Semanário | Cannes contra o vírus leitor.expresso.pt/semanario/semanario2540/html/revista-e/culturas/cannes-contra-o-virus
Após um ano de paragem forçada, o Festival de Cannes arranca na terça-feira com a nata do cinema de autor, testes PCR e a esperança no horizonte. Nanni Moretti, Apichatpong, Sean Penn, Paul Verhoeven, Leos Carax e Wes Anderson estão na competição oficial. Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro são os portugueses no festival texto Francisco Ferreira P assaram 14 meses desde as datas do Festival de Cannes de 2020 travado pela covid-19. O cancelamento tornou-se a face mais relevante de uma indústria que tem na Croisette o seu expoente e que a pandemia ajoelhou com estrondo — afinal, estamos a falar do acontecimento cultural, seja de que área for, com maior cobertura mediática do planeta, a uma distância abissal de qualquer outro. Ora, sabendo da sua importância, Cannes, que prometeu uma 74ª edição “exuberante”, vai mesmo querer dar a volta por cima, juntando num ano o melhor do que selecionou em dois. FESTIVAL DE CANNES A partir de terça e até dia 17 www.festival-cannes.com Se for um triunfo, encherá de esperança o mundo cinematográfico. Mas o que acontecerá se redundar em fracasso, apanhado pelas ditas variantes da covid-19, que já parecem uma franchise de “Velocidade Furiosa”? De qualquer forma, é proibido sonhar com o passado: Cannes vai apanhar a partir desta terça-feira uma cidade cheia de não-residentes em férias (algo que nunca aconteceu em maio), e um controlo sanitário severo aguarda os festivaleiros não vacinados, com a exigência de um PCR negativo a cada 48 horas. No concurso principal são esperadas várias vedetas de Hollywood, curiosamente, por filmes que a Hollywood dirão pouco (Adam Driver e Marion Cotillard filmados por Leos Carax, Bill Murray por Wes Anderson, Sean Penn pelo próprio...). A Netflix fica de fora em mais um braço de ferro perdido: Cannes pode dar-se ao luxo de a recusar para tranquilizar os exibidores franceses, que exigem um concurso pela Palma de Ouro sem streaming; já a plataforma americana teima em estar na competição (ou não participar)... O que há, sim, é uma catadupa superlativa de autores como só Cannes sabe reunir — são eles as estrelas da companhia. Só no concurso pela Palma de Ouro estão duas dúzias deles — e ninguém é desconhecido. O programa, de resto, está apinhado de filmes, com as secções paralelas a funcionarem igualmente em pleno.
1/3
E o que esperar de “Annette”, o filme que inaugura o festival, sabendo que Leos Carax, nove anos depois da estrondosa receção a “Holy Motors”, foi a Los Angeles atirar-se para um musical e para o seu primeiro filme de língua inglesa? É a história de um casal de Hollywood, ele ator de stand-up (Adam Driver), ela cantora de ópera célebre (Marion Cotillard), e os efeitos da chegada da filha deles, a Annette do título, criança dotada de misteriosos poderes. A ideia do filme e da banda sonora vêm da banda Sparks, no trailer é Carax quem vemos, de costas, na mesa de mistura — e a estreia em sala está quase, para a semana no mundo inteiro e também por cá, pela NOS. Forte contingente francês Carax não está sozinho, há outro francês que transita de 2020 após um ano à espera no frigorífico: “Benedetta”, produção de Saïd Ben Saïd e nova colaboração deste último com o holandês Paul Verhoeven. É um filme biográfico, certamente único e ultrajante, sobre a freira católica, lésbica e mística Benedetta Carlini (1591-1661) e o mistério das suas tentações numa Itália assolada pela peste — com o Diabo em contracampo, claro. Filme, portanto, atual, dado o contexto da pandemia, embora Verhoeven o tenha rodado em 2018! Há aqui um cruzamento entre “Showgirls” e “Flesh+Blood”, obras anteriores do holandês, que adapta agora “Immodest Acts: The Life of a Lesbian Nun in Renaissance Italy”, de Judith C. Brown. Virginie Efira tem o papel protagonista, secundada por Daphné Patakia, Charlotte Rampling e Lambert Wilson. Filme de possessões, filme de exorcistas e de estigmas sobre uma determinada faceta da sororidade católica, e supõe-se, também, obra destinada a ser proscrita... Mas alguém se rala? “O pior nos dias que correm...” — contava Buñuel no fim da vida — “é que já ninguém se choca com nada...” O festival conta com uma catadupa de autores como só Cannes sabe reunir. A Netflix fica de fora em mais um braço de ferro perdido Há muito mais franceses em jogo — nunca houve tantos. E à espera de todos eles está o júri, presidido por Spike Lee, convidado desde 2020. Jacques Audiard (“Les olympiades”), Julia Ducournau (“Titane”, com Vincent Lindon), Bruno Dumont (“France”, com Léa Seydoux), Catherine Corsini (“La Fracture”, com Valeria Bruni Tedeschi), Mia Hansen-Love (que levou Vicky Krieps, Tim Roth e Mia Wasikowska para a ilha de Fårö, no Báltico, em “Bergman Island”, obra no rasto do cineasta sueco). Mas também François Ozon com “Tout s’est bien passé” e o seu elenco sonante (Sophie Marceau, Charlotte Rampling, Hanna Schygulla...) ou o israelita Nadav Lapid (“Le Genou d’Ahed”), que roda em hebreu mas com dinheiro francês. Aliás, para que se faça uma ideia, a França está envolvida a nível de produção em 17 dos 24 candidatos — e um deles é “Tre Piani”, do italiano Nanni Moretti. Desta vez, o vencedor da Palma de Ouro em 2001 (“O Quarto do Filho”) fez o que nunca tinha feito em quase cinco décadas: adaptou um romance (do israelita Eshkol Nevo) sobre três famílias que habitam outros tantos apartamentos de um mesmo prédio chique. Apichatpong Weerasethakul, outro concorrente já premiado a ouro (“O Tio Boonmee...”, 2010), também está dentro do radar gaulês com “Memoria”, que foi rodado na Colômbia. E — quem diria? — à cabeça do elenco está Tilda Swinton, na pele de escocesa que cultiva 2/3
orquídeas e decide visitar a irmã em Bogotá, travando então amizade com uma arqueóloga interpretada por Jeanne Balibar. Wes Anderson (“The French Dispatch”), Sean Baker (“Red Rocket”) e Sean Penn (que realiza e é o protagonista de “Flag Day” ao lado dos seus filhos, com Robin Wright, Dylan e Hopper) representam os Estados Unidos. Já da Ásia restam dois representantes: o iraniano Asghar Farhadi (“Hero”) e o japonês Ryusuke Hamaguchi (“Drive My Car”). Fora de concurso há um festival à parte: Todd Haynes fez um documentário entre os vivos que ainda estão cá e os mortos do au-delà dos Velvet Underground — quem não o quererá ver? Oliver Stone acrescenta arquivos, documentos e polémica ao seu “JFK” em “JFK Revisited: Through the Looking Glass”. E, como a sede é infinita, também há (na nova secção Cannes Première) novos filmes de Desplechin (“Tomperie”), Andrea Arnold (“Cow”), Mathieu Amalric (“Serre-moi fort”), Hong Sangsoo (“In Front of Your Face”), Gaspar Noé (“Vortex”) e sobretudo o documentário que Marco Bellocchio fez sobre si próprio e o passado da sua família, “Marx può aspettare”. Chega a tempo da Palma de Ouro honorária que será entregue ao grandíssimo cineasta italiano; a outra vai contemplar a atriz e também cineasta Jodie Foster. O “Otsoga” de Maureen e Miguel Tem graça que, ainda há poucos dias, quem escrevesse “Otsoga” no Google lá encontraria um programa elementar a lembrar que era a palavra “Agosto” escrita ao contrário. Agora já não, o destino nos motores de busca é outro: “Diários de Otsoga” é o ‘filme da pandemia’ que Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes rodaram no verão passado, isolados, com atores e equipa, numa casa de Sintra. Os cineastas escreveram-no como um diário aberto à improvisação e às ideias que foram chegando entretanto. Interpretam Crista Alfaiate, Carloto Cotta e João Nunes Monteiro, mas sabe-se que o elenco é permeável à própria equipa do filme, quem sabe se em rima ou em choque com “Aquele Querido Mês de Agosto”, filme que, há 13 anos, levou Gomes a Cannes pela primeira vez. Na competição pela Palma de Ouro das curtas apresenta-se “Noite Turva”, estreia de Diogo Salgado. Filme sombrio e ambicioso sobre as apreensões da pré-adolescência, venceu o concurso nacional do Curtas Vila do Conde. E há ainda “Sycorax”, outra curta que vai passar na Quinzena, rodada nos Açores, em São Miguel, pelo galego Lois Patiño e pelo argentino Matías Piñeiro, inspirada na personagem homónima e invisível, contudo mencionada por Próspero, em “A Tempestade”, de Shakespeare. A montagem é de Jorge Jácome e coproduziu a portuguesa Bando à Parte, de Rodrigo Areias.
3/3