'Um Animal Amarelo' confronta os fantasmas da herança colonial [PT]

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'Um Animal Amarelo' confronta os fantasmas da herança colonial www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/08/um-animal-amarelo-confronta-os-fantasmas-da-heranca-colonial.shtml 25 de agosto de 2021

Um Animal Amarelo Quando Estreia nesta quinta (26) Onde Nos cinemas Classificação 16 anos Elenco Higor Campagnaro, Isabél Zuaa, Tainá Medina Direção Felipe Bragança Entramos em “Um Animal Amarelo”, de Felipe Bragança, pelas beiradas de Moçambique. Na praia, sob um céu azul desbotado, vemos navios encalhados e homens e mulheres negros em trânsito. Essa paisagem sugere origem e destino. No Brasil, o cineasta Fernando, papel de Higor Campagnaro, tenta emplacar o roteiro de um filme radicalmente autoral, que bebe da história de seu avô Sebastião, vivido por Herson Capri, desgarrado da família em busca de riqueza no garimpo. O ancestral amarrava à cintura um fêmur, símbolo das memórias tenebrosas da escravidão e de sua história familiar. A pretensão de filmar a dor do passado responde ao horror da vida brasileira. Em colapso financeiro, o cineasta decide sair de um Brasil caído no fascismo e entrar na fábula de seu próprio filme, partindo para a extração de pedras preciosas numa aldeia na fronteira de Moçambique com o Zimbábue. "O país ficou muito mais escroto depois que você partiu", ele saberá em seu regresso à tristeza tropical. “Um Animal Amarelo” reflete, sem dúvida, uma crise de utopia. 15

Confira cenas do filme 'Um Animal Amarelo'

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Cena no filme 'Um Animal Amarelo', de Felipe Bragança Reprodução

Leia Mais "Quero ser rico e boçal", repete o cineasta na África. Há uma incongruência em seu caráter. O artista sonhador adere à ganância de um grupo de traficantes de gemas valiosas, vira um escravo de sua líder e embarca para Portugal atrás de compradores ricaços. Na abertura do filme, uma citação de Darcy Ribeiro nos previne sobre a coexistência de ternura e crueldade na formação do povo brasileiro. O filme se situa, de algum modo, entre esses dois polos. Passamos então a ser guiados por uma narração de antropologia fácil e poesia torrencial, criadora de uma atmosfera de inteligência embriagada de si mesma. Assim, antes de estabelecermos nossa liberdade diante do filme, devemos ouvir “logo tu, branco brasileiro, sem origem e sem identidade". "Nem europeu, nem africano, nem indígena. Neto e bisneto de estupros e sequestros escondidos." Uma personagem moçambicana assume essa voz. O que poderia ser um deslocamento promissor, por atribuir centralidade a uma consciência traumatizada pelo colonialismo, se transforma numa interpretação opressiva contra a inteligência das imagens. A perspectiva anticolonial precisa sempre ser explicitada por palavras, e palavras implacáveis. Esse recurso sabota a excelência de cenas de voo imaginativo.

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Dito isso, “Um Animal Amarelo” tem méritos evidentes. Bragança não é de facilidades. Seu filme revela domínio do ritmo, referências cinéfilas, engenho fabulativo e plástico, reflexão sobre a linguagem do cinema. No olhar crítico, relê certo encanto modernista pela ideia de identidade. Filmado entre Portugal, Brasil e Moçambique, traz ainda uma ambição tricontinental em sua leitura da história, um salto que faz lembrar o projeto internacionalista de Glauber Rocha na Europa, África e América do Sul. Em grande medida, a tensa confluência de culturas se adensa nas sequências de Lisboa, o palco de colonizadores e colonizados, em que a fragrância de depravação impregna a decadência europeia.

O cineasta Felipe Bragança - Mastrângelo Reino/Folhapress

Bragança apresenta uma direção firme de atores e extrai um desempenho notável de Herson Capri. Com precisão, Higor Campagnaro soube definir os contornos oníricos e picarescos de seu personagem. No elenco sem desníveis, temos atuações talentosas de Isabél Zuaa, Matamba Joaquim, Catarina Wallenstein e Tainá Medina. No filme, e no filme dentro do filme, igualmente eficientes, Sophie Charlotte e Thiago Lacerda. O pendor alegórico se define por um espírito amarelo, peludo e devorador, de face mascarada, onipresente em sua evocação do horror colonial. Suas aparições acompanham o cineasta da infância à maturidade. Nem sempre sua presença cênica oferece ganhos à narrativa, mas o risco é bem-vindo.

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Se dialoga com Joaquim Pedro de Andrade na representação da nacionalidade —e suas mazelas—, a visão pós-colonial de Bragança desenvolve uma conversa mais estreita com o imaginário do cinema português contemporâneo, de Pedro Costa a Miguel Gomes, apesar das diferenças estilísticas. Nessa investida, “Um Animal Amarelo” parece um corpo estranho no cinema brasileiro, pois confere abrangência geopolítica à sua abordagem do legado colonial, absorvendo o aspecto fantasmagórico indissociável da memória das violências. O passado nos decifra e devora.

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