Hotel Império em busca da profundidade na Ó pera Chinesa [PT]

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“Hotel Império”: em busca da profundidade na Ópera Chinesa apaladewalsh.com/2019/05/hotel-imperio-em-busca-da-profundidade-na-opera-chinesa ​9​ de ​maio​ de ​2019

Em resultado desses sempre inesperados “sorrisos do destino”, deu-se a coincidência de assistir a Hotel Império (2018) de Ivo M. Ferreira no mesmo dia em que visitei, pela primeira vez, o Museu do Oriente que ocupa as margens do Tejo, na zona das docas, em Lisboa.

Hotel Império (2018) de Ivo M. Ferreira Nesse dia, além da exposição permanente e doutras temporárias, a Fundação Oriente expunha “A Ópera Chinesa”. Com mais de 280 objectos pertencentes à colecção Kowok On, entre trajes, marionetas, gravuras, instrumentos musicais (e mais), as indicações do curador explicavam:“A ópera chinesa sempre exerceu um enorme fascínio, combinando em palco canto, musica, dança, mímica, acrobacias e humor. Umas das suas principais características é situar-se no extremo oposto do realismo. Os movimentos estilizados, a voz em falsete, os trajes exuberantes, a maquilhagem elaborada (…): tudo obedece a uma estética cheia de simbolismo, produto de séculos de tradição performativa.” E lia-se mais adiante, “Na ópera chinesa, o valor das personagens reside, mais do que na sua individualidade, na forma como tipificam grupos ou classes sociais, ideais estéticos ou heróicos. Trajes, maquilhagem e acessórios como perucas, barbas e toucados são 1/3


essenciais para identificar as personagens logo que entram em palco, deixando antever o seu papel e psicologia . As personagens masculinas (sheng) subdividem-se em homens idosos, jovens e guerreiros; as personagens femininas (dan) por seu turno, em mulher idosa, mulher virtuosa, cortesã ou criada, guerreira e jovem de famílias distintas; a estes juntam-se ainda os rostos pintados (jing) e os palhaços (chou).” Concluindo, a ópera chinesaé hoje “uma verdadeira embaixada cultural do seu país.” Hotel Império é um filme barroco, cheio de simbolismos e cheio de personagens tipo. Cápsulas que encerram os actores em túmulos dos quais não há escapatória. Deixo estas palavras junto do leitor, porque no filme de M. Ferreira, a ópera chinesa não é mera referência decorativa, bem pelo contrário. O título do filme remete para o nome de um hotel, em Macau, propriedade de uma família portuguesa (pai idoso e filha adulta – Margarida Vila-Nova e Cândido Ferreira), que com o passar dos anos entrou em decadência, transformando-se em residência permanente de uma série de “proscritos” da nova era macaense: prostitutas/concubinas/massagistas, actores de ópera decadentes, costureiras sem trabalho e velhos apostadores de jogo clandestino. Esse personagem muito secundário, que constantemente promete estrear um nova ópera que lhe permitirá pagar todas as muitas dívidas, apresentar-se-á, no climax, como elemento chave para desenlaçar a trama familiar que o filme tece alegremente. Climax esse que é, nem mais nem menos, a encenação pública (no meio da rua) de uma ópera chinesa. Mas a verdade é que a influência dessa prática cénica e performativa no filme não se reduz à sua apresentação directa em campo, pelo contrário, ela perpassa todo o universo construído pelo realizador. Hotel Império é um filme barroco, cheio de simbolismos (uns mais escarrapachados do que outros – note-se esse plano “god’s eye view” em que os irmãos/amantes compõem no solo um yin e yang entre homem e mulher, branco e preto, cabelo escuro e cabelo claro, etc.) e cheio de personagens tipo (que como na ópera, “deixa[m] antever o seu papel e psicologia (…) logo que entram em palco”). Como os referidos sheng e dan, também aqui temos o velho cheio de remorsos e nostalgia, a jovem guerreira e desiludida, o rapaz com o trauma vingador e o empresário oportunista (para destacar apenas as figuras centrais desta peça). Cápsulas que encerram os actores em túmulos (por vezes com efeitos cómicos não desejados – veja-se o overacting de Tiago Aldeia digno de um Nuno Melo) dos quais não há escapatória. Nem os esforços no domínio de múltiplas línguas (numa certa cena, num bar, existe uma diálogo que se passeia pelo português, inglês e mandarim com uma naturalidade surpreendente) ou a procura de uma tridimensionalidade (remete-se o espectador sucessivamente para um passado – durante o domínio português do território, a infância dos protagonistas – que procura justificar os laços e a modelações dos caracteres) conseguem libertá-los dos grilhões da formatação. O dilema do filme passa, finalmente, pela procura de um espaço intermédio entre duas tradições narrativas: as epopeias melodramáticas da ópera chinesa e os retratos naturalistas europeus (com Eça de Queirós a habitar os olhos do espectador português, 2/3


pelas coincidências incestuosas com Os Maias ou pela centralidade de uma edifício, não é este Hotel Império uma espécie de Ramalhete?). Fora esta mais recente incursão asiática do realizador [depois de Na Escama do Dragão (2012), O Estrangeiro (2010) e Vai com o vento (2010)] apenas um festim de cores garridas, movimentos estilizados e personagens-tipo e entender-se-ia este filme como uma actualização de uma prática secular à realidade urbana da Macau contemporânea. No entanto, Hotel Império procura a profundidade dramática, a parábola sobre o capitalismo selvático e a especulação imobiliária (maleita da qual Lisboa está sofrendo igualmente), a reflexão sobre o colonialismo português (frases como “O Império não está à venda!”), a sua degradação e a sua suposta miscigenação e o desaparecimento das características locais de um espaço que se converteu/está a converter numa inócua “Las Vegas do Oriente”. Não é que o realizador falhe os seus intentos, pelo contrário, é mais que todos eles lá estão de forma tão denunciada e programática que ao longo do filme parece ouvir-se, na trilha sonora, a caneta de feltro que marca um certo em cada um dos pontos da check list.

3/3


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