Excerto DIANTE DO TEMPO, Georges Didi-Huberman

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TÍTULO ORIGINAL Devant le temps: Histoire de l’art et anachronisme des images AUTOR Georges Didi-Huberman TRADUÇÃO Luís Lima REVISÃO Nuno Quintas CONCEPÇÃO GRÁFICA Rui Silva | www.alfaiataria.org IMPRESSÃO Guide – Artes Gráficas COPYRIGHT © 2000 Les Éditions de Minuit © 2017 Orfeu Negro 1.ª EDIÇÃO

Lisboa, Julho 2017 DL xxxxxx/17 ISBN 978-989-8327-81-9

ORFEU NEGRO

Rua Silva Carvalho, n.º 152 – 2.º 1250-257 Lisboa | Portugal | +351 21 3244170 info@orfeunegro.org | www.orfeunegro.org


Todo o problema é, num certo sentido, um problema de ocupação do tempo. — g. bataille Méthode de méditation (1947)

A maneira como o passado recebe a marca de uma actualidade mais elevada é dada pela imagem em que está compreendido. E esta penetração dialéctica, esta capacidade de tornar presentes as correlações passadas, é a prova da verdade da acção presente. Significa isto que acende o pavio do explosivo que jaz no que já foi. — W. Benjamin Das Passagen-Werk (1927-1940), Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1982, K 2, 3



1. Fra Angelico, parte inferior de Madonna delle Ombre (Nossa Senhora das Sombras), 1440-1450 (pormenor). Fresco. Florença, Convento de São Marcos, ala norte. Altura: 1,50 m. Foto de Georges Didi-Huberman.



Abertura A história da arte como disciplina anacrónica

DIANTE DA IMAGEM: DIANTE DO TEMPO

Diante da imagem, estamos sempre diante do tempo. Como o pobre iletrado da narrativa de Kafka, estamos diante da imagem como Diante da Lei: como diante da ombreira de uma porta aberta. Nada nos esconde, bastaria entrar, a sua luz encandeia-nos, impõe-nos respeito. A sua própria abertura – não falo do guardião – detém-nos: olhar para ela é desejar, é esperar, é estar diante do tempo. Mas de que género de tempo? Que plasticidades e que fracturas, que ritmos e que marcas do tempo podem estar implicados nesta abertura da imagem? Descansemos o olhar, por um instante, neste painel de pintura renascentista (figura 1). É um fresco do Convento de São Marcos, em Florença. Foi muito provavelmente pintado, nos anos 1440, por um frade dominicano que habitava no local e que seria mais tarde apelidado de Beato Angelico. Está disposto à altura do olhar, no corredor oriental da clausura. Imediatamente acima, está pintada uma Santa Conversação. Como nas celas, todo o resto do corredor se mostra branco de cal. Nesta dupla diferença – a cena figurada em cima, o fundo branco em redor –, o painel de fresco vermelho, crivado de manchas erráticas, produz como que uma deflagração: um fogo-de-artifício colorido que carrega ainda o traço do seu jorrar originário (num lampejo, o pigmento foi projectado à distância, em chuviscos, num mero


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instante) e que, desde então, se perpetuou como uma constelação de estrelas fixas. Diante desta imagem, num relance, o nosso presente pode ver-se engolido e simultaneamente trazido à luz na experiência do olhar. Mesmo que – no que me diz respeito – se tenham passado mais de quinze anos1 desde esta experiência singular, parece que o meu «presente reminiscente» ainda não parou de tirar daí todas as lições. Diante de uma imagem – por muito antiga que seja –, o presente nunca cessa de se reconfigurar, mesmo que o desapossamento do olhar tenha completamente cedido o lugar ao hábito enfadado do «especialista». Diante de uma imagem – por muito recente ou contemporânea que seja –, também o passado nunca cessa de se reconfigurar, já que esta imagem só se torna pensável numa construção da memória, senão mesmo do assombro. Diante de uma imagem, afinal, temos de reconhecer humildemente o seguinte: é provável que sobreviva à nossa existência, diante dela somos nós o elemento frágil, o elemento passageiro, e diante de nós é ela o elemento do futuro, o elemento da duração. A imagem tem frequentemente mais memória e mais futuro do que o ente que a olha. Entretanto, como fazer para nos mantermos à altura de todos os tempos que, diante de nós, esta imagem conjuga em tantos planos? E, desde logo, como dar conta do presente desta experiência, da memória que ela convocava, do futuro que ela implicava? Parar diante do painel de Fra Angelico, submeter-se ao seu mistério figural, consistia já em entrar, modesta e paradoxalmente, no saber cujo nome é história da arte. Entrada modesta, porque a grande pintura da Renascença florentina era abordada, justamente, pelas suas margens: as suas parerga, as suas zonas


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marginais, os registos bem – ou bem mal – ditos «inferiores» dos ciclos de frescos, os registos de «adorno», os simples «falsos mármores». Entrada paradoxal, sim, mas para mim decisiva, porque se trata de compreender a necessidade intrínseca, a necessidade figurativa ou, antes, figural, de uma zona da pintura facilmente apreensível sob o rótulo de arte «abstracta»2. No mesmo movimento – no mesmo espanto –, tratava-se de compreender por que motivo, em Fra Angelico (mas também em Giotto, Simone Martini, Pietro Lorenzetti, Lorenzo Monaco, Piero della Francesca, Andrea del Castagno, Mantegna e tantos outros), toda esta actividade pictural intimamente misturada com a iconografia religiosa, todo este mundo de imagens perfeitamente visíveis não fora, até então, nem visto nem interpretado e nem sequer entrevisto na imensa literatura científica dedicada à pintura renascentista.3 Aqui surgiu, fatalmente, a questão epistemológica: o estudo de caso – uma singularidade pictural que um dia suspendeu os meus passos no corredor de São Marcos – apresentou uma exigência mais geral quanto à «arqueologia», como diria Michel Foucault, do saber sobre a arte e sobre as imagens. Positivamente, esta exigência poderia ser formulada da seguinte maneira: em que condições um objecto – ou um questionamento – histórico novo pode emergir tão tardiamente num contexto tão conhecido, tão bem «documentado», como se costuma dizer, como o da Renascença florentina? Poder-se-ia também, e com razão, exprimir a referida exigência de modo mais negativo: na história da arte como disciplina, como «ordem do discurso», o que pôde manter essa condição de cegueira, essa «vontade de não ver» e de não saber? Quais são as razões epistemológicas dessa denegação – a denegação que, na


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Santa Conversação, consiste em saber identificar o menor atributo iconográfico e, ao mesmo tempo, não prestar a mínima atenção ao espantoso fogo-de-artifício colorido que se estende imediatamente abaixo, em três metros de largura por um metro e cinquenta de altura? Saídas de um caso singular (mas possuindo, espero, algum valor exemplar), estas questões muito simples comprometem a história da arte no seu método, no seu próprio estatuto – no seu estatuto «científico», como apraz dizer –, na sua história. Deter-se diante do painel de Fra Angelico é, em primeiro lugar, tentar dar uma dignidade histórica, ou seja, uma subtileza intelectual e estética, a objectos visuais considerados até então inexistentes ou, pelo menos, privados de sentido. Depressa se tornou evidente que, para prosseguir, por pouco que fosse, com esse intuito, era necessário empregar vias distintas daquelas que Erwin Panofsky fixou, de modo magistral e canónico, com o termo iconologia4: mas quão difícil, aqui, inferir uma «significação convencional» a partir de um «tema natural»; quão difícil encontrar um «motivo» ou uma «alegoria», no sentido habitual destes termos; quão difícil identificar um «assunto» bem claro ou um «tema» bem distinto; quão difícil exibir uma «fonte» escrita que pudesse servir de interpretante verificável. Ao contrário do mágico-iconólogo, que tão bem sabe fazer sair do seu chapéu a única chave «simbólica» de uma imagem figurativa, aqui, não havia nenhuma «chave» a retirar dos arquivos ou da Kunstliteratur. Foi então necessário deslocar e complexificar as coisas, questionar novamente o que os termos significação, tema, alegoria e fonte podem, no fundo, querer dizer para um historiador


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da arte. Foi preciso mergulhar de novo na semiologia não iconológica – no sentido humanista de Cesare Ripa5 – constituída, dentro dos muros do Convento de São Marcos, pelo universo teológico, exegético e litúrgico dos dominicanos. E, como contragolpe, fazer surgir a exigência de uma semiologia não iconológica – no sentido «científico» e actual, oriundo de Panofsky –, uma semiologia que não fosse positivista (a representação como espelho das coisas) e nem sequer estruturalista (a representação como um sistema de signos). Era a própria representação que teria de ser questionada, de uma vez por todas, diante do painel. Com a consequência de abrir um debate de ordem epistemológica sobre os meios e os fins da história da arte como disciplina. Tentar, em suma, uma arqueologia crítica da história da arte, própria para destituir o postulado panofskiano da «história da arte como disciplina humanista»6. Para isso, era preciso pôr em questão todo um conjunto de certezas relativas ao objecto «arte» – o exacto objecto da nossa disciplina histórica –, certezas que têm como pano de fundo uma longa tradição teórica que vai, nomeadamente, de Vasari a Kant, e além dele (especialmente, até ao próprio Panofsky).7 Porém, deter-se diante do painel não é só interrogar o objecto dos nossos olhares. É também deter-se diante do tempo. É, pois, interrogar, na história da arte, o objecto «história» e a própria historicidade. Este é o intento do presente trabalho: estimular uma arqueologia crítica dos modelos do tempo, dos valores de uso do tempo na disciplina histórica que quis fazer das imagens os seus objectos de estudo. Questão tão vital, concreta e quotidiana, que é difícil clarificá-la: cada gesto, cada decisão do historiador, desde a mais humilde classificação das suas fichas até às suas mais altas ambições sintéticas,


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não decorrerão, uma após outra, de uma escolha de tempo, de um acto de temporalização? Percebe-se muito rapidamente que, aqui, nada permanece muito tempo na serena luz das evidências.

Tomemos, justamente, como ponto de partida aquilo que, para o historiador, parece constituir a evidência das evidências: a recusa do anacronismo. É a regra de ouro: sobretudo não «projectar», como se diz, as nossas próprias realidades – os nossos conceitos, os nossos gostos, os nossos valores – nas realidades do passado, objectos da nossa pesquisa histórica. Não é evidente que a «chave» para compreender um objecto do passado se encontra no próprio passado e, mais ainda, no mesmo passado que o passado do objecto? Regra de bom senso: para compreender os painéis coloridos de Fra Angelico, será então preciso procurar uma fonte de época capaz de nos dar acesso à «instrumentação mental» – técnica, estética, religiosa, etc. – que tornou possível esse tipo de escolha pictural. Nomeemos essa atitude canónica do historiador: nada mais do que uma procura de concordância dos tempos, uma busca da consonância eucrónica. Tratando-se de Fra Angelico, possuímos uma «interpretação eucrónica» de primeira ordem: o julgamento pronunciado a respeito do pintor pelo humanista Cristoforo Landino, em 1481. Michael Baxandall apresentou esse julgamento como o tipo de fonte de época capaz de nos fazer compreender uma actividade pictural muito próxima da sua realidade intrínseca, a partir das «categorias visuais» próprias do seu tempo – ou seja, «historicamente pertinentes»8. Tal é a evidência eucrónica: consegue exibir-se uma fonte específica (o julgamento de Landino, de facto, não é geral mas


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nominal) e, graças a isso, consegue interpretar-se o passado com as categorias do passado. Não é esse o ideal do historiador? Mas o que é o ideal senão o resultado de um processo de idealização? O que é o ideal senão a edulcoração, a simplificação, a síntese abstracta, a negação da carne das coisas? O texto de Landino é, sem dúvida, «historicamente pertinente», no sentido em que, tal como o fresco de Fra Angelico, pertence à civilização italiana do Renascimento: a este título, testemunha a recepção humanista de uma pintura produzida sob o mecenato de Cosme de Médici. Ainda assim, será ele «historicamente pertinente», no sentido em que permitiria compreender a necessidade pictural – mas também intelectual e religiosa – dos painéis coloridos de São Marcos? De maneira nenhuma. Comparado com a própria produção de Fra Angelico, o julgamento de Landino leva-nos a imaginar que este nunca pôs os pés na clausura do convento florentino – o que é muito provável – ou que olhou para esta pintura sem vê-la, sem retirar dela grande coisa. Cada uma das suas «categorias» – o à-vontade, a afabilidade, a devoção ingénua – está nos antípodas da complexidade, da gravidade e da subtileza operadas na pintura altamente exegética do frade dominicano.9 Eis-nos então diante do painel como diante de uma questão nova posta ao historiador: se a fonte «ideal» – específica, eucrónica – não é capaz de dizer o que quer que seja sobre o objecto da pesquisa, oferecendo-nos apenas uma fonte sobre a sua recepção, mas não sobre a sua estrutura, a que santos, a partir daqui, a que interpretantes, devemos devotar-nos? Prestemos atenção a uma primeira coisa a respeito da dignidade abusivamente concedida ao texto de Landino: diz-se que é pertinente por ser «contemporânea» da pintura (só falo aqui de eucronia para sublinhar o valor de


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coerência ideal, de Zeitgeist, concedido a tal contemporaneidade). Mas sê-lo-á verdadeiramente? Ou antes: segundo que escala, segundo que ordem de grandeza poderá ser considerada como tal? Landino escreveu trinta anos depois da morte do pintor; ora, nesse lapso de tempo, muitas coisas se terão transformado na esfera estética, religiosa e humanista. Landino era versado no latim clássico (com as suas categorias e retórica próprias), mas era também um defensor ardente da língua vernacular10; Fra Angelico, por seu lado, era apenas versado no latim medieval das suas leituras de noviciado, plenas de distinções escolásticas e hierarquias sem fim: isto bastaria para suspeitar da cisão de um verdadeiro anacronismo entre o pintor e o humanista. Vamos mais longe: não só Landino foi anacrónico em relação a Fra Angelico no desfasamento de tempo e de cultura que, evidentemente, os separava, como o próprio Fra Angelico parece ter sido anacrónico em relação aos seus contemporâneos mais imediatos, se consideramos como tal Leon Battista Alberti, por exemplo, que teorizava sobre a pintura no mesmo momento e a algumas centenas de metros do corredor onde as superfícies vermelhas se cobriam de salpicos brancos projectados à distância. Mesmo sendo eucrónico, o De pictura não conseguiria dar adequadamente conta da necessidade pictural operada nos frescos de São Marcos.11 A impressão com que ficamos de tudo isto é que, frequentemente, os contemporâneos não se compreendem melhor do que os indivíduos separados no tempo: o anacronismo atravessa todas as contemporaneidades. A concordância dos tempos – quase – não existe. Fatalidade do anacronismo? Eis que se pode separar os dois contemporâneos perfeitos que foram Alberti e Fra Angelico, porque


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não pensaram «no mesmo tempo». Esta situação só pode ser qualificada como «fatal» – negativa, destrutiva – na perspectiva de uma concepção ideal, portanto, empobrecida, da própria história. Mais vale reconhecer a necessidade do anacronismo como uma riqueza: pois parece interna aos próprios objectos – as imagens – dos quais tentamos fazer a história. O anacronismo seria assim, numa primeira abordagem, a maneira temporal de exprimir a exuberância, a complexidade e a sobredeterminação das imagens. No único exemplo do painel salpicado de Fra Angelico, três tempos, pelo menos – três tempos heterogéneos e, portanto, anacrónicos uns em relação aos outros –, entrelaçam-se de modo admirável. O enquadramento em trompe-l’œil revela, de modo evidente, um mimetismo «moderno» e uma noção da prospectiva que, grosso modo, pode ser qualificada albertiana: «eucrónica», portanto, com este século xv florentino da primeira Renascença. Mas a função memorativa da própria cor supõe, por outro lado, uma noção da figura cuja noção foi retirada dos escritos dominicanos dos séculos xiii e xiv pelo pintor: artes da memória, «somas de similitudes» ou exegeses da Escritura bíblica (neste sentido, foi possível qualificar Fra Angelico de pintor «obsoleto», adjectivo que, na língua corrente, é dado como equivalente de «anacrónico»). Enfim, a dissimilitudo, a dissemelhança em causa neste painel de pintura, remonta a um tempo ainda mais remoto: esta constitui a interpretação específica de toda uma tradição textual cuidadosamente reunida na Biblioteca de São Marcos (Dionísio, o Areopagita, comentado por Alberto, o Grande, ou São Tomás de Aquino), bem como uma antiga tradição figural que alcançou Itália a partir de Bizâncio (uso litúrgico das pedras semipreciosas multicolores) via a arte gótica e o próprio Giotto


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(falsos mármores da Capela Scrovegni)… Tudo isto entregue a um outro paradoxo do tempo: designadamente, a repetição litúrgica – propagação e difracção temporais – do momento originário e capital de toda esta economia, o momento mítico da Encarnação.12 Eis-nos, pois, diante do painel como diante de um objecto de tempo complexo, de tempo impuro: uma extraordinária montagem de tempos heterogéneos formando anacronismos. Na dinâmica e na complexidade desta montagem, noções históricas tão fundamentais quanto as de «estilo» ou de «época» revelam ser, subitamente, de uma perigosa plasticidade (perigosa apenas para quem gostaria que todas as coisas estivessem, de uma vez por todas, no seu lugar na mesma época: figura bastante comum, de resto, para aquele que designarei por «historiador fóbico do tempo»). Levantar a questão do anacronismo é então interrogar essa plasticidade fundamental e, com ela, a mistura, tão difícil de analisar, dos diferenciais de tempo em jogo em cada imagem. A história social da arte, que há alguns anos domina por completo a disciplina, abusa com frequência da noção estática – semiótica e temporalmente rígida – de «instrumento mental», que, a propósito de Fra Angelico e Landino, Baxandall designou por «equipamento» (equipment) cultural ou cognitivo.13 Como se bastasse a cada um retirar de uma caixa de ferramentas palavras, representações ou conceitos já formados e prontos a usar. Isso é esquecer que, da caixa até à mão que as utiliza, as ferramentas estão elas próprias em formação, ou seja, aparecem menos como entidades do que como formas plásticas em perpétua transformação. Imaginemos antes ferramentas maleáveis, ferramentas de cera dúctil que ganham, entre cada mão e contra cada material a


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ser trabalhado, uma forma, uma significação e um valor de uso diferentes. Fra Angelico talvez tenha retirado da sua caixa de ferramentas mental a distinção contemporânea dos quatro tipos de sermões religiosos – subtilis, facilis, curiosus, devotus – que, utilmente, Baxandall nos lembra14. Só que dizer isto é apenas fazer um pequeno início do trajecto. O historiador da arte deve sobretudo compreender como e em que terá consistido o trabalho pictural de Fra Angelico, precisamente, na subversão dessa distinção e, portanto, na transformação e na reinvenção desse instrumento mental. Como terá podido um quadro religioso apresentar-se no modo facilis, fácil de ver do ponto de vista da iconografia, e, ao mesmo tempo, no modo subtilis, que opera o ponto de vista bem mais complexo da exegese bíblica e da teologia encarnacional.15 Diante do nosso painel de pintura, o modo facilis consistiria em ver apenas um registo sumptuário, desprovido de sentido «simbólico»: uma simples moldura ornamental, um painel de falso mármore em trompe-l’œil servindo de base a uma Santa Conversação. O modo subtilis emerge em muitos planos possíveis, conforme se esteja atento à indicação litúrgica proposta aqui pelo pintor (o painel de falso mármore está precisamente para a Santa Conversação como um altar está para um retábulo); ou então às suas associações devocionais (as manchas brancas constelam a parede do corredor como o faziam, ao que se diz, as gotas do leite da Virgem na parede da gruta da Natividade); ou então às alusões alegóricas, que fazem do mármore multicolor uma figura Christi; ou ainda às implicações performativas da projecção à distância de um pigmento (estritamente falando, acto técnico definível como unção); ou, por fim, às numerosas referências místicas que


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associam o acto de contemplação à frontalidade «abstracta» das superfícies multicolores (o mármore manchado como materialis manuductio da visio Dei, segundo João Escoto Erígena, o abade Suger ou o dominicano Giovanni di San Gimignano)16. A imagem é altamente sobredeterminada: actua, poderá dizer-se, em vários quadros ao mesmo tempo. O leque de possibilidades simbólicas que acabo de esboçar, a respeito deste único painel de fresco italiano, só ganha sentido – e só poderá receber um início de verificação – em relação com o leque aberto do sentido em geral, de acordo com as condições, práticas e teóricas, de possibilidades que a exegese medieval lhe forjou.17 É, sem dúvida, num campo de possibilidades tal que deve ser compreendido o aspecto de montagem das diferenças que caracteriza esta simples – mas paradoxal – imagem. Ora, com esta montagem, é todo o leque do tempo que também se abre amplamente. A dinâmica temporal desta montagem deveria então, logicamente, decorrer de um paradigma teórico e de uma tecnicidade própria: é o que oferecem, na longa duração da Idade Média, as «artes da memória»18. A imagem está, portanto, altamente sobredeterminada em relação ao tempo. Isso implica reconhecer o princípio funcional dessa sobredeterminação numa certa dinâmica da memória. Muito antes de a arte ter uma história – diz-se que começou, ou recomeçou, com Vasari –, as imagens possuíram, carregaram e produziram memória. Ora, também a memória actua em todos os quadros do tempo. É a ela e à sua «arte» medieval que se deve a montagem de tempos heterogéneos por via da qual, no nosso painel de pintura, um pensamento místico do século v – o de Pseudo-Dionísio, o Areopagita, a respeito dos mármores manchados –, possa encontrar-se aí, dez séculos depois, sobrevivente e


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transformado, cravado na moldura de uma perspectiva absolutamente «moderna» e albertiana. Soberania do anacronismo: em alguns pedaços de presente, um artista da Renascença – que acabava de projectar pigmento branco numa camada de fresco vermelho, cercado pela sua moldura em trompe-l’œil – terá concretizado, para a posteridade, essa verdadeira constelação de tempos heterogéneos, feita imagem. Soberania do anacronismo: o historiador que hoje se remetesse unicamente ao passado «eucrónico» – apenas ao Zeitgeist de Fra Angelico – falharia por completo o sentido do seu gesto pictural. O anacronismo é necessário, o anacronismo é fecundo quando o passado se revela insuficiente, quando até constitui um obstáculo à compreensão do passado. O que Alberti ou Landino não nos permitem compreender no painel de Fra Angelico, as múltiplas combinações de pensamentos separados no tempo – Alberto, o Grande, com Pseudo-Dionísio, Tomás de Aquino com Gregório, o Grande, Tiago de Voragine com Santo Agostinho – permitem-no amplamente. Imaginemos que, nesse lugar anacrónico por excelência que foi a biblioteca do Convento de São Marcos, o artista dominicano os tivesse continuamente à disposição: pensamentos de todos os tempos – pelo menos dezanove séculos, de Platão a Santo Antonino – reunidos nas mesmas prateleiras.19 Não é possível, em semelhantes casos, contentar-se com fazer a história de uma arte sob o ângulo «eucrónico», ou seja, sob o ângulo convencional do género «o artista e o seu tempo». O que essa visualidade exige é que seja encarada sob o ângulo da sua memória, ou seja, das suas manipulações do tempo, através das quais descobrimos antes um artista anacrónico, um «artista contra o seu tempo». Devemos também considerar Fra Angelico


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como um artista do passado histórico (um artista do seu tempo, que foi o Quattrocento), mas igualmente como um artista do mais-do-que-passado memorativo (um artista a manipular tempos que não eram o seu). Essa situação engendra um paradoxo suplementar: se o passado eucrónico (Landino) levanta um véu ou faz obstáculo ao mais-do-que-passado anacrónico (Dionísio, o Areopagita), como fazer para rasgar o véu, para ultrapassar o obstáculo? Ousarei dizer que é preciso mais uma estranheza, na qual se confirma a paradoxal fecundidade do anacronismo. Para aceder aos múltiplos tempos estratificados, às sobrevivências, às longas durações do mais-do-que-passado mnésico, é necessário o mais-do-que-presente de um acto reminiscente: um choque, um rasgo de véu, uma irrupção ou aparição do tempo, tudo aquilo de que Proust e Benjamin tão bem falaram sob a designação de «memória involuntária». Diante do painel salpicado do século xv, o que Landino e todos os historiadores da arte foram incapazes de ver e de dar a ver, Jackson Pollock – eis o anacronismo – mostrou-se altamente eficaz nessa acção. Se tentar hoje rememorar o que poderá ter suspendido os meus passos no corredor de São Marcos, julgo não me enganar ao dizer que foi uma espécie de semelhança deslocada entre o que eu descobria ali, num convento renascentista, e os drippings do artista norte-americano admirado e descoberto muitos anos antes.20 É certo que essa semelhança proveio do domínio do que se chama um pseudomorfismo: as relações de analogia entre o painel manchado de Fra Angelico e um quadro de Jackson Pollock não resistem muito tempo à análise (da questão da horizontalidade até à dos investimentos simbólicos). Fra Angelico não é de modo algum o antepassado da action painting, e seria perfeita


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tolice procurar, nas projecções pigmentárias do nosso corredor, uma qualquer «economia libidinal» do tipo «expressionismo abstracto». É evidente que a arte de Pollock não pode servir de interpretante adequado para as manchas de Fra Angelico. Mas o historiador não consegue escapar assim tão bem, pois subsiste o paradoxo, o mal-estar no método: é que a emergência do objecto histórico enquanto tal não terá sido fruto de uma diligência histórica convencional – factual, contextual ou eucrónica –, mas sim de um momento anacrónico quase aberrante, algo como um sintoma no saber do historiador. É a própria violência e a incongruidade, é a própria diferença e a inverificabilidade que terão, de facto, provocado como que uma suspensão da censura, a emergência de um novo objecto a ver e, além disso, a constituição de um novo problema para a história da arte. Heurística do anacronismo: de que modo uma diligência tão contrária aos axiomas do método em história pode chegar à descoberta de novos objectos históricos? Com a sua paradoxal resposta – foi Pollock, e não Alberti, foi Jean Clay, e não André Chastel, que tornaram possível ser «reencontrada» uma grande superfície de fresco pintado por Fra Angelico, visível por todos mas mantida invisível pela própria história da arte –, a pergunta toca no difícil problema da «boa distância» que o historiador sonha manter em relação ao seu objecto. Demasiado no presente, o objecto arrisca-se a ser um mero suporte para fantasmas; demasiado no passado, arrisca-se a ser um mero resíduo positivo, defunto, mortificado na sua própria «objectividade» (outro fantasma). É preciso não pretender fixar, nem eliminar essa distância: é preciso fazê-la trabalhar no tempo diferencial dos momentos de proximidades empáticos, intempestivos e inverificáveis, com os momentos de recuos


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críticos, escrupulosos e verificadores. Toda a questão de método acaba talvez por ser uma questão de tempo.21 A partir daqui, o anacronismo poderia não ser reduzido a esse horrível pecado como é espontaneamente visto por qualquer historiador diplomado. Poderia até ser pensado como um momento, um batimento rítmico do método, nem que fosse o seu momento de síncope. Nem que fosse paradoxal, nem que fosse perigoso, como necessariamente o é todo o empreendimento de risco. Este livro apresenta-se como uma tentativa de exploração de alguns desses tempi, para dar alguns exemplos do risco de abrir o método. Trata-se, designadamente, de prolongar na questão do tempo uma hipótese já levantada e argumentada na questão do sentido: se a história das imagens é uma história de objectos sobredeterminados, é então preciso aceitar – e a questão está toda aqui, até onde? e como? – que a esses objectos sobredeterminados corresponde um saber sobreinterpretativo.22 A vertente temporal desta hipótese poderia ser formulada da seguinte maneira: a história das imagens é uma história de objectos temporalmente impuros, complexos, sobredeterminados. É então uma história de objectos policrónicos, de objectos heterocrónicos ou anacrónicos. Não será o mesmo que dizer, desde já, que a história da arte é ela própria uma disciplina anacrónica, para o pior, mas também para o melhor?

Estas reflexões prévias correspondem, na realidade, a um estado de trabalho antigo.23 O seu limite consistia, é certo, na singularidade, senão mesmo na estreiteza da experiência descrita. Apesar de Aby Warburg, Walter Benjamin e Carl Einstein – ou seja, os três «fios condutores» teóricos seguidos no presente trabalho –


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terem sido, desde logo, convocados para este banquete do anacronismo, parecia ainda bem difícil tirar conclusões gerais a partir do caso tão limitado, tão atípico, oferecido pelos painéis multicolores de Fra Angelico. Contudo, nos cerca de quinze anos que se seguiram a esta experiência inicial, outras configurações de uma mesma complexidade temporal, outras montagens de tempos heterogéneos, que eu não esperava forçosamente, não pararam de emergir. Foi a partir daí que se pôde apresentar, num plano generalista um pouco mais convincente, a questão propriamente epistemológica do anacronismo. Ao contrário do que se costuma pensar, a função básica do trabalho teórico não é agir como uma axiomática: ou seja, fundar de direito as condições gerais de uma prática. Para começar, o seu fito é – pelo menos nas disciplinas históricas – reflectir sobre os aspectos heurísticos da experiência: ou seja, pôr em dúvida «as evidências do método», quando se multiplicam as excepções, os «sintomas», os casos que deveriam ser ilegítimos e que, todavia, se revelaram fecundos. Percebi então que havia configurações anacrónicas que estruturavam objectos ou problemas históricos tão diferentes como uma escultura de Donatello (capaz de reunir a heterogeneidade de referências ao antigo, ao medieval e ao moderno); a evolução de um procedimento técnico como a marcação (capaz de reunir o gesto pré-histórico e a palavra vanguardista); a panóplia antropológica de um material como a cera (capaz de reunir a longa duração das sobrevivências formais e a curta duração do objecto modelado)… Sem contar com a propensão característica, em numerosas obras do século xx – de Rodin a Marcel Duchamp ou de Giacometti a Tony Smith, passando por Barnett Newman e Simon Hantaï –, para praticar, mesmo que


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visando resultados formalmente homogéneos, essa «montagem de tempos heterogéneos»24. Uma epistemologia do anacronismo não passa sem a «arqueologia» discursiva de que falei acima. É raro termos um olhar crítico sobre a maneira como praticamos a nossa disciplina; recusamos frequentemente interrogar a história estratificada, nem sempre gloriosa, das palavras, das categorias ou dos géneros literários que empregamos diariamente para produzir o nosso saber histórico. Porque esta arqueologia nunca tarda em destapar regiões inteiras de censura ou de irreflexão, acaba sempre por provocar um debate ou, pelo menos, por intervir num debate. Nada mais acertado do que este reparo de Michel Foucault: «Saber, até mesmo na ordem histórica, não significa “reencontrar”, e muito menos “reencontrarmo-nos”. A história será efectiva na medida em que introduzir o descontínuo no nosso próprio ser […]. É que o saber não é feito para compreender, é feito para distinguir.»25 O debate que está aqui em jogo talvez decorra de uma única pergunta: que relação da história com o tempo nos impõe a imagem? E que consequência terá para a prática do historiador da arte? Não faremos esta questão inaugural convocando os filósofos para os quais o tempo, simplesmente, se oporá à história. Não interrogaremos o «tempo da obra», como o fizeram, com mais ou menos acuidade, os fenomenólogos da arte.26 Também não interrogaremos o tempo da imagem como um «tempo de leitura» semiológica, nem que se prolongasse no modelo do semeion – do túmulo – onde se apresentaria, interno à representação, o «limite da representação»27. Mas nem por isso seguiremos os historiadores para os quais o tempo remeterá simplesmente para a história. Essa é uma redução tipicamente positivista, muito


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recorrente, aliás, que consiste em tratar as imagens como simples documentos para a história, o que é uma maneira de negar a perversidade daquelas e a complexidade desta.28 Só que não nos saímos melhor quando recusamos a história enquanto tal: quando decretamos que «acabou» ou quando pretendemos «acabar» com ela.29 Os debates actuais sobre o «fim da história» e – paralelamente – sobre o «fim da arte» são triviais e mal formulados porque assentam em modelos de tempo triviais e não dialécticos.30 A noção de anacronismo será, portanto, aqui analisada e posta em acção, pela sua virtude – espero – dialéctica. Em primeiro lugar, o anacronismo parece emergir na exacta dobra da relação entre imagem e história: as imagens, por certo, têm uma história; mas aquilo que elas são, o movimento que lhes é próprio, o seu poder específico, tudo isso aparece apenas como um sintoma – um desfalecimento, um desmentido mais ou menos violento, uma suspensão – na história. Acima de tudo, não quero dizer que a imagem é «intemporal», «absoluta», «eterna» ou que escapa por essência à historicidade. Pelo contrário, quero dizer que a sua temporalidade não será reconhecida como tal, enquanto o elemento de história que a carrega não for dialectizado pelo elemento de anacronismo que a atravessa. Foi isto que Gilles Deleuze indicou vincadamente, no plano filosófico, quando introduziu a noção de imagem-tempo, na dupla referência à montagem e ao «movimento aberrante» (que, pela minha parte, designarei por sintoma).31 Foi também o que alguns historiadores da arte – além daqueles que iremos comentar aqui – quiseram dar conta: é o caso de George Kubler, cujas formas do tempo se desdobram no registo sempre dialectizado da orientação


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Diante do Tempo

e da rede sobredeterminada, da «corrente» e da «resistência» às mudanças, das «séries prolongadas» e das «séries paradas», errantes, intermitentes ou simultâneas.32 No último capítulo da obra A Vida das Formas, Henri Focillon tinha já oposto o fluxo da história ao contratempo do acontecimento – sendo o acontecimento entendido como uma «brusquidão eficaz».33 Era toda a questão do determinismo histórico que, nestas belas páginas, estava votada por Focillon às «fissuras» e aos «desacordos».34 Já se vê melhor o problema que esta «dobra» encerra: fazer história da arte impõe-nos, fatalmente, articular cada um dos termos como um instrumento crítico aplicável ao outro. Assim, o ponto de vista da história levanta uma dúvida salutar sobre os sistemas de valores que contém, num dado momento, a palavra arte. Mas o ponto de vista da arte – ou, pelo menos, o da imagem, do objecto visual – levanta, reciprocamente, uma dúvida salutar sobre os modelos de inteligibilidade que contém, num dado momento, a palavra história. Em que «dado momento» estamos nós então? Certamente num momento mesclado, de crise e de hegemonia: ao mesmo tempo que é investida de um poder sempre maior – perícia, predição, jurisdição –, a disciplina histórica parece estar a perder a sua coerência epistemológica. Ora, enquanto duvida dos seus métodos e dos seus intentos, a história não cessa de alargar o campo das suas competências: a arte e a imagem, doravante, estão na ementa – e ainda bem – do «ogre historiador»35. Mas, se a história da arte contém, no seu próprio enunciado, a operação de «retorno crítico» de que falei – retorno crítico da arte sobre a história e da história sobre a arte, retorno crítico da imagem sobre o tempo e do tempo sobre a imagem –, não é então satisfatório considerar a história da arte como um ramo


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particular da história. A pergunta a fazer deveria ser antes esta: fazer história da arte será mesmo fazer história, no sentido em que é habitualmente entendida e praticada? Não será antes modificar profundamente o esquema epistémico da própria história? Hans Robert Jauss questionava-se um dia «se a história da arte pode verdadeiramente fazer algo mais do que tomar de empréstimo à história o seu próprio princípio de síntese»36. Penso que a história da arte deve, de facto, fazer outra coisa: aliás, já se mostrou capaz disso num momento – que ficou marcado pelos nomes de Wölfflin, de Warburg, de Riegl – em que, simultaneamente, fornecia à história um modelo de rigor analítico e de invenção conceptual. A história da arte mostrava-se então, na mesma medida, filosoficamente audaciosa e filologicamente rigorosa e foi provavelmente por isso que pôde desempenhar, aos olhos das disciplinas históricas em geral, esse papel «piloto» que a linguística assumiu depois, na época do estruturalismo incipiente. Uma outra razão para recusar o juízo de Jauss é que o «princípio de síntese» que a história poderia hoje manifestar – e que a história da arte poderia tomar de empréstimo – não existe verdadeiramente. Michel Foucault enunciou-o de forma clara: «[A] mutação epistemológica da história ainda hoje não está concluída. Porém, não data de ontem»37 – que é uma maneira de dizer o eterno retorno e o anacronismo das questões fundamentais em história.38 Eis-nos, pois, na exacta dobra da relação entre tempo e história. Não será, desde logo, à própria disciplina histórica que se deve perguntar o que quer fazer desta dobra: ocultar o anacronismo que dela emerge, e com isso esmagar surdamente o tempo sob a história – ou então abrir a dobra e deixar florir o paradoxo?


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