O querido mês de Agosto de Miguel Gomes e Maureen Frazendeiro publico.pt/2021/07/05/culturaipsilon/noticia/querido-mes-agosto-miguel-gomes-maureen-frazendeiro-1968820 Vasco Câmara
Cultura-Ípsilon Exclusivo Festival de Cannes
Dois realizadores, três actores e uma pequena equipa fecharam-se numa casa com terreno perto de Sintra e em meses de pademia improvisaram este filme. Entre pantomimas conhecidas e uma apreensão muito táctil aos rostos e à natureza, Os Diários de Otsoga , presença portuguesa na Quinzena dos Realizadores do Festival Cannes, que esta terça-feira começa, cintila silenciosamente.
Foto Uma palavra-chave em Os Diários de Otsoga, o filme de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes seleccionado para a Quinzena dos Realizadores, secção paralela do Festival de Cannes, é “Agosto” (olhem bem para o título: Os Diários de Otsoga). É um segredo de Polichinelo?
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Foto Maureen Fazendeiro
Olhemos para trás, recuemos no tempo. Seis anos após a presença de As Mil e uma Noites na Quinzena, onde, depois de terem sido recusadas para a competição essas seis horas e um quarto de filme, que deram origem a três volumes exibidos em três dias, foram um dos acontecimentos na Croisette (sabor a vingança...), e 13 anos depois da inclusão de Aquele Querido Mês de Agosto na mesma secção paralela, Miguel Gomes regressa ao mesmo cenário na companhia de Maureen Fazendeiro, realizadora francesa residente em Lisboa.
Foto Miguel Gomes
Os dois, uma novela de Pavese, mais três actores, Crista Alfaiate, Carloto Cotta e João Nunes Monteiro, e uma pequena equipa fizeram testes à covid-19, fecharam-se numa casa com terreno perto de Sintra e entre 17 de Agosto e 10 de Setembro de 2020 improvisaram este filme. Um objecto lúdico tocado pela gravidade e que interrompe uma esperada progressão de filmografia, como se se colocasse à margem da cronologia. É essa a 2/4
surpresa, que pode ser algo déroutant para fãs franceses, isto porque serão eles os primeiros a ver o filme, que se estreia em França a 14 de Julho, um dia após a exibição em Cannes. Poderão achar desconcertante que após Tabu (200 mil espectadores em França)e depois da trilogia de As Mil e uma Noites, Os Diários de Otsoga não suba a parada na filmografia do cineasta em termos de desafio formal ou conceptual. Pelo contrário, aparenta colocar-se fora de qualquer ribombante aposta, regressando a algo do passado, refugiando-se aí, nas idiossincrasias conhecidas, de A Cara que Mereces (2004) por exemplo, com aquela casa e as pantominas que ela gerava, ou nos tempos, ritmos, de Gomes a descascar melancolicamente o filme para exibir o reverso do décor e fazer intervir, irrompendo da casa, a sua equipa, o seu habitual Vasco Pimentel do som, por exemplo.
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Um projecto reactivo O cinema é uma estufa, o seu making of é a edificação de um borboletário. No Verão de 2020 foram essas as actividades de Crista, Carloto e João. Mas...Os Diários de Otsoga torna-se intrigante se permitirmos que nos desafie a encontrar no aparente flashback de Miguel Gomes à sua própria obra (uma viagem acompanhada, já que se trata de Gomes e Fazendeiro) coisas delicadas, como o diário de um casal à beira da paternidade, uma apreensão muito táctil aos rostos e à natureza que fazem o filme cintilar mais silenciosamente e que podem revelar pegadas da presença de Maureen Fazendeiro.
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“As pessoas vão encontrar a linguagem dele, mas há ali elementos dela. Há ali toques importantes dela, o lado musical e o lado de detalhes”. A “dica” é de Luís Urbano, um dos co-produtores. Que confirma que o filme surge a “baralhar completamente as contas”. Isto é: ditando “a indústria” os “caminhos de muitos autores”, e a “indústria” inclui os festivais de cinema, Os Diários de Otsoga seria “irredutível" a isso, "no sentido de não ir atrás de sinais”. Como se lhes resistisse. Tendo sido, explica o produtor, um projecto reactivo. É essa, revela, a forma de Gomes se comprometer com os projectos. Por exemplo, Urbano conta que estava a equipa a embarcar para filmar a segunda parte de Tabu em Moçambique quando se cruzou, literalmente, no aeroporto com a troika que desembarcava e foi assim que nasceu As Mil e uma Noites. Desse diário de um ano de um país sobraram métodos para a miniatura que é Os Diários de Otsoga. Essa dimensão de miniatura, se comparada com o gesto de As Mil e uma Noites, levou a uma diferente abordagem do produtor perante o convite de Cannes. No caso da trilogia, Urbano pressionou para ter um lugar no concurso. Perdeu, o formato da obra, três filmes, era obstáculo. Tentou a rival Quinzena, que lhe chamou um figo, e Urbano, aí, ganhou conseguindo o perfil de “acontecimento”. Desta vez, não pressionou o concurso. “Mostrámos às duas secções [competição e Quinzena] e dois dias depois a Quinzena mostrou-se interessada. Confirmámos logo que percebemos que não iríamos em competição. É uma questão de pesos... esta é uma edição em que há um filme do Leos Carax que custou 15 milhões de euros”, Annette, exibido esta terça-feira a abrir a competição desta 74.ª edição, onde estão os novos filmes de Apichatpong Weerasethakul, Paul Verhoeven, Bruno Dumont, Nanni Moretti ou Wes Anderson. “Não houve sequer discussão”. A estreia imediata de Os Diários de Otsoga em França (esperando o produtor, no momento desta conversa, chegar às 40 cópias), e um mês depois em Portugal, revela também uma estratégia diferente. “O caso em França deve-se ao processo de retoma” de exibição. Estando o panorama congestionado, com filmes que ficaram a aguardar os desconfinamentos, vai necessariamente privilegiar os títulos promovidos em Cannes e projectar os outros para mais tarde. Não alinhar já significa ficar à espera de uma segunda ou terceira vaga de estreias. Assim, Os Diários de Otsoga vai ser já lançado em território francês, como outros títulos da competição Titane, de Julia Ducournau (com Vincent Lindon), Annette, de Carax (com Adam Driver e Marion Cotillard) ou Bergman Island, de Mia Hansen Love. Em Portugal a estreia acontecerá a 19 de Agosto. “Com excepção de Tabu, todos os filmes do Miguel estrearam-se cá em Agosto”. A palavra-chave, como dissemos, é “Otsoga”.
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