Contra os caprichos do tempo leitor.expresso.pt/semanario/semanario2546/html/revista-e/culturas/contra-os-caprichos-do-tempo
Contra os caprichos do tempo
1/6
João Girão
Conversa com Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes sobre “Diários de Otsoga”, um filme sobre o que significa viver em conjunto durante a pandemia. Chega na quinta-feira às salas
2/6
Texto Francisco Ferreira Um casal está de férias à beira-mar numa solarenga praia portuguesa, ela tem uma criança no ventre a meio da gestação, aguardam a chegada de quem está para nascer com natural expectativa. Cá fora, um vírus decretou outro regime de tempo que condicionou tudo à nossa volta e pôs as nossas vidas do avesso. O casal é formado por dois cineastas. Apesar da situação delicada em que se encontram a nível privado, eles perguntam-se, contudo, que filme se poderia fazer nessa situação. O mundo do cinema está paralisado pela pandemia, à semelhança de tantas outras atividades, as produções não podem arrancar, cenas de intimidade, um simples beijo são extravagâncias estritamente interditas. Pior do que isso: as medidas de apoio devido à covid-19 tardam a chegar à cultura e não encontram, sequer, uma situação definida, com atores, técnicos, todo um ramo profissional parado à espera de melhores dias. Ainda assim, a ideia não lhes sai da cabeça: que filme se poderia fazer? DIÁRIOS DE OTSOGA De Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes Com Crista Alfaiate, Carloto Cotta, João Nunes Monteiro (Portugal) Comédia M/12 (estreia dia 19) Os cineastas em questão chamam-se Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes. Aconteceu assim, tal e qual, estávamos em julho de 2020. Um mês depois, mesmo sem um método de trabalho planificado e encorajados por uma coprodução improvisada (O Som e a Fúria/Uma Pedra no Sapato) que avança pela carolice com audácia, sem rede e sem subsídios (apenas um apoio minoritário da RTP), Maureen e Miguel isolam-se numa casa com um amplo jardim que está livre naquele período estival, cedida pela família de um dos produtores, ali para os lados do Magoito, Sintra. Com eles chegam três atores, Crista Alfaiate, Carloto Cotta (caras conhecidas do cinema de Gomes) e João Nunes Monteiro (que foi o soldado Zacarias em “Mosquito”). Vem também uma equipa de cinema feita de pessoas que há muito circulam nesta órbita, diretor de fotografia (Mário Castanheira) e de som (Vasco Pimentel) e respetivos assistentes, uma pequena equipa de produção razoavelmente composta dadas as circunstâncias, responsáveis por décors, guarda-roupa, também uma cozinheira que dará de comer a todos e que acabará, como a maioria dos técnicos, montador incluído, por fazer parte do filme. E entre 17 de agosto e 10 de setembro, “em regime de confinamento”, dizem os créditos, ali se roda um filme em película de 16 mm que se entregará ao gosto da sua própria descoberta, da sua bricolage, das suas fantasias (até de ficção científica), um filme aberto, já se percebeu, a improvisações várias, sem saber que filme quer ser mas com vontade de descobrir o que a experiência pode dar — que o tempo a isso é propício. Nisto, é o leitor que começa a perguntar: “O que é que afinal se passa aqui?” Pois dir-se-á que há uma rapariga e dois rapazes, amigos e possíveis amantes, que respondem pelos nomes dos seus intérpretes (Crista, Carloto e João), com indícios de um romance entre ela e um deles no início, entre ela e o outro no fim (e o beijo que ela deveria 3/6
dar a um dará a outro, em desobediência sanitária), à medida que o trio, a lutar contra o ócio, vai construindo no jardim um borboletário (que é para Maureen “o refúgio onde se guarda uma beleza efémera”). Dir-se-á que não, qual quê, não há romance nenhum, eles são apenas três atores à procura das suas personagens e de uma intriga que pode passar — porque não? — por relações amorosas, facto que se torna claro quando os membros da equipa técnica, num determinado momento, começam a aparecer no ecrã (e a ocupar o seu espaço de personagens). Dir-se-á ainda, num gesto que começa a tornar mais sofisticado o que parece simples, que a progressão do filme é narrada em ordem inversa à dos 22 dias de rodagem, isto é: o filme arranca no dia 22 e vai por aí fora, em contagem decrescente, até ao dia 1. “Há mais do que um motivo para esta opção”, contou-nos Maureen, “mas acho que o principal tem a ver com a forma especial como vivemos a pandemia no primeiro confinamento, em que os dias começaram a parecer todos iguais e o futuro se transformou numa coisa abstrata. Procurámos uma maneira de traduzir esta alteração da perceção do tempo.” A rodagem, confirma Miguel, “foi cronológica. Mas decidimos que o filme ia arrancar com a última cena que filmámos. Demo-nos conta de que, ao invertermos a ordem das páginas do diário que é o filme, libertávamos as coisas do seu encadeamento lógico. Há referências ao passado na história dos mamutes extintos e referências ao futuro pelo bebé no ventre da Maureen que vai nascer. Mas o presente está sempre em atualização. É o inesperado com que temos de lidar, que nos põe em xeque, que nos ameaça. E, no cinema, esse presente é a rodagem. Quisemos fazer um filme sobre isto. E dar esse presente novo, criado por nós, como uma escapatória que não deixa de estar em progressão, permitindo em simultâneo ao espectador reconfigurar o que ele está a ver.” De facto, as cenas de “Diários...” são quase sempre indefinidas: o que vemos no ecrã são já as personagens ou ainda são só os atores? Será que o filme que julgamos ter começado já começou ou é ainda preparação, ensaio? ENTUSIASMO DE UMA EXPERIÊNCIA COLETIVA “Diários de Otsoga” abre-se a outros horizontes quando se entende que este não é nem um filme de Maureen (“Motu Maeva”, “Sol Negro”), nem de Miguel, mas um filme de duas pessoas feito em particulares circunstâncias e, para ir mais longe, feito pelo esforço de uma equipa que acaba por passar para dentro de campo. Maureen conheceu Miguel em 2012 a propósito de um livro de entrevistas sobre “Tabu”, ele convidou-a mais tarde para dirigir o casting da rodagem francesa de “As Mil e Uma Noites” (2015), ela mudou-se entretanto de lá para Portugal, casaram em seguida. E começaram ambos, em colaboração com Mariana Ricardo (também coguionista de “Diários...”) e Telmo Churro, a escrever “Selvajaria” (baseado em “Os Sertões”, do brasileiro Euclides da Cunha), projeto de Gomes a ser rodado no Brasil e sucessivamente adiado por dificuldades de produção, conjunturas políticas, depois pela pandemia. Ou seja, para ambos, “Diários...” é uma primeira experiência de realização partilhada. “Não queremos intelectualizar ou tornar complexo o que é simples. (...) O que mais conta para nós neste filme é a experiência de estarmos juntos a fazê-lo. A ficção é um pretexto” Miguel Gomes Realizador
4/6
“E isso exigiu uma negociação, que é necessária para filmarmos em conjunto”, sublinha Miguel. “Tal como ela é necessária na nossa vida comum. No fundo, a pandemia é só um pretexto, este filme é muito mais o retrato de uma equipa a tentar fazer um filme sob determinadas regras do que qualquer outra coisa. Tem sido muito escrito desde a estreia em Cannes que ‘Diários de Otsoga’ é um exercício de metacinema, com rimas visíveis de outras coisas que a Maureen e eu já fizemos, mas não o vemos assim, não queremos intelectualizar ou tornar complexo o que é simples. A realidade, aliás, já é complexa que baste e muito menos lógica do que parece. Pelo contrário, o que mais conta para nós neste filme é a experiência de estarmos juntos a fazê-lo. A ficção é um pretexto. Nem sei se chega a existir. É uma miragem. A única ficção possível é a da nossa convivência, a do nosso confinamento alternativo.” É este o coração do filme e foi isto que se inventou neste tempo difícil: “Conseguirmos estar juntos outra vez.” Não deixa aqui de haver solavancos, sobressaltos, Maureen está grávida e, após consulta no médico, vêm ordens claras de repouso imediato. “Foi como um segundo confinamento a que fui obrigada dentro da rodagem”, diz ela. E isto cria tensões e curto-circuitos, a experiência de liberdade coletiva e criativa que se está a passar dentro da casa murada de onde ninguém sai é subitamente travada pelo confronto com a realidade de um dos elementos. “Passei a segunda parte do filme deitada no sofá, não me podia mexer muito e continuei a trabalhar com os monitores e os walkie-talkies que apareciam ao pé de mim. Decidimos então que aquele percalço também era o filme e deveria ser integrado na montagem.”
Carloto Cotta, Crista Alfaiate (caras conhecidas do cinema de Gomes) e João Nunes Monteiro (que foi o soldado Zacarias em “Mosquito”) são os três atores à procura das suas personagens em “Diários de Otsoga”
“Diários de Otsoga” deixa contudo margem suficiente para outras ‘provocações covid-19’ (duas cenas de dança, ainda que diferentes, ao som de Frankie Valli and the Four Seasons, para quem tem saudades delas e não pode dançar), assim como para efeitos cómicos que incluem a chegada via Amazon de embriões de borboleta congelados, chapéus de chuva coloridos em dia de aguaceiros ou discussões encarniçadas entre dois membros da equipa
5/6
técnica sobre a forma como deve ser servido o pequeno-almoço, um defende que aquele deve ser ‘socialista’ e igual para todos, outro exige que cada qual deve ter o direito a escolher o que quiser (era a equipa a escrever o filme sem se dar conta). “Também há situações em que o início do gag surge depois do momento em que ele é apresentado”, avança Gomes. “É o caso do trator da discórdia [às tantas, a equipa plantase em cima de um trator em movimento filmado em slow motion] no ‘momento soviético’ do nosso filme, e que o realizador decide filmar às escondidas, contra a vontade da realizadora, aproveitando a saída no dia em que ela tem de fazer uma ecografia. Enfim, isto foi o que inventámos. De repente, até aquele trator ganha uma história. Por acaso, acho-a resplandecente!”
6/6