João Nicolau leva o caixeiro-viajante que canta a Locarno [PT]

Page 1

João Nicolau leva o caixeiro-viajante que canta a Locarno publico.pt/2019/08/11/culturaipsilon/noticia/joao-nicolau-leva-caixeiroviajante-canta-locarno-1883031 Jorge Mourinha em Locarno

João Nicolau odeia carros. “Odeio carros, é um suplício filmá-los”, diz enquanto enrola um cigarro. Mas fez um filme que se passa, literalmente, na estrada, dentro de um carro... “Porque o carro e as viagens de auto-estrada, as viagens longas que fazemos sozinhos, são momentos em que nos abandonamos, não temos ninguém para interagir. O carro é como estar na cama a ler, o momento em que estamos abandonados a pensar noutra coisa. E eu queria observar um personagem nesta situação. Um homem numa situação desprovida de artifício.” Essa personagem é o “herói” de Technoboss, terceira longa-metragem de ficção de Nicolau (Lisboa, 1975), que tem hoje estreia mundial na secção competitiva do Festival de Locarno. Luís Rovisco, responsável comercial de uma firma de equipamentos de segurança, é “um tipo que está mortinho pela reforma, que está bem consigo próprio, que se diverte a trabalhar...” Um homem que podia ser um português-modelo, desenrascado, auto-suficiente, boa onda, mas que “é um fim de qualquer coisa,” como explica o realizador. “Mesmo a profissão dele, que formalmente se chama representante comercial, mas que antes chamávamos de caixeiros-viajantes, é algo que já está algo em desuso, porque se enviam catálogos pela net, as coisas estão empresarialmente cada vez mais concentradas em grandes grupos…” Eis, então, o ponto de partida de Technoboss, que pega numa personagem aparentemente banal para a celebrar, sem saudosismos mas com truculência, num filme que é tudo menos banal. Não é exactamente uma surpresa vindo de João Nicolau, cujas

1/3


duas anteriores longas, A Espada e a Rosa (2010) e John From (2015), tinham já de si elementos de fantasia (desde a viagem de caravela dos piratas do Plutex no primeiro filme aos sonhos de paixão adolescente de John From).

Uma estreia, um musical Mas isso não torna Technoboss menos surpreendente: é um filme “analógico, artesanal”, que pede ao espectador que embarque nesse jogo de faz de conta. É também um filme musical com canções de Pedro da Silva Martins, Luís José Martins e Norberto Lobo, onde de repente um coro alentejano ou uma banda de heavy-metal vêm “responder” às divagações canoras do seu herói. Herói esse que é interpretado por alguém que nunca tinha feito um filme: o jurista e gestor Miguel Lobo Antunes, ex-director do CCB e da Culturgest. Um actor que nunca tinha representado, que surgiu por acaso. “Fizemos um casting com todos os actores portugueses daquela faixa etária, e também com muitos cantores”, diz o realizador, sem que essa rede encontrasse o Luís Rovisco ideal. “Aconteceu estar numa festa em que vi o Miguel Lobo Antunes a dançar, e ao olhar para ele havia ali qualquer coisa de indizível que me fez ter vontade de falar com ele. Ele riu-se imenso com a minha ideia, aceitou vir ao casting, trabalhou imenso e divertiu-se imenso, movido pela curiosidade de ter passado a vida toda a lidar com a criação artística, mas conhecendo muito pouco dos processos modernos de criação. E ainda bem que assim foi.”

E um musical porque este filme existe muito na cabeça do seu herói em viagem pelo país, com o carro a ser “aquela cápsula de intimidade em que nos abandonamos ao nosso pensamento”. Curiosamente, embora toda a ideia subjacente a Technoboss não implicasse ser um filme musical, uma vez tomada a decisão impôs-se correr riscos que 2/3


Nicolau nunca tinha tomado anteriormente. “Primeiro, queríamos fazer canções em português e, apesar de eu também ser músico, senti que não tinha unhas para tocar essa guitarra e que seria enriquecido pelo trabalho de outros. Por isso é que não contratei só um compositor, mas sim o Pedro da Silva Martins e o Norberto Lobo, e depois o Luís José Martins, que começou por fazer só a direcção musical e acabou também por escrever, e quis que eles trabalhassem juntos. E as canções estavam todas escritas antes da rodagem. Aliás, pela primeira vez trabalhei as músicas ao mesmo tempo que o argumento. Houve inclusive cenas no filme que foram propostas pelos músicos, a partir de ideias que eles iam tendo para canções.” Agora, é a estreia em Locarno, esta tarde de domingo (na primeira de três exibições), numa situação que para Nicolau é “inédita”. “Nunca me vi a falar de um filme tão pouco tempo depois de o ter acabado, sem o ter ‘descascado’.” Nervoso, sim, mas mais pelos actores, “que ainda não viram o filme – o Miguel não quis ver nenhumas das montagens de trabalho, fez questão de só o descobrir numa sala de cinema”. Quanto ao resto, João Nicolau convive bem com as reacções bastante diferentes que os seus filmes costumam suscitar. “Sei que não sou um cineasta de eficiência, não é esse o grãozinho que eu tenho a acrescentar. Interessa-me cada vez mais, no cinema que gosto de ver e nos filmes que faço e quero fazer, que haja uma liberdade de tempo para o espectador habitar um tempo, que certa ou erradamente anda um pouco sonegado nos filmes que por aí vemos. Fazemos filmes para serem vistos e só dia 11 é que ele vai fazer sentido, e aí vai ganhar a vida própria dele.”

3/3


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.