Roterdão: «Um Animal Amarelo» ruge na denúncia da automutilação cultural do Brasil [PT]

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Roterdão: «Um Animal Amarelo» ruge na denúncia da automutilação cultural do Brasil c7nema.net/entrevista/item/52531-roterdao-um-animal-amarelo-ruge-na-denuncia-da-automutilacaocultural-do-brasil.html

Estamos ainda no alvorecer de 2020, mas a língua portuguesa já está o ocupar espaços nos grandes festivais de cinema do planeta.

Como é o caso de Roterdão, que abriga uma ciranda de títulos de Portugal e do Brasil, com direito a uma reflexão sobre identidade capaz de exorcizar os fantasmas coloniais: Um Animal Amarelo, cercado de augúrios dos bons. A cada dia do evento, que segue até domingo, uma nova crítica elogiosa ou, ao menos, uma entrevista curiosa diante do engenho narrativo armado pelo realizador Felipe Bragança (do belo Não Devore meu Coração) flana pela "world wide web", a indicar a força plástica desta imersão do realizador carioca por veredas d'África. Há mais uma sessão da produção esta noite, às 22h, no Willem Burger Zaal, grande auditório de 400 lugares, no coração da maratona holandesa. É uma projeção conectada à seção Big Screen Competition, seleção de nove filmes de múltiplos continentes, em estreias mundiais, focada em trabalhos de realizadores cujos filmes já passaram pelo evento no início das suas carreiras e que estão agora a afirmarse nas suas trajetórias autorais. O enredo encampado por Bragança desenha-se sobre uma encruzilhada que nos une a Moçambique e à nossa antiga metrópole, num torvelinho de débitos históricos e cicatrizes existenciais. Um Animal Amarelo é hoje encarado como uma das grandes apostas brasileiras deste ano, dada a solidez do currículo de exposição internacional do seu realizador, nas suas dobradinhas de direção com (a sempre afiada) Marina Meliande – vide A Fuga da Mulher1/3


Gorila, troféu Aurora de Tiradentes em 2009 -, seja em voos solos. Agora, o foco de Bragança está na jornada por terras lusófonas de Fernando (Higor Campagnaro, do ótimo O que Resta), um cineasta de 30 e poucos anos, liso, leso, duro e louco nas suas finanças, a fim de desbravar nossas raízes no Além-mar. Uma obsessão que vai levar a personagem à geografia moçambicana em busca de um norte ou de algum entendimento acerca dos dilemas do Brasil.

Qual é o sentimento de desterro, de diáspora e de pertença que rege os passos da língua portuguesa na boca do seu protagonista em Um Animal Amarelo? Este filme, de alguma forma, é uma reflexão e uma celebração do desterro. No sentido em que, de alguma forma, mostra a perdição do protagonista nos territórios da linguagem luso-brasileira-moçambicana. Uma linguagem atravessada pela história do violento colonialismo português, que atravessa também o corpo e a identidade do protagonista do filme. São questões que atravessam-me hoje, aos 39 anos, ao lançar a minha 4º longa-metragem enquanto meu país se perde em uma espécie de transe político, baseado na automutilação cultural. Como foi a engenharia de produção transatlântica, transcontinental de Um Animal Amarelo? O filme é uma parceria da Duas Mariola Filmes, baseada no Rio de Janeiro, e O Som e a Fúria, produtora de cinema português responsável pelos filmes de Miguel Gomes, João Nicolau e outros realizadores de cinema de destaque. Com essa parceria, nós

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conseguimos levantar o financiamento no Brasil e em Portugal. Isso deixando claro que estamos falando de um financiamento baseado em políticas públicas que estão atualmente ameaçadas pelo governo federal recém-eleito. Que panorama de cinema você encontra aí na produção mundial que te cerca? Roterdão é um ponto de encontro para a celebração do cinema não como uma arte elitista, mas como expressão de diferentes culturas, povos e histórias. O que eu sinto aqui é um cinema que tenta de alguma forma exprimir o desterro que estamos todos a viver. A sensação de que as nossas identidades culturais estão sendo atravessadas por incertezas, nesse mundo da globalização corporativa. E de que o cinema, a arte, nos pode fazer intuir caminhos para a sobrevivência da diferença e da mistura impura.

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