O sentido que têm as coisas que não têm sentido [PT]

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O sentido que têm as coisas que não têm sentido publico.pt/2021/09/05/culturaipsilon/cronica/sentido-nao-sentido-1975924 António Roma Torres

Cultura-Ípsilon Exclusivo Crónica Cinema

Quantos filmes existem para o espectador só a partir da imaginação estimulada por um texto como este? Porque, se calhar este texto é o único Diários de Otsoga que o leitor vai ver — devia dizer ler? ou “ver”? — preciso de o fazer com todo o cuidado. Vi Diários de Otsoga ontem, numa sala sem nenhum outro espectador num centro comercial. Atenção, se estamos a falar sobre tempo, ontem não é verdadeiramente ontem. É ontem véspera do dia em que estou a escrever, que não o ontem do dia em que o vou enviar ao jornal, nem do dia em que será publicado e não, necessariamente, o ontem do dia em que o leitor o poderá estar a ler. Já agora não tenho a certeza do que acontece quando não há nenhum espectador na sala, nestes dias multiplex em que a cabine de projecção e o projeccionista foram substituídos por um mecanismo computorizado que eventualmente é pré-programado como a rega de um jardim numa casa desabitada. O que é um filme projetado numa sala onde não estiver ninguém? E quantos filmes existem para o espectador só a partir da imaginação estimulada por um texto como este? Porque, se calhar este texto é o único Diários de Otsoga que o leitor vai ver — devia dizer ler? ou “ver”? — preciso de o fazer com todo o cuidado. Então em vez de o fazer de trás para a frente, isto é, do final da projecção para o filme que ficou para trás, que como o leitor interessado já sabe é o dispositivo narrativo que o filme escolheu — devia dizer o autor, ou neste caso os autores, ou a autora e o autor, porque é discutível o sentido que tem o filme poder escolher? —, seguirei em frente, para o futuro próximo, isto é, imediatamente após a projecção. Porque o tempo não é infinito, como não o é o espaço que a crónica pode ter no jornal — ou é o tempo infinito e o espaço finito, pelo menos se não falarmos de um espaço, ou tempo, quântico, ou se o tempo e o espaço não ficaram misteriosamente misturados? —, aproveito para dizer já que o filme de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes também é sobre fazer, como a dado momento a actriz, Crista Alfaiate, comenta numa discussão depois de uma cena que só vamos ver no depois do filme — qualquer coisa como “estãome a pedir que faça coisas e não que represente, que é o meu trabalho”, como noutras cenas vemos os trabalhadores do filme (técnicos e pessoal de apoio na cozinha e nas máquinas e arranjo da piscina) afinal a representar, ou talvez simplesmente a estar no espaço in e não no off em que fazem habitualmente o seu trabalho.

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Repare-se na estrutura temporal do filme, não tão pouco usual como possa parecer: o flashback é convenção cinematográfica já conhecida, só que aqui não pretende ser subjectivo, embora um diário seja por definição escrito por alguém. O jogo de paradoxos que o filme propõe mostra que o sentido existe a partir de conjugações que podem ser de início aleatórias. Para diante então. Desci dois pisos no centro comercial e entro numa livraria onde folheio um livro acabado de sair. Fernando Pessoa e Outros Fingidores de Maria Irene Ramalho. Nada sei da autora, mas devem ter-me atraído os fingidores. Abro ao acaso na página 288: when I have sense of to sense appears. São os poemas ingleses de Pessoa, soneto 32. Depois em casa confiro a tradução de Jorge de Sena, quando sentido eu tenho do que ao senso surge. Reparo que o sentido poético ou o simples bom senso leva a que Sena traduza sense ora por sentido, ora por senso, e que o sentido do meu título tanto pode ser coisa de gente sensível como de atenção ao significado. Tradutores/traidores? E volto ao filme. Se as legendas não tivessem escrito que língua os trabalhadores falam como ouviríamos o diálogo na primeira cena do tractor azul? A rigor quando Maureen pergunta a Miguel porquê o tractor azul, ele podia ter respondido em termos do cinema narrativo clássico, que não servia para a história que ele quer contar, que é apenas um subplot, pequeno truque que ajuda a que o espectador se mantenha interessado. Lembram-se de Domingo à Tarde de António de Macedo em que há um filme dentro do filme, uma cena numa igreja, falada numa língua estranhíssima…que Macedo conseguiu reproduzindo o som português no sentido inverso, de trás para a frente? Há coisas do diabo. Termina assim o tal soneto inglês de Pessoa (agora traduzo eu, por conveniência de autor que sou desta manta de retalhos se esse é atributo de textos ou filmes): o resto adivinha que tais ideias significam/veio para explicar e de repente foi-se/mensageiro que ri da forma da mensagem/explicando tudo menos a explicação/como tendo o código de uma carta cifrada/a encontrasse escrita numa língua estranha. O cinema é uma comunicação em muitos canais e o casal Fazendeiro/Gomes caprichou o trabalho ao nível da imagem e do som, por isso o filme não se torna apenas um puzzle de que temos pacientemente que encontrar a solução. Ele dirige-se, ainda outra vez, e diferente vez, aos sentidos. Ainda o soneto de Pessoa agora pelo Sena: quando ouço o Ouvir, antes mesmo que eu ouça, ouve/se vejo, antes de mim o Ver abstrato vê. O tractor azul numa quinta de Sintra pode ser um jipe numa selva africana que evoca o Tabu. O sol na vegetação e nos rostos pode traduzir o verão de Aquele Querido Mês de Agosto, mas num tom mais indolente um outro Agosto, como o de Jorge Silva Melo ou de Cesare Pavese, tudo meio adulterado como as memórias são. Maureen lembrava-se de Férias de Verão de Pavese com três personagens, mas ao reler verificou que eram mais, como no princípio/fim do filme temos apenas três personagens e depois/antes verificamos que afinal são mais. É este o encanto de As Mil e Uma Noites que não se acabam de contar e têm sempre mais gente dentro da história. E de resto tens sempre A Cara que Mereces, ou a que consegues encontrar. Há outro subplot na história a merecer atenção. A acção passa-se numa casa onde as personagens estão isoladas. Porque é um tempo de férias onde a vida como que pára. Mas principalmente porque é um tempo de pandemia que nos parou e isolou (e 2/3


nomeadamente os projectos de outros filmes ficaram parados). Subitamente a realizadora tem que ir a uma consulta e depois o realizador vai também com ela a uma ecografia. É o tempo da gravidez que evidentemente não pára. O filme fica sem director (tema recorrente no cinema de Miguel Gomes). E os actores têm liberdade de filmar, como quiserem. É um momento de espontaneidade que “noutras mãos” tenderia para o psicodrama (coteje-se a diferença não de qualidade, mas de pressuposto estético, com, por exemplo, João Canijo nos complementares Sangue do Meu Sangue e Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor). Para Fazendeiro e Gomes dá ideia que tudo são materiais de construção (e isto é verdade por estranho que pareça para todos os realizadores do mundo, mas habitualmente a história não é sobre isso, mesmo nos poucos casos em que ela se passa dentro do mundo do cinema). Não há uma trajectória no filme. Quer dizer que não há antes nem depois. Tens sempre a cara que mereces. É aí que está o respeito que parece ameaçado em cenas que o filme também mostra. No acolhimento da equipa com a enunciação das regras da pandemia, ao modo da juíza no 2.º volume de As Mil e Uma Noites, acaba por estabelecer-se uma discussão com o técnico de som, Vasco Pimentel, a lembrar outra cena de Aquele Querido Mês de Agosto. Tinham pedido por e-mail que cada um dissesse as suas preferências para pequeno almoço. Respeito ou nonsense? Pequeno almoço é pequeno almoço, ponto. Quando muito há um buffet para escolha. Antes/depois víramos a equipa a tomar o pequeno almoço. No princípio/final planeia-se uma festa. “As festas aborrecem-me. São todas iguais. Não tenho paciência.” Diálogos repetidos três vezes, em dois dias, com actores diferentes a dizerem as mesmas frases. Os actores são eles ou as personagens? As meias são de Carloto ou de quem? As batatas, se for para caldeirada cortam-se às rodelas. Há muitos sentidos. O cinema como arte de desamadurecer os marmelos. Para que conste: este não é um filme menor, de intervalo. Este é o maior Gomes. E As Mil e Uma Noites tinha somado extensas seis horas e meia. E de Fazendeiro também, uma vez que tem apenas duas curtas no activo.

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