História da Virilidade I Volume dirigido por Georges Vigarello
A Invenção da Virilidade. Da Antiguidade às Luzes.
OBRA PUBLICADA COM OS SEGUINTES APOIOS Centro Nacional do Livro - MINISTÉRIO DA CULTURA FRANCÊS Programa de Apoio à Publicação - INSTITUT FRANÇAIS OUVRAGE PUBLIÉ AVEC LES SOUTIENS SUIVANTS Centre national du livre - MINISTÈRE FRANÇAIS CHARGÉ DE LA CULTURE Programme d’aide à la publication - INSTITUT FRANÇAIS
TÍTULO original Histoire de la virilité 1. L’invention de la virilité. De l’Antiquité aux Lumières COORDENAÇÃO DA SÉRIE DE 3 VOLUMES Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello COORDENAÇÃO DO VOLUME i Georges Vigarello AUTORES Élisabeth Belmas, Christian Biet, Hérvé Drévillon, Michel Delon, Bruno Dumézil, Arlette Farge, Lawrence Kritzman, Nadeije Laneyrie‑Dagen, Jean‑Marie Le Gall, Rafael Mandressi, Stanis Perez, Maurice Sartre, Claude Thomasset, Jean‑Paul Thuillier e Georges Vigarello TRADUÇÃO Anabela Carvalho Caldeira e José Alfaro REVISÃO Nuno Quintas CONCEPÇÃO GRÁFICA Rui Silva | www.alfaiataria.org fotografia capa e contracapa Dinis Santos | www.alfaiataria.org PAGINAÇÃO Rita Lynce IMPRESSÃO Guide – Artes Gráficas COPYRIGHT © 2011 Éditions du Seuil © 2018 Orfeu Negro 1.ª EDIÇÃO Lisboa, Novembro 2018 dl xxxxxx/18 isbn 978-989-8868-37-4 ORFEU NEGRO Rua Silva Carvalho, n.º 152 – 2.º 1250‑257 Lisboa | Portugal | +351 21 3244170 info@orfeunegro.org | www.orfeunegro.org
Índice
Prefácio 13 Alain Corbin, Jean‑Jacques Courtine e Georges Vigarello
INTRODUÇÃO A virilidade, da Antiguidade à modernidade 17 Georges Vigarello
Parte I Virilidades gregas 23 Maurice Sartre
Andreia: própria do macho 26 A educação do macho: a família, a cidade 28 O agoge espartano: modelo ou excepção? 29 A escola ateniense: do pedónomo ao sofista 37 Iniciações masculinas: o cidadão invertido 41 O macho entre os do seu sexo 46 A imagem da beleza masculina 46 Virilidade e elegância 49 O macho e a competição 51 Uma imagem assimétrica da relação sexual 53 O macho e as mulheres 64
Parte II Virilidades romanas. Vir, virilitas, virtus 75 Jean‑Paul Thuillier Questões de léxico 77 Um homem, um verdadeiro (verus vir) 77 É o meu homem 79
Meu filho, tu serás um homem Comportar‑se como um homem
79 81
Do bom uso da virilidade 84 «Penetrar e não ser penetrado» 86 Penetrar, mas quem? 90 Estatuto do «penetrado» 93 Retrato físico do homem viril 97 Tez e corpos bronzeados 97 Um corpo de atleta 99 A virilidade do pêlo 107 Viril mas belo 114 Retrato moral do romano viril 115 O legionário: virtus ou a coragem na guerra 116 O macho dominante: summus imperator 118 Pudor 120 Fidelidade viril 122 Por uma virilidade moderada? 123
Parte III O universo bárbaro. Mestiçagem e transformação da virilidade 127 Bruno Dumézil Olhares romanos sobre o macho bárbaro 129 Viril porque guerreiro 130 Viril porque peludo 131 Viril porque casto 132 Viril porque preguiçoso 133 Os marcadores internos da sociedade bárbara 135 O equipamento que faz o homem 135 Um legado conceptual misto 138 Uma virilidade separada da sexualidade? 140 Mulheres viris 142 Uma virilidade à prova de parentesco 144
Do guerreiro ao cavaleiro 146 A mutação carolíngia 146 A primeira síntese feudal 149
Parte IV O medieval, a força e o sangue 155 Claude Thomasset A força, modelo genérico 157 Guilherme e a força em combate 157 O vilão 159 Homens e mulheres 160 O urso, animal símbolo 161 O urso antes da literatura 161 O urso na literatura 162 O urso e a força do guerreiro 164 O herói fundador de uma dinastia 164 Sexualidade do urso: ameaça para o homem… 166 A coragem 167 A fanfarronice 167 O gab 168 O vinho, os homens, a taberna 170 Façanhas eróticas 171 A erótica dos fabliaux 172 O juramento 175 O ferimento e a morte 175 O ferimento ou a força abolida 175 A morte heróica 178 Outra morte 181 O sangue 184 O sangue e o sémen, em medicina e nas enciclopédias 184 Sangue e hereditariedade 186 A formação do embrião 187 Virilidade e fisiognomonia 190 A imagem do sangue 193 Como o rapaz se torna um homem 194
Parte V O mundo moderno, a virilidade absoluta (séculos xvi‑xvii) 199 A virilidade moderna: convicções e problematizações 201 Georges Vigarello A invenção da «delicadeza» 202 Virilidade ameaçada? 205 Virilidade e autoridade 207 A virilidade e os seus «outros». A representação da masculinidade paradoxal 211 Lawrence D. Kritzman Rabelais e a inquietação viril 213 Uma superioridade afirmada 214 Aporias 216 O casamento e o medo de Panurgo 217 O equilíbrio e a saúde, os infortúnios do excesso 218 Brasões do corpo e desejos ilusórios 224 O sujeito «dividido» 224 A ameaça do tempo 225 O objecto instável 227 Montaigne e a «ficção» do viril 229 «Eludir» a velhice 230 O poder da imaginação 231 A virilidade dos clérigos 235 Jean‑Marie Le Gall O clérigo efeminado: um argumento polémico 238 Recusa do mal, recusa do macho 242 A virilidade clerical 246 O calor dos homens. Virilidade e pensamento médico na Europa 255 Rafael Mandressi Idade viril e compleição 258 Potência, impotência 262 «Testemunhas» da virilidade e consequências da sua perda 269
Sobre lebres e homens, ou sobre a inversão sexual 274 Ser e tornar‑se 278 Luís XIV ou a virilidade absoluta? 281 Stanis Perez A aprendizagem da virilidade absoluta (1638‑1666) 285 Apollo Regnante (1667‑1693) 298 Uma virilidade em crise (1693‑1715) 307 Uma virilidade absoluta? 314 Do guerreiro ao militar 317 Hervé Drévillon A fábula de cavalaria 318 As fortunas da virtude 327 A guerra! 337 Do viril ao masculino 343 Equivocidade dos géneros e experiência teatral 353 Christian Biet O «homem‑em‑geral» e o homem‑viril, definições e ambiguidades 353 A virilidade fingida: uma característica dominadora excessivamente proclamada 363 Comédia do casamento, experimentação teatral e virilidade virtual 366 Virtualidade viril, homossociabilidade e homossexualidade 370 As mulheres também… 375 Tragédia e virilidade dos heróis (e das heroínas) 383 A espada e a virilidade aristocrática 386 Ximena, herói superviril? 388 A experimentação do neutro 391 O testemunho da pintura 395 Nadeije Laneyrie‑Dagen O corpo masculino, única imagem de Deus 395 Rubens e a geometria do homem 399 O homem, esse outro leão 400 A coragem viril: uma significação múltipla 402 A braguilha… 403 … e o estômago 405
A pose: o início de uma evolução? 406 A espada e a luva 408 A perna e a barriga da perna 409 Animais de companhia: o cavalo… 413 … e o cão 416 O homem comum: o comportamento em sociedade 419 O marido e a sua mulher 423 O homem e a sua amante 427 O pai dos seus filhos 430 O viril e o selvagem das terras das Descobertas 433 Georges Vigarello A «descoberta» do selvagem e a virilidade impossível 434 O nativo desfigurado 435 O nativo cruel 437 O nativo dócil 438 A «modernidade» e a revelação de uma virilidade «primitiva» 439 «Crueldade» dos Europeus, «falsa inocência» dos Índios 440 O «corpo de prazer» 441 Montaigne, «valentia» original, «valentia» dos Índios 443 O universo clássico e o horizonte antigo 445 O Iluminismo e o mito viril 447 A virilidade e a ideologia regeneradora 448 Uma hierarquia das civilizações? 449 A questão da «fecundidade» 451
Parte VI As Luzes e a virilidade inquieta 455 Virilidades populares 457 Arlette Farge Modelos? 458 Virilidade na primavera da vida 463 Um dia é mesmo preciso assentar: a virilidade no casamento 469 Virilidade e violência: um par indissociável? 474 O medo da impotência e de ser enganado 478
Jogos de exercício, divertimento e virilidade 483 Élisabeth Belmas Jogos de guerra e de confronto para homens rijos e de cabelos ao vento 484 A «delicadeza dos gestos» viris 494 Permanências e rupturas: lazeres nobiliários e jogos de competição populares 500 Homens de ficção 505 Michel Delon
Notas 539 autores 599
Prefácio
A virilidade é marcada por uma tradição imemorial: é não apenas o mas‑ culino, mas a sua própria natureza e a sua parte mais «nobre», se não a mais completa. A virilidade seria virtude, concretização. A virilitas romana, da qual a palavra deriva, permanece um modelo, com as suas qualidades bem declinadas: sexuais, as do marido «activo», possante, procriador, mas também ponderado, vigoroso e contido, corajoso e comedido. O vir não é simplesmente homo, o viril não é simplesmente o homem, vai mais além: é um ideal de força e virtude, de segurança e maturidade, de certeza e domi‑ nação. Daí essa situação tradicional de desafio: almejar a «perfeição», tanto a excelência como o «autocontrolo». Qualidades numerosas e entrelaça‑ das: a ascendência sexual combinada com a ascendência psicológica, a autoridade física com a autoridade moral, a coragem e a «grandeza» acom‑ panhando a força e o vigor. Tudo isto materializado numa conhecida gale‑ ria de heróis – os grandes homens de Plutarco, por exemplo, de Alexandre a César, de Teseu a Pompeu. Tradição sobretudo severa, em que a perfei‑ ção está sempre ameaçada por uma qualquer insuficiência: dúvida insi‑ diosamente insinuada nas certezas, fraqueza dissimulada que pode comprometer almejados sucessos. A magia da aiguillette, praticada pelos bruxos do nosso mundo rural e que visa anular a potência dos futuros maridos, não é estranha ao sentimento de fracasso que o filho mais velho tenta tradicionalmente infligir ao mais novo. A perfeição viril implica inevitavelmente exigências: o poder extremo não pode ignorar a ilusão, a força não pode ignorar a fragilidade. A inquietação paira sobre essa exce‑ lência postulada. Tradição no entanto mais complexa, incapaz de fixar a virilidade numa história imóvel. As qualidades vão‑se recompondo com o tempo. A socie‑ dade mercantil não poderia ter o mesmo ideal viril que a sociedade militar. O cortesão não poderia ter o mesmo ideal viril que o cavaleiro. O homem
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de corte, por exemplo, vê‑se obrigado a acrescentar elementos de elegân‑ cia graciosa aos velhos valores abruptos do combate. Não há, todavia, nenhuma perda de dominação nem de coragem neste cortesão que alguns contemporâneos podem por vezes acusar de efeminação. O seu ideal viril, em contrapartida, transformou‑se, ainda que nos pareça distante a sua afeição altiva pelas questões de honra, a sua maneira de desafiar friamente e sem hesitar a morte recorrendo à espada. Sem hesitação, naturalmente; os cortesãos de Pierre de Brantôme, no século xvi, idealizam uma virili‑ dade implacável: pressupõe‑se que a potência sexual se alie a uma ascen‑ dência absoluta sobre a mulher e que a expressão requintada nada retire ao esperado valor do combate. A virilidade impõe‑se aqui e exibe‑se, ainda que repensada, alterada. É justamente essa transformação do ideal viril nas sociedades ociden‑ tais que esta obra apresenta: essa expectativa de perfeição, esse modelo de ascendência e de dominação, ele próprio sujeito a inflexões segundo as culturas e os tempos. É a vontade de introduzir a história no que parece não a ter que está na base do nosso projecto: uma história alojada no cora‑ ção das práticas quotidianas e das sociabilidades, uma história que revela as características de uma sociedade, até de uma política, de uma econo‑ mia. É também a vontade de mostrar como, desde a Antiguidade, até na arqueologia das nossas sociedades, a virilidade pode ainda variar segundo os universos sociais, as subculturas, o ideal urbano ou rural, guerreiro ou letrado. A virilidade é histórica como é, inevitavelmente, antropológica. Mas subsiste uma interrogação, e bem actual. Diz respeito ao próprio conteúdo da virilidade e explica em parte a origem desta obra. A virilidade não poderia hoje impor uma qualquer ascendência absoluta. A dominação masculina persiste mas tende a perder o seu sentido, enquanto a igualdade vai ganhando terreno. A «autoridade» do homem sobre a mulher, por exem‑ plo, não teria qualquer cabimento, tal como a pretensa superioridade do macho sobre as figuras do enfraquecimento viril ou da efeminação. As legi‑ timidades antigas acabam por roçar o ridículo. O modelo escapa, apaga‑se, condenado a nostalgias irrisórias até invalidar a própria palavra virilidade. Daí este imenso percurso até ao coração da nossa história em que a tradição
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do viril, depois de muitas inflexões, pode hoje arrumar‑se num qualquer conservatório anacrónico e fossilizado de decrépitos ideais, ou inventar novas identidades e prosseguir as suas metamorfoses. Alain Corbin Jean‑Jacques Courtine Georges Vigarello
Introdução
A virilidade, da Antiguidade à modernidade Georges Vigarello
A palavra grega andreia diz já o que o termo latino vir estabelecerá, e de forma duradoura, em muitas línguas ocidentais (virilità, virilité, virility, virilidade): princípios de comportamentos e de acções que, no Ocidente, designam as qualidades do homem completo, por outras palavras, o mais «perfeito» do masculino. A andreia grega, com as suas referências à guerra, à valentia, à dominação sexual, é um quadro de valorização: não o homem, mas aquele que «vale» mais, não o que representa o sexo varonil, mas o que representa da melhor forma possível o masculino. O tema grego é tam‑ bém uma matriz, um cruzamento de pólos, transformados noutros tantos pólos fundadores: a força ligada à coragem, a afirmação pessoal ligada à potência sexual, um modo de reconhecimento ligado a um modo de for‑ mação. O que ainda permite hierarquizar: por exemplo, estigmatizar os «medrosos», os hesitantes, os timoratos, insistir cada vez mais na neces‑ sidade de fortificar e de educar. O modelo atravessa o tempo. Poderíamos até pensar numa longínqua filiação entre o jovem espartano, com uma longa formação para o combate, convicto de obter o prestígio das suas qualidades na luta, e o jovem cavaleiro medieval, com uma formação tam‑ bém longa, igualmente convicto de se enobrecer através das vitórias nos combates. Uma exigente aprendizagem dos códigos da força e da dominação mantém‑se por muito tempo como uma das primeiras marcas da constru‑ ção viril: poder e choque. A aproximação poderia até ser levada mais longe, confirmada pelas queixas dos higienistas do século xviii: o modo como eles assimilam a «perda» de virilização e a «perda» de força na educação das Luzes, o paralelismo estabelecido entre um pressuposto esquecimento do endurecimento e um pressuposto esquecimento dos modelos antigos – aquelas «belas estátuas» a que a Éducation physique des enfants do genebrino Ballexserd, em 1762, atribui um verdadeiro «carácter de virilidade», apesar de os estatuários do tempo não as conseguirem reproduzir sem enganar o
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observador ou «exagerar a natureza»1. Um ideal idêntico uniria assim as expectativas dos higienistas modernos e as dos Gregos antigos. Observação naturalmente precipitada, mesmo caricatural. O lamento de Ballexserd diz mais do que parece: o incontornável impacto do tempo no modo como as referências se constroem e se difundem; por exemplo, a inflexão dessas mesmas referências na duração. Uma coincidência entre os valores físicos, intelectuais ou morais da Esparta de Licurgo e da Genebra de Jacques Ballexserd ou de Jean-Jacques Rousseau seria evidentemente impossível. As mudanças atravessam desde logo o próprio modelo grego. No século v a. C., Aristófanes queixa‑se de um enfraquecimento da for‑ mação viril, da preferência pela indolência, pelas discussões «inúteis», do recuo do exercício numa educação que ensina «a geração actual a abafar ‑se nos mantos»2. O que traduz – não nos deixemos enganar – um senti‑ mento de ameaça constante que pesa sobre a força e a perfeição: poder tanto mais vulnerável quanto aspira ao ideal. O que traduz também uma mudança inevitável no que toca às referências e aos objectivos. Os sofistas, contemporâneos de Aristófanes, são os autores de uma autêntica inovação: o lugar concedido às trocas e às interrogações, a insistência na questão do julgamento individual, a atenção muito particular concedida aos questio‑ namentos e às objecções. O modelo viril muda, sem que o referencial do vigor e da dominação seja abandonado. Inúmeras são as rupturas no seio desse mesmo referencial. Incontor‑ nável, desde logo, é a que é trazida por um universo cristão em que se con‑ dena a homossexualidade e se valoriza uma castidade. Marcante ainda é a introduzida pelo universo medieval, em que a imagem da virilidade, em particular a do cavaleiro, se torna indissociável do poder adquirido a cavalo, em que o tema do sangue, sempre, ganha um valor ímpar, indica‑ dor de temperamento e de força, garante de filiação e de hereditariedade. Enquanto outros modelos se afinam ainda na Idade Média: a referência ao impacto cortante das lanças e do ferro, ao valor simbólico do fasto alimen‑ tar, ao comer e beber à farta, à interminável aproximação entre a arte da equitação e a arte do amor. O tradicional domínio sugere aqui novas ima‑ gens, a força física novos instrumentos. Sistematiza‑se um universo em
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que a cavalaria cruza, não sem complexidade, as referências ao vigor, à vio‑ lência, à honra, à cortesia. A modernidade marca, ainda mais, uma ruptura muito particular: pri‑ meiro nos modos de afirmação, depois nos modos de inquietação ou de apreensão. O cortesão de Baldassar Castiglione, descrito em 15283, já não é o chevalier: é o cavalier. Tem de associar força e destreza. Deve guiar o seu cavalo com finura e firmeza, obrigá‑lo às voltas, às exibições, também às danças, e já não apenas à potência do embate. A corte dos séculos xvi e xvii amplia as etiquetas, cultiva posturas, flexibiliza os corpos, reforçando o jogo da aparência quando antes dominava uma arte mais guerreira. O porte distinto sobrepõe‑se às antigas grosserias, a leveza às antigas rusticidades. O viril cultiva agora o controlo acima de tudo. Os exercícios confirmam‑no também, não visando já apenas o treino militar, mas promovendo a desen‑ voltura, a compostura, a relevância dos acessórios distintos – tudo objectos já hoje cem vezes explorados pelos trabalhos sobre o universo do corpo4. A virilidade deve aliar a agilidade elegante ao vigor trabalhado, o porte refinado à potência incontestada. O que não deixa de reavivar a inquietação sobre o viril. Thomas Artus, fazendo da corte de Henrique III um improvável lugar de «hermafrodi‑ tas»5 e de efeminados, fustiga o excesso de roupa branca, de perfumes, de cuidados cosméticos ou de refeições requintadas. Um inexorável enfra‑ quecimento esperaria o cortesão. O próprio Montaigne lamenta as novas armas, aquelas em que a arte da espada, a primazia inédita dada ao tres‑ passe e à ponta devido ao abandono da armadura e da sua protecção, leva‑ ria ao triunfo da astúcia, a um recuo da força, a um debilitar das valentias e dos vigores. A «ciência» das armas apagaria o valor dos corpos. A «honra dos combates» já não derivava do «zelo da coragem»6, nem a «habili‑ dade dos golpes» da «virtude» do coração. Tantas palavras confirmando o sentimento de ameaça ou de insuficiência que pesam tradicionalmente sobre a virilidade. Tantas palavras confirmando, mais ainda, inevitáveis inflexões das marcas referenciais ao longo do tempo: as referências à força, à coragem, à dominação mudam com as técnicas, as culturas, os disposi‑ tivos sociais.
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A modernidade confronta‑se sobretudo com uma outra evidência, que agora se torna mais sensível. A complexidade social, a diversidade dos papéis, a relativa autonomização de certos meios relativamente a outros levam a inventariar formas diferentes, e no entanto contemporâneas, de virilidade. Existe por exemplo uma virilidade para o clérigo: macho «con‑ tinente», mas macho «condutor» de rebanho, se não soldado de Cristo. Ela afirma‑se sempre mais no mundo clássico, com o seu valor de exem‑ plaridade, as suas referências mais mentais que físicas, as suas convicções quase combatentes. Tal como, com os exércitos permanentes e o seu peso demográfico crescente, também se acentua uma «virilidade» militar espe‑ cífica, progressivamente independente dos velhos valores aristocráticos. Há uma exigência funcional que aqui se impõe, com as suas técnicas, as suas eficácias, as suas dominações, os seus códigos de violência, cujas lógicas já não são as da nobreza, ainda que possam dizer respeito à própria elite. Tal como existe por fim, no universo moderno, uma virilidade popu‑ lar bem específica, a dos jovens, cujo impetuoso vigor nos é revelado por alguns testemunhos: a importância dada à conquista violenta, a assimila‑ ção do feminino à «caça», um código de honra baseado na «captura» e no seu reconhecimento jocoso. É impossível, por outras palavras, não encarar a virilidade nas suas versões plurais em que a força e a dominação existem segundo referências contrastadas. Mas impossível é também não encarar uma outra ruptura, sem dúvida essencial em meados do século xviii, aquela que diz respeito à própria dominação. As peças de Denis Diderot, os textos de Rétif de la Bretonne, os quadros de Jean-Baptiste Greuze revelam uma mesma cena de rivalidade entre pais e filhos. Fazem‑no de uma maneira nova: opor o peso das instituições à procura individual de autonomização. Fazem‑no, sobretudo, sublinhando a via possível para essa mesma autonomização. A virilidade pode afirmar‑se contra o constrangimento das tradições. Ela pode exprimir‑se visando a antiga ascendência, abolindo legitimida‑ des. O que é mostrado pela exclamação exasperada de O Filho Natural: «Pais! pais! Não há pais… só há tiranos.» Daí o delinear de uma outra «legitimi‑ dade», bem diferente: a das escolhas feitas pelos filhos. A originalidade
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não tem directamente que ver com a existência de uma afirmação inédita. Resulta, em primeiro lugar, do modo como esta se constitui: destituir para existir. Em segundo lugar, e mais ainda, da própria maneira como ela acaba por se formular: a insistência deliberada no questionamento de uma viri‑ lidade dominadora e absoluta. Nada mais que a recusa da autoridade omnipotente, a que impõe a sua existência sem apelo nem agravo: a sua denúncia como inaceitável. Daí a procura totalmente inédita, pelo menos no imaginário, de virili‑ dades ainda mal formuladas, de descrições físicas de contornos inespera‑ dos, também de formas que misturam força e fragilidade: a do «rosto de Adónis num corpo de Hércules» em A Princesa da Babilónia, evocada por um Voltaire que insiste na aliança da majestade e das graças, da força e da beleza até ao «desconhecido»; a de Querubim em As Bodas de Fígaro, evo‑ cado por um Beaumarchais que insiste no pendor «sensível e doce» de um ser que no entanto está destinado a tornar‑se «vivo e fogoso». Uma virili‑ dade nova, totalmente inédita até, tenta formular‑se longe das forças e das dominações passadas. Mas é importante introduzir uma nuance. Essa virilidade em vias de formulação não é procurada num diálogo com a mulher. As personagens femininas estão estranhamente ausentes ou são passivas nas pinturas de Greuze, nos romances de Voltaire ou nas peças de Diderot. As reformu‑ lações não estão associadas à sua presença ou às suas interrogações. Os questionamentos não vêm delas, mas de uma nova visão do poder. Ou seja, a virilidade tradicional é profundamente abalada pela cultura das Luzes. Não o é ao ponto de transformar o estatuto do feminino.