Excerto O DESIGN QUE O DESIGN NÃO VÊ, Mário Moura

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A UTOR

Mário Moura RE VIS ÃO

Nuno Quintas CONCE PÇÃO G RÁ F ICA

Rui Silva | www.alfaiataria.org PAG INAÇÃO

Rita Lynce IMPRE SS ÃO

Guide – Artes Gráficas COPYRIG H T

© 2018 Orfeu Negro © 2018 Mário Moura 1ª E DIÇÃO

Lisboa, Abril 2018 DL

439141/18 978-989-8868-24-4

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ORF E U NE G RO

Rua Silva Carvalho, n.º 152 – 2.º 1250­‑257 Lisboa | Portugal | +351 21 3244170 info@orfeunegro.org | www.orfeunegro.org

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À Rosa, que nasceu a meio da introdução

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Mário Moura

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INTRODUÇÃO

É costume as pessoas apresentarem-se dizendo o que são: «Sou de Lisboa», «Sou português» ou «Sou designer». É algo que faço, mas que me inquieta. Faço-o por cansaço, por automatismo, por conveniência, porque apresentar-me de modo mais rigoroso dá sempre trabalho. Mais do que uma etiqueta, a identidade é uma abreviatura, algo que se diz para não dizer coisas maiores, para as quais talvez nem haja palavras que cheguem. Contudo, sempre que se usa uma destas abreviaturas, ficam menos coisas que podemos ser, menos sítios onde podemos ir, menos o que podemos fazer. Poupam trabalho tanto quanto o limitam. A própria palavra identidade é uma abreviatura, condensa possibilidades distintas, até antagónicas. Identidade profissional, identidade nacional, identidade política, identidade de género, identidade pública… A identidade é daquelas coisas 7

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que surgem como o fogo, por fricção. Percebe-se que se tem – ou cria-se uma – raspando-a contra outras. Uma das especialidades do design é fabricar identidades. Quando, no começo do século xx, começou a ensaiar-se um novo tipo de instituição, uma empresa a uma escala nova, espalhada por geografias imensas, que fazia quase demasiadas coisas ao mesmo tempo, foi preciso criar uma simbologia adequada para a resumir. Foi o que Peter Behrens fez em 1908, quando Emil Rathenau, fundador da AEG (Allgemein Elektricitäts-Gesellschaft), lhe encomendou uma identidade que desse coerência a toda a cornucópia de tarefas, objectos e locais que constituíam uma das maiores empresas do mundo. O resultado foi dos primeiros e mais influentes sistemas de identidade de marca. O logótipo inscrevia as três iniciais em hexágonos encaixados num hexágono maior, sugerindo uma série de sistemas aninhados em sistemas, que se estendia a todos os cantos e actividades da grande companhia. Relatórios, papéis de carta, edifícios, lojas, pavilhões de exposição, candeeiros, posters – todos reunidos no mesmo design. Com a AEG, o design reclamava também a sua própria identidade. Surgira ao longo do século xix, com a consciência de que era possível e vantajoso reunir numa só disciplina todas as práticas de projecto. Até então, construir uma casa, desenhar um móvel, paginar um livro, conceber uma peça de roupa, de mobiliário ou um veículo eram tradições distintas. Com o design, condensava-se isto tudo, e mais, numa metodologia e num espírito comuns. Não foi uma gestação pacífica. Todas estas tradições foram absorvidas, marteladas, desbastadas e 8

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até suprimidas de modo a encaixarem. Uma identidade de marca como a da AEG, que se materializava em edifícios, objectos, mobiliário, publicações e publicidade, manifestava também as possibilidades do design enquanto disciplina. Dava-lhe um objecto no qual incorporar a sua existência. Seria apenas uma questão de tempo antes de se aplicar a instituições de dimensões e complexidade ainda maiores, a países e organizações internacionais públicas ou privadas. Produtos, pessoas, cidades, nações, até religiões, cada um se sente hoje na obrigação de ter a sua identidade gráfica. Quem tem uma conta de Facebook, Instagram, Twitter ou YouTube possui um tipo de presença a que, até ao final do século xx, só uma celebridade podia aspirar: ser conhecido por gente que não se conhece em sítios onde não se foi. É a massificação da identidade pública, que permite a pessoas com interesses semelhantes descobrir causas ou inimigos comuns, divulgar identidades minoritárias, apoiar ideais revolucionários, reaccionários, feministas, machistas, LGBTQ+, alt-right, os diversos fundamentalismos ou nacionalismos. A identidade é um fórum e um campo de batalha. E o design é, também aqui, peça fundamental, construindo as interfaces que medeiam estas novas identidades. Dir-se-ia uma grande responsabilidade. Porém, o papel do design na produção massificada de identidades é desatento, um procedimento rotineiro e despolitizado. As identidades que produz são empresariais. Oferecem a solução de todos os problemas do mundo identificando-os com um logótipo e um slogan, refazendo tudo e todos à imagem da empresa, 9

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de indivíduos a instituições públicas, passando por cidades e países. O design tornou-se instrumento de governação neoliberal. Muitos dirão que é assim, sempre foi. Mas é apenas uma das suas identidades mais recentes. Nem sempre a sua função se resumiu à criação de identidades empresariais. E mesmo agora há outras possíveis. Por exemplo, a ideia do design como disciplina que reunia todas as práticas de projecto já não corresponde ao design que se exerce hoje, disperso por especializações que só partilham o nome. A arquitectura, uma matriz da ideia de design, é hoje uma área à parte. O design aproxima-se do secretariado ou da gestão, graças a ideias como o design thinking. Se, do lado do design, não há uma consciência destas transformações, é sobretudo porque não se pensa a identidade política do próprio design. Mais ainda: o design não pensa a própria identidade. Acredita que já tem uma, definida e acabada, não precisa de mais. Acha-a tão natural, tão inerente à condição humana, que não consegue vê-la como construção. Acredita que os seus praticantes, ao entrar, deviam abandonar toda a sua identidade. Deviam perder-se no design. Para criar as identidades de outros, os logótipos, os posters, as capas de livros, deviam abdicar das suas. Um serviço feito em nome de outros, que cria a parte visível, gráfica, desses nomes, deveria ser invisível. Diz-se – chavão modernista – que o melhor design é o invisível, o neutro. Mas é ilusão, claro. Seria paradoxal uma disciplina tão dedicada à identidade não ter também a sua. Esta construção de identidade é o design que o design não vê: um processo contínuo, contraditório, obsessivo, instituído, mas inconsciente. 10

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Nestes ensaios, tentei dar conta de alguns exemplos desse processo. São quase todos textos dispersos por publicações impressas, escritos no intervalo de uma década, entre 2007 e 2017. O ensaio que dá nome ao livro, «O Design Que o Design não Vê», é inédito. Procura mostrar como alguns temas tidos por imanentes do design (a universalidade, a neutralidade) são volúveis, sujeitos ao tempo, ao lugar. Foram determinados por conceitos como a raça, a classe e o género, questões que tendem a ser tratadas como exteriores e não como peças identitárias cruciais, que formam e reformam o design a partir de dentro. Neste, como noutros textos, trabalhei com uma ideia de inércia institucional, derivada de Michel Foucault. Numa área disciplinar como o design, há um património discursivo, de que são exemplos máximas como less is more ou form follows function, que têm grande inércia. Vão-se mantendo pelo valor que os seus praticantes lhes dão, mas, por isso, mudam muito de sentido com o passar do tempo. Assim, podemos encontrar o binómio forma/função com significados bastante distintos: no modernismo europeu, era uma fusão; no norte-americano, foi uma separação de tarefas, ou uma hierarquia que antepunha um termo ao outro. Através da análise crítica do modo como estas expressões vão sendo usadas, podemos encontrar mudanças na própria identidade disciplinar do design que de outro modo passariam despercebidas. Não escolhi a identidade como pedra-de-toque para decidir o que incluir neste livro. Foi-se tornando óbvia à medida que escolhia os textos, e consolidou-se finalmente com a escrita do ensaio titular. Porém, a preocupação com a identidade 11

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não é recente. Vem no seguimento da minha investigação de doutoramento*, que se interrogava sobre o papel da autoria no design, sobre o modo como os designers se representavam em livros acerca do seu próprio trabalho. Desse ponto de partida, passei a problemas como o papel da biografia como formato teórico da história e crítica do design, mas sobretudo como algo que os designers são treinados para fazer enquanto parte da sua prática. Apesar de ser uma profissão que valoriza nominalmente a humildade e o apagamento, exige também um esforço constante de transmissão de valores e histórias pessoais, em conversas, livros, artigos de revista, etc. A contradição intrigava-me, e por fim concluí ser crucial do próprio processo de design. Se o design se especializava na produção de identidades, seria de esperar que os seus praticantes também investissem boa parte do esforço nas suas próprias. Os primeiros três textos são uma tentativa de analisar esta produção identitária. O ensaio que dediquei a José Brandão foi um esforço muito consciente de perceber a vida de um designer português como construção cuidadosa e estratégica, que envolvia decisões políticas, éticas e estéticas, que reflectiam um contexto social e institucional mais alargado, e permitiam mapear o papel que as diferentes identidades do design gráfico tiveram em Portugal, do Estado Novo às décadas neoliberais. «Social mas em Itálico» é uma espécie de continuação onde se investiga como o design gráfico se adaptou ao * Mário Moura, The Big Book – Uma Arqueologia do Autor no Design Gráfico, Porto, Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, 2011.

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empreendedorismo, transformando de novo a sua identidade para esse fim. Organizei mentalmente o livro em quatro partes. Estes três primeiros textos formariam uma secção dedicada mais directamente à identidade. Os seguintes, organizei-os em «crítica», «história», «periferia». Em alguns, a identidade é usada como crivo metodológico para tratar certos assuntos críticos ou históricos, outros ainda fazem colidir identidades entre si na esperança de que percam a sua familiaridade. Mais de metade são sobre design. Os restantes são quase crítica de design, embora feita também no território da literatura, do cinema, da política, da história, da geografia. Tem-me parecido cada vez mais artificial que não se use a crítica de design com a mesma liberdade de acção com que se usa a literária, a de arte ou a de cinema, regularmente convocadas para tratar de outros assuntos e objectos, de política e de pessoas – veja-se o trabalho de Edward W. Said e Susan Sontag, por exemplo. Por um lado, acredito na ideia do crítico como intelectual público: parece-me inevitável que a crítica tenha uma função social. Por outro, agrada-me a ideia da crítica enquanto ciência de poder ser espectador. Está na moda não deixar o espectador em paz, espetar-lhe sempre o dedo entre as costelas, pastoreá-lo, educá-lo, maldizer a sua passividade, pô-lo a fazer coisas. Mas a melhor crítica lembra que ser espectador é uma actividade digna e necessária. Uma especialização em amadorismo, se é isso possível. De resto, é difícil ficar dentro dos limites de uma disciplina quando se vê a identidade como problema. Discordo, por 13

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princípio e por método, com os designers (ou arquitectos, ou cineastas, ou artistas) que acham que só se deve escrever sobre o que está dentro das áreas que pensam serem as suas. O que é ou pode ser um objecto de design? O que é ou pode ser um designer? Assim, nestes textos, tenta abordar-se um formato desaparecido como o photobook infantil, ensaia-se uma tentativa de pôr em relevo a identidade de autores que talvez sejam, talvez não sejam designers (Chris Marker ou Paulo de Cantos), tenta perceber-se como o design não produz apenas progresso e modernidade, mas também participa da criação simbólica de periferias. Porque se trata de identidades, não me interessa escrever apenas sobre gente da qual se decide à partida o que é ou foi. Interessa-me o processo por que alguém é ou deixa de ser. Tento escrever sempre como se o design estivesse totalmente aberto a debate, como se não existisse. Resta-me reconhecer o grande número de pessoas que tornaram este livro possível. Agradeço ao Rui Silva, à Carla Oliveira, à Patrícia Guerreiro Nunes e à restante equipa da Orfeu Negro. Agradeço a quem deu o mote para a escrita dos textos, tanto pelo simples convite como pela sugestão do tema, muitas vezes assuntos em que não pegaria se não fosse espicaçado. E que valeram a pena. Assim, sem nenhuma ordem particular, agradeço ao Victor Almeida, ao Aurelindo Ceia e ao José Brandão, ao Emílio Vilar, ao Granja, ao Paulo Mendes, à Márcia Novais, à Gabriela Vaz Pinheiro, ao Pedro Cortesão Monteiro, ao David Guéniot e à Patrícia Almeida. Agradeço também à Susana Gaudêncio, que me foi sempre incitando e contribuiu para a revisão e selecção dos textos. 14

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