Em Roterdão, Felipe Bragança reflecte sobre a identidade brasileira [PT]

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Em Roterdão, Felipe Bragança reflecte sobre a identidade brasileira publico.pt/2020/01/24/culturaipsilon/noticia/roterdao-felipe-braganca-reflecte-identidade-brasileira1901462 Jorge Mourinha, Renata Monteiro, Maria Lopes, Ana Maia, Lusa

Em 2019, o brasileiro Felipe Bragança mostrava no festival de Roterdão Tragam-me a Cabeça de Carmen M., co-realização e co-autoria da actriz portuguesa Catarina Wallenstein. Nessa altura, Bragança explicou que esse filme, uma reacção “a quente” à eleição de Jair Bolsonaro, nascera a partir da colaboração entre ambos num projecto anterior rodado em Portugal. Em 2020, é com esse outro filme, Um Animal Amarelo, que Bragança regressa ao festival holandês — e embora o subtítulo do filme seja Um Filme Brasileiro, faz uma peculiar rima com o português Mosquito, de João Nuno Pinto, com o qual concorre na competição Big Screen. A ligação faz-se através de Moçambique (Bragança filmou também naquele país africano), mas, sobretudo, pelo tema da colonização e da escravatura, com Um Animal Amarelo (co-produzido pela portuguesa O Som e a Fúria) a debruçar-se sobre as consequências do antigo império português para a própria identidade brasileira.

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Na sua quarta longa-metragem, Felipe Bragança (Rio de Janeiro, 1980) propõe uma fantasia surreal tropicalista-antropofágica que reivindica abertamente a herança do escritor Mário de Andrade (autor de Macunaíma) e do movimento modernista brasileiro. É um filme, nas palavras de Bragança ao PÚBLICO, “transatlântico, transgénero, transcultural”, uma “reflexão sobre os imaginários da identidade”, acompanhando, entre o Rio de Janeiro, a Cidade da Beira e Lisboa, a história de um cineasta falido e falhado (o actor Higor Campagnaro) que sonha com um fresco histórico sobre a história da sua família.

Filme decantado Bragança, que prepara uma nova adaptação ao cinema de Macunaíma, define Um Animal Amarelo à luz de um verso do escritor, que morreu em 1945: “Eu sou 300.” “A nossa identidade [brasileira] é atravessada por muitas coisas que não vamos nunca conseguir mapear”, diz o cineasta. “Houve um momento em que a ideia da mestiçagem cultural foi vista como algo que sintetizava e resolvia todos os nossos problemas. E o século XX inventou a celebração da mistura. Mas provou-se que isso não era uma solução. O que eu acho bonito na antropofagia do modernismo é que o movimento considera que a identidade não vai estar nunca fechada, vai estar sempre a assimilar. O Brasil é a síntese impossível de um processo histórico que envolveu Portugal e África. E tudo o que não foi bem resolvido nessa síntese a gente vê no Brasil.”

Ler mais “O importante é não matar a gente. Se não matar a gente, tá bom” A paixão segundo Raduan Nassar Cristalizando essa impossibilidade numa personagem que “não é ninguém que você queira admirar”, o cineasta que viaja em busca de riquezas pelo triângulo BrasilMoçambique-Portugal transportando o peso dos antecedentes familiares, Um Animal Amarelo foi sendo decantado ao longo de sete anos. Bragança “tinha uma primeira versão do roteiro que era gigantesca e que sabia que nunca ia ser filmada”, desbastada com a ajuda de João Nicolau, autor de Rapace e Technoboss (“O meu produtor português, Luís Urbano, teve uma boa intuição de que ele entenderia o que eu estava tentando criar”), e nascida num momento “economicamente forte no Brasil”, no qual seria possível “conseguir pensar” o que lhes “faltava dentro de um momento de optimismo”.

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Foto O filme é uma “reflexão sobre os imaginários da identidade”, acompanhando, entre o Rio de Janeiro, a Cidade da Beira e Lisboa a história de um cineasta falido e falhado dr

Mas Um Animal Amarelo atravessou o “golpe” que derrubou Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro, e foi mudando. “O filme partiu de um certo mal-estar que eu tinha já há muito tempo quanto a tentar perceber o processo histórico e identitário brasileiro”, como explica o realizador. “No fundo, [ao longo dos anos] o pacto social brasileiro nunca foi revisto — as questões do racismo, do massacre indígena, do machismo inerente... Com amigos meus, eu costumo dizer que estávamos a ter discussões de supervanguarda, mas estávamos a esquecer muito a retaguarda. Há sete anos, sentia um mal-estar de alguma coisa que não tinha eclodido; nos últimos dois anos esse Brasil profundo, todos esses fantasmas, essas coisas mal resolvidas dessas cicatrizes históricas, brotaram de maneira muito mais forte. Percebi que coisas que eu achava que iam ser mais insinuadas no filme passariam a ser muito mais evidentes: afinal, estamos num país que quer voltar ao século XIX, a um Brasil sem miscigenação, que considera que a cultura indígena e negra não faz parte da identidade brasileira. A turma de Bolsonaro tem um projecto de país branco cristão conservador de identidade ibérica.” Ora, Felipe Bragança acha que não somos nós a escolher a nossa identidade. “Parece que a nossa história é uma escolha, mas não, é uma maldição. As hipóteses de síntese da identidade brasileira são impossíveis.”

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