 1ª E DIÇÃO

Lisboa, Setembro 2018 DL

000000/18 978­‑989­‑8868­‑34-3

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À Rosa Bell, minha mãe: que me disse, quando eu era pequena, que antigamente escrevia poemas – que eu tinha herdado dela o gosto da leitura e o anseio da escrita.




NOTA À EDIÇ ÃO

Esta obra foi publicada pela primeira vez em 1981 pela editora South End Press. A tradução que aqui se apresenta segue a edição de 2015 publicada pela Rout‑ ledge. Tendo em conta que a autora pretende aproximar-se de todas as leitoras e leitores, independentemente da sua formação, a tradução procura preservar o estilo muito fluente, por vezes marcadamente coloquial, do original.


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Quando era pequena, percebi que queria ser escritora. Desde jovem que os livros me proporcionavam visões de novos mun‑ dos, diferentes daquele que me era mais familiar. Os livros, como novas terras, estranhas e exóticas, traziam­‑me aventura, novas maneiras de pensar e de ser. Acima de tudo, traziam­ ‑me uma perspectiva diferente, que quase me obrigava a sair da minha zona de conforto. Deslumbrava­‑me os livros serem capazes de dar outro ponto de vista, as palavras na página poderem transformar­‑me e mudar­‑me, mudar­‑me as ideias. Nos meus anos de faculdade, o movimento feminista contem‑ porâneo contestava os papéis definidos pelo sexismo, num apelo ao fim do patriarcado. Nesses dias inebriantes, eman­ cipação feminina era o nome que se dava a esta nova e espan‑ tosa forma de pensar o género. Como eu nunca tinha sentido que havia lugar para mim nas noções sexistas tradicionais do 9


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que uma mulher deve ser e fazer, tinha vontade de participar na emancipação feminina, queria criar um espaço de liber‑ dade para mim, para as mulheres que amava, para todas as mulheres. O meu intenso empenho na crescente consciência femi‑ nista levou­‑me a confrontar a realidade das diferenças de raça, de classe social e de género. Tal como me tinha revoltado con‑ tra as ideias sexistas acerca do lugar de uma mulher, também contestava o lugar e a identidade das mulheres no seio dos círculos de emancipação feminina; não conseguia encontrar lugar para mim no movimento. A minha experiência enquanto jovem e negra não era reconhecida. A minha voz e as vozes das mulheres como eu não eram ouvidas. O mais importante era o movimento ter posto a nu o quão pouco eu sabia de mim, do meu lugar na sociedade. Não poderia pertencer verdadeiramente ao movimento até que pudesse fazer ouvir a minha voz. Antes de exigir aos outros que me ouvissem, tinha de me ouvir a mim, de descobrir a minha identidade. Frequentar seminários sobre estudos de mulheres tinha chamado a minha atenção para as expectati‑ vas que a sociedade tem quanto às mulheres. Eu tinha apren‑ dido muitos factos novos sobre as diferenças de género, sobre o sexismo e o patriarcado e os modos como estes sistemas davam forma aos papéis e à identidade femininas, mas pouco tinha aprendido sobre o papel atribuído às negras na nossa cultura. Para me compreender enquanto negra, precisava de ir além da sala de aula, dos muitos tratados e livros que as minhas camaradas brancas escreviam para explicar a emancipação 10


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feminina, e conseguir novos modos, alternativos e radicais, de pensar o género e o lugar das mulheres. Para forjar um lugar para as mulheres negras neste movi‑ mento revolucionário pela justiça de género, tive de mergulhar no que entendia ser o nosso lugar na sociedade mais ampla. Apesar de estar a aprender tanto sobre sexismo e como o pensamento sexista moldava a identidade feminina, não me era ensinado como a raça moldava a identidade feminina. Em seminários e grupos de sensibilização, quando chamava a atenção para as diferenças que a raça e o racismo tinham criado nas nossas vidas, tratavam­‑me muitas vezes com des‑ dém camaradas brancas desejosas de estabelecer uma relação assente em ideias mútuas de sororidade. E ali estava eu, uma jovem negra destemida do Kentucky rural, a insistir que eram grandes as diferenças que moldavam as experiências de negras e brancas. O meu esforço de compreender essas diferenças, de as explicar e de comunicar o seu significado, preparou o terreno para a escrita de Não Serei Eu Mulher? As mulheres negras e o feminismo. Comecei a fazer a investigação para este livro e a escrevê­ ‑lo durante a faculdade. Deixa­‑me estupefacta que mais de quarenta anos se tenham passado desde que o comecei. A pro‑ cura de um editor começou por me levar à rejeição. Naquela altura, ninguém imaginava que houvesse realmente público para uma obra sobre mulheres negras. Regra geral, era muito mais provável então que as pessoas negras condenassem a emancipação feminina, entendendo­‑a como assunto da mulher branca. Por isso, as negras que abraçavam o movimento com 11


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entusiasmo estavam muitas vezes isoladas e alienadas de outras pessoas negras. Éramos habitualmente as únicas pessoas negras em círculos predominantemente brancos. E entendia­ ‑se qualquer debate em torno da raça como um desviar das atenções da política de género. Por isso, não espanta que as negras tenham tido de criar um corpus autónomo e diferen‑ ciado que congregasse a nossa visão da raça, da classe social e do género. Cedo decidi, ao cruzar a política feminista radical e a minha vontade de escrever, que queria produzir livros que pudessem ser lidos e entendidos transversalmente pelas diferentes clas‑ ses sociais. À época, as pensadoras feministas deparavam­‑se com o problema do público: queríamos chegar a quem com o nosso trabalho? Para chegar a um público maior, era preciso escrever de forma clara e concisa, que pudesse ser lida por quem nunca tivesse ido à universidade nem sequer concluído o ensino secundário. Ao imaginar a minha mãe como o público ideal – a leitora que eu mais queria converter ao pensamento feminista –, cultivei uma escrita que podia ser compreendida por leitores de diferentes contextos sociais. Acabar de escrever este livro, e anos mais tarde vê­‑lo publi‑ cado quando já me aproximava dos trinta anos, foi o culminar do meu próprio esforço para cumprir o meu pleno potencial, o de ser uma mulher livre e independente. Quando frequentei o primeiro seminário de estudos sobre as mulheres, leccionado pela escritora branca Tillie Olsen, e a ouvi discutir o mundo das mulheres que se esforçavam por trabalhar e ser mães, mulheres tantas vezes prisioneiras da dominação masculina, 12


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chorei quando ela chorou. Li o seu conto inspirador «Estou aqui a Engomar» e comecei a ver a uma nova luz a minha mãe e as mulheres como ela, todas criadas nos anos 50. A minha mãe casou­‑se nova, ainda na adolescência, foi mãe jovem e, mesmo sem nunca se ter considerado combatente pela eman‑ cipação feminina, tinha vivido a dor da dominação sexista, o que a levou a sensibilizar todas as seis filhas para a educação, para que pudéssemos cuidar das nossas necessidades materiais e económicas e nunca depender de nenhum homem. Claro que teríamos de encontrar um homem e nos casar, mas não sem antes aprendermos a tomar conta de nós próprias. A minha mãe, ela própria prisioneira do patriarcado, incentivou­‑nos a partir esses grilhões. Por isso, faz todo o sentido que uma imagem de Rosa Bell, minha mãe, adorne a capa da nova edi‑ ção norte­‑americana de 2015. Mais que qualquer outro dos meus livros, a relação com a minha mãe moldou e inspirou a redacção de Não Serei Eu Mulher?. Esta que é uma das minhas primeiras obras, escrita quando ainda era recente o movimento feminista contempo‑ râneo, tem muitos defeitos e imperfeições, mas continua a ser uma forte catalisadora para quem tenha interesse em explorar as raízes das mulheres negras e o feminismo. A minha mãe já morreu, mas não há dia em que não pense nela e em todas as negras como ela que, sem um movimento político que as apoiasse, sem uma teoria para se ser feminista, forneceram fórmulas práticas para a emancipação, dando às gerações que se lhes seguiram o dom da escolha, da liberdade, da plenitude de mente, corpo e ser. 13


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