A invenção de Agosto publico.pt/2021/08/18/culturaipsilon/critica/invencao-agosto-1974394 Vasco Câmara
Cultura-Ípsilon Exclusivo Crítica Cinema
Um filme: eis a invenção deste mês de Agosto de Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro.
Fotogaleria Imagem anterior Imagem seguinte Ó mais desconcertante em Diários de Otsoga (e não necessariamente quando se sai dele; sobretudo quando estamos perante ele) é a forma como parece frustrar voluntariamente as expectativas criadas por uma filmografia (porque um dos co-autores é Miguel Gomes...), colocando-se à margem de uma cronologia, interrompendo as esperadas delícias de uma leitura alinhada. O que se torna apelativo em Diários de Otsoga é, então, o seu desalinhamento. Isto é simplificar o que quase sempre é bem mais complexo e imponderável: após Tabu e depois da trilogia de As Mil e uma Noites, Diários de Otsoga não afirma, como se podia esperar e como parecia estar anunciado, uma subida de parada, na filmografia do cineasta, em termos de desafio formal, conceptual ou gesto temerário.
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Diários de Otsoga Realização: Maureen Fazendeiro,Miguel Gomes Actor(es): Crista Alfaiate, Carloto Cotta, João Nunes Monteiro Fomos sendo informados, ao longo desta pandemia, das vicissitudes que se abateram sobre Selvajaria, adaptação livre de Os Sertões de Euclides da Cunha, e sobre Grand Tour. Seriam estes os projectos em que o cineasta vestiria a farda de uma volta ao mundo (pelo menos ao Brasil e à Ásia). Por motivos de todos conhecidos, conhecidos porque vivenciados, estes projectos para já terão de permanecer em suspenso. Já quanto a Diários de Otsoga, ele enceta um regresso a casa. Ainda antes do périplo e no lugar do périplo. Regresso a casa em sentido mais do que metafórico: porque é um refúgio para idiossincrasias conhecidas, as de pré-Tabu, e porque nele volta a ser uma casa, como em A Cara que Mereces (2004), a gerar as criaturas, o seu “bestiário”, se quisermos (há mesmo um plano em que elas vão surgindo num refeitório como que expelidas dos vários cantos do ecrã). A casa marca os tempos, os ritmos, e assim se descasca progressiva e melancolicamente um filme, exibindo-se o reverso do décor. Mais do que exibir o reverso do décor, Diários de Otsoga acaba a revelar o cinema como um delicado borboletário, o filme como o seu making of.
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Assim nos adiantamos sobre Diários de Otsoga. Gomes e Fazendeiro, os dois, uma novela de Pavese, três actores, Crista Alfaiate, Carloto Cotta e João Nunes Monteiro, e uma pequena equipa fizeram testes à covid-19, fecharam-se na tal casa, num terreno perto de Sintra, e entre 17 de Agosto e 10 de Setembro de 2020 improvisaram este filme. Dito de outra forma, inventaram a possibilidade de intimidade, uma possibilidade de cinema. Confinamento e superação, então: Diários de Otsoga talvez seja, afinal, tocado por uma utopia. Se calhar animou-o um gesto tão reactivo como o que levou o cineasta Gomes e a sua equipa a “lerem” em directo o Portugal da troika para a sua famosa trilogia As Mil e Uma Noites. E lá continuamos nós à procura de indícios, marcas, provas do aparente flashback de Miguel Gomes à sua própria obra (uma viagem acompanhada pela sua companheira, Maureen Fazendeiro). O que pode ser um incorrigível defeito. Mas deixamo-nos intrigar também por coisas delicadas como o diário de um casal à beira da paternidade, a apreensão muito táctil aos rostos e à natureza que fazem o filme cintilar mais silenciosamente. Enfim, perguntamo-nos se podem ser essas as pegadas de Maureen Fazendeiro. Defeito incorrigível, de novo, este de pretender decifrar “o que é de quem” (outra forma de pretender “quem é quem”), quando também sabemos que numa dupla cada um dos realizadores funciona como catalisador de um aparato, provocando alterações sem nele se consumir. Isto é, nem Miguel nem Maureen se afirmam em Diários de Otsoga inteiros, intocáveis, perante o território do outro. Surgem, inevitavelmente, mudados e alterados. Assim coloquemo-nos antes em disposição porosa, em vez de modo clínico, para receber esta mistura de imobilidade e movimento, de recuo e avanço, como o elástico efeito óptico de uma dolly zoom. Eis então a mecânica inventiva, neste querido mês de Agosto, de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes.
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