Olhares, corpos e figuras de urso no Curtas de Vila do Conde publico.pt/2021/07/21/culturaipsilon/noticia/olhares-corpos-figuras-urso-curtas-vila-conde-1971220 Jorge Mourinha
Cultura-Ípsilon Exclusivo Cinema
Mais nomes novos a reter no Curtas: Mário Macedo e Mónica Martins Nunes.
Poder-se-á falar de revelações na competição nacional do Curtas? Não há, na verdade, assim tantos cineastas estreantes na edição de 2021 — mesmo alguns dos que chegam pela primeira vez ao concurso do festival não o fazem com a primeira curta — e o que temos visto têm sido confirmações de nomes já com alguma experiência (Eduardo Brito, Filipe Melo, Leonor Noivo). Do que podemos falar, certamente, é de olhares a seguir, e de uma dimensão muito física na produção deste ano — câmaras interessadas em corpos, nos seus movimentos e da sua energia no espaço. Por aí, aliás, faz-se uma interessante ponte com uma das “novas vozes” a que o programa do Curtas dedicou especial atenção este ano: a grega Jacqueline Lentzou, de quem se mostrou a integral das suas curtas e a sua óptima primeira longa, Moon 66 Questions, estreada na paralela Encounters da Berlinale deste ano. Sem cair nos excessos programáticos ou formalistas da “nova vaga grega” de Athina Rachel Tsangari ou Yorgos Lanthimos, Lentzou — que está igualmente no júri do festival — explora repetidamente de forma esquinada o tema das famílias disfuncionais e da falta de comunicação, mas sempre com uma câmara muito atenta ao modo como o espaço e o movimento reflectem essas questões. Ora, vimos Ana Moreira a deixar o corpo de Íris Cayatte conduzir Cassandra Bitter Tongue; o corpo não-binário de Gisberta a inspirar O Teu Nome É de Paulo Patrício; os corpos quotidianos das mulheres de Madrugada de Leonor Noivo; os corpos em
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celebração de Timkat, que Ico Costa foi rodar à Etiópia durante a festa religiosa que lhe dá título, numa continuação do fascínio quase etnográfico que o realizador sente pela África e pelo outro que ficara bem exposta em Nyo Vweta Nafta.
O “corpo” em falha Depois, há um corpo a fazer “figura de urso”, por assim dizer: um urso-pardo que parece regressar à raia com Espanha, avistado à distância por moradores locais e por uma jovem vigilante. Mas que não é exactamente o corpo que se esperava — Bruno Lourenço, de quem recordávamos o distante Tony, cria aqui uma comédia morosa de relaxado movimento plantígrado, que se revela rapidamente pertencer à linhagem de família da produtora O Som e a Fúria (variante João Nicolau/Telmo Churro) sem especial distinção. É também o corpo que conduz Terceiro Turno, primeira ficção de Mário Macedo após um conjunto de documentários e telediscos: o corpo que “falha” a Agostinho à saída de um turno da noite, numa estranha convulsão (que o filme nunca explica verdadeiramente mas que assumimos como epilepsia). O que se segue é um instantâneo de uma vida de província no período de 24 horas, transpirando uma sensação de claustrofobia rural sem futuro amplificada pela estranheza de sentir o corpo a fugir, com uma segurança digna de relevo; Mário Macedo fica desde já como um dos olhares revelados por este Curtas, a par de Rodrigo Braz Teixeira, Francisco Moura Relvas e Mónica Martins Nunes. Esta última trouxe ao Curtas a média-metragem que estreou no festival suíço Visions du Réel, Sortes, 39 minutos passados a explorar sem pressas a serra de Serpa, a construir um retrato prismático do quotidiano dos seus habitantes — quase todos idosos, quase todos enraizados num estilo de vida que parece não mudar há tempos imemoriais. Usando como ponto de partida gravações de voz do seu falecido avô, Mónica Martins Nunes voga
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ao sabor da paisagem, alinhando encontros e observações num álbum fotográfico de memórias decantadas e seleccionadas, registadas antes que se percam na voragem do tempo. Sortes não inventa; limita-se a olhar, e às vezes isso chega. Todos os filmes de Jacqueline Lentzou, Terceiro Turno e Tony podem ser vistos até ao início de Agosto na plataforma online.curtas.pt. Timkat e Sortes passam no Teatro Municipal de Vila de Conde esta quarta-feira (às 20h30), no cinema Trindade quinta-feira (22, às 20h40), e no cinema Ideal sexta-feira (23, às 20h30), podendo também ser vistas na plataforma do Curtas a partir de quinta-feira (22). Subscreva a nossa newsletter Pés na Terra Quinzenalmente, às quartas
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