Exclusivo "Foi o primeiro e, provavelmente, o último filme que fizemos juntos" dn.pt/cultura/foi-o-primeiro-e-provavelmente-o-ultimo-filme-que-fizemos-juntos-14039700.html 18 de agosto de 2021
© Gerardo Santos / Global Imagens
Como é que um casal continua apaixonado após a rodagem de uma longa metragem? Maureen Fazendeiro (MF): Este foi o primeiro e, provavelmente, o último filme que fizemos juntos. (risos). Miguel Gomes (MG)- Embora, curiosamente, não tenha corrido mal. Fora do contexto do filme, às vezes as coisas são mais complicadas. Na rodagem, o nosso entendimento não foi muito difícil. Aliás, o filme tem uma cena em que a personagem do realizador Miguel e da realizadora Maureen estão a discutir a questão do Cesare Pavese e do trator, onde ele quer filmar o trator e ela não, e isso é o que pode acontecer quando são duas pessoas a realizar um filme, trata-se de uma negociação e ali houve um empate. MF- E tudo aquilo era uma ficção - o trator não era uma ideia tua e o Pavese não era uma coisa minha, mesmo apesar de o ter referido. MG- Bem, o Pavese era teu! O que foi descoberto posteriormente foi o marmelo e é dos dois. Quem desempatou foi o marmelo. À parte de tudo isto, fazer um filme a dois é negociar. Tudo aquilo é encenado... Quando dizem encenado é importante realçar que este é um filme sem argumento... 1/6
MF- Sim, não havia argumento escrito. Entre o momento em que tivemos a ideia de fazer o filme e o momento em que entrámos na casa para filmar, passaram apenas três meses. Apenas tínhamos uma estrutura pensada na primeira semana em que lá chegámos com a argumentista Mariana Ricardo. Foi uma semana para explorar um sítio e ver o que dali podíamos tirar. O que sabíamos já é que o filme iria andar para trás, voltando atrás no tempo, e que se iria filmar uma construção em forma de diário. O filme não foi escrito, foi estruturado para depois ser reorganizado a cada dia para integrar coisas que poderiam acontecer. Há uma sequência em que vemos um quadro com os acontecimentos da história. MF- Esse quadro era o nosso argumento... MG- Um quadro importante pois era lido da esquerda para a direita, ou seja, líamos nos dois sentidos do tempo, sobretudo porque rodámos cronologicamente. Grande parte da montagem foi feita com aquele quadro. O que vos deixou mesmo mais surpreendidos em todo esse processo de deixar os elementos e as ideias a surgir? O cinema ainda pode oferecer um espaço de surpresa? MF- Os atores surpreenderam muitas vezes. MG- Como era um filme permeável também aos acontecimentos da nossa vida, logicamente, que a gravidez da Maureen foi marcante. Não estávamos à espera daquilo que se pode ver no filme... MF- Depois de uma semana de rodagem tive mesmo de parar e isso não é ficção: acompanhei a rodagem deitada num sofá com monitores. Não foi truque. MG- Tal como não foi também truque o dia em que saímos para ir à ecografia e deixámos os atores a filmar. A cena da casa de banho é da exclusiva responsabilidade dos atores. Quando chegámos nem sabíamos o que tinham filmado. Quando regressámos vimos a casa de banho do nosso quarto completamente de pantanas! Mas acho justo quando os realizadores abandonam o filme... Quando se deixa os atores filmar corre-se o risco de eles vandalizarem a nossa propriedade. Entre o exercício e o risco, pode-se dizer que Diários de Otsoga é um filme sem medo do vazio, de não acontecer nada? MG- A produtora Filipa Reis estava um bocado preocupada com isso, perguntava o que nós iríamos inventar, enquanto que o Luís Urbano estava um pouco mais à vontade. Mas quando há atores, uma equipa, uma câmara para filmar, árvores, vento, cães, o cinema acontece sempre. Era uma coisa quase cinema dos Lumière. À medida que o filme recua acho que se aproxima quase do princípio do cinema. Temos uma atriz a ajudar uma cozinheira a cortar batatas e os seus problemas porque as batatas são para o bacalhau com
2/6
natas e não para a caldeirada...Coisas muito simples e próximas da vida, aquilo que normalmente o cinema não filma. Mas também temos coisas completamente artificiais, como aquelas noites cuja iluminação é toda trabalhada de forma teatral...
3/6
© Gerardo Santos / Global Imagens
4/6
Depois sente-se a vantagem de ser filmado em película...A maneira como se capta o sol a bater na vegetação... MF- Tivemos o Mário Castanheira, que é um grande diretor de fotografia! MG- E é um trabalho também da Kodak, uma grande película, capaz de fazer com que o contraste entre as sombras e luz seja completamente diferente daquele que se consegue no digital. Basta uma brisa para agitar as folhas das árvores para tudo se animar. Por isso, tivemos o cuidado de escolher os locais onde iríamos filmar, estudar a luz, o percurso do sol, os filtros pelas árvores, etc. O filme foi rodado o ano passado numa altura em que as regras quase que impediam filmar-se um beijo e toda a possibilidade da aproximação num plateau...E vocês filmam um beijo e colocam as personagens a dançar. MF- Por isso, quisemos colocar as discussões da equipa de como organizar a nossa pequena comunidade, como é o exemplo das regras para o pequeno-almoço. MG- Sim, coisas como tirar ou não o fato de banho na piscina. MF- Ou se podemos ou não usar as meias uns dos outros. MG- Estão lá os choques entre vontades individuais numa espécie de desejo de coletivo. Dormem para o lado que vos der melhor quando lhes chegam aos ouvidos que isto da equipa aparecer no filme era algo que o Miguel já tinha feito noutros filmes? MG- Efeito de repetição? Pode haver tudo no mundo. MF- Não estávamos a pensar em Aquele Querido Mês de Agosto, mas sim no que tínhamos e o que tínhamos era muito pouco. MG- Tínhamos sobretudo uma série de pessoas que já trabalharam comigo antes. A discussão do pequeno-almoço com o Vasco Pimentel [responsável pelo som] parece rimar com uma cena de Aquele Querido Mês de Agosto mas a rima vem do próprio protagonista, ou seja, o Vasco é assim mesmo. Arrisca a tornar-se num dos grande comediantes do cinema português, não? MG- Sim, aceito isso! Mas não sei se ele estará de acordo. Seja como for, foi o próprio quem começou a dizer que já havia queixas no pequeno-almoço de gente que o acusava de roubar o pão dos outros. dnot@dn.pt No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais
5/6
antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio. Assine aqui aquele que é o seu jornal
Comentários
6/6