Premium Um filme melancómico com as todopoderosas Catarina Wallenstein e Isabél Zuaa dn.pt/edicao-do-dia/15-out-2020/um-filme-melancomico-com-as-todo-poderosas-catarina-wallenstein-e-isabelzuaa-12921343.html 15 de outubro de 2020
Catarina Wallenstein e Isabél Zuaa. © Jorge Amaral/Global Imagens
O que significa ser brasileiro hoje? A pergunta é do cineasta Felipe Bragança e no seu filme as perguntas ficam a alvoroçar as respostas. Em Um Animal Amarelo essa exploração ao trauma de uma identidade brasileira é uma odisseia em formato de fábula, melancólica, "melancómica" mas sempre tropical. Vai do Brasil a Portugal com paragem em Moçambique. Um périplo que é também a história de um cineasta falido em viagem até aos fantasmas do colonialismo, acreditando poder encontrar o espírito de um homem africano que lhe prometera riquezas e glórias. Pelo meio, debate-se com o poder de duas mulheres e um confronto desencantado com fantasmas. Objeto fora do real, trata-se de uma travessia selvagem e brusca que foge sempre aos meandros da narrativa da "história bem contadinha". A sobrevoar esta crónica de memória e tempo estão duas atrizes portugueses, a todopoderosa Isabél Zuaa, vencedora do prémio de interpretação em Gramado neste ano, e Catarina Wallenstein, cocriadora do anterior filme de Bragança, Tragamme a Cabeça de Carmen M. As duas atrizes juntaram-se para uma conversa acerca da urgência do filme. 1/6
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"Este é um filme de um artista que está a fazer uma escavação sobre o que é o nosso processo histórico. "O processo de Portugal, Moçambique e do Brasil. E aí bate diferente em cada pessoa pois os processos históricos de cada país são diferentes, sobretudo consoante os jogos de poder, o que é algo que o filme inverte muito", dispara Catarina Wallenstein, ao passo que para Isabél este animal é uma forma de nos fazer refletir estas relações desequilibradas: "O filme propõe muitas questões, a começar com a homossexualidade do avô do protagonista, passando pelas relações dos africanos com Portugal, mesmo que num tempo contemporâneo tenham resquícios das opressões e desigualdades, acabando na questão de quem nós somos, de como perpetuamos a história e daquilo que estamos a querer reinventar." As power ladies do filme também vincam que o registo de fábula muda toda a perceção daquilo que se quer reivindicar: "Ajuda também muito nessa fábula todo o sentido de humor e a forma como se subvertem as relações de poder. É assim que o filme oferece muito pensamento sem dar muitas respostas", conta Catarina. "Não é nada um filme moralista", acrescenta Isabél: "A lupa está mais acentuada no trajeto do homem brasileiro, que é um corpo masculino branco, mas ele é alguém que cria outras relações de Moçambique para Portugal. De alguma forma, são lupas que se ampliam."
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Catarina Wallenstein e Isabél Zuaa. © Jorge Amaral/Global Imagens
Quando chega a Portugal, o cineasta perdido debate-se com uma certa mesquinhez muito portuguesa. Apanha a pegada dos esquemas, da burguesia instalada e uma relação com um passado colonialista que não se apaga. Aí fica amargo mas não perde o tal lado de conto tropical. "Nós os portugueses estamos dentro de uma lógica que nos diz que o pensamento histórico europeu é o mais certo e a nossa incapacidade para olhar para trás e falar das coisas é enorme! Tem que ver com centralidade. E isso também é uma herança da ditadura", as palavras são de Catarina, mas Isabél intervém: "Tem que ver mais com os processos coloniais e de Portugal ser o grande expansor marítimo e achar que tem o poder sobre outros corpos, territórios e povos." Catarina concorda e e aponta uma tendência acerca do pensamento português: lembrar que os espanhóis foram piores na colonização. "A justificação do mal para o outro mal. Isso não nos faz avançar. Mas o filme é específico: aborda as relações que Portugal teve com o Brasil e Moçambique e essas relações sempre foram muito desequilibradas e violentas, onde se mata e explora. Hoje acabamos por estar a chegar a questões muito próximas. Mas a minha personagem, a Catarina, é alguém que de forma implícita subscreve isso. Trata-se do corpo de uma mulher negra... Eu nasci em Portugal e os portugueses não me consideram portuguesa, mas não me sinto desterrada pois tive uma boa educação e desde cedo questionei os livros de História", diz Isabél. Por cá, mesmo depois do seu papelaço em Joaquim, de Marcelo Gomes, outra coprodução luso-brasileira que fez furor em festivais internacionais, e do estardalhaço 3/6
de As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, o nome Isabél Zuaa não enche manchetes. Os prémios que recentemente venceu no maior festival de cinema brasileiro, Gramado, melhor atriz na longa Um Animal Amarelo e melhor atriz na curta Deserto Estrangeiro, não lhe valeram convites para aparecer nos telejornais como aconteceu com Ana Rocha de Sousa com Listen, após os prémios na secção Horizontes de Veneza. Isabel continua a ser uma atriz "invisível": "Foco-me no positivo! Na verdade, o que conta é que me sinto honradíssima em ter ganho o maior prémio de atriz no Brasil. Esses não foram os primeiros prémios, já ganhei outros... Mas foram uma felicidade imensa! O não falarem de mim é mais uma consequência daquilo que vivo, da minha realidade enquanto artista contemporânea negra portuguesa. Vibrei com os prémios e não vou vibrar pelo facto de não terem vibrado com os meus prémios - isso é-me igual ao litro!" Catarina acrescenta: "Há ainda uma camada maior no teu caso: trata-se de uma mulher artista negra e portuguesa a ganhar um prémio que não é na Europa. Há um outro imaginário...Há muita gente que acha que depois nunca estás cá, o que é uma forma de te silenciar."
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Catarina Wallenstein e IsabÊl Zuaa. Š Jorge Amaral/Global Imagens 5/6
Depois de Um Animal Amarelo, nesta quinta-feira nos cinemas, tudo vai e tem de mudar. Isabél Zuaa é uma atriz portuguesa que não quer e não pode fazer apenas o cliché das personagens que no guião dizem "mulher negra". Pena os multiplexes não terem coragem de apostar nesta aventura de cinema. Nestes tempos, apenas o Trindade e o Ideal, ambos com sessões com os atores e o realizador a acompanhar debates com convidados. Nesta quinta, no Ideal, discute-se o processo criativo entre dois países e na sexta o tema é intitulado "O Afeto da Descolonização", com a presença de Catarina e Isabel. No dia seguinte, no Trindade, o mote é "Cinema Descolonial: Atravessar as Ruínas", com o realizador, Catarina Wallenstein, Melissa Rodrigues e Lucília Raimundo. Por fim, no Ideal, no dia 20, após a sessão, discute-se "Personagens de Cinema e Ancestralidades no Brasil e Portugal". Porque este cinema pede discussão.
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